Abusos sexuais de crian�as e adolescentes: n�o podemos
�aguentar
mais um pouquinho�!
The sexual abuse of children and adolescents:
we cannot, �bear it a little longer�!
Sabrina Pereira PAIVA*
�http://orcid.org/0000-0001-7958-4843
Elaine Reis BRAND�O**
�https://orcid.org/0000-0002-3682-6985
Resumo: O artigo objetiva contrastar dados relativos
aos abusos sexuais sofridos por crian�as e adolescentes brasileiras/os,
considerando o contexto da pandemia de COVID-19, com as pol�ticas p�blicas para
seu enfrentamento, do governo J. Bolsonaro (2019-2022). Para tal, utiliza
fontes documentais e bibliogr�ficas, extra�das de endere�os eletr�nicos p�blicos,
governamentais e n�o governamentais. Os dados nacionais recentes demonstram que
os casos ocorrem precipuamente entre 10 e 14 anos de idade, em suas pr�prias
casas, provocados por pessoas pr�ximas. N�o h� registros seguros estratificados
por ra�a/cor. Em contraste, o Plano Nacional de Enfrentamento �s Viol�ncias
contra Crian�as e Adolescentes (2022) fundamenta-se em uma perspectiva
familista, privatista, ultraneoliberal e teocr�tica, al�m de n�o prever a��es
estruturais de enfrentamento �s desigualdades raciais, de classe social e de
g�nero.
Palavras-chave: Viol�ncia sexual. Direitos sexuais. Pol�ticas
sexuais. Inf�ncia. Adolesc�ncia.
Abstract: The article contrasts data on the sexual abuse
suffered by Brazilian children and adolescents, with the public policies of the
2019-2022 Jair Bolsonaro government for confrontation it, taking into
consideration the context of the COVID-19 pandemic. It uses documentary and
bibliographic sources extracted from public, governmental
and non-governmental electronic resources. Recent national data shows that
cases involve victims between the ages of 10 and 14, in their own homes, and
carried out by people close to them. There are no reliable records stratified
by race/colour. In contrast, the National Plan to Combat Violence against
Children and Adolescents (2022) is based on a pro-family, privatist, ultra-neoliberal,
and theocratic perspective, and does not provide for structural actions to confront
racial, social class, and gender inequalities.
Keywords: Sexual violence. Sexual rights. Sexual policies.
Infancy. Adolescence.
Submetido em: 23/8/2022. Revisto em: 4/1/2023.
Aceito em: 16/1/2023.
Introdu��o
O |
�artigo tem como objetivo refletir
sobre os dados e informa��es relativos aos abusos sexuais[1] sofridos por crian�as e adolescentes brasileiras/os, considerando o contexto da pandemia de COVID-19 e, por outro
lado, contrastar tais realidades com as pol�ticas sexuais direcionadas a esse
fim, levadas a cabo pelo governo de J. Bolsonaro (2019- 2022). Trata-se de um
recorte proveniente de uma investiga��o mais ampla que analisa o debate
nacional contempor�neo a respeito da educa��o em sexualidade, voltada para
adolescentes e jovens no �mbito das pol�ticas p�blicas[2].
De fato, ao inserir o termo educa��o sexual no buscador Google�,
deparamo-nos com certo n�mero de reportagens retratando a import�ncia da
educa��o em sexualidade para preven��o e identifica��o de casos de abusos e
viol�ncias sexuais. Esses textos fazem rela��o entre o aprendizado implicado na
educa��o em sexualidade e a den�ncia de parentes ou pessoas pr�ximas que,
normalmente, vivem sob o mesmo teto que as v�timas de agress�o. Pode-se
exemplificar os t�tulos de conte�dos publicados em portais de not�cias, tais
como: Em aula de educa��o sexual, menina denunciou abuso; idoso � condenado
(RODRIGUES, 2022); �Dez alunos denunciam abusos no ambiente familiar
ap�s assistirem a palestras sobre viol�ncia sexual em escola� (AMOURY; MORAIS,
2022).
Conforme demonstra estudo
recente, a grande maioria das v�timas de viol�ncia sexual (abuso e explora��o)
� menina, os abusos s�o, em geral, vivenciados nas resid�ncias das v�timas e os
autores s�o, em grande parte, conhecidos delas. Em 2020, ano marcado pela
pandemia de COVID-19, houve uma pequena queda no n�mero de registros de viol�ncia
sexual. No entanto, analisando m�s a m�s, observa-se que a queda se deve
basicamente ao baixo n�mero de registros entre mar�o e maio de 2020 � per�odo
em que as medidas de isolamento social estavam funcionando melhor no Brasil. Essa
queda deve se referir a um aumento da subnotifica��o, e n�o a uma redu��o nas
ocorr�ncias (PANORAMA DA VIOL�NCIA LETAL E SEXUAL CONTRA CRIAN�AS E
ADOLESCENTES NO BRASIL, 2021).
No contexto pand�mico,
diversos �rg�os internacionais chamaram aten��o para a import�ncia de
abordagens cr�ticas de g�nero no que se refere �s respostas dos pa�ses, j� que,
em tais per�odos, as mulheres t�m um risco aumentado de sofrer viol�ncia,
estupro, feminic�dio, entre outras v�rias formas de manifesta��o da
desigualdade nas rela��es de g�nero (ORGANIZA��O PANAMERICANA DE SA�DE, 2020). O relat�rio Estado de la poblaci�n
mundial 2022, do Fundo de Popula��o das Na��es
Unidas (FONDO DE POBLACI�N DE
LAS NACIONES UNIDAS, 2022),
reitera como essencial que as pol�ticas p�blicas considerem os diferentes
contextos sociais, nos quais h� imensas disparidades em termos das rela��es
entre g�neros, classes sociais e ra�as. Observa-se que as rela��es sexuais
muitas vezes n�o s�o consensuais, sendo vivenciadas por press�o, coer��o e
outras formas de abuso e viol�ncia sexual, como os casos de estupros que podem
redundar em gravidezes (FONDO DE POBLACI�N DE LAS NACIONES UNIDAS, 2022).
Cabe ressaltar que, apesar de as reportagens citadas acima n�o
evidenciarem elementos relacionados � ra�a/cor e classe social das v�timas de
abusos sexuais, pelo teor de suas narrativas, pelas circunst�ncias e outros
elementos contextuais elencados, � poss�vel supor que se trata de crian�as e
jovens que vivem em situa��es de pobreza, cercadas por viol�ncias e por
desprote��o e desassist�ncia do Estado. Diante de tal precariedade, suas
fam�lias acabam por se tornarem coniventes e respons�veis pelos casos de abuso
e viol�ncia sexual com suas crian�as e adolescentes/jovens[3].
Por outro lado, conforme demonstra ampla literatura, percebe-se que o
in�cio do s�culo XXI, em v�rios contextos nacionais, � amplamente marcado pelo
acirramento das disputas entre as posi��es orientadas pela defesa da laicidade
do Estado, dos direitos humanos, entre eles, os direitos sexuais e reprodutivos,
e as posi��es neoconservadoras, defensoras do discurso religioso e da
antilaicidade do Estado (C�RREA; XIMENES, 2022). Al�m disso, nota-se que, nessa
agudiza��o do debate em torno das agendas relativas � democracia de g�nero e
sexualidade, h� uma imbrica��o inclemente entre o neoconservadorismo religioso
e o ultraneoliberalismo que podem ser entendidos como uma amea�a � democracia e
� seculariza��o.
Nesse sentido, no �mbito da investiga��o mais ampla, vimos analisando o
desenvolvimento das pol�ticas sexuais da gest�o J. Bolsonaro (2019-2022) no que
se refere �s diretrizes para a educa��o em sexualidade de crian�as e jovens no
pa�s. Neste artigo, pretendemos problematizar o enfrentamento p�blico dessas
graves viola��es de direitos de crian�as e adolescentes brasileiras/os, contrastando-o
com os dados publicados recentemente sobre os abusos sexuais por elas/es
sofridos.
Percurso te�rico-metodol�gico
Trata-se de uma
investiga��o socioantropol�gica, que parte de uma perspectiva feminista,
decolonial e construtivista. Consideramos que os postulados decoloniais e dos
feminismos cr�ticos nos oferecem uma perspectiva de an�lise mais complexa para
entendermos as rela��es e os entrela�amentos de ra�a, classe, g�nero,
sexualidade, geopol�tica e gera��o na sociedade brasileira contempor�nea (LUGONES,
2020). Nesse sentido, a busca por incorporar a perspectiva decolonial passa
pela compreens�o da manuten��o das rela��es coloniais de poder, as quais se
fazem presentes nas rela��es entre os pa�ses, entre pa�ses e sujeitos e entre
os sujeitos, colonialidade que � �[...] de
poder, saber, ser, natureza e linguagem, sendo tamb�m constitutiva dessas�
(LUGONES, 2014, p. 940). Supomos tamb�m uma articula��o estreita entre os
temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos e os processos sociais que
configuram as fases da vida na contemporaneidade. Pensar relacionalmente tais
dimens�es possibilita-nos compreender a sexualidade como mediadora das rela��es
sociais e, ao mesmo tempo, como constitutiva e constituinte da identidade
social, racial e de g�nero de cada um dos sujeitos no per�odo da inf�ncia,
adolesc�ncia/juventude (HEILBORN et al., 2006).
Metodologicamente, consideramos o material bibliogr�fico e documental
sobre o desenvolvimento das pol�ticas de educa��o em sexualidade, em especial
durante a gest�o governamental de J. Bolsonaro (2019-2022). Foram inclu�dos
documentos extra�dos de fontes p�blicas governamentais e n�o governamentais,
dispon�veis eletronicamente, os quais tratam do tema da educa��o sexual,
pol�ticas familiares e outros conte�dos relativos ao g�nero. Para este artigo,
consideramos os seguintes documentos: -Plano Nacional de Enfrentamento de Viol�ncias
contra Crian�as e Adolescentes (BRASIL, 2022a);
- Pesquisa Nacional de Sa�de dos Escolares - PeNSE- 2009-2019 (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTAT�STICA, 2022); Guia de autocuidado e preven��o ao risco
sexual precoce e gravidez na adolesc�ncia (BRASIL, 2022b); - Panorama da viol�ncia letal e sexual contra crian�as e
adolescentes no Brasil (PANORAMA DA VIOL�NCIA LETAL E SEXUAL CONTRA CRIAN�AS E ADOLESCENTES NO
BRASIL, 2021). Inclu�mos tamb�m reportagens recentes,
veiculadas em jornais e revistas de circula��o nacional e regional, sobre o tema
da educa��o em sexualidade em sua rela��o com a preven��o e a aten��o �s
viol�ncias sexuais de crian�as e adolescentes.
As quest�es que nortearam a leitura dos documentos foram: 1. Qual o
panorama brasileiro atual relativo aos abusos sexuais cometidos contra crian�as
e adolescentes? 2. Qual o papel da educa��o em sexualidade no combate e
preven��o �s viol�ncias sexuais? 3. Como est�o estruturadas as pol�ticas
p�blicas de prote��o �s crian�as e adolescentes no pa�s no que tange �s
viol�ncias sexuais? 4. Investigar como e se aparece o enfoque de g�nero, ra�a e
classe nos documentos analisados e pol�ticas governamentais a respeito desse
tema.
Para tanto, tomamos a premissa da
an�lise de discurso de que �n�o h� discurso sem sujeito e n�o h� sujeito sem ideologia�
(ORLANDI, 2007, p. 37) para pensar as viol�ncias sexuais e seus impactos
sociais (de uma perspectiva decolonial e relacional), os quais, ao se fazerem
vis�veis, podem gerar transforma��es nas pol�ticas p�blicas e nos movimentos e
debates sociais engendrados.
Os abusos sexuais cometidos contra crian�as e
adolescentes no Brasil contempor�neo... compreendendo
a sua face feminina, racial e dom�stica
Em reportagem publicada, em
fevereiro de 2022, pelo jornal O Globo (ADOLESCENTE..., 2022), apresenta-se a
not�cia de um jovem de 23 anos, preso em um pequeno munic�pio cearense, ap�s a
den�ncia feita por sua prima, uma adolescente de 16 anos, quando ela assistiu a
uma palestra sobre educa��o sexual no Centro de Refer�ncia Especializado de
Assist�ncia Social (CREAS) (ADOLESCENTE..., 2022). Outra reportagem (mar�o de
2022) exp�e a den�ncia de viol�ncia sexual praticada contra uma crian�a de 8
anos, realizada pelo seu �av�drasto�. Novamente, a den�ncia veio � tona
por conta dos conte�dos ministrados em educa��o sexual em escola no estado de
Goi�s, sendo recebida pela professora da referida crian�a. Na decis�o do juiz
respons�vel pelo caso, foi enfatizada a educa��o sexual no contexto escolar
como uma das estrat�gias mais eficazes para enfrentar e prevenir as viol�ncias
e os abusos sexuais contra crian�as e adolescentes (RODRIGUES, 2022). Tamb�m no
estado de Goi�s ocorreram v�rias den�ncias recentemente, quando dez alunos
apresentaram acusa��es quanto aos abusos sexuais vividos no ambiente familiar,
ap�s aula de educa��o sexual. Conforme consta na reportagem, um funcion�rio
p�blico municipal foi preso e exonerado do seu cargo, por suspeitas de abuso sexual
contra a filha (AMOURY, MORAIS, 2022).
Essas cenas aqui retratadas,
tendo como refer�ncias publica��es em jornais e revistas de circula��o nacional,
n�o s�o incomuns e demonstram o que os ve�culos de comunica��o e informa��o
trazem � luz e problematizam, no contexto atual, no que se refere aos aspectos
relativos � educa��o em sexualidade. Um ponto de concord�ncia que atravessa
tais reportagens diz respeito ao lugar fundamental da educa��o sexual no
contexto educacional e de outras pol�ticas p�blicas, em especial no que tange �
preven��o das viol�ncias sexuais contra crian�as e adolescentes.� Por outro lado, tamb�m exp�e a realidade
vivida pelas crian�as e adolescentes brasileiras em seus ambientes familiares. Todavia,
tais reportagens ocultam as dimens�es de ra�a e classe social na
contextualiza��o das v�timas, de seus agressores e familiares. Quem s�o as
v�timas e seus agressores?
Estudo publicado pelo Fundo das
Na��es Unidas para a Inf�ncia (UNICEF) e pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a
P�blica (FBSP), em 2021, denominado Panorama da viol�ncia letal e sexual
contra crian�as e adolescentes no Brasil, reuniu dados relativos ao
intervalo entre os anos 2016 e 2020. A an�lise relativa � viol�ncia sexual,
correspondente ao per�odo entre 2017 e 2020, exp�e que foram registrados
179.277 casos de estupro ou estupro de vulner�vel com v�timas de at� 19 anos �
uma m�dia de quase 45 mil casos por ano. Crian�as de at� 10 anos representam 62
mil das v�timas nesses quatro anos, um ter�o do total (PANORAMA DA VIOL�NCIA
LETAL E SEXUAL CONTRA CRIAN�AS E ADOLESCENTES NO BRASIL, 2021).
A grande maioria das v�timas de
viol�ncia sexual � menina � quase 80% do total. No total de casos de meninas,
um n�mero elevado envolve v�timas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade
mais frequente. Para os meninos, as ocorr�ncias de viol�ncia sexual
concentram-se especialmente entre 3 e 9 anos de idade. Das v�timas adolescentes
de 15 anos ou mais, as meninas representaram mais de 90% dos casos. A maioria
dos epis�dios de viol�ncia sexual ocorre na resid�ncia da v�tima e 86% dos
autores conheciam suas v�timas (PANORAMA DA VIOL�NCIA LETAL E SEXUAL CONTRA
CRIAN�AS E ADOLESCENTES NO BRASIL, 2021).
O
documento salienta a import�ncia de dados uniformes e mais precisos, relativos
�s idades das v�timas e ao quesito ra�a/cor nos registros policiais e estaduais
de viol�ncias letais e sexuais. Os dados de viol�ncias sexuais precisam ser
analisados com bastante cuidado no que se refere ao quesito ra�a/cor, j� que,
em 41% dos registros analisados, esse dado n�o foi preenchido. Mesmo assim,
operando com a
desagrega��o de dados por ra�a/cor das v�timas, � poss�vel demonstrar que o
percentual de v�timas negras vem aumentando ao longo dos anos. Ou seja, as
meninas negras, que antes eram a minoria do total de v�timas de estupro de 0 a 17
anos, em 2020, considerando os dados de maior n�mero de estados, o percentual
se inverte em rela��o � m�dia, e elas passam a ser a maior parte das v�timas (PANORAMA DA VIOL�NCIA LETAL E
SEXUAL CONTRA CRIAN�AS E ADOLESCENTES NO BRASIL, 2021).
Entretanto,
esse dado hist�rico do maior n�mero de registros de viol�ncia sexual (estupro)
ser relacionado �s jovens �n�o negras� causa certo estranhamento, j� que
estamos tratando de algo que est� extremamente arraigado na forma��o s�cio-hist�rica
brasileira. Conforme nos mostram os registros hist�ricos, os estupros cometidos
principalmente por homens brancos contra mulheres negras � uma das express�es
mais emblem�ticas da viol�ncia colonial. Partindo da premissa de que racismo e
sexismo s�o dois aspectos concatenados em nossa cultura e de que temos not�cias
de que as viol�ncias sexuais ainda s�o extremamente subnotificadas no pa�s,
podemos supor que boa parte do que anunciamos como casos n�o registrados possam
ser relacionados �s mulheres negras (talvez crian�as e adolescentes), que n�o
chegam a fazer o boletim de ocorr�ncia e a denunciar os epis�dios de viol�ncia sofridos
(GONZALEZ, 2020).
Faz-se
mister operarmos com a visibiliza��o dos dados relativos � ra�a, g�nero e
classe social, fugindo da velha armadilha de uma descri��o generalista que
naturaliza o mito da democracia racial no pa�s. O desenvolvimento das pol�ticas
p�blicas para o enfrentamento das viol�ncias, entre elas a viol�ncia sexual,
n�o pode prescindir de um olhar sobre o racismo e a discrimina��o e sobre como
essas determina��es afetam desigualmente as mulheres e meninas no pa�s.
A
Pesquisa Nacional de Sa�de do Escolar (PeNSE) busca captar, desde 2015, as
express�es da viol�ncia sexual entre escolares do 9� ano do ensino fundamental
(majoritariamente com idades entre 13 e 15 anos de idade). Nesse sentido, em
2019, com a inten��o de aperfei�oar a capta��o da informa��o sobre o tema,
adotaram-se algumas mudan�as metodol�gicas. Ao inv�s da pergunta direta sobre o
assunto, optou-se pela utiliza��o de exemplos de viol�ncia sexual, com a
indaga��o se a/o adolescente entrevistada/o havia passado por situa��o
parecida. Com efeito, o percentual de escolares que tiveram rela��o sexual
for�ada, em 2019, foi de 5,6%. Com a mudan�a metodol�gica, a viol�ncia sexual p�de
ser mensurada n�o somente atrav�s do ato da rela��o sexual, mas da
identifica��o de outros atos que v�o desde o ass�dio at� a rela��o for�ada.
Nesse sentido, o percentual de escolares do 9� ano, morando nas capitais que
passaram por essa situa��o, foi de 14,6% (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTAT�STICA, 2022). Entretanto, esses dados n�o s�o apresentados
com estratifica��o por ra�a/cor, mas apenas segmentados por escolas p�blicas e
privadas.
A PeNSE (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTAT�STICA, 2022) tamb�m assinala que tem
crescido o n�mero de adolescentes que inicia de forma �prematura� a vida
sexual, especialmente as mo�as, denotando maiores riscos de gesta��o na adolesc�ncia
e de infec��es sexualmente transmiss�veis (IST). Conforme consta no documento,
�[...] a adolesc�ncia � a fase da vida de
profundas mudan�as f�sicas e psicol�gicas e a inicia��o sexual precoce pode
levar � gravidez n�o desejada e as IST� (IBGE, 2022, p. 136). H� uma clara
preocupa��o sobre o que se compreende como �precocidade� da inicia��o sexual e,
ao mesmo tempo, um entendimento subliminar de que sexo precoce � igual a sexo
na adolesc�ncia, considerando como fatores dificultadores, para o controle de
gesta��es e IST, as pr�prias mudan�as f�sicas e psicol�gicas pelas quais a
popula��o nessa faixa et�ria passa. Do mesmo modo, n�o se consideram as
profundas desigualdades existentes entre as/os adolescentes brasileiras/os, no
que concerne � ra�a/cor e classe social.
Outro dado relevante do documento
se refere � queda do percentual de escolares que afirmam terem recebido
informa��es na escola sobre preven��o de gravidez, IST e HIV, no per�odo de 10
anos. Mesmo que as pessoas entrevistadas citem que tiveram algum tipo de
educa��o sexual no contexto escolar (77,6% em 2019), ainda assim, mais de 70%
observa que houve lacunas no acesso �s informa��es dadas nesse contexto (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTAT�STICA, 2022).
Em 2022, o Fundo de
Popula��o das Na��es Unidas lan�ou o boletim sobre o Estado da popula��o
mundial destacando a necessidade de dar �visibilidade ao invis�vel�,
tratando-se da crise da falta de aten��o mundial �s gesta��es n�o intencionais
e suas causas e consequ�ncias sociais. De acordo com o documento, o desenvolvimento
social e econ�mico, maiores �ndices de igualdade de g�nero, pol�ticas que
contemplem um incremento de acesso legal ao aborto seguro e a oferta de
educa��o sexual integral refletem diretamente em redu��es das taxas de gesta��es
n�o intencionais e das viol�ncias sexuais (FONDO DE POBLACI�N DE LAS NACIONES UNIDAS,
2022). Apesar de as pol�ticas relativas ao aborto n�o serem foco desta
an�lise, � sabido que, muitas vezes, a viol�ncia sexual tem como uma das
consequ�ncias uma gesta��o indesejada. A interrup��o da gravidez de v�timas de
viol�ncia sexual est� prevista na lei brasileira, n�o se especificando o tempo
de gesta��o, especialmente quando a gravidez coloca em risco a vida da v�tima.
Assim, cabe-nos
questionar: como est�o estruturadas, no momento atual,
as pol�ticas p�blicas de prote��o �s crian�as e adolescentes brasileiras/os no
que tange �s viol�ncias sexuais?
Pol�ticas de enfrentamento
�s viol�ncias sexuais contra crian�as e adolescentes do governo Bolsonaro: familismo, teocracia
e desprote��o do Estado
Em 18 de maio de 2022,
como parte das a��es relativas ao dia nacional de combate ao abuso e explora��o
sexual de crian�as e adolescentes[4], o Minist�rio da
Mulher, da Fam�lia e Direitos Humanos (MMFDH), em conjunto com os Minist�rios
da Sa�de, Educa��o, Justi�a e Seguran�a P�blica, Cidadania e Turismo, bem como
outras entidades n�o governamentais, lan�aram o Plano Nacional de Enfrentamento
� Viol�ncia contra Crian�as e Adolescentes- 2022/2025
(PLANEVCA). A ent�o ministra do
MMFDH, Cristiane Britto, ressaltou que, em 2021, o disque 100 (central de den�ncias
relativas � viola��o de direitos humanos) recebeu mais de 18,6 mil queixas de
viol�ncia sexual contra crian�as e adolescentes.
O 1� Plano Nacional de Enfrentamento
da Viol�ncia Sexual contra Crian�as e Adolescentes data de 2000, sendo que,
antes da reformula��o atual, o documento passou por duas revis�es, uma no ano
de 2006 e outra em 2012/2013. Em 2021, como
parte das a��es governamentais, foi lan�ado o decreto n� 10.701/2021, criando o
Programa Nacional de Enfrentamento �s Viol�ncias contra Crian�as e Adolescentes
e sua Comiss�o intersetorial (BRASIL, 2021a). Conforme apontado na apresenta��o
do novo Plano, considerando os avan�os significativos no enfrentamento �
viol�ncia sexual contra crian�as e adolescentes, houve a necessidade de ampliar
a aten��o para outras formas de viol�ncias praticadas contra crian�as e
adolescentes, tendo em vista a dura realidade de viola��es de direitos dessa
popula��o no Brasil, inclusive as viol�ncias letais. Assim, o plano atual tem
como elemento novo o tratamento geral sobre as viol�ncias vivenciadas por essa
popula��o, incorporando as viol�ncias sexuais (abuso e explora��o sexual), em
conjunto com as viol�ncias f�sicas, institucionais e psicol�gicas.
Do
ponto de vista do debate feminista e decolonial, observa-se que o PLANEVCA, em sua
apresenta��o e marco te�rico, ou seja, na contextualiza��o dos elementos
estruturais ligados �s viol�ncias contra as crian�as e adolescentes no Brasil,
n�o chama aten��o para as enormes desigualdades existentes entre as crian�as e
jovens em termos de ra�a/cor, estratificando as desigualdades em rela��o a
g�nero e, algumas vezes, considerando os aspectos relacionados �s desigualdades
de classe social. A hist�ria das viol�ncias, bem como das pol�ticas p�blicas
constru�das para inf�ncia e juventude no Brasil, � contada invisibilizando-se a
vari�vel racial, sendo que, mesmo que se fa�a refer�ncia � marca da escravid�o
e da coloniza��o na forma��o social nacional, esses segmentos et�rios seguem
sendo apresentados de forma indistinta em termos raciais e �tnicos.
No cap�tulo referente
�s caracteriza��es dos tipos de viol�ncias, no que se refere ao abuso sexual,
n�o apareceu, em momento algum, a reflex�o sobre as desigualdades raciais. Entretanto,
na an�lise da explora��o sexual, surge a seguinte reflex�o:
A Am�rica Latina teve sua
forma��o econ�mica, social e cultural baseada na coloniza��o e na escravid�o,
levando � constitui��o de uma sociedade racista, com grandes desigualdades
sociais e eco�n�micas, que pautaram a inferioriza��o por ra�a/etnia, g�nero e
idade. Por isso, a maioria dos casos identificados de explora��o sexual de
crian�as e adolescentes est� relacionada �s meninas. Os meninos tamb�m s�o v�timas,
embora esses casos possam ser negligenciados com mais frequ�ncia. Esses mesmos
desafios de identifica��o tamb�m podem ser observados em rela��o �s crian�as e
adolescentes negros, ind�genas e com defici�ncia (BRASIL,
2022a, p. 37).
Observa-se que, apesar de
aparecer o termo ra�a (�s vezes alinhado com o termo etnia, outras vezes com
cor) nesse trecho, e tamb�m em outros momentos no
decorrer do documento, na maior parte das vezes, aparece citado ao lado de
outros marcadores sociais das desigualdades, como g�nero, idade, orienta��o
sexual, identidade de g�nero, socioterritorial, defici�ncia f�sica etc. Esse aspecto
deve ser salientado, pois, a despeito de todos esses determinantes conjugarem
na conforma��o das viol�ncias contra crian�as e adolescentes, a quest�o racial,
como elemento estrutural, mant�m sua presen�a dissolvida entre os outros
marcadores sociais, sendo at� mesmo invisibilizada. Essa observa��o pode ser
extra�da do pr�prio texto acima, na medida em que se reconhece a dificuldade de
identifica��o das viol�ncias praticadas contra adolescentes negros, ind�genas e
com defici�ncia. Assim, n�o � dif�cil conjecturar que esse �sil�ncio ruidoso�
no que diz respeito �s contradi��es raciais se baseia em um dos mitos de domina��o
ideol�gica mais eficazes entre n�s: o da democracia racial (GONZALEZ, 2020, p.
144).
O PLANEVCA foi formulado com cinco subdivis�es por eixos, quais sejam: 1.
Preven��o; 2. Atendimento; 3. Defesa e responsabiliza��o; 4. Participa��o e
mobiliza��o social; 5. Estudos e pesquisas. N�o h� men��o � educa��o sexual ou educa��o
em sexualidade como estrat�gia para preven��o e enfrentamento das viol�ncias
sexuais contra crian�as e adolescentes, em nenhum dos eixos. Em todo o
documento, n�o h� men��o ao termo �educa��o sexual�, nem mesmo enquanto
estrat�gia para fortalecimento de a��es preventivas e de detec��o de viol�ncias
sexuais.
Em trabalho anterior que comp�e a investiga��o mais ampla� sobre as pol�ticas de educa��o em sexualidade
no Brasil (PAIVA; BRAND�O, 2023, no prelo), foi poss�vel perceber que o Governo
Bolsonaro, nos temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos, em especial
de adolescentes/jovens, articula a linguagem dos direitos humanos com o discurso
essencialista e bin�rio a respeito da sexualidade e do g�nero, buscando
enquadrar tais elementos discursivos para valida��o de suas posi��es pol�tico-ideol�gicas
identificadas com certos grupos religiosos e conservadores. Essa estrat�gia,
balizada pelo �p�nico moral� existente em torno da sexualidade na adolesc�ncia,
realiza-se pela ressignifica��o do debate sobre o pluralismo e diversidade de
g�nero e sexualidade, com a oculta��o das narrativas sobre prazer sexual,
enfatizando a ideia de �preserva��o sexual�. As pol�ticas bolsonaristas nessa �rea,
levadas a cabo principalmente pelo MMFDH, enfatizam, numa perspectiva
comportamentalista e individualista, o autocuidado, a import�ncia da fam�lia
como lugar de seguran�a, e, acima de tudo, partindo da ideia de que � preciso �salvar�
os/as adolescentes das �m�s� influ�ncias culturais, que levariam � sexualiza��o
e erotiza��o precoces.
De Franco e Maranh�o Filho (2021),
a respeito das pr�ticas discursivas do governo Bolsonaro sobre a pol�tica
educacional, tamb�m destacam a for�a do n�cleo familiar em rela��o ao debate de
g�nero e sexualidade. Como exemplo, citam a retirada do debate p�blico de
g�nero e sexualidade das escolas, que tem como uma das consequ�ncias a
manuten��o de um elemento central da nossa estrutura social: o de manter no
dom�nio privado aquilo que se quer controlar, subalternizar, invisibilizar ou excluir.
Destacam-se, nessas a��es governamentais, os dois pilares que os autores
observam nas pol�ticas educacionais deste governo: a privatiza��o e a
teocratiza��o, distanciando-a da perspectiva democr�tica, p�blica, social
referenciada, pluralista e defensora dos direitos humanos.
Assim, o primeiro objetivo do
eixo preven��o do PLANEVCA diz o seguinte: �[...] incentivar
grupos familiares para o desenvolvimento de habilidades parentais e protetivas
a fim de fortalecer os v�nculos familiares, visando � preven��o �s viol�ncias
contra crian�as e adolescentes� (BRASIL, 2022a, p. 80). Como subitem desse
objetivo, h� um destaque para o Programa Fam�lias fortes, da Secretaria
Nacional da Fam�lia.
O programa Fam�lias Fortes
foi desenvolvido com fun��o eminentemente educativa, voltado para fam�lias que
tenham filhos entre 10 e 14 anos de idade, prevendo-se em sua metodologia que
seja executado em sete encontros semanais com a finalidade de promover o bem-estar
dos membros da fam�lia, fortalecer os processos de prote��o e constru��o de �resili�ncia
familiar�, al�m da redu��o dos riscos relacionados aos �comportamentos
problem�ticos� (BRASIL, 2021b).
Entretanto, de que fam�lia se trata? Podemos supor
que se trata do modelo cisheteronormativo (pai, m�e e filho/s), na medida em
que em v�rios documentos governamentais a ideia de fam�lia parece remeter
implicitamente a esse modelo. Al�m disso, a no��o de fam�lia, como lugar
priorit�rio de prote��o e cuidado, encobre as in�meras desigualdades e
viol�ncias que atravessam e conformam os cotidianos de vida das fam�lias pobres
e vulner�veis no pa�s, as quais, em geral, por tamb�m estarem expostas � desprote��o, n�o possuem as
m�nimas condi��es materiais para proteger e acabam por se tornarem coniventes e
respons�veis pelas viol�ncias sexuais com crian�as, adolescentes e jovens (PAIVA; BRAND�O, 2023, no prelo).
Outra quest�o importante se refere ao acento dado
ao desenvolvimento de atitudes de autocuidado, autoprote��o e autodefesa em
rela��o �s viol�ncias perpetradas contra as crian�as e adolescentes. Esse
elemento aparece, por exemplo, no eixo referente � participa��o e mobiliza��o
social, com vistas � estrutura��o de a��es formativas para crian�as e
adolescentes na educa��o b�sica (BRASIL, 2022a).
Este enfoque foi trabalhado tamb�m em outras pol�ticas sexuais recentes,
voltadas �s crian�as e jovens, da gest�o Bolsonaro, como o Guia de Autocuidado:
recomenda��es para preven��o do risco sexual precoce e da gravidez na Adolesc�ncia,
produzido pelo MMFDH, MEC, MS e Secretaria Nacional de Assist�ncia Social,
lan�ado tamb�m em 2022. Em tal guia, a no��o principal trabalhada � a de
autocuidado, apresentada aos adolescentes e jovens de forma abstrata, sem
nenhuma conex�o com as desigualdades e as diferentes realidades enfrentadas por
eles em seus cotidianos, considerando o autocuidado como uma caracter�stica �inerente
ao ser humano�, dizendo respeito � �[...] integralidade
do ser� (BRASIL, 2022b, p. 7). Observa-se ainda que o guia define v�rios n�veis
de autocuidado, como o f�sico, psicol�gico, emocional, social, espiritual,
sempre pressupondo o binarismo dos sexos feminino e masculino, invisibilizando,
assim, as diferentes identidades de g�nero presentes na cena contempor�nea
(BRASIL, 2022b).
Conforme argumenta
Terassi Hortelan (2019), percebe-se, na contemporaneidade, uma intensa
psicologiza��o das rela��es e do cotidiano, que vem imbricada ao ide�rio do
feminismo liberal e ao mercado capitalista. Assim, percebemos a penetra��o cada
vez maior de no��es, como de autonomia, autocuidado, comunica��o,
autorrealiza��o, sendo que esse regime de produ��o de sujeitos e essa �nova�
governamentalidade tende a exacerbar o tom privatista, bem como o modelo de
fam�lia cisheteronormativa. Concomitantemente, tende a invisibilizar as
desigualdades de ra�a, classe e g�nero, al�m de outras que pesam sobre tais
fam�lias e as colocam diante de um regime de viol�ncias cotidianas nas franjas
do capitalismo perif�rico brasileiro.
Em junho de 2022,
ocorreu audi�ncia p�blica no Senado, quando a Comiss�o de Direitos Humanos e
Legisla��o Participativa (CDH) debateu o PLANEVCA, conforme solicita��o da
senadora Leila Barros (PDT-DF), pelas cr�ticas feitas ao documento provenientes
da sociedade civil organizada. Diego Alves, presidente do Conselho Nacional dos
Direitos da Crian�a e do Adolescente (CONANDA), ressaltou que o Brasil � o
segundo do mundo em explora��o sexual de crian�as e adolescentes, sendo tal
situa��o agravada pela pobreza. Criticou a falta de participa��o social na elabora��o
do Plano, defendendo a��es, como pol�ticas de renda b�sica e de emprego, para
enfrentar tal quest�o (BORGES, 2022).
Observa-se, assim, que, diante da
ineg�vel gravidade da pauta relativa � prote��o das crian�as e adolescentes das
situa��es de viol�ncias, em particular as viol�ncias sexuais no nosso pa�s, as
quais se agravaram no contexto pand�mico, a gest�o de J. Bolsonaro responde com
pol�ticas fundamentadas em perspectivas familista (privatista), ultraneoliberal
e teocr�tica, verificando-se que, entre os objetivos e as a��es intersetoriais
elencados, n�o s�o citados a��es, programas ou pol�ticas estruturais de
enfrentamento �s desigualdades de g�nero, raciais e de classe social, como
medidas essenciais para fazer frente �s v�rias formas de viol�ncias, destacando
aqui as sexuais, praticadas contra crian�as e adolescentes brasileiras/os, em
seus ambientes familiares.
� guisa de conclus�o
Recentemente,
assistimos, nos notici�rios, ao caso de uma crian�a de 11 anos que foi violentada
sexualmente por um familiar durante sua inf�ncia. Como consequ�ncia do/s
estupro/s, ela engravidou e, com a ajuda da sua m�e, procurou o Estado
(hospital de refer�ncia) brasileiro, visando acessar o aborto, conforme estabelece
a legisla��o brasileira, desde 1940. O fato ocorreu em um hospital da regi�o
metropolitana de Florian�polis (SC). Contudo, a crian�a e a m�e tiveram,
inicialmente, a solicita��o negada, dando-se como justificativa o fato de que a
gesta��o havia ultrapassado 20 semanas. O caso alcan�ou express�o internacional
pelo exemplo de viola��o dos direitos humanos por parte do Estado brasileiro e
seus agentes.
Ao ser atendida pelo
Minist�rio P�blico, a crian�a (gr�vida) foi encaminhada, contra a vontade de
sua m�e, para um abrigo, com a justificativa de proteg�-la do familiar
abusador. De fato, o caso alcan�ou maior repercuss�o mundial devido �
divulga��o do v�deo de audi�ncia judicial, em que a ju�za respons�vel pelo caso
pergunta se a menina �[...] suportaria (a
gravidez) mais um pouquinho? [...]�, e ainda se o �pai da crian�a� (estuprador)
estava ciente e de acordo com o aborto. Essa crian�a - que deveria ser
protegida - passou por um processo de (re)vitimiza��o na medida em que o Estado
n�o somente a deixou desprotegida, mas tamb�m a violentou novamente, simb�lica
e psicologicamente (MAYER, 2022).
Outro aspecto a ser
destacado desse triste epis�dio reside no fato de que as reportagens n�o
apresentam informa��es que ajudem a contextualizar a �menina gestante� em
termos de ra�a/cor e classe social. Apesar disso, podemos facilmente supor que
se trata de uma crian�a que vive em contexto de vulnerabilidade social e
pobreza, at� mesmo pelo n�vel de viol�ncia a que foi submetida pelos agentes do
Estado.
Em s�ntese, a despeito de os dados nacionais recentes e as fontes
jornal�sticas demonstrarem a grave realidade
vivida por meninas (sim, a maioria dos casos ocorre entre 10 e 14 anos)
brasileiras, v�timas de abusos sexuais por parentes pr�ximos, em seus ambientes
dom�sticos, as pol�ticas p�blicas brasileiras, voltadas para essa popula��o,
visando fazer frente a essa realidade, s�o p�fias e at� mesmo cru�is, pois
tendem a manter e ampliar o ciclo de viol�ncias a que est�o submetidas essas
crian�as e suas fam�lias. A an�lise das pol�ticas governamentais nessa �rea, da
gest�o J. Bolsonaro,� revelou-nos que a
perspectiva familista, privatista, ultraneoliberal e teocr�tica est� nos seus
fundamentos, ressaltando-se que, entre os objetivos e as a��es intersetoriais
elencados, n�o s�o citadas a��es, programas ou pol�ticas estruturais de
enfrentamento �s desigualdades de g�nero, raciais e de classe social, como
medidas essenciais para fazer frente �s outras formas de viol�ncias, inclusive
as sexuais, praticadas contra crian�as e adolescentes brasileiras/os.
Refer�ncias
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assistir a uma palestra sobre educa��o sexual no Cear�. G1 Cear�, Fortaleza,
19 fev. 2022. Dispon�vel em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2022/02/19/adolescente-denuncia-primo-por-estupro-apos-assistir-a-uma-palestra-sobre-educacao-sexual-no-ceara.html.
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AMOURY, Jamyle; MORAIS, Adriel. Dez alunos
denunciam abusos no ambiente familiar ap�s assistirem a palestras sobre
viol�ncia sexual em escola. G1 Goi�s e TV Anhanguera, Goiania, 22 mar.
2022.� Dispon�vel em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/05/22/alunos-denunciam-abuso-sexual-apos-assistirem-palestras-sobre-o-assunto-em-escolas-de-campo-limpo-de-goias.ghtml.
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Acesso em: 23 maio 2022.
________________________________________________________________________________________________
Sabrina
Pereira PAIVA Trabalhou na concep��o e delineamento do
artigo, na an�lise e interpreta��o dos dados e na sua reda��o.
Atua como professora da Faculdade de Servi�o Social e do
Programa de P�s-gradua��o em Servi�o social (UFJF). Desenvolve pesquisas nos
temas sexualidade, g�nero, juventude, viol�ncia de g�nero, direitos sexuais e reprodutivos.
Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade, G�nero, Diversidade e
Sa�de: pol�ticas e direitos (GEDIS/UFJF).
Elaine
Reis BRAND�O Trabalhou no seu delineamento, revis�o e
cr�tica.
Atua como professora do Departamento de Medicina Preventiva,
atuando no Instituto de Estudos em Sa�de Coletiva da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, na �rea tem�tica de Ci�ncias Sociais e Sa�de. Desenvolve
pesquisas nos temas: processos de sa�de e doen�a; g�nero, sexualidade, sa�de
reprodutiva, gravidez na adolesc�ncia, contracep��o; aborto; anticoncep��o de
emerg�ncia; juventude, fam�lia, viol�ncia de g�nero. � pesquisadora do CNPq.
________________________________________________________________________________________________
*Assistente Social. Doutorado em Sa�de Coletiva. Professora na
Faculdade de Servi�o Social e no Programa de P�s-gradua��o em Servi�o Social,
Universidade Federal de Juiz de Fora. (UFJF, Juiz de Fora, Brasil). Campus universit�rio:
Rua Jos� Louren�o Kelmer, s/n, S�o Pedro, Juiz de Fora (MG), CEP.: 36036-900. E-mail:
sabrina.paiva@ufjf.br.
**Assistente Social. Doutorado em
Sa�de Coletiva. Professora no Instituto de Estudos em Sa�de Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil). Ilha do Fund�o.
Avenida Carlos Chagas Filho, IESC, Cidade Universit�ria da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), CEP.: 21941-902. Bolsista de Produtividade
do CNPq. E-mail: brandao@iesc.ufrj.br.
�� A(s)
Autora(s)/O(s) Autor(es). 2022 Acesso Aberto Esta obra est� licenciada sob os termos
da Licen�a Creative Commons Atribui��o 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR),
que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato,
bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer
fim, mesmo que comercial.� O licenciante
n�o pode revogar estes direitos desde que voc� respeite os termos da licen�a.
[1]
Conforme a Lei n� 13.431/2017, abuso sexual se refere a �[...] toda a��o que se utiliza da crian�a ou do adolescente para
fins sexuais, seja conjun��o carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo
presencial ou por meio eletr�nico, para estimula��o sexual do agente ou de
terceiros� (BRASIL, 2017, n�o paginado). N�o trataremos aqui da explora��o sexual,
que se diferencia do abuso pela exig�ncia adicional de alguma forma de troca,
ou seja, o fato de a crian�a/adolescente e/ou outra pessoa receber algo em
troca da atividade sexual.
[2]
Investiga��o desenvolvida no �mbito do est�gio p�s-doutoral da primeira autora,
realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro - Instituto de Estudos em
Sa�de Coletiva, cujo t�tulo �: O debate social sobre a educa��o sexual de
jovens brasileiros/as no contexto contempor�neo: as controv�rsias e disputas de
narrativas na (des)constru��o da pol�tica sexual brasileira (2021-2022),
sob supervis�o da segunda autora.
[3]
Neste ponto, � importante destacar que compreendemos que as viol�ncias de
g�nero, aqui retratadas as sexuais, atravessam todas as classes sociais e as
diferentes ra�as e etnias, mas o que enfatizamos � que as desigualdades de ra�a
e classe n�o podem ser invisibilizadas ou desconsideradas na an�lise e no desenvolvimento
das pol�ticas p�blicas, pois s�o produzidas dentro de uma l�gica complexa e
imbricada, que serve � reprodu��o m�tua dos sistemas: patriarcado - racismo -
capitalismo.
[4]
A data - 18 de maio de 1973- faz refer�ncia ao caso de �Araceli�, uma menina de
oito anos, que foi sequestrada e morta em Vit�ria (ES). No ano de 1991, os tr�s
acusados de matar a jovem foram absolvidos e o crime segue impune at� hoje.