Contributos à análise do amor entre casais que vivem na rua
Contributions to the
analysis of love between couples who live on the street
https://orcid.org/0000-0001-7533-4636
Ana Cláudia Silva
FIGUEIREDO**
https://orcid.org/0000-0001-8974-0483
Resumo:
Aborda
os relacionamentos amorosos – afetivos e sexuais – entre moradores de rua, entendendo
tais vínculos como um evento – acontecimento culturalmente significativo em
determinado contexto. O presente estudo ancora-se nas construções teóricas de
Marshall Sahlins acerca desta categoria, bem como nos estudos voltados à
análise de como vínculos e emoções se conjugam e se inscrevem no campo social.
A partir da observação participante e da análise das produções bibliográficas
buscou-se entender como esses relacionamentos amorosos são vivenciados. Os
resultados do estudo indicam que o amor na (de) rua se constitui em um evento
na medida em que a rua é reinventada. Antes de ser um local de sofrimento, a
rua é o espaço do privado, de vivência da intimidade, de construção de vínculos
e relações amorosas. Moradores de rua em seu cotidiano vivenciam tal
experiência de acordo com o seu modo de vida, dentro do seu campo de
possibilidades, em geral esses encontros amorosos se inscrevem como histórias
de amores possíveis.
Palavras-chave: População em situação
de rua. Vínculos afetivos e sexuais. Evento.
Abstract: This
article aims to address the loving relationships –
affective and sexual ones – among the homeless, understanding such relations as
an event – culturally significant instances in a given
context. The present study is grounded on the theoretical constructions of
Marshall Sahlins about this category, as well as on the studies focused on the
analysis of how bonds and emotions are combined and inscribed in the social
field. From participant observation and analysis of bibliographic productions, we
sought to understand how these loving relationships are experienced. The
results of the study indicate that love on (of) the street is an event as the
street is reinvented. Before being a place of suffering, it is a space for the
private, for experiencing intimacy, for building bonds and loving
relationships. In their daily lives, homeless people go through this experience
according to their way of life, within their field of possibilities, in
general, these encounters are inscribed as stories of possible loves.
Keywords: Homeless. Affective and sexual bonds. Event.
Submetido em: 6/11/2020. Revisto em: 17/1/2023.
Aceito em: 5/3/2023.
Introdução
O |
s relacionamentos íntimos e amorosos entre casais em
situação de rua é um fato absolutamente corriqueiro entre as pessoas que vivem
neste espaço e seguem os mesmos padrões normativos dos relacionamentos
conjugais, exceto a ausência de moradia e de um espaço adequado para o exercício
da intimidade.
“Gina[1] é o meu
amor, com ela eu suporto tudo, passo fome e frio na rua. Temos planos, quem sabe
um dia de casar [...]. A gente come e bebe o que tem.
Gosto de ver o sorriso dela quando a gente acorda, ela é a melhor parte da
minha vida. Só saio da rua se for com ela.” Relatou Elias durante uma abordagem
socioassistencial, cujo objetivo era retirá-los – ele e sua companheira – da
rua. Entretanto, a única forma de acolhimento possível, na ocasião, era a de
abrigá-los em locais distintos, algo impensado para ambos. Fizemos questão de
anotar em sua ficha o argumento utilizado, dada a sua fundamentação e procedência,
ainda que soubéssemos que as instituições de acolhimento não reconhecessem como
legítima, a solicitação feita. Já Adriana e Alexon, ambos também moradores de
rua, conforme descrito numa reportagem do G1 (GIANTOMASO, 2020), conheceram-se
na rua, porém estabeleceram relações mais íntimas num abrigo, adaptado para o
acolhimento provisório, a fim de evitar a propagação do COVID-19 nesse segmento
social. Adriana relatou que, após uma semana no abrigo, Alexon decidiu
abandonar o local: "eu não podia deixar o amor da minha vida ir
embora!", confessa Adriana. A partir de então, passaram a viver juntos,
como casal.
Os depoimentos indicam
que, subvertendo expectativas e projeções em torno deste ambiente, a rua pode
também significar, para quem nela sobrevive, um lócus de construção de redes de
afeto e não somente um espaço de dor, de isolamento e de solidão. Portanto, a
rua, espaço físico e social onde estão situados os corpos desses sujeitos, é
também lugar de construção e reconstrução de valores, de modos de vida, de
estratégias de sobrevivência, de vínculos de amizade e também
de histórias de amores possíveis.
O que ambos os relatos
(de Gina e Elias; Adriana e Alexon) nos revelam é que, tal como argumenta o antropólogo
americano Marshall Sahlins (1987, p. 174), “[...] o uso de conceitos
convencionais em contextos empíricos, sujeita os significados culturais a
reavaliações práticas”. Pois, “[...] nada pode garantir que sujeitos
inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas, utilizarão
as categorias existentes das
maneiras prescritas” (SAHLINS, 1987, p. 181). As ações criativas dos sujeitos
históricos implicam na reavaliação dos significados na prática, alterando
historicamente os esquemas culturais no mundo ou na ação: “Os significados culturais,
sobrecarregados pelo mundo, são assim alterados” (SAHLINS, 1987, p. 174).
Portanto, a cultura não é algo estável. Ela é sempre um entrecruzamento.
Partindo do argumento
em defesa da inseparabilidade da reprodução e transformação cultural, Sahlins sugere
o conceito de estrutura da conjuntura, fundamental ao entendimento da mudança
cultural. Tal conceito encontra-se associado ao modo como as culturas reagem a
um evento, possibilitando ao contexto imediato dialogar com estruturas
anteriores. Na definição do autor (SAHLINS, 1987), evento consiste na “[...] realização
prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim
como se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a
microssociologia de sua interação” (SAHLINS, 1987, p. 15). Adiante, complementa
(SAHLINS, 1987): “[...] um conjunto de relações históricas que, enquanto
reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto
pragmático” (SAHLINS, 1987, p. 160). A estrutura da conjuntura, por se tratar
de um conceito inserido entre o evento e a estrutura, pode ser considerada uma
noção mediadora entre sincronia e diacronia.
Este artigo, em diálogo
com tal referencial, tem como principal objetivo abordar, através de produções
bibliográficas e da observação participante, os relacionamentos afetivos e
sexuais de pessoas que têm a rua como espaço de moradia permanente[2],
característica urbana que se eleva à condição de evento – um acontecimento
culturalmente significativo em determinado contexto, posto a pressionar a
estrutura da conjuntura. Tomamos de empréstimo para tal as construções teóricas
de Marshall Sahlins acerca dessa categoria, bem como estudos voltados à análise
de como vínculos e emoções se conjugam e se inscrevem no campo social (LE BRETON, 2009; PAUGAM, 2008, 2019;
REZENDE; COELHO, 2010).
A problemática da
população de rua tem sido um tema abordado em diversas áreas do conhecimento e
amplamente estudado no campo das Ciências Sociais a partir de diferentes perspectivas
históricas, estruturais e culturais. Para a compressão desta categoria social
na contemporaneidade foram mobilizados diferentes autores: ARAÚJO, 2008;
BURSZTYN, 2008; ESCOREL, 1999, 2008; CEFAÏ, 2013; FREHSE, 2013; BRAGA; SOUSA,
2019; HONORATO; OLIVEIRA, 2020; MACHADO; NUNES, 2022; SPOSATI, 2009.
Contudo, o foco da
produção teórica ainda tem se debruçado em analisar este fenômeno sob o prisma da
pobreza, exclusão e vulnerabilidades
dele decorrentes. Ainda há uma escassez de estudos e pesquisas voltadas para o
tema das emoções na vida das pessoas que estão em situação de rua[3].
Há de se
considerar, nesse aspecto, que as imagens sociais projetadas em torno da rua
não a reconhecem como espaço dos afetos. Nas esteiras da clássica oposição casa
versus rua, dentro da proposta
damattiana (DAMATTA, 2012), a casa seria o local da privacidade e da
intimidade; já a rua, o espaço do anonimato e da desordem. Contribuindo para
esse debate, o historiador Robert Pechman (2009), entende que, desde o século
XVII, a rua é tematizada pelo viés da desordem, do vício e do perigo: “[...] é
de lá que a ameaça promete corroer a sociedade, com a peste, as epidemias, as
doenças, a sujeira, os miasmas, [...], a prostituição, a sexualidade, a mendicância,
a incivilidade, a violência, a revolta, a insurreição e... a revolução” (PECHMAN, 2009, p. 353). Entendemos, portanto, que o amor na
(de) rua subverte, de algum modo, tais projeções.
A escolha por tal
objeto de investigação encontra-se diretamente relacionada à nossa trajetória
profissional de 18 anos de atuação no campo da assistência social numa grande
metrópole brasileira, intervindo diretamente nas questões de famílias e indivíduos
em situação de vulnerabilidade e violação de direitos, bem como por meio do
nosso exercício no magistério superior, trabalhando com o tema da exclusão
social e do lugar das emoções e dos sentimentos associados aos que sobrevivem a
essa situação.
Ao longo desse
percurso, percebemos nas narrativas dos colegas de trabalho familiarizados com
o tema, bem como por meio da observação participante, em diversos momentos de
interlocução com moradores de rua, a pouca, ou mesmo, inexistente percepção
social de que entre moradores de rua se formem casais, unidos por vínculos amorosos,
afetivos e sexuais.
Defendemos a relevância
sobre tal questão, afinal os relacionamentos afetivo-sexuais assumem um papel
central para o ser humano, compondo os fios fundamentais da tessitura social.
Os indivíduos que estão em situação de rua, embora estigmatizados e excluídos
de aspectos fundamentais da sociedade, como pessoas, não estão isentos de
manifestar sentimentos. Logo, ainda que desconsideradas, as emoções constituem
um lugar importante na vida desses sujeitos e os relacionamentos afetivo-sexuais
(namoro, casamento, rolo ou qualquer outra definição), por sua vez, acatando a
idealização em torno do amor, estão incorporados em seu modo de vida,
alimentando seus sonhos e projetos possíveis[4].
Entendemos que a
abordagem priorizada por esse estudo, enfocando as relações afetivo-sexuais de
casais em situação de rua, pode contribuir para novos olhares sobre a questão,
aprofundando e complexificando o entendimento sobre o fenômeno, fornecendo,
desse modo, elementos para que se possa compreender e tratar essa problemática
sob outras perspectivas. Impacta o trabalho, assim, na criação de políticas
públicas condizentes, de programas, de projetos e de ações voltados para esse
segmento, bem como para o aprimoramento das estratégias de atuação profissional
nessa área.
As questões trazidas
por este estudo encontram-se intimamente relacionadas ao processo de
pauperização, de acirramento das desigualdades e da consequente exclusão
social, vivenciada historicamente por segmentos da sociedade brasileira. Tal
processo adveio, sobretudo, das transformações das relações sociais: senhorial-escravista
para burguesa-capitalista, no contexto da urbanização do país (VALLADARES,
1991). Desde então, é possível observar que a pobreza no Brasil tem uma cor,
dada ser composta, majoritariamente, por homens, mulheres e crianças negras, os
quais, mesmo depois da abolição da escravatura, não foram totalmente incorporados
à dinâmica da sociedade – industrial e capitalista – emergente[5].
Segundo Telles (2001), a
pobreza brasileira subsistiu nas franjas do mercado de trabalho, no submundo da
economia informal, nos confins do mundo rural e de herança oligárquica, ou seja,
naquilo que presidiu a entrada do país no mundo capitalista. Para a autora, a
nossa pobreza nunca foi formulada no horizonte da cidadania. A população em
situação de rua é, inquestionavelmente, a expressão mais aguda desse processo de
pauperização da sociedade brasileira[6].
O Estado brasileiro,
mormente assegura no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 o direito social
à moradia[7] a todos os
cidadãos, entretanto sabemos tratar-se ainda de uma questão de distante
alcance. Pois, como nos ensina Gueiros (1991, p. 54), “[...] o estatuto legal
não é garantia de exercício de direito. Nem sempre as forças que bastam para a
inclusão do direito ao nível do jurídico são suficientes para forçar a sua
efetivação”. Ao observarmos com destaque as grandes metrópoles brasileiras,
notamos que o fenômeno da população em situação de rua tem perfil variado – pessoas
de diferentes ciclos etários – e tem se expressado de forma crescente no que
tange à exclusão e ao isolamento.
Vale observar que o
Brasil não conta com dados oficiais sobre esse segmento populacional, o que implica
negativamente na implementação de políticas públicas voltadas para o
enfrentamento da questão. O Censo Demográfico de 2010 e o Censo em andamento de
2022 incluem na sua contagem apenas a população domiciliada.
Desse modo, o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), desde 2015, tem baseado sua estimativa
sobre a população em situação de rua no Brasil utilizando-se de dados oficiais
informados por 1.924 prefeituras. A última nota técnica do IPEA (NATALINO, 2022) analisou a evolução no quantitativo
de população em situação de rua entre 2012 e 2022 a partir de um modelo teórico
que considera variáveis de crescimento demográfico, centralidade e dinamismo
urbano, vulnerabilidade social, equipamentos e serviços da assistência social
voltados à população de rua, bem como o número de pessoas em situação de rua
cadastradas no Cadastro Único. Para 2022, o Instituto estimou que existam
281.472 pessoas em situação de rua no Brasil.
Este estudo comparativo
do IPEA (NATALINO, 2022) mostra que entre 2012 e 2022 houve um aumento de mais
de 300% desse segmento populacional, especialmente na Região Sudeste (53,75%)
obedecendo a mesma escala das pesquisas anteriores. Entre 2020 e 2021, a
explosão desse fenômeno deve-se ao impacto da pandemia da COVID-19 sobre o
aumento das vulnerabilidades e da pobreza, que tiveram como consequência o
aumento do número de pessoas em situação de rua. Como o segmento mais
vulnerável da população, por não possuir condições de atender aos padrões de
higiene, proteção e isolamento recomendados pelas organizações sanitárias, a
população em situação de rua configura-se nesse contexto como uma questão
complexa, tanto do ponto de vista das políticas públicas, quanto como objeto de
estudos e pesquisas científicas.
Ademais, tomando como
referência o censo realizado na cidade do Rio de Janeiro em 2020, pelo Instituto
Municipal de Urbanismo Pereira Passos e pela Secretaria Municipal de
Assistência Social, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde,
contabilizou-se 7.272 pessoas vivendo em condições de extrema vulnerabilidade
social na metrópole carioca[8]. Sobre o
perfil destaca-se que: a maioria são pessoas do sexo masculino (80,7%), que
possuem entre 18 e 49 anos (65,7%) e com baixa escolaridade (Ensino Fundamental
– 67%). A concentração se dá na maior parte na região central (31,9%), área que
abriga os centros histórico e econômico da cidade. De acordo com os dados,
62,8%, declaram realizar alguma atividade para obter renda. Dentre as principais
atividades identificadas estão a catação de materiais recicláveis ou lixo (47,5%)
e a comercialização informal de produtos na rua (26%). Cerca de 3.289
entrevistados responderam fazer uso de pelo menos 1 tipo de droga, sendo 797
casos de uso de crack e 1.169 de cocaína. A condição de vulnerabilidade social
extrema se acentuou ainda mais com a pandemia da Covid-19. Aproximadamente 750
pessoas indicaram ter ido para as ruas depois que a pandemia começou e os
principais motivos foram a perda de emprego e de moradia.
Em que pese essa realidade,
há de se considerar que a implementação da Política Nacional de Assistência Social
(PNAS), em 2004 (BRASIL, 2005), representou um
importante avanço no campo da assistência social para esse segmento, dado ter
assegurado a essa população, os serviços de atendimento especializados.
A PNAS (BRASIL, 2005) reordenou
a política de assistência no país, alçando-a ao status de política pública no
âmbito do Sistema de Seguridade Social, fomentando condições materiais para a
criação e implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como um sistema
descentralizado, participativo e não contributivo que tem como objetivo
assegurar a proteção social aos indivíduos e famílias por meio da oferta de
ações, serviços, programas e projetos socioassistenciais. A proteção social no âmbito
do SUAS está organizada por níveis de complexidade em Proteção Social Básica e
Especial. A temática da população em situação de rua configura-se como demanda
complexa, cuja referência são os serviços de média e alta complexidade
ofertados nos espaços dos Centros de Referência Especializados de Assistência
Social, dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de
Rua e das Unidades de Acolhimento, que por sua natureza devem realizar as ações
de busca ativa, abordagem social, atendimento / acompanhamento e acolhimento institucional.
Temos também a
aprovação do Decreto Federal nº 7.053, em 2009, que instituiu a Política
Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, outro marco regulatório importante. Um dos pontos
relevantes trazidos pelo decreto é em relação à definição de população em
situação de rua, entendida como segue:
Art. 1o Fica instituída a
Política Nacional para a População em Situação de Rua, a ser implementada de
acordo com os princípios, diretrizes e objetivos previstos neste Decreto.
Parágrafo único. Para
fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo
populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional
regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como
espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as
unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória
(BRASIL, 2009a, não paginado, grifos nossos).
À luz do decreto, esse
segmento no Brasil seria formado, tal como nos sugere Bursztyn (2008), pelos “[...]
desnecessários, [...], os nômades, excluídos e viradores [...]”
(BURSZTYN, 2008, p. 139) ou meramente lúmpen,
que sobrevivem de esmolas, da caridade pública ou privada e de biscates e de
atividades informais. São ainda, na definição de Escorel (2008, p. 139), “[...]
personagens e cenários do drama social, naturalizados e banalizados em sua miséria
e isolamento que vivem nas ruas sem poder se fixar e expostos a própria sorte”.
Configura-se, nesse sentido, dentre as questões mais desafiantes da pobreza
contemporânea e uma das maiores expressões da exclusão social.
Castel (1997), ao
abordar o tema da exclusão social, discorre sobre um conjunto de privações
relacionadas à instabilidade ou à expulsão do mercado de trabalho, à inserção
relacional, às fragilidades dos suportes protetores ou ao isolamento social.
Para o autor, há um modo de existência de um certo número de grupos ou de
indivíduos rejeitados do circuito comum das relações sociais, são os
indigentes, os drop outs, sem
domicílio fixo, ou seja, os desfiliados, indivíduos que deixam de pertencer,
de estar vinculados ao universo do trabalho e/ou a redes sociais mais amplas.
Para Castel (2000), a desfiliação é a categoria que se manifesta com maior
impacto na vida do indivíduo, dada a ruptura que promove em relação às normas
de reprodução social hegemônicas, alterando as formas de sociabilidade, impactando
nas referências sociais de moradia, família, amigos e outras formas de
identidade e inserção social do sujeito.
PAUGAM et al.
(2003), adensando o debate, entende ser a pobreza, além de um estado de
carências materiais, um estatuto social específico e inferior, o qual implica
em processos de perdas de referências (dessocialização) e de desqualificação
social. Entende ser esta “[...] um processo dinâmico que tem múltiplas
dimensões, além da questão econômica e social, ela perpassa pela identidade dos
sujeitos e a percepção que estes têm acerca de sua própria situação e de sua
relação com os outros” (PAUGAM et al., 2003, p. 47).
Dialogando com esses
autores, Escorel (1999) pensa o fenômeno da população em situação de rua para
além da dimensão extrema da pobreza, da miséria e da exclusão. Considera, assim,
o aspecto pessoal do indivíduo, destituído de família, de rumo, de renda e de
seu lugar no mundo, cuja rotina de sobrevivência é marcada não só pela busca
por lugares, redes de apoio e de identidade, mas, notadamente, por uma trajetória
assinalada por medos, ausências e preconceitos.
Afinal, viver na rua impõe
aos sujeitos uma condição de invisibilidade, anonimato e rompimento com padrões
de hábitos e costumes socialmente esperados, muitos dos quais associados ao
processo de formação do homem civilizado (ELIAS, 2011) – a exemplo de fazer as
refeições sentado à mesa, usando garfo, faca e guardanapo, dormir na cama,
tomar banho, manter relações sexuais em espaço privado, realizar necessidades
fisiológicas em lugares adequados[9]. Nesse sentido,
a sobrevivência no contexto da rua impõe a suspensão das noções de vergonha,
higiene e da própria ideia de individualidade, componente central da
modernidade.
A despeito dessa
difícil situação, contraditoriamente, a população em situação de rua, através
das suas ações práticas, ressignifica também o estar nesse lugar. Pois, morar
nesse espaço requer desses indivíduos criatividade e adaptações para o enfrentamento dessa realidade. Defendemos o argumento de que tal acontecimento urbano se eleva à
condição de evento, na proporção que a rua é reinventada como espaço do privado,
de vivência da intimidade, de construção de vínculos e relações amorosas.
O eixo fundamental das
reflexões de Sahlins em sua obra Ilhas de
história (1987) está construído na relação entre história, estrutura,
evento e dinâmica cultural. Para esse autor, “[...] a história é ordenada culturalmente
de diferentes modos [...]. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais
são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados
são reavaliados quando realizados na prática” (SAHLINS, 1987, p. 7).
Nesse sentido, a cultura
é historicamente tanto reproduzida como alterada na ação. Pois, se, por um
lado, as pessoas conferem sentido aos objetos e organizam seus projetos a partir
de pré-noções de ordem cultural; por outro, as ações criativas dos sujeitos
históricos implicam na reavaliação dos significados na prática, modificando
historicamente os esquemas culturais. Na medida em que os significados são
submetidos a riscos empíricos, o simbólico é pragmático e o sistema é a síntese
da reprodução e da variação.
Para o autor, a
estrutura – relações simbólicas de ordem cultural – é na verdade um objeto
histórico: “[...] o problema agora é de fazer explodir o conceito de história
pela experiência antropológica da cultura. As consequências [...] não são
unilaterais; [...] uma experiência histórica fará explodir o conceito antropológico
de cultura – incluindo a estrutura” (SAHLINS, 1987, p. 19). A estrutura se
realiza tanto na convenção quanto na ação. Assim, caso as relações entre as
categorias mudem, a estrutura é também transformada. Para Sahlins, a cultura –
por ser um objeto histórico, logo, arbitrário – funcionaria como uma síntese de
estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia.
Portanto, a cultura não é algo estável. Ela é sempre um entrecruzamento.
A fim de evidenciar que
história e estrutura não se excluem mutuamente, Sahlins analisou os impactos da
chegada às ilhas havaianas, durante o século XVIII, de James Cook, capitão da
Marinha Real inglesa:
Ao chegar
em 1779, Cook foi inicialmente recebido como um Deus descido a terra,
especificamente como Lono, um dos maiores deuses do panteon havaiano. Quando,
poucos meses mais tarde, Cook levantou velas, mas foi inesperadamente forçado a
voltar ao porto, o estado de espírito dos havaianos mudou drasticamente e Cook
foi morto numa briga sobre um barco (SCHWARTZMAN, 1984, p. 272).
Para o autor, a
experiência de Cook comprovou que o mundo não é obrigado a seguir a lógica pela
qual é concebido. Segundo Sahlins, a partir do evento do retorno do Capitão Cook, os nativos orquestraram-no a seu
modo, com sua historicidade, conferindo-lhe significação de acordo com as suas
categorias culturais: “[...] culturas diferentes, historicidades diferentes”
(SAHLINS, 1987, p. 21). Evidencia-se, ainda, que a transformação de uma cultura
é também um modo de sua reprodução. Podemos perceber em tal análise um clássico
exemplo da teoria do autor acerca das relações entre estrutura e evento:
Cada
qual à sua maneira, chefes e povo reagiam ao estrangeiro de acordo com suas
auto concepções e seus habituais interesses. As formas culturais tradicionais
abarcavam o evento extraordinário e recriavam as distinções dadas de status,
com o efeito de reproduzir a cultura da forma que estava constituída. As
condições específicas do contato europeu deram origem a formas de oposição entre
chefia e pessoas comuns que não estavam previstas nas relações tradicionais. No
mundo ou na ação tecnicamente, em atos de referência - categorias culturais adquirem
novos valores funcionais (SAHLINS, 1987, p. 174).
Desse modo, um evento,
conforme demonstra Sahlins, não constitui apenas em um acontecimento do
fenômeno, mas naquilo que é dado como interpretação, e adquire significância
histórica apenas quando apropriado pelo esquema cultural.
Segundo Sahlins (1987;
2004), um evento se implanta no domínio humano por meio dos valores
culturalmente estabelecidos. Haja vista que o nosso interesse e investimento no
passado não se constituem em uma simples vontade de compreender aquilo que foi
feito e concebido anteriormente a nós. Para o autor, entre os fatos e
nós, há um contexto e um sistema que media o que compreendemos como evento, sendo
a “[...] cultura justamente a organização da
situação atual em termos do passado” (SAHLINS, 1987, p.193).
Na prática
historiográfica, agitações a um dado fluxo normativo são aquelas comumente
elevadas ao patamar de eventos. Seres, objetos ou atos específicos são
totalizados de acordo com o contexto em que ocorrem. São capazes, portanto, de
afetar a ordem de um dado sistema. Inversamente, de acordo com o contexto das
relações de um sistema, categorias e hierarquias são particularizadas em
pessoas, lugares, objetos ou atos específicos.
O evento se desdobra simultaneamente
em dois planos: como ação individual e como representação coletiva; como a
relação entre certas histórias de vida e uma história acima e além dessas outras;
o evento é uma atualização única de um fenômeno geral; temos por um lado, a
contingência histórica e as particularidades da ação individual e por outro,
aquelas dimensões recorrentes do evento, onde podemos reconhecer uma certa
ordem cultural (SAHLINS, 1987, p. 143-144).
Nessa perspectiva,
podemos pensar no amor na (de) rua como um evento, na proporção em que este se
revela, para além de sua dimensão individual e coletiva, mas, sobretudo, na
dimensão simbólica. Traduzindo-se, assim, numa atualização na forma de viver e
habitar esse espaço, rompendo-se, desse modo, com uma perspectiva de uma história
única de dor e sofrimento para aqueles que moram na rua, representando uma
guinada na forma de se realizar a experiência e o espaço do exercício da vivência
amorosa. Afinal,
Se
percorrermos a história da pintura, a partir do século XVIII, se enveredarmos
pela literatura do século XIX, se adentrarmos o cinema do século XX e se
espreitarmos a publicidade do século XXI, verificaremos como a rua vai ser tematizada
pelo viés da desordem, [...] lugar da arruaça. [...]. Rua há sempre de lembrar
a ralé, o viver sem teto, a ausência de família, a falta de amarras, a exclusão
(PECHMAN, 2009, p. 263).
Garantir a
sobrevivência em ambiente tão inóspito, requer dos sujeitos, que moram
permanentemente nesse lugar, saber manejá-lo, estabelecendo vínculos com redes
de solidariedade e de cuidado mútuo. Ganha relevância nesse aspecto conhecer os
serviços públicos disponíveis, com destaque para os de saúde e assistência
social, as organizações de suporte para banho, alimentação, dentre outros.
Importa destacar nessa
última questão que a população em situação de rua carrega consigo uma
trajetória de quebra de vínculos de trabalho e do ideal de cidadania. Ademais, seus vínculos de filiação e
parentesco, em sua grande maioria, estão esgarçados ou mesmo rompidos. Isolamento
e solidão são palavras comumente evocadas para descrever a situação desses
sujeitos. Para Escorel (1995), a principal característica do isolamento
é a impotência e a incapacidade de agir.
Não posso agir porque não há ninguém para agir
comigo. [...] o isolamento torna-se insuportável quando o homem isolado não é ‘de
interesse de ninguém’. E aí o isolamento torna-se solidão. A solidão significa
a experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e
desesperadas experiências que o homem pode ter (ESCOREL, 1995, p. 9).
Todavia, tal como entendido por Paugam (2019), estabelecer
vínculos faz parte da existência humana, assegurando aos homens e mulheres
proteção frente aos riscos do cotidiano e reconhecimento de sua existência e
identidade. Tal assertiva se expressa com vigor nas estratégias de sobrevivência
da população em situação de rua.
O viver na rua não se garante com práticas de
isolamento e sem trocas, faz-se necessário tecer redes de solidariedade. Quem
cai na rua não tem como viver sozinho. Para ser aceito ‘não pode ser um
parasita’, e isso inclui compartilhar desde o pedir dinheiro ou alimento aos
transeuntes, realizar pequenos serviços como limpar a rua, cuidar do lixo de
algum estabelecimento comercial, fazer pequenos favores aos comerciantes ou
camelôs, dentre outros (KUNZ; HECKERT; CARVALHO, 2014,
p. 927).
Portanto, os indivíduos,
ainda que passem por processos de rupturas, têm a necessidade e a capacidade de
estabelecerem novos vínculos, edificados por laços de amor, amizade,
solidariedade, afinidade ou pela participação em um mesmo modo de vida, isto é, pelo compartilhamento de uma forma de organização social com
estratégias, uso do espaço e estabelecimento de relações próprias da sobrevivência
(PAUGAM, 2019).
É pelo modo de viver na
rua, com suas regras e códigos de conduta particulares, que a população
moradora desse lugar, através de ações criativas, movimenta encontros e afetos
decorrentes, construindo e reconstruindo vínculos, os quais podem se desdobrar
em um tipo específico: os relacionamentos afetivo-conjugais.
Nesta perspectiva, se o
evento é uma diferença que faz diferença, a existência de casais que
vivenciam a experiência do amor na rua impõe perturbações a um dado fluxo normativo
– mais do que uma simples irrupção de um acontecimento urbano, própria da
cotidianidade no tecido da cidade –, implicando na possibilidade da reavaliação
dos significados e categorias, associados às ideias de isolamento, solidão e ausência
de vínculos, historicamente atribuídas em torno do viver permanentemente na
rua. Alargam-se, desse modo, as maneiras de se conceber o estar nesse
local e o ser desse local.
Todavia, há de se
considerar que um evento não existe sem o sistema simbólico: “[...] é que a definição
de um ‘algo-acontecido’, como um evento, assim como suas consequências
históricas específicas, tem de depender da estrutura em vigor” (SAHLINS, 2004,
p. 322). Acontecimentos só se tornam eventos quando se projetam como algo
significativo com efeitos históricos, abrigados na cultura em questão, cuja
maneira de acolhimento nunca é a única possível, posto ser o evento uma
interpretação de algo acontecido e interpretações variam. Nas palavras de
Sahlins (2004, p. 372): “As ordens culturais são sistemas-de-eventos, uma vez
que se reproduzem por meio de um mundo do qual elas mesmas não são produtoras”.
Nessa perspectiva,
conforme já discutido nesse estudo, quando olhamos para trás, o fazemos dentro
de uma lógica cultural na qual estamos inseridos. Sahlins parte da concepção de
que as pessoas usam as ordens culturais para moldar sua construção e ação no
mundo. Quando agem, as pessoas colocam suas construções em jogo, usando-as para
se referir ao mundo. Pois, O olho que vê é o órgão da tradição (BOAS, 1986).
Ancorando-nos em tais
contribuições, podemos afirmar que as percepções que circulam em número maior
na sociedade em torno da conjugalidade não reconhecem como casal duas pessoas
em situação de rua que vivem um relacionamento afetivo-sexual. Esse fato se encontra
refletido no desenho das políticas públicas.
No caso específico da
cidade do Rio de Janeiro, não há serviços públicos de acolhimento na modalidade
casal. Os quartos são coletivos e os alojamentos organizados por sexo e faixa
etária. Por essa razão, muitos casais não aderem ao abrigamento e permanecem dormindo juntos na rua[10]. A
negação da legitimidade dessas relações também aparece no conteúdo da ouvidoria
pública municipal, serviço destinado ao atendimento de queixas, solicitações e
reclamações do cidadão carioca[11]. Dentre as
queixas em relação à população em
situação de rua, através desse canal, encontram-se aquelas registradas pela
presença de casais dormindo juntos e fazendo sexo na rua. Tais fatos permitem
também entrever o estigma (GOFFMAN, 1988) em torno desses sujeitos[12].
Destacamos que, ainda
que impere o não reconhecimento dessas relações, existem iniciativas, advindas
de organizações da sociedade civil, a exemplo do Movimento Nacional da
População de Rua e do Movimento Nacional de Casais em Situação de Rua, que
reivindicam a garantia dos direitos dos casais em situação de rua enquanto
família. Retomando as contribuições de Sahlins, podemos pensar em tais
movimentos como aqueles com potencial de não apenas incorporar uma ordem
sistêmica, mas de transformá-la através de atos-mediações que representem as
disposições de todo um grupo. Os atos dos indivíduos sócio-históricos são
transformados em ícones de conceitos que interagem com a estrutura social.
O indivíduo é um ser social, mas nunca devemos
esquecer que é um ser social individual, com uma biografia que não é idêntica à
de ninguém mais. Trata-se de alguém a quem ‘é preciso prestar atenção’. Isso
porque, [...] se existe um ‘mim’ que incorpora a atitude de algum grupo em
algum nível de generalidade, há também um ‘eu’ que preserva uma liberdade
potencial de reagir ao ‘outro generalizado’ (SAHLINS, 2004, p. 309).
Entendemos que no “[...]
imaginário social, evoca-se a ideia do casal como um par associado por vínculos
afetivos e sexuais de base estável, com um forte compromisso de apoio recíproco,
com o objetivo de formar uma nova família incluindo, se possível, filhos” (FERES-CARNEIRO;
DINIZ NETO, 2010, p. 270). Ou seja, uma concepção de conjugalidade pensada a partir da realidade dos extratos
médios da sociedade, cujo projeto e a ideia de casal estão bem definidos a
partir de um modo de vida próprio desse segmento, nos quais encontram-se presentes
objetivos comuns de filhos, aquisição de bens e da preservação da
individualidade. Tal repertório social encontra-se ainda estreitamente
vinculado ao ideal de amor-romântico e ao casamento.
Segundo Giddens (1993),
a valorização do afeto e do erotismo como base do relacionamento conjugal,
assim como a ideologia do amor-romântico, são invenções caudatárias da ideologia
burguesa, a partir do século XVIII, quando a sexualidade passa a ocupar papel
central dentro do casamento. No decorrer do século XIX, o amor romântico fez do amor passion um conjunto de crenças e o amor passou a ser projetado na
idealização do outro, assumindo um caráter sonhador e fantasioso.
E são as categorias
associadas ao paradigma do amor romântico que os casais em situação de rua vêm
questionar. Encontrando-se vinculadas a essa percepção de amor, os ideais de
beleza e de limpeza, de vivência da intimidade de forma privada, longe do olhar
público. Ao não se encaixarem nesse padrão de relação amorosa evocado em número
maior no imaginário social, tais casais, por meio de suas ações práticas, vivem
essa experiência dentro das possibilidades apresentadas pelo seu modo de vida.
Contudo, como bem
demonstra Sahlins, o mundo não é obrigado a se reproduzir tal qual pensado por
categorias tradicionais, pois os significados culturais se alteram a partir de
novos valores funcionais atribuídos às categorias, ora por meio de mudanças no
mundo ou por atos de referência. Ao transformar as relações entre categorias, a
estrutura finda por se transformar também: “[...] a cultura funciona como uma
síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente” (SAHLINS, 1987, p. 180).
No desenrolar dos
acontecimentos, ao interpretar o passado, homens e mulheres repensam suas
categorias, submetendo-as a riscos empíricos, do cotidiano. Remodela-se, nessa
perspectiva, o sentido original das categorias culturais pela introdução de novos
significados, de novos símbolos, acarretando alterações na maneira de pensar e
agir da sociedade.
Argumentamos que esses
casais experimentam histórias e amores possíveis, permeados de uma
multiplicidade de emoções e sentimentos, tal como destaca Goldenberg (2001)
usando como referência Simone de Beauvoir (1980) na célebre obra O segundo sexo. Entre um homem e uma
mulher há muitas possibilidades de relacionamentos afetivos, tais como: o amor,
a amizade, o prazer sexual, a cumplicidade, a camaradagem, a confiança e a
ternura. Cada casal dentro do seu campo de possibilidades encontra uma forma ideal
para suas relações. As elaborações da autora se mostram bastante apropriadas
para situar e legitimar os relacionamentos entre casais sob quaisquer situações.
Tendo como ponto de
partida nossa trajetória profissional, como assistentes sociais numa grande
metrópole brasileira e no exercício do magistério superior, buscamos analisar o
fenômeno do amor na (de) rua como um evento, tal como proposto por Sahlins. A
interlocução com o pensamento do autor e com outros referenciais dos campos
sociológico e antropológico permitiu desenvolver a ideia central desse estudo:
o amor, vivido na rua, espaço historicamente associado “[...] ao conflito, à confusão,
à desordem; a algo da qualidade do externo, do público, do mundano [...]; a
algo da ordem popular, plebeia, vulgar” (PECHMAN, 2009, p. 356). Constituindo,
dessa forma, um acontecimento cultural significativo, um evento, posto
subverter categorias culturais tradicionais sob as quais o amor é pensado,
vinculado, notadamente, ao ideal do amor-romântico.
Entendemos que, ainda
que as pessoas em situação de rua não estejam alheias a tais projeções em torno
do amor, a rua não oferece condição alguma ao ritual dessa experiência, dado,
sobretudo tendo em conta a inexistência de espaço reservado à intimidade,
tampouco à higiene adequada. Argumentamos, portanto, que os casais em situação
de rua vivenciam a experiência afetivo-sexual de acordo com o seu modo de vida,
dentro de um campo de possibilidades, desfrutando, assim, de história e de
amores possíveis.
O amor na (de) rua se
eleva, portanto, a condição de evento, na medida em que a rua é reinventada
como espaço do privado, de vivência da intimidade, de construção de vínculos e
de relações amorosas. E, ato contínuo, local de exercício da sexualidade e do
erotismo, experienciado, agora, sob os olhares indiscretos e reprovadores da
sociedade. Evidencia-se, desse modo, que “[...] o mundo não é obrigado a obedecer
à lógica pela qual é concebido” (SAHLINS, 1987, p. 174).
À luz dos referenciais
que consubstanciaram o projeto ético-político profissional do serviço social
brasileiro, assistentes sociais devem estar capacitados para investigar,
acolher e encaminhar as demandas da díade, oferecendo olhares diferenciados
acerca desse fenômeno social. Trata-se, portanto, de esquadrinhar a rua não
somente enquanto espaço de relações de produção, mas, também de produção de
relações (PORTELLA, 1995).
Adensam-se, desse modo, as possibilidades de compreensão e de engajamento
político na defesa e ampliação dos direitos da população em situação de rua.
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________________________________________________________________________________________________
Nádia Xavier MOREIRA Trabalhou na redação e
na revisão crítica do artigo.
Pós-doutorado em Antropologia Social pelo Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Serviço Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em Antropologia Social
pela Universidade de Brasília. Oficial Superior da Marinha do Brasil (Capitão
de Fragata). Professora da Escola Superior de Defesa (ESD).
Ana Cláudia Silva FIGUEIREDO Trabalhou
na concepção e delineamento do artigo.
Assistente Social
graduada pela Universidade Federal do Maranhão, Pós-Graduada (Mestrado em
Serviço Social) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, compõe
o quadro técnico como servidora estatutária da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro desde 2004. Profissional com vasta experiência e conhecimentos
específicos na execução e gestão da Política de Assistência Social, da Política
de Acolhimento e Atendimento a crianças e adolescentes com foco na violação de
direitos (trabalho infantil, violência doméstica e sexual). Atualmente presta
assessoria técnica ao gabinete da Secretaria Municipal de Assistência Social da
Cidade do Rio de Janeiro e desenvolve pesquisas sobre População em Situação de
Rua.
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* Assistente Social. Doutora em Serviço Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Escola Superior
de Defesa. (ESG, Brasília (DF), Brasil). St. de Mansões Dom Bosco, Setor de Habitações Individuais
Sul, Lago Sul, Brasília (DF), CEP.: 71686-900. E-mail: nadiaxmoreira@yahoo.com.br.
** Assistente
Social. Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC, Rio de Janeiro, Brasil). Assistente social da Prefeitura
do Rio de Janeiro. (PMRJ, Rio de Janeiro, Brasil). Rua Afonso Cavalcante, nº 455,
sala 501, Cidade Nova, Rio de Janeiro, CEP.: 20211-110. E-mail: nanafiguei@hotmail.com.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023. Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1] Os
nomes dos participantes desse estudo foram alterados para garantir a
confidencialidade.
[2]Levantamento realizado em
2020 (RIO DE JANEIRO, 2020), pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos
Humanos, em parceria com o a Secretaria Municipal de Saúde e do Instituto Municipal
de Urbanismo Pereira Passos (IPP), apontou que a cena da rua na cidade do Rio
de Janeiro era composta por indivíduos de diferentes perfis que poderiam ser agrupados
em duas grandes categorias: aqueles que usam o espaço da rua como local de
trabalho, em geral trabalhadores precarizados do mercado informal (ambulantes e
catadores), os quais moram em regiões distantes e não têm como despender recursos
diários com transporte; e aqueles que usam a rua como moradia permanente. Em
geral, o primeiro grupo mantém vínculos familiares e o segundo não.
[3]A título de
ilustração, realizamos uma busca exploratória no banco de periódicos da Capes
nos últimos 5 anos (2015 / 2020) com a palavra-chave ‘população de rua’ e identificamos
792 produções. Com o filtro ‘população de rua e emoções’ 28 produções
científicas foram identificadas.
[4]A passagem, proferida por Shylock, personagem agiota judeu, na peça
de Shakespeare O Mercador de Veneza,
embora traga instigantes questionamentos para se pensar no antissemitismo,
também oferece a possibilidade de se refletir sobre o processo de desumanização
de segmentos sociais estigmatizados, a exemplo da população em situação de rua:
"Sou um judeu. Então, um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos,
órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos
alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos
mesmos remédios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que
um cristão? Se nos cortam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se
nos envenenam, não morremos? Mas, se nos ultrajam não podemos nos vingar?! Se somos
como vocês quanto ao resto, também somos semelhantes nisso." - Shylock em O Mercador de Veneza Ato 3, cena 1 (SHAKESPEARE,
2017, p. 286-287).
[5] Dados publicados em boletim pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (2020), Desigualdades
por cor e raça no Brasil, apontam que, em 2018, as pessoas de cor
ou raça preta ou parda compunham a maior parte da força de trabalho no País,
perfazendo o número de 57,7 milhões de pessoas, isto é, 25,2% a mais do que a
população de cor ou raça branca na força de trabalho, que totalizava 46,1 milhões.
Todavia, no mesmo ano, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas
(R$ 2796) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (R$ 1608).
[6] De
acordo com a pesquisa realizada por Silva (2012), tal fenômeno urbano ganhou
relevância no contexto internacional nos anos 1990, com o aumento significativo
da população em situação de rua nas grandes capitais europeias e nos EUA. Estes
países realizaram os primeiros Censos Homeless
e os relatórios descritivos sobre essa questão. No Brasil, as primeiras iniciativas
para o atendimento a este público foram realizadas pelas organizações religiosas
na década de 1950, tarefa mais tarde absorvida pelo voluntariado e, a partir dos anos 1990, pelo Estado.
[7] Art. 6°- São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados (BRASIL, 1988, grifo nosso).
[8] O Censo
realizado em 2022 ainda não está disponível para consulta pública.
[9] Segundo Le Breton (2009),
o controle das excreções corporais – cuspir, assoar, urinar, defecar, arrotar –
foi transportado para o interior do homem, assim como a repressão das emoções e
expressões corporais, antes executadas sem cuidado em relação à presença de
outras pessoas, permitindo ao homem melhores condições de civilidade.
[10]A pandemia do COVID-19
alterou circunstancialmente essa realidade. Muitos governos municipais
destinaram unidades de acolhimento emergenciais especificamente para casais em
situação de rua, a exemplo das cidades de Salvador e do Rio de Janeiro.
[11]A ouvidoria
pública está em consonância com a Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011 e
com as Legislações Municipais. Nos termos do Decreto nº 42.719/2017,
a ouvidoria é uma instância de participação e controle social responsável pelo
tratamento das manifestações relativas às políticas e aos serviços públicos
prestados sob qualquer forma ou regime, com vistas à avaliação da efetividade e
ao aprimoramento da gestão pública.
[12]O termo
estigma, segundo Goffman (1988), é usado para definir um atributo profundamente
depreciativo, é a marca ou sinal que designa o seu portador como desqualificado
ou menos valorizado; diz-se do indivíduo que está inabilitado para aceitação
social plena.