Gênero e sexualidade na
guerra cultural: o conservadorismo no
WhatsApp
Gender and sexuality in the culture war:
conservatism on WhatsApp
Aknaton Toczek
SOUZA*
https://orcid.org/0000-0002-6946-6242
Pablo Ornelas ROSA**
https://orcid.org/0000-0002-9075-3895
Resumo: Propõe uma análise acerca dos discursos sobre
gênero e sexualidade produzidos no processo de hipermilitarização
brasileira. Decorre de uma investigação conduzida pelo método etnográfico que
envolveu grupos de WhatsApp auto identificados como conservadores e cristãos,
que apoiam diretamente o presidente Jair Bolsonaro. Analisa o papel dos estudos
de gênero e sexualidade no processo de militarização e em seu recrudescimento
decorrente da razão neoliberal. Na sequência, apresenta uma investigação sobre
as eleições de 2018 e o governo de Jair Bolsonaro, verificando como que a propagação
da noção de guerra cultural passou a ser utilizada com o intuito de conferir
certa legitimidade em suas ações cada vez mais veementes em relação aos seus
adversários políticos. Averigua por fim,
mediante os dados etnográficos e documentais, como os estudos de gênero e
sexualidade passaram a ser mobilizados nessa guerra, servindo de justificativa
moral para fins políticos e econômicos.
Palavras-chave: Plataformas
digitais. Gênero. Sexualidade. Guerra. Representações sociais.
Abstract: This article analyses the discussions on
gender and sexuality produced during the Brazilian hyper-militarisation
process. It stems from an investigation conducted using the ethnographic method
involving WhatsApp groups self-identifying as conservative and Christian, and who
directly supported President Jair Bolsonaro. It analyses the role of gender and
sexuality studies in the militarisation process, and in its resurgence due to
neoliberal reasoning. It then presents an investigation of the 2018 elections
and the government of Jair Bolsonaro, verifying how the propagation of the
notion of a culture war came to be used to confer a certain legitimacy in its
increasingly vehement actions in relation to its political opponents. Finally,
it reveals, through ethnographic and documentary data, how gender and sexuality
studies began to be mobilised in this war, serving as moral justification for
political and economic purposes.
Keywords: Digital platforms. Gender. Sexuality. War. Social
representations.
Submetido em: 29/6/2022. Revisto em: 18/10/2022
e 10/11/2022. Aceito em: 7/1/2023.
Introdução: Aqui
somos todos conservadores — A entrada no campo
A |
investigação
apresentada decorre de uma pesquisa etnográfica realizada com pouco mais de uma
dezena de grupos de WhatsApp, que se reconhecem como conservadores e cristãos
associados ao bolsonarismo. O acesso e a seleção dos grupos ocorreram por
indicação, em uma espécie de bola de neve (COMBESSIE, 2004) no seguinte sentido: por meio do compartilhamento
de convites para ingresso em grupos de WhatsApp autodenominados conservadores e
de defesa/apoio ao presidente Bolsonaro. Tais compartilhamentos foram feitos em
grupos de WhatsApp aleatórios, como em grupos de moradores de bairros; de
compra e venda; e profissionais. A partir do acesso a um deles, ocorria de
forma cotidiana, a indicação de novos grupos específicos, como ISRAEL/BRASIL/USA,
cuja descrição diz: ‘Grupo de apoio ao Presidente Bolsonaro’, e ainda proíbe: ‘Apologia
à esquerda ou contra o governo’. Nesse mesmo grupo, por exemplo, foram
compartilhados diversos outros grupos estaduais e específicos, como grupos de
monarquistas, conservadores, vinculados à maçonaria etc.; entramos em todos que
nos chegaram o acesso.
Observamos uma
retroalimentação de conteúdos entre os grupos, bem como lideranças que
participavam e compartilhavam imagens e vídeos em vários grupos. Tínhamos
ciência de diversos aplicativos e técnicas para scraping[1],
por exemplo, via Python, além da possibilidade de sistematização e análise
qualitativa em grande quantidade de dados a partir de programas, como o Atlas.ti. Contudo, dado o caráter etnográfico desta
pesquisa, optamos por confiar em nossos registros de campo, resultados,
vivências e observações nesses grupos. Procuramos incorporar uma simplicidade
metodológica comum à etnografia, assim, realizávamos uma coleta diária de dados
ao acompanhar os grupos e suas interações. Tais dados foram organizados em um
arquivo digital e sistematizada em 35 pastas distintas, organizadas
tematicamente, tal qual: gênero; comunismo; educação; e xenofobia. O que
apresentaremos e analisaremos aqui é o resultado de um período de dois anos
desses registros, em especial, vinculado às temáticas de gênero.
Além disso, também é
importante destacar que a entrada no campo presume o ingresso em uma
guerra, em um combate, em que os inimigos são identificados o tempo todo com o
objetivo de controlar suas supostas e eventuais ameaças. Desse modo, recorrentemente
reconhecem que estão vivendo em uma guerra, cujo inimigo, difuso e impreciso,
não foi avisado. Porém, ainda assim, experimentam das consequências práticas de
seus referenciais teóricos que, muitas vezes, operam de forma reacionária, já
que existem diferentes tipos de conservadorismos que se sentem imunes ao
contágio ideológico, tendo em vista que compreendem que o conservadorismo não
seria uma ideologia, como supostamente ocorreria com os pensamentos de esquerda
(KIRK, 2014).
No meio dessa guerra,
estão os estudos de gênero e sexualidade — tratada pelos conservadores,
portanto, como ideologia de gênero, caracterizados por certa relação de
poder que pode ser simplificada na constituição de sentidos, normalizações,
classificações e outras formas de controle e legitimidade das ações,
identificadas por estes grupos como elementos constitutivos da modernidade.
Assim, a essencialização dos sentidos, das verdades constituídas nas relações
de poder, permite mapear os papéis de gênero e sexualidade no processo de hipermilitarização da sociedade contemporaneamente mediante
ao gerenciamento de condutas operadas em um nível moral, servindo de
justificativa para fins políticos e econômicos.
Outro importante
fenômeno constitutivo da modernidade é o colonialismo, um fato social total (MAUSS, 2003), sem
o qual qualquer análise da realidade brasileira e latino-americana seria
incompleta. Isso ocorre porque a relação colonial eleva a outro nível os
instrumentos de morte e controle biopolítico das
populações, desde o epistemocentrismo, passando pelo ecocídio até alcançar o etnocídio.
Sendo assim, a primeira parte deste texto versará sobre a relação entre gênero
e guerra, procurando analisar as intersecções que operam como elementos
estruturais dos fenômenos sociais analisados.
Não obstante, para dar
início a apresentação deste trabalho, é importante compreender que a guerra já
não é mais travada apenas em uma dimensão convencional e bélica, mas também por
meio de novos espaços decorrentes do uso da internet, em especial, das
plataformas digitais, que passaram a funcionar a partir da modulação de
subjetividades decorrentes de instrumentos sociotécnicos, a exemplo dos
algoritmos e da inteligência artificial. Nesse sentido, a guerra híbrida
deflagrada nos países coloniais apresenta uma nova realidade para as operações
militares geopolíticas, não regulada, por vezes, nem reconhecida e, por isso
mesmo, aberta ao conflito total, sem controle.
Nesses espaços, são
inseridas estratégias amparadas na guerra cultural, propagada por movimentos
que se reconhecem como conservadores e que foram organizados intelectualmente
por Olavo de Carvalho, assim como seus alunos e alunas
(SAYURI, 2021). Todavia, é necessário destacar que, neste trabalho, ainda serão
explorados os dados etnográficos da organização, interação e ações dos
grupos de WhatsApp investigados, demonstrando empiricamente os desdobramentos
das intersecções de gênero e guerra nesse processo, e evidenciando que a guerra
contra os movimentos sociais, que representam a pluralidade nos modos de ser e
formas de existir, tem sido organizada a partir de uma leitura escolástica conservadora
moralista, a qual busca impor os seus valores, cujo epistemocentrismo
é declarado como eurocêntrico: ‘Europeu, Cristão, Romano’.
Os sentidos que
organizam as interações são marcados pela verdade e pela moral universal a
partir de certa perspectiva civilizatória ocidêntica,
cujas divergências são heréticas, inaceitáveis e, portanto, devem ser
combatidas. Essas interações violentas são o padrão desses grupos que operam a
partir do ataque aos inimigos, sua desqualificação, vigilância, controle e completa
desconfiança. Sempre à caça dos comunistas, esquerdista, progressistas,
globalistas e outras derivações possíveis. Diante disso, é possível constatar
que hoje presenciamos os efeitos da guerra híbrida (KORYBKO, 2018) com o
uso dos algoritmos nas plataformas digitais mobilizadas nas eleições, o que têm
afetado diretamente os pilares das democracias liberais, uma vez que, ao
observar os grupos, foi possível mapear os efeitos práticos das teorias
defendidas, bem como o sentido das ações promovidas pelos participantes, em que
tais sujeitos representam-se como se estivessem em meio a uma guerra do bem
contra o mal.
A pesquisa foi
realizada com grupos que possuem atuações municipais, regionais, estaduais,
nacionais e até mesmo internacionais, como o ISRAEL/BRASIL/USA (o uso de
caixa-alta é outra característica comum para eles), que parecem operar como uma
central de distribuição destas pretensas armas híbridas, tais como fake News,
memes, vídeos, recortes de imagens, fotos, textos, links etc. Há momentos
mínimos de conversa entre os seus membros, e quase todos estes grupos são
compostos por mais de 100 participantes. Na verdade, os diálogos são alvos
frequentes de intervenções abruptas por outros membros, além de constatarmos diversas
expulsões, ofensas, acusações e defesa. Em suma, são grupos destinados à troca
de materiais e demais armamentos simbólicos da guerra híbrida, que
acabam sendo reproduzidos em praticamente todos eles, sem que de fato haja uma
consulta prévia sobre o conteúdo compartilhado para verificar sua veracidade.
Muitos são moderados pela mesma pessoa, mesmo os grupos regionais, como o Bolsonaro/PR
(41/46).
Os grupos não possuem
uma coerência fácil de capturar na singularidade, porém, a homossexualidade é
frequentemente alvo de suas violências, conforme verificaremos doravante. Contudo,
diante do inimigo principal, o esquerdista, o comunista, o antibolsonaro,
é possível barganhar — até mesmo afirmar que os gays estão com o
Bolsonaro. Situação que não faz cessar os ataques às populações LGBTQIA+. De fato, no mesmo grupo, a mesma pessoa/número,
postou outras notícias atacando o debate sobre a chamada por eles de ideologia
de gênero (JOE..., 2021; VÍTIMAS..., 2019; MÉDICA..., 2017; GUGA..., 2019).
Por muito tempo, os
diversos campos acadêmicos menosprezaram aqueles saberes que julgavam inferiores.
O mesmo ocorreu em relação ao Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro e outras demais
figuras públicas, que reavivam certo populismo reacionário brasileiro, o qual
atua sob a roupagem do conservadorismo cristão e liberal. No entanto, é preciso
olhar com seriedade e rigor para este fenômeno, pois ainda que teorias
conspiratórias, todo o tipo de sandices e ofensas proferidas, possam soar
aleatoriedade, sem qualquer racionalidade estratégica. O fato é que elas
cumprem um papel central nessa guerra, organizando os sentidos e as linguagens
das ações. Assim, há, portanto, um efeito prático destas teorias.
Mulher é mulher; homem
é homem!
— O gênero na guerra
O ataque à
universidade, em especial às ciências sociais, traz comumente o argumento da
sua inutilidade[2] e o
questionamento acerca da relevância da teoria. A cadeira que Michel Foucault
ministrou no Collège de France, intitulada
História dos Sistemas de Pensamento, não por acaso voltou sua
preocupação para tratar das relações de poder que decorrem da produção dos
saberes. O aprimoramento do método científico, o desenvolvimento de uma
filosofia e, principalmente, de uma sociologia das ciências durante o século
XX, permitiram uma análise minuciosa acerca dos efeitos dos saberes elevados à
condição de verdade. A crítica às epistemologias e aos métodos empregados pelos
conservadores brasileiros, a exemplo dos pensamentos evolucionistas,
escolásticos e neoliberais que passaram a legitimar seus discursos transcendentais
e normativos, deve incluir os efeitos que tais saberes tiveram na criação de
instituições, instrumentos, técnicas, práticas, tais quais outros saberes
derivaram. E mais, compreendem os saberes sujeitados que foram silenciados
frente a essas relações de poder.
Assim, a afirmação de
que homem é homem e mulher é mulher como algo dado, inato e natural é
problemática, não apenas porque normatiza as relações de gênero e sexualidade,
negando a pluralidade de formas de ser e de existir, mas também porque exigiria
uma compreensão histórica e antropológica mínima que reconheça essa perspectiva
como etnocêntrica. Nesse sentido, é importante destacar que a antropologia tem
vastos materiais, bem como a história, que demonstram cabalmente que o sentido
empregado às questões de gênero nas sociedades é tão distinto, e nem sempre
submetido ao sexo biológico. Portanto, são noções que dependem de configurações
específicas, não sendo passíveis de serem universalizadas ou naturalizadas. Por
outro lado, para as teorias da doxa, basta afirmar
as verdades — sempre configuracionais — reforçando a
obviedade universal e natural das suas alegações, que o problema de gênero está
resolvido.
Esse esforço quase
sempre aparece junto com à violência simbólica. Piadas, humilhações, rebaixamentos,
desvalorizações, ou seja, uma série de práticas que desqualificam as posições
diversas. A universalização e naturalização dos conceitos trazem junto o
esquadrinhamento dos comportamentos e espaços sociais, estabelecendo padrões
normativos aos grupos. Normal e anormal é o mais recorrente, mas não o único.
Essa normalização, que orienta comportamentos e sentidos, é fruto das
estruturas simbólicas que são reproduzidas socialmente. Ou seja, os sentidos e
os comportamentos trazem em si estruturas simbólicas.
Portanto, conceitos
como neoliberalismo, colonialismo, patriarcado[3],
dentre outros, aparecem como amálgamas nas ações e espaços sociais. Os três
conceitos são instrumentos analíticos necessários para compreender o espaço do
gênero na guerra cultural impetrada pelos conservadores brasileiros. Cada qual
estabelece padrões e expectativas de gênero, “[...] o
patriarcado impõe uma determinada masculinidade e uma determinada
feminidade e atribui características ligadas aos sexos pelos quais a subordinação
das mulheres parece como natural e normal” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 23).
Os chavões proferidos
comumente nos grupos, e em outros demais espaços que combatem a ideologia de
gênero, são utilizados pelo próprio governo Bolsonaro, em especial pela
Ministra Damares Alves, que ao assumir o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, já anunciava
uma variação dessa estratégia: “[...] Menino veste azul e menina veste rosa” (DAMARES...,
2019, não paginado). Tais ações revelam elementos importantes para a configuração
das relações de poder que denominamos como patriarcado, que pode ser definido
como “[...] relações de dominação entre sexos, em que as mulheres se subordinam
ao poder dos homens, mas que também se impõem estritas identidades
masculinas que os homens devem seguir” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 23. Tradução
livre). Contudo, antes de continuarmos, é importante mencionar a
importância em se combater os espantalhos (STRATHERN,
2014) do universalismo quando conceitos empíricos são utilizados fora de
seus contextos.
Oyèrónké Oyěwùmí
nos alerta para o risco de pensar tal conceito de forma transcultural, informando
que “[...] o gênero não era um princípio organizador
da sociedade iorubá antes da colonização ocidental” (HOLLANDA, 2020, p. 77).
Todavia, ao usar um conceito antropológico, poderíamos dizer que assim como o
neoliberalismo foi construído sobre um epistemocentrismo
fundado na economia econômica[4], o
patriarcado tem sido construído sobre um viricentrismo,
tendo em vista que “[...] a experiência do ‘patriarcado’ pelas mulheres
pode lhes conferir, não uma dupla consciência, mas antolhos masculinos” (STRATHERN, 2014, p. 89).
Esse aspecto subjetivo
de conformidade moral às estruturas e violências simbólicas da sociedade são
cruciais para compreendermos a aderência a um tipo específico de racionalidade.
Ela não apenas naturaliza, mas essencializa
determinados fenômenos, uma vez que as relações patriarcais atravessam
estruturas econômicas e políticas por intermédio de outra razão que se
intersecciona às citadas [colonialismo e neoliberalismo]: o militarismo.
O
militarismo pode ser definido como um conjunto de valores, atitudes e ações
baseadas na centralidade da violência armada e na força como forma de
dissuasão, eliminação e castigo contra o que se apresenta como inimigo ou
ameaça a existência de uma ordem social (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 24. Tradução
livre).
Todavia, a
militarização não serve apenas para fazer a guerra, mas para fazer dinheiro.
Por isso, não há surpresa na relação íntima entre a militarização e o neoliberalismo,
promovendo um avanço que vem sendo chamado de hipermilitarização
da sociedade (BORDIN; MORAES, 2017).
Não nos referimos nem ao complexo industrial e econômico da segurança e da
guerra, mas tão somente ao uso militar, a partir da chave do inimigo na relação
elite econômica / indesejados-inúteis. Por outro lado, a relação aguda
promovida por esse processo de hipermilitarização
está justamente naquilo que podemos determinar como sul-global, no qual
a relação de colonização agrava ainda mais essa dinâmica interseccional (CAMPS-FEBRER, 2016).
A incorporação da guerra
civil a ser gerida pelo Estado em algumas de suas configurações hodiernas, em
que o conflito é irrenunciável diante da abismal disparidade e diferença entre
as classes sociais, impõe uma dinâmica social de guerra às populações (LAVAL et
al., 2021; HARCOURT, 2021). A centralização da força física e da violência
nas ações públicas que se exercem contra as comunidades e populações,
estabelecem um padrão específico de sociabilidade e de economia. Entretanto,
possuem um efeito muito diferente em homens e mulheres, tanto pelas posições
sociais, quanto pela violência direta que sofrem sobre seus próprios corpos e
sobre seus familiares; “Na realidade, algumas autoras argumentam, que a guerra
em si, sua essência, é a violência de gênero” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 31. Tradução
livre).
A
luta teórica e prática contra a unidade-por-meio-da-dominação ou contra a
unidade-por-meio-da-incorporação implode, ironicamente, não apenas as
justificações para o patriarcado, o colonialismo, o humanismo, o positivismo, o
essencialismo, o cientificismo e outros ‘ismos’, mas também todos os apelos em
favor de um estado orgânico ou natural (HARAWAY, 2009, p. 51).
Contudo, ainda é
preciso destacar que muitas populações sem Estado tiveram na guerra um
instrumento importante de interação e diplomacia (CLASTRES, 2004). Muitas com organizações matriarcais e ginocráticas, reconhecendo a diversidade de gênero de forma
positiva, sendo algumas delas associadas ao lesbianismo (HOLLANDA, 2020). Diante disso, a posição de gênero à guerra não
pode ser universalizada, uma vez que é preciso considerá-la a partir da
configuração colonial, patriarcal e neoliberal, constituída pelo nomos europeu.
Ainda pode ser hétero
ou já virou crime — O gênero da guerra híbrida
Durante muito tempo, as
ciências que analisam os fenômenos sociais, bem como os diversos movimentos
progressistas, desprezaram e diminuíram a importância — por seus efeitos — de
movimentos conservadores e reacionários, além de que não deram a atenção devida
a escritores que passaram a atuar como ideólogos, a exemplo de Olavo de
Carvalho, Steve Bannon e Alexander Dugin —
importantes influências para os presidentes Jair Bolsonaro, no Brasil, Donald
Trump, nos Estados Unidos, e Vladimir Putin, na Rússia. Todos, opositores das
políticas de gênero e sexualidade, porém, tributários de certa perspectiva
conservadora, ainda que com posicionamentos divergentes quanto a outros campos,
a exemplo do econômico.
Em uma percepção mais imediata
acerca dos grupos de WhatsApp, é possível adotar uma postura arrogante — e
incompatível com o esforço antropológico de levar a sério o outro —, pois no
fim, essas primeiras impressões podem desprezar, desvalorizar e ridicularizar
os participantes. Isso ocorre porque a interação desincorporada não permite
compreender os sentidos de hierarquia social que poderiam conceder autoridade
ao argumento, legitimando-o.
O baixo nível de
interação dos participantes e a transmissão frenética de links, fotos e vídeos
bastante distintos não devem nos confundir. Comumente, ao conversar com
indivíduos defensores firmes do Bolsonaro, sejam parentes, amigos, alunos,
desconhecidos nos encontros da vida, dentre outros, é comum perceber a
reiteração de argumentos, notícias, frases prontas com o estilo de lacração[5],
que em algum momento passaram pelos grupos de WhatsApp. Essa constatação é
bastante pertinente, pois mesmo que alguns deles neguem conhecer Olavo de
Carvalho, ou desconhecer Gramsci, ou se reconhecer como adepto às teorias da nova
ordem mundial, reproduzem ativamente tais informações. A pluralidade da difusão
de tal conjunto simbólico por esses grupos via WhatsApp tem esse feito,
permitindo a aderência às informações de forma fragmentada e conveniente ao seu
uso prático. Sendo assim, a lógica argumentativa está submetida à moral, motivo
que facilita o uso interessado dos argumentos segundo a necessidade de
reafirmar, defender e atacar os pontos de vistas.
De forma bastante
resumida[6], o
uso do termo guerra híbrida já é encontrado na década de 1990 nas
literaturas militares. Naquele momento, o sentido se mesclava com outros
adjetivos para informar uma guerra não convencional, mas uma bricolagem de
estratégias com fins militares, abordagens indiretas sem o uso de contingentes
militares. Ao contrário, utilizando a própria população para desestabilizar as
instituições políticas e governos.
Leirner (2020) apresenta algumas análises que vinculam
a guerra híbrida às ações da Rússia na Geórgia e na Ucrânia a partir da
década de 1990. Contudo, foi no início da segunda década do século XXI que o
termo passou ser utilizado com mais frequência, especialmente a partir dos
movimentos que ficaram conhecidos como Primavera Árabe. Porém, para
Leirner (2020), no Brasil, passamos a constatá-la de forma mais tímida nos
movimentos de junho de 2013, tendo se intensificado a partir de 2015 até o
desenlace em 2018, com as consequentes eleições.
O uso de estratégias
indiretas para fins militares é até mais antigo na geopolítica, no esforço de
criar um inimigo interno e uma conclamação de setores do Estado, no caso
brasileiro sendo a Justiça, o Ministério Público e os Militares para defesa da
sociedade. O aspecto híbrido, para além da plêiade de sentidos que foram
progressivamente se construindo na história militar[7],
tem cada vez mais sentido na contemporaneidade, dado novo espaço de ação
exposto através das redes sociais.
Esse fenômeno está
submetido a técnicas bastante sofisticadas de administração de condutas, desde
o uso de algoritmos à neurociência, entretanto, destaca-se aqui a atuação de
uma rede multicanal por meio da qual se torna possível uma dinâmica de
interação nas redes sociais, como ocorre com o WhatsApp. Mensagens,
informações, orientações sem hierarquia, gerando um turvamento entre ações
ofensivas ou defensivas, tendem “[...] a
desafiar e transcender as fronteiras, jurisdições e distinções padrão entre
Estado e sociedade, público e privado, guerra e paz, guerra e crime, civil e
militar, polícia e forças armadas, e legal e ilegal” (LEIRNER, 2020, p. 47). Nesta guerra, utiliza-se do medo, do pânico
moral, da desorientação, da perturbação de percepções que envolvem modulações
de comportamentos e modos de subjetivação. A profusão de conteúdo, sua variação
e contradições servem justamente para isso. Persuadir
e dissuadir concomitantemente.
É nesse contexto que
assuntos como gênero e sexualidade aparecem nos grupos. Apesar das
epistemologias feministas estarem trabalhando analiticamente com estes
conceitos há pelo menos meio século, e que tais análises trouxeram diversas
contribuições na redução das desigualdades entre homens e mulheres (SCOTT, 1995), sendo esta uma categoria já
firme das discussões no interior das ciências humanas, ela passou a ser
utilizada como um instrumento político discursivo das novíssimas direitas
conservadoras brasileiras (ROSA;
ANGELO; BRAGA, 2021). Tais grupos se identificam e defendem uma série de
ideias tidas como marxismo cultural, dentre elas as pautas
antiesquerdistas, antigênero, antiLGBTQIA+,
antiaborto e antidrogas, fenômeno que não deixa de hibridizar tais temas, como
se todos eles tivessem uma só origem: a guerra cultural.
Assim, ao investigar o
nascimento de tais teorias e argumentos, podemos localizar autores
conservadores brasileiros, tais como: Mário Ferreira dos Santos, Alexandre da
Costa, Ana Caroline Campagnolo e outras demais
figuras públicas que foram influenciadas pelas aulas, vídeos e posts de Olavo
de Carvalho. Esse fluxo de informações e temas são unificados como guerra cultural
contra aqueles que, na visão compartilhada dos grupos, são os inimigos da família,
de Deus, dos bons costumes, e por isso mesmo querem acabar com as tradições, inventar
moda, e principalmente, em termos gerais, deformar as verdades universais.
A imagem de meninas e meninos
usando o mesmo banheiro, de que as crianças iriam aprender a se masturbar e
fazer sexo nas escolas, de que elas teriam que escolher qual é o seu gênero
dentro de dezenas de opções, e tantas outras ideias, são espalhadas por meio desses
grupos, quase sempre atrelados à pedofilia. São muitos materiais coletados na
pesquisa de campo, vídeos, debates entre os membros, fake news e muitas
imagens, que mobilizam os sentimentos da população contra um inimigo; por mais
que seja ficcional, é real em seus efeitos, ou seja, existe enquanto
representação, organizando e orientando as ações humanas.
Assim, a mobilização
moral da categoria gênero por parte destes grupos WhatsApp instrumentaliza
certa leitura acerca da existência de uma guerra que articula múltiplas
funções, não apenas enquadrando e classificando normativamente os
comportamentos de homens e mulheres a partir de universalismos que tomam suas
condutas por intermédio de representações generificadas,
como também atribui um espaço específico para populações LGBTQIA+ por meio do
silêncio, ocultação, e invisibilidade, o que em termos filosóficos poderia ser
indicado como uma morte social, uma desqualificação daquela vida enquanto vida
social. Talvez seja por isso que atualmente a categoria gênero parece ter servido
como um mote, uma justa causa para a guerra dos justos.
Sendo assim, é por meio
da mobilização destes medos, pânicos e repulsas em torno da combinação da
acusação de comunismo e ideologia de gênero, que os bolsonaristas constroem suas
estratégias de acusação e ataque aos seus opositores, críticos, dissidentes e
inimigos a partir de um espectro amplo, de tal forma que quando necessário
poderá evocar a atribuição de comunistas e gayzistas
à guerra.
O QUE FAZER? — A guerra contra as
verdades
A impossibilidade de
aceitar outras verdades e pontos de vistas comuns à realidade social, de
reconhecer outras formas de ser e maneiras de existir que escapam às pretensões
universalistas, a reação a setores sociais que atuam em defesa dos direitos
humanos e principalmente das populações LGBTQIA+, assim como o aumento
expressivo do debate sobre gênero e sexualidade em diversos espaços traz uma
questão central aos membros dos grupos analisados: O que fazer? Normalmente, os
participantes que atuam nestes grupos WhatsApp escrevem textos em caixa alta e
utilizam um arcabouço de expressões com o objetivo de ampliar o sentido de
angústia que os habita diante de um mundo que está tendo seus valores
destruídos pela modernidade. Recorrentemente, se apresentam como ‘cidadãos de
bem’, como conservadores, cristãos, liberais, que só querem trabalhar e impedir
que o Estado atrapalhe, evitando também que deturpem os valores de seus filhos,
comprometendo certa ordem natural, porém, divina das coisas.
De modo geral, os
homens representam uma visão de repulsa em relação às questões de gênero e
reafirmam os valores patriarcais, dentre os quais podemos destacar dois perfis
tipografados por Isabela Kalil (2018, p. 16):
“Femininas e ‘bolsogatas’: Mulheres ‘empoderadas’
para além do ‘mimimi’ e Mães de direita: Por uma escola sem ‘ideologia de
gênero’”. O primeiro perfil, das femininas, segundo Kalil (2018), é
composto por mulheres da classe média, média alta e elites, jovens de 20 a 30
anos, diplomadas, independente financeiramente e crentes no seu crescimento
individual sem precisar do mimimi, ou seja, do discurso de vitimização
da mulher.
Repudiam absolutamente
o termo feminista, contrapondo com termo femininas. Sou feminina, mas não
sou feminista para reafirmar a imagem da mulher bem-sucedida, sem abrir mão da feminilidade que é destruída pelo
feminismo. Nos grupos, esse perfil aparece comumente em vídeos de
influenciadoras digitais, tendo como representação política a deputada estadual
Ana Campagnolo (PSL/SC), que ataca os movimentos
feministas defendendo a masculinidade e a feminilidade como complementares. Em
um dos vídeos produzidos pela empresa Brasil Paralelo que foi utilizado nessa
pesquisa, intitulado A Face Oculta do Feminismo (A
HISTÓRIA DO FEMINISMO..., 2020), ela afirma que as mulheres precisam do
machismo e apresenta os seus supostos benefícios.
Por outro lado, o
perfil das Mães de direita demostra um aspecto mais tradicional e menos influenciado
pelo neoliberalismo, já que segundo Kalil (2018), esse grupo é compostos por
mulheres entre 30 e 50 anos, com filhos em idade escolar ou universitário, de [...] classe média baixa, podendo ser casadas,
divorciadas ou chefes de família monoparental. O foco desse grupo é a luta
contra o aspecto ideológico e político da educação, uma vez que
“essas mães defendem que a ‘inocência’ e a ‘ingenuidade’ infantil devem ser
preservadas e temem a ‘doutrinação da ideologia de gênero’ e/ou ‘doutrinação
marxista’ nas escolas pelos professores” (KALIL,
2018, p. 17).
Ambos os perfis
apresentados pela autora demonstram uma relação muito bem descrita por Wendy
Brown (2019) ao analisar o tradicionalismo moral como elemento do
neoliberalismo, evidenciando sua aproximação com o neoconservadorismo, muito
bem expresso nesses grupos que recorrentemente se afirmam como liberais na
economia e conservadores nos costumes.
A união dessas duas
racionalidades aparece nitidamente nos grupos de WhatsApp investigados, muito embora, por vezes de
forma bastante contraditória. Mas, sobretudo, cumpre ressaltar o aspecto
híbrido das batalhas travadas, pois é essa junção que permite mesclar nacionalismo,
tradicionalismo, propriedade, Deus, família, contra os comunistas, gayzistas, feministas etc. Nesse sentido, a luta
deixa de ser um aspecto individual e torna-se uma cruzada pela nação — uma nação
cristã, conforme a máxima: Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos.
Há, literalmente, um
reforço conduzido por Olavo de Carvalho (2014) e seus seguidores destinada à
ação física contra seus opositores. Bernardo Küster, um influenciador digital
da direita cristã associado ao escritor supracitado, com quase um milhão de
seguidores no YouTube, convocou sua audiência para atacar a filósofa Judith
Butler, alegando que “[...] muitos combatem
apenas os efeitos da ideologia de gênero, e não sua principal causa: a filósofa
americana Judith Butler. Ela vem ao Brasil mais uma vez para promover sua agenda”
(#FORABUTLER..., 2017). Em vídeo disponível no YouTube, ainda disse que: “Se
nós não combatermos verdadeiramente as pessoas que propagam as ideias, as
ideias continuarão aí. Não adianta combater apenas as ideias. Nós temos que
combater agentes históricos reais que as promovem” (#FORABUTLER..., 2017).
Um outro exemplo do
efeito dessas práticas violentas contra adversários políticos é o noticiado
caso da antropóloga Débora Diniz (DÉBORA..., 2017;
PIRES..., 2018), professora da Universidade de Brasília (UnB), que teve
que sair do país em decorrência de ameaças organizadas por esses grupos. As
redes sociais de Bernardo Küster foram recomendadas pelo Presidente Jair Bolsonaro
em seu primeiro mês de governo (ROSA, 2019),
possibilitando ataques de maneira difusa. De forma prática, Bernardo Küster não
estava fisicamente no evento que visava atacar as professoras, contudo, instigou
incessantemente os seus seguidores a atuarem de forma veemente, estimulando uma
conformação moral que dá sentido e conforma as ações humanas. Dá suporte e
sustentação moral às ações, permitindo justificações e a organização de atos
coletivas contra os seus opositores. Na realidade, há muitas mensagens nesses
grupos convocando os participantes a agirem, seja em manifestações e encontros
físicos, seja em ataques virtuais a perfis, sites etc.
Instaura-se, assim, um
processo de racionalidade desatrelada da realidade, apoiada em teorias
conspiratórias, medo, pânico, frustrações, e em outros conteúdos morais e
imediatos que ajudam a dar sentido às experiências vividas. A profusão de
mensagens, suas contradições, irrealismo, por vezes, com táticas de utilizar conteúdos
parcialmente reais, embaralha a concepção do inimigo nesse novo contexto, “[...] são cativos e cativos são soldados”
(LEIRNER, 2020, p. 7). Os inimigos estão
na televisão, nas séries, atrás de cada beijo gay, de cada mulher feminista, de
cada idiota útil à nova ordem mundial, globalista e satânica. Sabemos
que, em um primeiro momento, aos distantes dessa realidade, pode soar infantilizado,
com pouco refinamento intelectual. Contudo, só quando observamos com mais
cuidado, com o rigor necessário e que permita levar a sério o outro, é que começamos
a ver as consequências concretas de tais estratégias.
Ao pesquisar a atuação
destes agentes no WhatsApp, é possível compreender que esse tipo de ação
impetrada por esses grupos ocorre diariamente, por meio da reação imediata aos
fenômenos políticos, que rapidamente produzem e compartilham uma enxurrada de
mensagens, apresentando uma versão alternativa — e paralela — ao acontecimento,
impossibilitando a localização exata e origem daquilo que foi difundido. No
WhatsApp destes sujeitos, que se reconhecem como conservadores, há alguns
membros que são mais participativos e que atuam em distintos grupos
concomitantemente, retransmitindo em todos eles as mensagens. Por outro lado,
tais dados compartilhados extrapolam os grupos conservadores, alcançando outros
espaços comuns, familiares, de colegas, trabalho, futebol, profissional etc.
Há uma agressividade
latente, que faz com que os discordantes saiam dos grupos e evitem se submeter
a discussões e ofensas, ou sejam até expulsos, o que demonstra uma acentuada
escalada nos conflitos, reforçando as divisões e pré-noções que permitam
classificar imediatamente opositores como inimigos. Replicando com
agressividade aquilo que lhes parece verdadeiro e que organiza seus sentidos e
sentimentos, eles agem veementemente evitando que os discursos que se opõem aos
seus sejam proferidos, impedindo, portanto, a menção a narrativas que ameaçam
os seus valores. Desse modo, a dimensão agonística do discurso passa a dar lugar
a uma verdade universal e inquestionável que serve para orientar as condutas
daqueles que se reconhecem como cidadãos de bem e que, em decorrência disso,
se apresentam como soldados de uma guerra cultural que também pode operar
enquanto guerra espiritual, ou seja, da direita que se reconhece como o bem
contra a esquerda, a quem se atribui o mal (KREEFT, 2017).
Considerações finais: Simples
assim — A verdade na guerra
A verdade enquanto
conteúdo de disputa moral, caracterizada pela atribuição de sentidos e organização
das ações humanas, é um fenômeno generalizável, comum ao sentido prático. No
entanto, poderíamos acrescentar que somos convocados a defender a verdade
contra a mentira, ou melhor, defender uma verdade contra outras pretensas e
possíveis verdades que constituem múltiplos sentidos do social. Nesse caso,
podemos tratar dessa agonística a partir daquilo que Haraway
(2009, p. 51) descreveu como uma
busca pela “[...] unidade-por-meio-da-dominação ou
[...] a unidade-por-meio-da-incorporação [...]” (HARAWAY, 2009, p. 51),
que articulam as justificações para o patriarcado, colonialismo, humanismo e
outras formas de essencializar, universalizar e totalizar
as experiências e categorias pensadas a partir de um único ponto de vista.
A sexualidade, primeiro
dispositivo biopolítico, conforme destacou Foucault
(1999), apresenta-se como um elemento central na condução de condutas
subjetivadas no ocidente e que passou a ser mobilizada na organização das
relações de poder, espaços e expectativas. Nesse enquadramento normativo tão
ferozmente defendido por estes grupos conservadores investigados, ela passou a
ser solapada por pretensos universalismos que buscam criar rupturas epistemológicas
por intermédio da tentativa de desqualificar os estudos feministas produzidos
ao longo do século XX com o propósito de comprometer a existência de diferentes
formas de ser e maneiras de existir que escapam ao modelo heterossexual, bem
como a composição binária do masculino e feminino. Essa pesquisa tentou
destacar o uso do termo gênero e seu papel nessa guerra cultural
deflagrada pelos cidadãos de bem contra a depravação moral pela qual
tratam a ideia de corrupção.
A abstração dos
sentidos empregados ao uso da noção de gênero pelos grupos bolsonaristas do
WhatsApp revela uma estratégia cujo propósito é, em última instância, a
modulação comportamental (TELES, 2018),
visando fidelizar, mobilizar, organizar sentidos, justificações e ações contra
aqueles inimigos — abstratos e difusos, situação que os tornam tão fracos —
tais como gays, feministas, esquerdistas que são inferiorizados o tempo todo,
em suma, as dissidências normativas —, e ao mesmo tempo tão fortes —, pois
estão em todos os lugares, são professores, políticos, artistas etc. A luta
pela verdade, sua defesa contra os demônios gays da esquerda, contra as
feministas, são construídas por afinidades operadas pela essencialização e por
uma suposta simplicidade de certo tipo de verdade que dá para sentir.
O papel do gênero nessa
guerra é estruturado em favor de um estado natural das coisas. Envolve uma disputa
pelo sentido de estabelecer relações de poder cujo esforço está em excluir,
silenciar, invisibilizar a multiplicidade e riqueza humana, em nome de uma
forma única de existir e de estar no mundo. Para tanto, mobilizam uma parcela da
população como soldados nesta guerra cultural que, por meio dessas armas
híbridas, como vídeos, memes, textos etc., instrumentalizam sentimentos,
valendo-se da criação e difusão de fake news,
ou ainda, da construção de associações simplistas acerca dos mais diversos
fenômenos sociais, criando inimigos reduzidos à representação do mal, pois
compreendem que “[...] a guerra cultural também é uma guerra espiritual” (KREEFT,
2017, p. 29). Por isso, o desejo de morte, de ataque físico, o
sentimento de ofensa, todos atrelados à própria existência física dessa vida
que não merece ser vida.
O sentimento de
vitimização também é comum nesses grupos conservadores, a ditadura gayzista, as feministas, feminazis que estão
atacando os valores cristãos, tudo isso compromete o orgulho e a convicção da
heterossexualidade, da branquitude, da masculinidade e demais valores que são
vistos como sinais de coragem representada na crença de que estão lutando contra
um sistema que quer acabar com a masculinidade e com a família tradicional.
Não é à toa que as frustrações pessoais são logo atribuídas e expiradas, em
primeiro lugar, nas categorias abstratas — esquerdistas, comunistas, feministas
— para encontrar, progressivamente, ações físicas e concretas contra os
inimigos. Chegando ao ponto, dentre tantas mortes e violências contra as
mulheres e populações LGBTQ+, de organizarem ataques às professoras, como Judith
Butler e Débora Diniz.
Ainda, em teor
conclusivo, tal análise realizada nesse artigo é evidentemente limitada pelo esforço
etnográfico que tem em seu sujeito objetivador do
mundo social, o ponto de vista, sentidos e capacidade reflexiva atreladas aos
corpos e subjetividades masculinas. “As ciências ainda estão impregnadas de
valores fundados na superioridade masculina [...]. É claro que há exceções: um
punhado de etnografias que tomam os pontos de vista das mulheres como partida” (STRATHERN, 2014, p. 87). Contudo, essa
descrição e análise de cunho etnográfico deverá ser complementada conforme
surjam novas etnografias realizadas a partir da experiência feminina nos grupos
bolsonaristas e suas percepções do gênero na guerra.
Referências
#FORABUTLER: a criadora
da ideologia de gênero vem ao Brasil. [s. l.: s. n.], 26 out. 2017. Publicado
pelo canal Bernardo P. Küster. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7l348rFl7_o.
Acesso em: 1° abr. 2021.
A HISTÓRIA DO FEMINISMO/AULA
GRÁTIS: FEMINISMO E MARXISMO com Ana Coroline Campagnolo. [s. l.: s. n.], 2014. Publicado pelo
canal Ana Brasil Paralelo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OLi5SiIKYPo.
Acesso em: 3 mar. 2022.
BORDIN, M.; MORAES, P.
R. B. de. A ideia de nação e a hipermilitarização:
aspectos sociológicos e políticos. Núcleo
de Estudos Paranaenses, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 284–294, 2017.
BORGES, H. Bolsonaro
defende cortes em cursos de Humanas e diz que dinheiro do contribuinte deve ir para
“leitura, escrita e fazer conta”. O
Globo, [S.l.], 26 abr. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-defende-cortes-em-cursos-de-humanas-diz-que-dinheiro-do-contribuinte-deve-ir-para-leitura-escrita-fazer-conta-23623980.
Acesso em: 3 abr. 2021.
BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. São
Paulo: Editora Politéia, 2019.
CAMPS-FEBRER, B.
Patriarcado y militarismo. In: RUFANGES, J. C. et al. Mentes Militarizadas: cómo nos educan para asumir la guerra y la violencia. Barcelona: Icaria
editorial, 2016.
CARVALHO, O. de. A Nova
Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Campinas: Vide Editorial, 2014.
CLASTRES, P. Arqueologia
da violência: a guerra nas sociedades primitivas. São Paulo:
Cosac & Naify,
2004.
COMBESSIE, J. C. O método em sociologia. São Paulo:
Loyola, 2004.
DAMARES Alves diz que
‘menino veste azul e menina veste rosa’. [s. l.: s. n.], 2019. Publicado
pelo canal Poder360. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q6X3-nXjmv4&ab_channel=Poder360.
Acesso em: 9 nov. 2022.
DÉBORA Diniz e o aborto
no Brasil. [s. l.: s. n.], 29 nov. 2017. Publicado pelo canal Bernardo
P. Küster. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AK5Atun4tyM&t=27s.
Acesso em: 1 abr. 2021.
FOUCAULT, M. História
da sexualidade: A vontade de saber. Vol. 1. São Paulo: Paz & Terra,
1999.
GUGA Noblat e Renata
Barreto debatem a ideologia de gênero. [s. l.: s. n.], 2019. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=4t6fRx9d9K8&feature=youtu.be.
Acesso em: 25 mar. 2021.
HARCOURT, B. A contrarrevolução. São Paulo: Glac Edições, 2021.
HARAWAY, D. Antropologia do ciborgue: as vertigens
do pós-humano. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica,
2009.
HOLLANDA, H. B. de. Pensamento feminista hoje perspectivas decoloniais. Rio de
Janeiro: Bazar do
Tempo, 2020.
JOE Biden assina
decreto instrumentalizando a ideologia de gênero. [s. l.: s. n.], 25 jan.
2021. Publicado pelo canal Carlos Jordy. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=DgQ--A_2KGc&feature=youtu.be.
Acesso em: 25 mar. 2021.
KALIL, I. O. (coord.). Quem são e no que acreditam os eleitores de
Jair Bolsonaro. São Paulo: Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, 2018. Disponível em: https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20Site%20FESPSP.pdf. Acesso em: 10 maio 2022.
KIRK, R. A política
da prudência. São Paulo: É Realizações, 2014.
KORYBKO, A. Guerras
híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão
Popular, 2018.
KREFFT, P. Como vencer a guerra cultural: Um plano de batalha cristão para uma
sociedade em crise. Campinas:
Editora Ecclesiae, 2017.
LAVAL, C. Foucault, Bourdieu
e a questão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2020.
LAVAL, C. et al.
A escolha da guerra civil: Uma outra
história do neoliberalismo. São Paulo: Editora Elefante, 2021.
LEIRNER, P. C. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida:
militares, operações psicológicas e política em perspectiva etnográfica. São
Paulo: Alameda, 2020.
MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003.
MÉDICA destrói a
ideologia de gênero. [s. l.: s. n.], 12 set. 2017. Publicado pelo canal
Centro Dom Bosco. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7cQT0smXT-o&feature=youtu.be.
Acesso em: 25 mar. 2021.
PIRES, B. Antropóloga
convive com a “covardia da dúvida” de quem a ameaça de morte. El
País, São Paulo, 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/15/politica/1544829470_991854.html.
Acesso em: 13 maio 2019.
ROSA, P. O. Fascismo tropical: uma cibercartografia das novíssimas direitas brasileiras.
Vitória: Milfontes, 2019.
ROSA, P. O.; ANGELO, V.
A. de; BRAGA, T. Nascimento das novíssimas direitas e a política na era da
pós-verdade. Simbiótica, Vitória, v.
8, n. 2, p. 187-216, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/36384.
Acesso em: 10 nov. 2022.
SAYURI, J. Livros,
canivetes e anjos. The Intercept Brasil, Rio de Janeiro, 28 ago. 2021.
Disponível em: https://theintercept.com/2021/08/28/cedet-vendas-sites-olavo-de-carvalho-extrema-direita/.
Acesso em: 10 maio 2022.
SCOTT, J. W. Gênero:
uma categoria útil de análise histórica. Educação
& Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71–99, 1995.
STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios.
São Paulo: Cosac & Naify, 2014.
TELES, E. Governamentalidade algorítmica e as subjetivações
rarefeitas. Kriterion:
Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 59, n. 140, p. 429–448, 2018.
VÍTIMAS da ideologia de
gênero: Dep. Ana Campagnolo. [s. l.: s. n.], 4
jun. 2019. Publicado pelo canal Ana Campagnolo.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c6w-4mi1RSc&feature=youtu.be. Acesso em: 25 mar. 2021.
________________________________________________________________________________________________
Doutor em Sociologia e doutorando em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR), com estágio de pós-doutorado em Sociologia Política na
Universidade Vila Velha (UVV). É mestre em Sociologia pela UFPR, com graduação
em Direito pela CESCAGE e em Sociologia pela UNIP. É pesquisador do Centro de
Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos - CESPDH/UFPR, pesquisador
colaborador do Núcleo de Pesquisa em Ativismo, Resistências e Conflitos
NUPARC/UVV e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Política
Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).
Pablo Ornelas ROSA Trabalhou na elaboração da concepção, delineamento,
análise e interpretação dos dados, tendo em vista que o artigo resultou de uma
pesquisa de pós-doutorado realizada no PPG em sociologia política da UVV, que
teve como objeto de investigação o assunto apresentado neste artigo.
Bacharel em Ciências Sociais e mestre em
Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor
em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Realizou estágio de pós-doutorado em sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em
saúde coletiva e psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Atualmente cursa o doutorado em Psicologia institucional, atuando como professor
permanente dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia Política e em Segurança
Pública da Universidade Vila Velha (UVV) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência,
Tecnologia e Educação da Universidade do Vale Cricaré
(UNIVC).
________________________________________________________________________________________________
* Advogado. Doutor em Sociologia e doutorando em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em
Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas. (UCPel, Pelotas, Brasil). Rua
Gonçalves Chaves, no. 373, sala 411C, Centro, Pelotas (RS).
Cep: 96015-560. E-mail:
aknatontoczek@gmail.com.
** Sociólogo. Doutor em Ciências Sociais.
Professor Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia Política e em
Segurança Pública da Universidade Vila Velha. (UVV, Vila Velha, Brasil). Av. Comissário
José Dantas de Melo, n. 21, Biblioteca, Sala 21, Boa Vista, Vila Velha (ES). Professor
e do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação da
Universidade do Vale Cricaré. (UNIVC, São Mateus,
Brasil). R.
Humberto de Almeida Franklin, 217-257, Universitário, São Mateus (ES). CEP.: 29933-415. E-mail: pablorosa13@gmail.com.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es) 2023. Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1] São técnicas para coleta de dados em
plataformas digitais por meio de programas específicos, como o Python.
Significa literalmente ‘raspagem’.
[2] Foi recorrente na fala do Presidente Jair
Bolsonaro e de diversos ministros da educação de sua gestão a desqualificação
das ciências humanas e sociais (BORGES,
2019).
[3] Donna Haraway
aponta para o mesmo sentido ao identificar que: “A consciência de classe, de
raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência
histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo
e do patriarcado” (HARAWAY, 2009, p. 126).
[4] Esse conceito foi desenvolvido por Pierre
Bourdieu de forma esparsa em sua obra, reconhecendo, muito pela experiência
antropológica com os cabilas na Argélia, a pluralidade das razões econômicas.
Laval (2020) faz uma excelente síntese desse pensamento.
[5] Termo utilizado para expressar respostas,
contraposições, de forma, por assim dizer, entendida como definitiva, uma revelação
que arrasa o interlocutor. Tende a ser sarcástico e reduzir a realidade, e
sugerir uma obviedade mediante um comentário curto ou uma imagem.
[6] Trata-se de um conceito complexo que
envolvem representações, diversos saberes, dentre eles os militares, fenômenos
sociais, jurídicos. Portanto, para maior compreensão do conceito indicamos a pesquisa
do antropólogo brasileiro Piero C. Leirner: O Brasil no espectro de uma guerra
híbrida (2020).
[7] “São muitas as palavras que povoam essa
nossa guerra híbrida: golpe, crime, governo, exército, arma, rede, dissonância,
cismogênese, cognição, truque, informação, criptografia,
célula, terror, guerra psicológica de
espectro total (GPET),
velocidade, ciclo, observação, orientação, decisão, ação, OODA, ideologia, fake,
cortina de fumaça, guerra absoluta, estratégia, tática, blitzkrieg,
centro de gravidade, estação de repetição, radar, drone, estratégia da
abordagem indireta, movimento de pinça, proxy war,
para-raios, viés de confirmação, guerra neurocortical,
Amazônia, domesticação, invasão, soberania, ataque, defesa, bomba semiótica,
teatro de operações, segurança, infiltração, violência, limited
hangout, escalada horizontal, dissuasão, dissonância
cognitiva, feedback, desenvolvimento, firehose
of falsehood, false
flag, cabeça-de-ponte, hegemonia, consórcio, e, possivelmente, esqueci umas
tantas e virão tantas outras” (LEIRNER,
2020, p. 20).