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Gênero e sexualidade na guerra cultural: o conservadorismo no WhatsApp

 

Gender and sexuality in the culture war: conservatism on WhatsApp

 

Aknaton Toczek SOUZA*

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-6946-6242

 

Pablo Ornelas ROSA**

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-9075-3895

 

Resumo: Propõe uma análise acerca dos discursos sobre gênero e sexualidade produzidos no processo de hipermilitarização brasileira. Decorre de uma investigação conduzida pelo método etnográfico que envolveu grupos de WhatsApp auto identificados como conservadores e cristãos, que apoiam diretamente o presidente Jair Bolsonaro. Analisa o papel dos estudos de gênero e sexualidade no processo de militarização e em seu recrudescimento decorrente da razão neoliberal. Na sequência, apresenta uma investigação sobre as eleições de 2018 e o governo de Jair Bolsonaro, verificando como que a propagação da noção de guerra cultural passou a ser utilizada com o intuito de conferir certa legitimidade em suas ações cada vez mais veementes em relação aos seus adversários políticos. Averigua por fim, mediante os dados etnográficos e documentais, como os estudos de gênero e sexualidade passaram a ser mobilizados nessa guerra, servindo de justificativa moral para fins políticos e econômicos.

Palavras-chave: Plataformas digitais. Gênero. Sexualidade. Guerra. Representações sociais.

 

Abstract: This article analyses the discussions on gender and sexuality produced during the Brazilian hyper-militarisation process. It stems from an investigation conducted using the ethnographic method involving WhatsApp groups self-identifying as conservative and Christian, and who directly supported President Jair Bolsonaro. It analyses the role of gender and sexuality studies in the militarisation process, and in its resurgence due to neoliberal reasoning. It then presents an investigation of the 2018 elections and the government of Jair Bolsonaro, verifying how the propagation of the notion of a culture war came to be used to confer a certain legitimacy in its increasingly vehement actions in relation to its political opponents. Finally, it reveals, through ethnographic and documentary data, how gender and sexuality studies began to be mobilised in this war, serving as moral justification for political and economic purposes.

Keywords: Digital platforms. Gender. Sexuality. War. Social representations.

 

Submetido em: 29/6/2022. Revisto em: 18/10/2022 e 10/11/2022. Aceito em: 7/1/2023.

Introdução: Aqui somos todos conservadores — A entrada no campo

 

A

investigação apresentada decorre de uma pesquisa etnográfica realizada com pouco mais de uma dezena de grupos de WhatsApp, que se reconhecem como conservadores e cristãos associados ao bolsonarismo. O acesso e a seleção dos grupos ocorreram por indicação, em uma espécie de bola de neve (COMBESSIE, 2004) no seguinte sentido: por meio do compartilhamento de convites para ingresso em grupos de WhatsApp autodenominados conservadores e de defesa/apoio ao presidente Bolsonaro. Tais compartilhamentos foram feitos em grupos de WhatsApp aleatórios, como em grupos de moradores de bairros; de compra e venda; e profissionais. A partir do acesso a um deles, ocorria de forma cotidiana, a indicação de novos grupos específicos, como ISRAEL/BRASIL/USA, cuja descrição diz: ‘Grupo de apoio ao Presidente Bolsonaro’, e ainda proíbe: ‘Apologia à esquerda ou contra o governo’. Nesse mesmo grupo, por exemplo, foram compartilhados diversos outros grupos estaduais e específicos, como grupos de monarquistas, conservadores, vinculados à maçonaria etc.; entramos em todos que nos chegaram o acesso.

 

Observamos uma retroalimentação de conteúdos entre os grupos, bem como lideranças que participavam e compartilhavam imagens e vídeos em vários grupos. Tínhamos ciência de diversos aplicativos e técnicas para scraping[1], por exemplo, via Python, além da possibilidade de sistematização e análise qualitativa em grande quantidade de dados a partir de programas, como o Atlas.ti. Contudo, dado o caráter etnográfico desta pesquisa, optamos por confiar em nossos registros de campo, resultados, vivências e observações nesses grupos. Procuramos incorporar uma simplicidade metodológica comum à etnografia, assim, realizávamos uma coleta diária de dados ao acompanhar os grupos e suas interações. Tais dados foram organizados em um arquivo digital e sistematizada em 35 pastas distintas, organizadas tematicamente, tal qual: gênero; comunismo; educação; e xenofobia. O que apresentaremos e analisaremos aqui é o resultado de um período de dois anos desses registros, em especial, vinculado às temáticas de gênero.

 

Além disso, também é importante destacar que a entrada no campo presume o ingresso em uma guerra, em um combate, em que os inimigos são identificados o tempo todo com o objetivo de controlar suas supostas e eventuais ameaças. Desse modo, recorrentemente reconhecem que estão vivendo em uma guerra, cujo inimigo, difuso e impreciso, não foi avisado. Porém, ainda assim, experimentam das consequências práticas de seus referenciais teóricos que, muitas vezes, operam de forma reacionária, já que existem diferentes tipos de conservadorismos que se sentem imunes ao contágio ideológico, tendo em vista que compreendem que o conservadorismo não seria uma ideologia, como supostamente ocorreria com os pensamentos de esquerda (KIRK, 2014).

 

No meio dessa guerra, estão os estudos de gênero e sexualidade — tratada pelos conservadores, portanto, como ideologia de gênero, caracterizados por certa relação de poder que pode ser simplificada na constituição de sentidos, normalizações, classificações e outras formas de controle e legitimidade das ações, identificadas por estes grupos como elementos constitutivos da modernidade. Assim, a essencialização dos sentidos, das verdades constituídas nas relações de poder, permite mapear os papéis de gênero e sexualidade no processo de hipermilitarização da sociedade contemporaneamente mediante ao gerenciamento de condutas operadas em um nível moral, servindo de justificativa para fins políticos e econômicos.

 

Outro importante fenômeno constitutivo da modernidade é o colonialismo, um fato social total (MAUSS, 2003), sem o qual qualquer análise da realidade brasileira e latino-americana seria incompleta. Isso ocorre porque a relação colonial eleva a outro nível os instrumentos de morte e controle biopolítico das populações, desde o epistemocentrismo, passando pelo ecocídio até alcançar o etnocídio. Sendo assim, a primeira parte deste texto versará sobre a relação entre gênero e guerra, procurando analisar as intersecções que operam como elementos estruturais dos fenômenos sociais analisados.

 

Não obstante, para dar início a apresentação deste trabalho, é importante compreender que a guerra já não é mais travada apenas em uma dimensão convencional e bélica, mas também por meio de novos espaços decorrentes do uso da internet, em especial, das plataformas digitais, que passaram a funcionar a partir da modulação de subjetividades decorrentes de instrumentos sociotécnicos, a exemplo dos algoritmos e da inteligência artificial. Nesse sentido, a guerra híbrida deflagrada nos países coloniais apresenta uma nova realidade para as operações militares geopolíticas, não regulada, por vezes, nem reconhecida e, por isso mesmo, aberta ao conflito total, sem controle.

 

Nesses espaços, são inseridas estratégias amparadas na guerra cultural, propagada por movimentos que se reconhecem como conservadores e que foram organizados intelectualmente por Olavo de Carvalho, assim como seus alunos e alunas (SAYURI, 2021). Todavia, é necessário destacar que, neste trabalho, ainda serão explorados os dados etnográficos da organização, interação e ações dos grupos de WhatsApp investigados, demonstrando empiricamente os desdobramentos das intersecções de gênero e guerra nesse processo, e evidenciando que a guerra contra os movimentos sociais, que representam a pluralidade nos modos de ser e formas de existir, tem sido organizada a partir de uma leitura escolástica conservadora moralista, a qual busca impor os seus valores, cujo epistemocentrismo é declarado como eurocêntrico: ‘Europeu, Cristão, Romano’.

 

Os sentidos que organizam as interações são marcados pela verdade e pela moral universal a partir de certa perspectiva civilizatória ocidêntica, cujas divergências são heréticas, inaceitáveis e, portanto, devem ser combatidas. Essas interações violentas são o padrão desses grupos que operam a partir do ataque aos inimigos, sua desqualificação, vigilância, controle e completa desconfiança. Sempre à caça dos comunistas, esquerdista, progressistas, globalistas e outras derivações possíveis. Diante disso, é possível constatar que hoje presenciamos os efeitos da guerra híbrida (KORYBKO, 2018) com o uso dos algoritmos nas plataformas digitais mobilizadas nas eleições, o que têm afetado diretamente os pilares das democracias liberais, uma vez que, ao observar os grupos, foi possível mapear os efeitos práticos das teorias defendidas, bem como o sentido das ações promovidas pelos participantes, em que tais sujeitos representam-se como se estivessem em meio a uma guerra do bem contra o mal.

 

A pesquisa foi realizada com grupos que possuem atuações municipais, regionais, estaduais, nacionais e até mesmo internacionais, como o ISRAEL/BRASIL/USA (o uso de caixa-alta é outra característica comum para eles), que parecem operar como uma central de distribuição destas pretensas armas híbridas, tais como fake News, memes, vídeos, recortes de imagens, fotos, textos, links etc. Há momentos mínimos de conversa entre os seus membros, e quase todos estes grupos são compostos por mais de 100 participantes. Na verdade, os diálogos são alvos frequentes de intervenções abruptas por outros membros, além de constatarmos diversas expulsões, ofensas, acusações e defesa. Em suma, são grupos destinados à troca de materiais e demais armamentos simbólicos da guerra híbrida, que acabam sendo reproduzidos em praticamente todos eles, sem que de fato haja uma consulta prévia sobre o conteúdo compartilhado para verificar sua veracidade. Muitos são moderados pela mesma pessoa, mesmo os grupos regionais, como o Bolsonaro/PR (41/46).

 

Os grupos não possuem uma coerência fácil de capturar na singularidade, porém, a homossexualidade é frequentemente alvo de suas violências, conforme verificaremos doravante. Contudo, diante do inimigo principal, o esquerdista, o comunista, o antibolsonaro, é possível barganhar — até mesmo afirmar que os gays estão com o Bolsonaro. Situação que não faz cessar os ataques às populações LGBTQIA+. De fato, no mesmo grupo, a mesma pessoa/número, postou outras notícias atacando o debate sobre a chamada por eles de ideologia de gênero (JOE..., 2021; VÍTIMAS..., 2019; MÉDICA..., 2017; GUGA..., 2019).

 

Por muito tempo, os diversos campos acadêmicos menosprezaram aqueles saberes que julgavam inferiores. O mesmo ocorreu em relação ao Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro e outras demais figuras públicas, que reavivam certo populismo reacionário brasileiro, o qual atua sob a roupagem do conservadorismo cristão e liberal. No entanto, é preciso olhar com seriedade e rigor para este fenômeno, pois ainda que teorias conspiratórias, todo o tipo de sandices e ofensas proferidas, possam soar aleatoriedade, sem qualquer racionalidade estratégica. O fato é que elas cumprem um papel central nessa guerra, organizando os sentidos e as linguagens das ações. Assim, há, portanto, um efeito prático destas teorias.

 

Mulher é mulher; homem é homem! — O gênero na guerra

 

O ataque à universidade, em especial às ciências sociais, traz comumente o argumento da sua inutilidade[2] e o questionamento acerca da relevância da teoria. A cadeira que Michel Foucault ministrou no Collège de France, intitulada História dos Sistemas de Pensamento, não por acaso voltou sua preocupação para tratar das relações de poder que decorrem da produção dos saberes. O aprimoramento do método científico, o desenvolvimento de uma filosofia e, principalmente, de uma sociologia das ciências durante o século XX, permitiram uma análise minuciosa acerca dos efeitos dos saberes elevados à condição de verdade. A crítica às epistemologias e aos métodos empregados pelos conservadores brasileiros, a exemplo dos pensamentos evolucionistas, escolásticos e neoliberais que passaram a legitimar seus discursos transcendentais e normativos, deve incluir os efeitos que tais saberes tiveram na criação de instituições, instrumentos, técnicas, práticas, tais quais outros saberes derivaram. E mais, compreendem os saberes sujeitados que foram silenciados frente a essas relações de poder.

 

Assim, a afirmação de que homem é homem e mulher é mulher como algo dado, inato e natural é problemática, não apenas porque normatiza as relações de gênero e sexualidade, negando a pluralidade de formas de ser e de existir, mas também porque exigiria uma compreensão histórica e antropológica mínima que reconheça essa perspectiva como etnocêntrica. Nesse sentido, é importante destacar que a antropologia tem vastos materiais, bem como a história, que demonstram cabalmente que o sentido empregado às questões de gênero nas sociedades é tão distinto, e nem sempre submetido ao sexo biológico. Portanto, são noções que dependem de configurações específicas, não sendo passíveis de serem universalizadas ou naturalizadas. Por outro lado, para as teorias da doxa, basta afirmar as verdades — sempre configuracionais — reforçando a obviedade universal e natural das suas alegações, que o problema de gênero está resolvido.

 

Esse esforço quase sempre aparece junto com à violência simbólica. Piadas, humilhações, rebaixamentos, desvalorizações, ou seja, uma série de práticas que desqualificam as posições diversas. A universalização e naturalização dos conceitos trazem junto o esquadrinhamento dos comportamentos e espaços sociais, estabelecendo padrões normativos aos grupos. Normal e anormal é o mais recorrente, mas não o único. Essa normalização, que orienta comportamentos e sentidos, é fruto das estruturas simbólicas que são reproduzidas socialmente. Ou seja, os sentidos e os comportamentos trazem em si estruturas simbólicas.

 

Portanto, conceitos como neoliberalismo, colonialismo, patriarcado[3], dentre outros, aparecem como amálgamas nas ações e espaços sociais. Os três conceitos são instrumentos analíticos necessários para compreender o espaço do gênero na guerra cultural impetrada pelos conservadores brasileiros. Cada qual estabelece padrões e expectativas de gênero, “[...] o patriarcado impõe uma determinada masculinidade e uma determinada feminidade e atribui características ligadas aos sexos pelos quais a subordinação das mulheres parece como natural e normal” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 23).

 

Os chavões proferidos comumente nos grupos, e em outros demais espaços que combatem a ideologia de gênero, são utilizados pelo próprio governo Bolsonaro, em especial pela Ministra Damares Alves, que ao assumir o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, já anunciava uma variação dessa estratégia: “[...] Menino veste azul e menina veste rosa” (DAMARES..., 2019, não paginado). Tais ações revelam elementos importantes para a configuração das relações de poder que denominamos como patriarcado, que pode ser definido como “[...] relações de dominação entre sexos, em que as mulheres se subordinam ao poder dos homens, mas que também se impõem estritas identidades masculinas que os homens devem seguir” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 23. Tradução livre). Contudo, antes de continuarmos, é importante mencionar a importância em se combater os espantalhos (STRATHERN, 2014) do universalismo quando conceitos empíricos são utilizados fora de seus contextos.

 

Oyèrónké Oyěwùmí nos alerta para o risco de pensar tal conceito de forma transcultural, informando que “[...] o gênero não era um princípio organizador da sociedade iorubá antes da colonização ocidental” (HOLLANDA, 2020, p. 77). Todavia, ao usar um conceito antropológico, poderíamos dizer que assim como o neoliberalismo foi construído sobre um epistemocentrismo fundado na economia econômica[4], o patriarcado tem sido construído sobre um viricentrismo, tendo em vista que “[...] a experiência do ‘patriarcado’ pelas mulheres pode lhes conferir, não uma dupla consciência, mas antolhos masculinos” (STRATHERN, 2014, p. 89).

Esse aspecto subjetivo de conformidade moral às estruturas e violências simbólicas da sociedade são cruciais para compreendermos a aderência a um tipo específico de racionalidade. Ela não apenas naturaliza, mas essencializa determinados fenômenos, uma vez que as relações patriarcais atravessam estruturas econômicas e políticas por intermédio de outra razão que se intersecciona às citadas [colonialismo e neoliberalismo]: o militarismo.

 

O militarismo pode ser definido como um conjunto de valores, atitudes e ações baseadas na centralidade da violência armada e na força como forma de dissuasão, eliminação e castigo contra o que se apresenta como inimigo ou ameaça a existência de uma ordem social (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 24. Tradução livre).

 

Todavia, a militarização não serve apenas para fazer a guerra, mas para fazer dinheiro. Por isso, não há surpresa na relação íntima entre a militarização e o neoliberalismo, promovendo um avanço que vem sendo chamado de hipermilitarização da sociedade (BORDIN; MORAES, 2017). Não nos referimos nem ao complexo industrial e econômico da segurança e da guerra, mas tão somente ao uso militar, a partir da chave do inimigo na relação elite econômica / indesejados-inúteis. Por outro lado, a relação aguda promovida por esse processo de hipermilitarização está justamente naquilo que podemos determinar como sul-global, no qual a relação de colonização agrava ainda mais essa dinâmica interseccional (CAMPS-FEBRER, 2016).

 

A incorporação da guerra civil a ser gerida pelo Estado em algumas de suas configurações hodiernas, em que o conflito é irrenunciável diante da abismal disparidade e diferença entre as classes sociais, impõe uma dinâmica social de guerra às populações (LAVAL et al., 2021; HARCOURT, 2021). A centralização da força física e da violência nas ações públicas que se exercem contra as comunidades e populações, estabelecem um padrão específico de sociabilidade e de economia. Entretanto, possuem um efeito muito diferente em homens e mulheres, tanto pelas posições sociais, quanto pela violência direta que sofrem sobre seus próprios corpos e sobre seus familiares; “Na realidade, algumas autoras argumentam, que a guerra em si, sua essência, é a violência de gênero” (CAMPS-FEBRER, 2016, p. 31. Tradução livre).

 

A luta teórica e prática contra a unidade-por-meio-da-dominação ou contra a unidade-por-meio-da-incorporação implode, ironicamente, não apenas as justificações para o patriarcado, o colonialismo, o humanismo, o positivismo, o essencialismo, o cientificismo e outros ‘ismos’, mas também todos os apelos em favor de um estado orgânico ou natural (HARAWAY, 2009, p. 51).

 

Contudo, ainda é preciso destacar que muitas populações sem Estado tiveram na guerra um instrumento importante de interação e diplomacia (CLASTRES, 2004). Muitas com organizações matriarcais e ginocráticas, reconhecendo a diversidade de gênero de forma positiva, sendo algumas delas associadas ao lesbianismo (HOLLANDA, 2020). Diante disso, a posição de gênero à guerra não pode ser universalizada, uma vez que é preciso considerá-la a partir da configuração colonial, patriarcal e neoliberal, constituída pelo nomos europeu.

 

Ainda pode ser hétero ou já virou crime — O gênero da guerra híbrida

 

Durante muito tempo, as ciências que analisam os fenômenos sociais, bem como os diversos movimentos progressistas, desprezaram e diminuíram a importância — por seus efeitos — de movimentos conservadores e reacionários, além de que não deram a atenção devida a escritores que passaram a atuar como ideólogos, a exemplo de Olavo de Carvalho, Steve Bannon e Alexander Dugin — importantes influências para os presidentes Jair Bolsonaro, no Brasil, Donald Trump, nos Estados Unidos, e Vladimir Putin, na Rússia. Todos, opositores das políticas de gênero e sexualidade, porém, tributários de certa perspectiva conservadora, ainda que com posicionamentos divergentes quanto a outros campos, a exemplo do econômico.

 

Em uma percepção mais imediata acerca dos grupos de WhatsApp, é possível adotar uma postura arrogante — e incompatível com o esforço antropológico de levar a sério o outro —, pois no fim, essas primeiras impressões podem desprezar, desvalorizar e ridicularizar os participantes. Isso ocorre porque a interação desincorporada não permite compreender os sentidos de hierarquia social que poderiam conceder autoridade ao argumento, legitimando-o.

 

O baixo nível de interação dos participantes e a transmissão frenética de links, fotos e vídeos bastante distintos não devem nos confundir. Comumente, ao conversar com indivíduos defensores firmes do Bolsonaro, sejam parentes, amigos, alunos, desconhecidos nos encontros da vida, dentre outros, é comum perceber a reiteração de argumentos, notícias, frases prontas com o estilo de lacração[5], que em algum momento passaram pelos grupos de WhatsApp. Essa constatação é bastante pertinente, pois mesmo que alguns deles neguem conhecer Olavo de Carvalho, ou desconhecer Gramsci, ou se reconhecer como adepto às teorias da nova ordem mundial, reproduzem ativamente tais informações. A pluralidade da difusão de tal conjunto simbólico por esses grupos via WhatsApp tem esse feito, permitindo a aderência às informações de forma fragmentada e conveniente ao seu uso prático. Sendo assim, a lógica argumentativa está submetida à moral, motivo que facilita o uso interessado dos argumentos segundo a necessidade de reafirmar, defender e atacar os pontos de vistas.

 

De forma bastante resumida[6], o uso do termo guerra híbrida já é encontrado na década de 1990 nas literaturas militares. Naquele momento, o sentido se mesclava com outros adjetivos para informar uma guerra não convencional, mas uma bricolagem de estratégias com fins militares, abordagens indiretas sem o uso de contingentes militares. Ao contrário, utilizando a própria população para desestabilizar as instituições políticas e governos.

 

Leirner (2020) apresenta algumas análises que vinculam a guerra híbrida às ações da Rússia na Geórgia e na Ucrânia a partir da década de 1990. Contudo, foi no início da segunda década do século XXI que o termo passou ser utilizado com mais frequência, especialmente a partir dos movimentos que ficaram conhecidos como Primavera Árabe. Porém, para Leirner (2020), no Brasil, passamos a constatá-la de forma mais tímida nos movimentos de junho de 2013, tendo se intensificado a partir de 2015 até o desenlace em 2018, com as consequentes eleições.

 

O uso de estratégias indiretas para fins militares é até mais antigo na geopolítica, no esforço de criar um inimigo interno e uma conclamação de setores do Estado, no caso brasileiro sendo a Justiça, o Ministério Público e os Militares para defesa da sociedade. O aspecto híbrido, para além da plêiade de sentidos que foram progressivamente se construindo na história militar[7], tem cada vez mais sentido na contemporaneidade, dado novo espaço de ação exposto através das redes sociais.

 

Esse fenômeno está submetido a técnicas bastante sofisticadas de administração de condutas, desde o uso de algoritmos à neurociência, entretanto, destaca-se aqui a atuação de uma rede multicanal por meio da qual se torna possível uma dinâmica de interação nas redes sociais, como ocorre com o WhatsApp. Mensagens, informações, orientações sem hierarquia, gerando um turvamento entre ações ofensivas ou defensivas, tendem “[...] a desafiar e transcender as fronteiras, jurisdições e distinções padrão entre Estado e sociedade, público e privado, guerra e paz, guerra e crime, civil e militar, polícia e forças armadas, e legal e ilegal” (LEIRNER, 2020, p. 47). Nesta guerra, utiliza-se do medo, do pânico moral, da desorientação, da perturbação de percepções que envolvem modulações de comportamentos e modos de subjetivação. A profusão de conteúdo, sua variação e contradições servem justamente para isso. Persuadir e dissuadir concomitantemente.

 

É nesse contexto que assuntos como gênero e sexualidade aparecem nos grupos. Apesar das epistemologias feministas estarem trabalhando analiticamente com estes conceitos há pelo menos meio século, e que tais análises trouxeram diversas contribuições na redução das desigualdades entre homens e mulheres (SCOTT, 1995), sendo esta uma categoria já firme das discussões no interior das ciências humanas, ela passou a ser utilizada como um instrumento político discursivo das novíssimas direitas conservadoras brasileiras (ROSA; ANGELO; BRAGA, 2021). Tais grupos se identificam e defendem uma série de ideias tidas como marxismo cultural, dentre elas as pautas antiesquerdistas, antigênero, antiLGBTQIA+, antiaborto e antidrogas, fenômeno que não deixa de hibridizar tais temas, como se todos eles tivessem uma só origem: a guerra cultural.

 

Assim, ao investigar o nascimento de tais teorias e argumentos, podemos localizar autores conservadores brasileiros, tais como: Mário Ferreira dos Santos, Alexandre da Costa, Ana Caroline Campagnolo e outras demais figuras públicas que foram influenciadas pelas aulas, vídeos e posts de Olavo de Carvalho. Esse fluxo de informações e temas são unificados como guerra cultural contra aqueles que, na visão compartilhada dos grupos, são os inimigos da família, de Deus, dos bons costumes, e por isso mesmo querem acabar com as tradições, inventar moda, e principalmente, em termos gerais, deformar as verdades universais.

 

A imagem de meninas e meninos usando o mesmo banheiro, de que as crianças iriam aprender a se masturbar e fazer sexo nas escolas, de que elas teriam que escolher qual é o seu gênero dentro de dezenas de opções, e tantas outras ideias, são espalhadas por meio desses grupos, quase sempre atrelados à pedofilia. São muitos materiais coletados na pesquisa de campo, vídeos, debates entre os membros, fake news e muitas imagens, que mobilizam os sentimentos da população contra um inimigo; por mais que seja ficcional, é real em seus efeitos, ou seja, existe enquanto representação, organizando e orientando as ações humanas.

Assim, a mobilização moral da categoria gênero por parte destes grupos WhatsApp instrumentaliza certa leitura acerca da existência de uma guerra que articula múltiplas funções, não apenas enquadrando e classificando normativamente os comportamentos de homens e mulheres a partir de universalismos que tomam suas condutas por intermédio de representações generificadas, como também atribui um espaço específico para populações LGBTQIA+ por meio do silêncio, ocultação, e invisibilidade, o que em termos filosóficos poderia ser indicado como uma morte social, uma desqualificação daquela vida enquanto vida social. Talvez seja por isso que atualmente a categoria gênero parece ter servido como um mote, uma justa causa para a guerra dos justos.

 

Sendo assim, é por meio da mobilização destes medos, pânicos e repulsas em torno da combinação da acusação de comunismo e ideologia de gênero, que os bolsonaristas constroem suas estratégias de acusação e ataque aos seus opositores, críticos, dissidentes e inimigos a partir de um espectro amplo, de tal forma que quando necessário poderá evocar a atribuição de comunistas e gayzistas à guerra.

 

O QUE FAZER? — A guerra contra as verdades

 

A impossibilidade de aceitar outras verdades e pontos de vistas comuns à realidade social, de reconhecer outras formas de ser e maneiras de existir que escapam às pretensões universalistas, a reação a setores sociais que atuam em defesa dos direitos humanos e principalmente das populações LGBTQIA+, assim como o aumento expressivo do debate sobre gênero e sexualidade em diversos espaços traz uma questão central aos membros dos grupos analisados: O que fazer? Normalmente, os participantes que atuam nestes grupos WhatsApp escrevem textos em caixa alta e utilizam um arcabouço de expressões com o objetivo de ampliar o sentido de angústia que os habita diante de um mundo que está tendo seus valores destruídos pela modernidade. Recorrentemente, se apresentam como ‘cidadãos de bem’, como conservadores, cristãos, liberais, que só querem trabalhar e impedir que o Estado atrapalhe, evitando também que deturpem os valores de seus filhos, comprometendo certa ordem natural, porém, divina das coisas.

 

De modo geral, os homens representam uma visão de repulsa em relação às questões de gênero e reafirmam os valores patriarcais, dentre os quais podemos destacar dois perfis tipografados por Isabela Kalil (2018, p. 16): “Femininas e ‘bolsogatas’: Mulheres ‘empoderadas’ para além do ‘mimimi’ e Mães de direita: Por uma escola sem ‘ideologia de gênero’”. O primeiro perfil, das femininas, segundo Kalil (2018), é composto por mulheres da classe média, média alta e elites, jovens de 20 a 30 anos, diplomadas, independente financeiramente e crentes no seu crescimento individual sem precisar do mimimi, ou seja, do discurso de vitimização da mulher.

 

Repudiam absolutamente o termo feminista, contrapondo com termo femininas. Sou feminina, mas não sou feminista para reafirmar a imagem da mulher bem-sucedida, sem abrir mão da feminilidade que é destruída pelo feminismo. Nos grupos, esse perfil aparece comumente em vídeos de influenciadoras digitais, tendo como representação política a deputada estadual Ana Campagnolo (PSL/SC), que ataca os movimentos feministas defendendo a masculinidade e a feminilidade como complementares. Em um dos vídeos produzidos pela empresa Brasil Paralelo que foi utilizado nessa pesquisa, intitulado A Face Oculta do Feminismo (A HISTÓRIA DO FEMINISMO..., 2020), ela afirma que as mulheres precisam do machismo e apresenta os seus supostos benefícios.

 

Por outro lado, o perfil das Mães de direita demostra um aspecto mais tradicional e menos influenciado pelo neoliberalismo, já que segundo Kalil (2018), esse grupo é compostos por mulheres entre 30 e 50 anos, com filhos em idade escolar ou universitário, de [...] classe média baixa, podendo ser casadas, divorciadas ou chefes de família monoparental. O foco desse grupo é a luta contra o aspecto ideológico e político da educação, uma vez que “essas mães defendem que a ‘inocência’ e a ‘ingenuidade’ infantil devem ser preservadas e temem a ‘doutrinação da ideologia de gênero’ e/ou ‘doutrinação marxista’ nas escolas pelos professores” (KALIL, 2018, p. 17).

 

Ambos os perfis apresentados pela autora demonstram uma relação muito bem descrita por Wendy Brown (2019) ao analisar o tradicionalismo moral como elemento do neoliberalismo, evidenciando sua aproximação com o neoconservadorismo, muito bem expresso nesses grupos que recorrentemente se afirmam como liberais na economia e conservadores nos costumes.

 

A união dessas duas racionalidades aparece nitidamente nos grupos de WhatsApp investigados, muito embora, por vezes de forma bastante contraditória. Mas, sobretudo, cumpre ressaltar o aspecto híbrido das batalhas travadas, pois é essa junção que permite mesclar nacionalismo, tradicionalismo, propriedade, Deus, família, contra os comunistas, gayzistas, feministas etc. Nesse sentido, a luta deixa de ser um aspecto individual e torna-se uma cruzada pela nação — uma nação cristã, conforme a máxima: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Há, literalmente, um reforço conduzido por Olavo de Carvalho (2014) e seus seguidores destinada à ação física contra seus opositores. Bernardo Küster, um influenciador digital da direita cristã associado ao escritor supracitado, com quase um milhão de seguidores no YouTube, convocou sua audiência para atacar a filósofa Judith Butler, alegando que “[...] muitos combatem apenas os efeitos da ideologia de gênero, e não sua principal causa: a filósofa americana Judith Butler. Ela vem ao Brasil mais uma vez para promover sua agenda” (#FORABUTLER..., 2017). Em vídeo disponível no YouTube, ainda disse que: “Se nós não combatermos verdadeiramente as pessoas que propagam as ideias, as ideias continuarão aí. Não adianta combater apenas as ideias. Nós temos que combater agentes históricos reais que as promovem” (#FORABUTLER..., 2017).

 

Um outro exemplo do efeito dessas práticas violentas contra adversários políticos é o noticiado caso da antropóloga Débora Diniz (DÉBORA..., 2017; PIRES..., 2018), professora da Universidade de Brasília (UnB), que teve que sair do país em decorrência de ameaças organizadas por esses grupos. As redes sociais de Bernardo Küster foram recomendadas pelo Presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro mês de governo (ROSA, 2019), possibilitando ataques de maneira difusa. De forma prática, Bernardo Küster não estava fisicamente no evento que visava atacar as professoras, contudo, instigou incessantemente os seus seguidores a atuarem de forma veemente, estimulando uma conformação moral que dá sentido e conforma as ações humanas. Dá suporte e sustentação moral às ações, permitindo justificações e a organização de atos coletivas contra os seus opositores. Na realidade, há muitas mensagens nesses grupos convocando os participantes a agirem, seja em manifestações e encontros físicos, seja em ataques virtuais a perfis, sites etc.

 

Instaura-se, assim, um processo de racionalidade desatrelada da realidade, apoiada em teorias conspiratórias, medo, pânico, frustrações, e em outros conteúdos morais e imediatos que ajudam a dar sentido às experiências vividas. A profusão de mensagens, suas contradições, irrealismo, por vezes, com táticas de utilizar conteúdos parcialmente reais, embaralha a concepção do inimigo nesse novo contexto, “[...] são cativos e cativos são soldados” (LEIRNER, 2020, p. 7). Os inimigos estão na televisão, nas séries, atrás de cada beijo gay, de cada mulher feminista, de cada idiota útil à nova ordem mundial, globalista e satânica. Sabemos que, em um primeiro momento, aos distantes dessa realidade, pode soar infantilizado, com pouco refinamento intelectual. Contudo, só quando observamos com mais cuidado, com o rigor necessário e que permita levar a sério o outro, é que começamos a ver as consequências concretas de tais estratégias.

 

Ao pesquisar a atuação destes agentes no WhatsApp, é possível compreender que esse tipo de ação impetrada por esses grupos ocorre diariamente, por meio da reação imediata aos fenômenos políticos, que rapidamente produzem e compartilham uma enxurrada de mensagens, apresentando uma versão alternativa — e paralela — ao acontecimento, impossibilitando a localização exata e origem daquilo que foi difundido. No WhatsApp destes sujeitos, que se reconhecem como conservadores, há alguns membros que são mais participativos e que atuam em distintos grupos concomitantemente, retransmitindo em todos eles as mensagens. Por outro lado, tais dados compartilhados extrapolam os grupos conservadores, alcançando outros espaços comuns, familiares, de colegas, trabalho, futebol, profissional etc.

 

Há uma agressividade latente, que faz com que os discordantes saiam dos grupos e evitem se submeter a discussões e ofensas, ou sejam até expulsos, o que demonstra uma acentuada escalada nos conflitos, reforçando as divisões e pré-noções que permitam classificar imediatamente opositores como inimigos. Replicando com agressividade aquilo que lhes parece verdadeiro e que organiza seus sentidos e sentimentos, eles agem veementemente evitando que os discursos que se opõem aos seus sejam proferidos, impedindo, portanto, a menção a narrativas que ameaçam os seus valores. Desse modo, a dimensão agonística do discurso passa a dar lugar a uma verdade universal e inquestionável que serve para orientar as condutas daqueles que se reconhecem como cidadãos de bem e que, em decorrência disso, se apresentam como soldados de uma guerra cultural que também pode operar enquanto guerra espiritual, ou seja, da direita que se reconhece como o bem contra a esquerda, a quem se atribui o mal (KREEFT, 2017).

 

Considerações finais: Simples assim — A verdade na guerra

 

A verdade enquanto conteúdo de disputa moral, caracterizada pela atribuição de sentidos e organização das ações humanas, é um fenômeno generalizável, comum ao sentido prático. No entanto, poderíamos acrescentar que somos convocados a defender a verdade contra a mentira, ou melhor, defender uma verdade contra outras pretensas e possíveis verdades que constituem múltiplos sentidos do social. Nesse caso, podemos tratar dessa agonística a partir daquilo que Haraway (2009, p. 51) descreveu como uma busca pela “[...] unidade-por-meio-da-dominação ou [...] a unidade-por-meio-da-incorporação [...]” (HARAWAY, 2009, p. 51), que articulam as justificações para o patriarcado, colonialismo, humanismo e outras formas de essencializar, universalizar e totalizar as experiências e categorias pensadas a partir de um único ponto de vista.

A sexualidade, primeiro dispositivo biopolítico, conforme destacou Foucault (1999), apresenta-se como um elemento central na condução de condutas subjetivadas no ocidente e que passou a ser mobilizada na organização das relações de poder, espaços e expectativas. Nesse enquadramento normativo tão ferozmente defendido por estes grupos conservadores investigados, ela passou a ser solapada por pretensos universalismos que buscam criar rupturas epistemológicas por intermédio da tentativa de desqualificar os estudos feministas produzidos ao longo do século XX com o propósito de comprometer a existência de diferentes formas de ser e maneiras de existir que escapam ao modelo heterossexual, bem como a composição binária do masculino e feminino. Essa pesquisa tentou destacar o uso do termo gênero e seu papel nessa guerra cultural deflagrada pelos cidadãos de bem contra a depravação moral pela qual tratam a ideia de corrupção.

 

A abstração dos sentidos empregados ao uso da noção de gênero pelos grupos bolsonaristas do WhatsApp revela uma estratégia cujo propósito é, em última instância, a modulação comportamental (TELES, 2018), visando fidelizar, mobilizar, organizar sentidos, justificações e ações contra aqueles inimigos — abstratos e difusos, situação que os tornam tão fracos — tais como gays, feministas, esquerdistas que são inferiorizados o tempo todo, em suma, as dissidências normativas —, e ao mesmo tempo tão fortes —, pois estão em todos os lugares, são professores, políticos, artistas etc. A luta pela verdade, sua defesa contra os demônios gays da esquerda, contra as feministas, são construídas por afinidades operadas pela essencialização e por uma suposta simplicidade de certo tipo de verdade que dá para sentir.

 

O papel do gênero nessa guerra é estruturado em favor de um estado natural das coisas. Envolve uma disputa pelo sentido de estabelecer relações de poder cujo esforço está em excluir, silenciar, invisibilizar a multiplicidade e riqueza humana, em nome de uma forma única de existir e de estar no mundo. Para tanto, mobilizam uma parcela da população como soldados nesta guerra cultural que, por meio dessas armas híbridas, como vídeos, memes, textos etc., instrumentalizam sentimentos, valendo-se da criação e difusão de fake news, ou ainda, da construção de associações simplistas acerca dos mais diversos fenômenos sociais, criando inimigos reduzidos à representação do mal, pois compreendem que “[...] a guerra cultural também é uma guerra espiritual” (KREEFT, 2017, p. 29). Por isso, o desejo de morte, de ataque físico, o sentimento de ofensa, todos atrelados à própria existência física dessa vida que não merece ser vida.

 

O sentimento de vitimização também é comum nesses grupos conservadores, a ditadura gayzista, as feministas, feminazis que estão atacando os valores cristãos, tudo isso compromete o orgulho e a convicção da heterossexualidade, da branquitude, da masculinidade e demais valores que são vistos como sinais de coragem representada na crença de que estão lutando contra um sistema que quer acabar com a masculinidade e com a família tradicional. Não é à toa que as frustrações pessoais são logo atribuídas e expiradas, em primeiro lugar, nas categorias abstratas — esquerdistas, comunistas, feministas — para encontrar, progressivamente, ações físicas e concretas contra os inimigos. Chegando ao ponto, dentre tantas mortes e violências contra as mulheres e populações LGBTQ+, de organizarem ataques às professoras, como Judith Butler e Débora Diniz.

 

Ainda, em teor conclusivo, tal análise realizada nesse artigo é evidentemente limitada pelo esforço etnográfico que tem em seu sujeito objetivador do mundo social, o ponto de vista, sentidos e capacidade reflexiva atreladas aos corpos e subjetividades masculinas. “As ciências ainda estão impregnadas de valores fundados na superioridade masculina [...]. É claro que há exceções: um punhado de etnografias que tomam os pontos de vista das mulheres como partida” (STRATHERN, 2014, p. 87). Contudo, essa descrição e análise de cunho etnográfico deverá ser complementada conforme surjam novas etnografias realizadas a partir da experiência feminina nos grupos bolsonaristas e suas percepções do gênero na guerra.

 

Referências

 

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Aknaton Toczek SOUZA Trabalhou na elaboração da concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados, tendo em vista que o artigo resultou de uma pesquisa de pós-doutorado realizada no PPG em sociologia política da UVV, que teve como objeto de investigação o assunto apresentado neste artigo.

Doutor em Sociologia e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio de pós-doutorado em Sociologia Política na Universidade Vila Velha (UVV). É mestre em Sociologia pela UFPR, com graduação em Direito pela CESCAGE e em Sociologia pela UNIP. É pesquisador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos - CESPDH/UFPR, pesquisador colaborador do Núcleo de Pesquisa em Ativismo, Resistências e Conflitos NUPARC/UVV e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas (UCPel).

 

Pablo Ornelas ROSA Trabalhou na elaboração da concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados, tendo em vista que o artigo resultou de uma pesquisa de pós-doutorado realizada no PPG em sociologia política da UVV, que teve como objeto de investigação o assunto apresentado neste artigo.

Bacharel em Ciências Sociais e mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Realizou estágio de pós-doutorado em sociologia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em saúde coletiva e psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atualmente cursa o doutorado em Psicologia institucional, atuando como professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha (UVV) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação da Universidade do Vale Cricaré (UNIVC).

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* Advogado. Doutor em Sociologia e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas. (UCPel, Pelotas, Brasil). Rua Gonçalves Chaves, no. 373, sala 411C, Centro, Pelotas (RS). Cep: 96015-560. E-mail: aknatontoczek@gmail.com.

** Sociólogo. Doutor em Ciências Sociais. Professor Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha. (UVV, Vila Velha, Brasil). Av. Comissário José Dantas de Melo, n. 21, Biblioteca, Sala 21, Boa Vista, Vila Velha (ES). Professor e do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Educação da Universidade do Vale Cricaré. (UNIVC, São Mateus, Brasil). R. Humberto de Almeida Franklin, 217-257, Universitário, São Mateus (ES). CEP.: 29933-415. E-mail: pablorosa13@gmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es) 2023. Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] São técnicas para coleta de dados em plataformas digitais por meio de programas específicos, como o Python. Significa literalmente ‘raspagem’.

[2] Foi recorrente na fala do Presidente Jair Bolsonaro e de diversos ministros da educação de sua gestão a desqualificação das ciências humanas e sociais (BORGES, 2019).

[3] Donna Haraway aponta para o mesmo sentido ao identificar que: “A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado” (HARAWAY, 2009, p. 126).

[4] Esse conceito foi desenvolvido por Pierre Bourdieu de forma esparsa em sua obra, reconhecendo, muito pela experiência antropológica com os cabilas na Argélia, a pluralidade das razões econômicas. Laval (2020) faz uma excelente síntese desse pensamento.

[5] Termo utilizado para expressar respostas, contraposições, de forma, por assim dizer, entendida como definitiva, uma revelação que arrasa o interlocutor. Tende a ser sarcástico e reduzir a realidade, e sugerir uma obviedade mediante um comentário curto ou uma imagem.

[6] Trata-se de um conceito complexo que envolvem representações, diversos saberes, dentre eles os militares, fenômenos sociais, jurídicos. Portanto, para maior compreensão do conceito indicamos a pesquisa do antropólogo brasileiro Piero C. Leirner: O Brasil no espectro de uma guerra híbrida (2020).

[7] “São muitas as palavras que povoam essa nossa guerra híbrida: golpe, crime, governo, exército, arma, rede, dissonância, cismogênese, cognição, truque, informação, criptografia, célula, terror, guerra psicológica de espectro total (GPET), velocidade, ciclo, observação, orientação, decisão, ação, OODA, ideologia, fake, cortina de fumaça, guerra absoluta, estratégia, tática, blitzkrieg, centro de gravidade, estação de repetição, radar, drone, estratégia da abordagem indireta, movimento de pinça, proxy war, para-raios, viés de confirmação, guerra neurocortical, Amazônia, domesticação, invasão, soberania, ataque, defesa, bomba semiótica, teatro de operações, segurança, infiltração, violência, limited hangout, escalada horizontal, dissuasão, dissonância cognitiva, feedback, desenvolvimento, firehose of falsehood, false flag, cabeça-de-ponte, hegemonia, consórcio, e, possivelmente, esqueci umas tantas e virão tantas outras” (LEIRNER, 2020, p. 20).