Direito ao aborto no Brasil:
entre tentativas de retrocesso e
resistências
The right to abortion in Brazil: between attempts to regress and oppose
Nayara André DAMIÃO *
http://orcid.org/0000-0003-0215-1833
Cássia Maria CARLOTO **
http://orcid.org/0000-0003-1953-9201
Resumo: Discuti o direito ao aborto enquanto
um direito reprodutivo. A luta por esse direito, no Brasil, sempre foi permeada
pela disputa entre conservadores e movimento feminista. Enquanto as feministas
buscam o direito de decidir sobre o próprio corpo e vida, as intervenções
conservadoras, para impedir o direito ao aborto em qualquer circunstância,
contam com a participação e alianças de setores religiosos das igrejas Católica
e Evangélica, articulados a setores político-partidários. A análise feita
resgata essa disputa desde a década de 1940 até o conservadorismo da atualidade
no ataque ao direito ao aborto. Os subsídios do debate originam-se de uma
pesquisa de doutorado, na qual identificam a sofisticação das estratégias e a
intensificação das ações conservadoras para tolher o direito ao aborto e, por
outro lado, o papel fundamental das feministas em barrar retrocessos e manter
viva a luta pelo direito de decidir.
Palavras-chave: Direitos reprodutivos. Aborto. Conservadorismo. Movimento Feminista.
Abstract: This article discusses the right
to abortion as a reproductive right. In Brazil, the fight for this right has
always been permeated by the dispute between conservatives and the feminist
movement. While feminists seek the right to decide about their own bodies and
lives, conservative interventions to prevent the right to abortion under any
circumstances rely on the participation and alliances of religious sectors of
the Catholic and Evangelical churches, linked to political parties. The
analysis retrieves this argument from the 1940s and applies it to current
conservatism and its attack on the right to abortion. The basis of the debate lies
in doctoral research which identified the sophisticated strategies and the
intensification of conservative actions employed to hinder the right to
abortion, and the fundamental role of feminists in preventing regression and
keeping alive the fight for the right to choose.
Keywords: Reproductive rights. Abortion.
Conservatism. Feminist Movement.
Submetido em: 27/8/2022. Revisto em: 8/1/2023.
Aceito em: 13/2/2023.
Introdução
Os sujeitos que os propõem não estiveram historicamente providos de poder
para propor e definir direitos, e isso é um campo imenso de liberdade, que é a
possibilidade de participar da invenção democrática. Pois as coisas não estão
dadas, elas são criadas, e a ordem social que prevalece é, por tradição, uma
prerrogativa do sujeito homem, heterossexual, burguês e branco. Realmente,
inventar é uma grande ousadia e um grande desafio (ÁVILA, 2005, p. 24,
grifos nossos).
A |
luta
das mulheres pela liberdade sexual e reprodutiva, que inclui a legalização do aborto, sempre foi pauta do movimento
feminista[1].
Ressignificando o público e o privado e afirmando que o pessoal é político, o
movimento feminista colocou em debate várias questões que antes eram deixadas
de lado, pois não eram de interesse público. Ávila (2005) afirma que essa
discussão se torna essencial, uma vez que “[...] as interdições legais sobre a
vida amorosa, sexual e reprodutiva se transformaram, de fato, em mecanismos
insuportáveis na vida cotidiana, pois são instrumentos de dominação, de
repressão e de violência” (ÁVILA, 2005, p. 18). É nesse contexto que organizações
feministas vão introduzir a luta pelos direitos reprodutivos e pelo
reconhecimento destes enquanto direitos humanos.
O
conceito de direitos reprodutivos passou a ser utilizado de forma mais sistemática
entre as brasileiras em meados de 1980. Para Correa e Petchesky
(1996), eles se definem no poder da tomada de decisão a partir de informação
correta e de qualidade sobre fecundidade, gravidez, educação, saúde e
sexualidade, envolvendo os recursos necessários para realizar tais decisões com
segurança. Englobam o controle sobre o próprio corpo e as condições objetivas e
subjetivas para o exercício da autonomia. Tais condições incluem trabalho e
renda, moradia, educação, transporte, educação infantil, escolas em período
integral, serviços de saúde humanizados e bem equipados, entre outros. A
construção de relações afetivas compartilhadas sem violência de qualquer tipo é
essencial, contudo, para que existam, é necessário responsabilidade do Estado,
pressupondo uma ação pública que garanta que os direitos sejam exercidos por
todas[2].
O
movimento feminista tratou de demarcar o aborto como um direito reprodutivo das
mulheres[3],
essencial para o exercício da autonomia: o direito de decidir. A luta pela legalização
do aborto sempre enfrentou posicionamentos conservadores e contrários à prática
em nome de uma pretensa defesa da vida desde a concepção. Esse posicionamento conservador foi sendo
construído com a participação e alianças de setores religiosos da igreja
Católica num primeiro momento e, também, das Evangélicas nas últimas décadas.
Aliança essa articulada a setores político-partidários e contrária aos
permissivos do Código Penal de 1940.
No
Brasil, o Código Penal de 1940, vigente até hoje, considera o aborto crime,
exceto em caso de risco de morte e gravidez decorrente de estupro. Em 2012, o
Supremo Tribunal Federal (STF) passou a reconhecer o direito ao aborto em caso
de feto anencéfalo. Em todos esses casos, o aborto
não é obrigatório, mas uma possibilidade de escolha da mulher, que deve ter a
sua decisão respeitada.
Este
artigo, organizado em duas partes, tem como eixo o debate sobre a disputa entre
conservadores e o movimento feminista brasileiro. Na primeira parte, tais ações
são abordadas a partir da década de 1940. Em seguida, são discutidos o conservadorismo
na atualidade e as estratégias no ataque ao direito de decidir. Os subsídios
para este texto originam-se de uma pesquisa de doutorado[4], que
envolveu análise documental, bibliográfica e entrevistas com lideranças da luta
pelos direitos reprodutivos.
1 As disputas a partir de
1949
A
perspectiva conservadora sempre rondou debates, ações e iniciativas na área de
direitos reprodutivos no Brasil. As intervenções para impedir o direito ao aborto
em qualquer circunstância contaram com a participação e alianças de setores
religiosos, principalmente da Igreja Católica. A perspectiva moralizante foi
uma das principais balizadoras do conservadorismo, norteada por concepções
unitárias e, segundo Vaggione, Machado e Biroli (2020), serve de base para a regulação da vida
social e reprodutiva de toda a população.
O conservadorismo clássico, segundo Souza (2016),
caracteriza-se como antimoderno, antirrepublicano e antiliberal, uma reação antiburguesa à Revolução Francesa e aos ideais iluministas,
tendo em Edmund Burke seu grande expoente. Consiste, nesse sentido, numa
crítica à sociedade burguesa, que busca no passado as respostas para a
sociedade que almeja. Os conservadores clássicos encontravam na monarquia, na
tradição e na hierarquia, ancorados no irracionalismo, aquilo que desejavam
para uma sociedade equilibrada. Para eles, as desigualdades eram,
naturalmente, postas e irremediáveis, além de serem importantes para a
manutenção da ordem da vida em sociedade. Esta entendida como uma entidade
orgânica regida por leis internas, que advêm das instituições criadas
diretamente por Deus e manifestadas nas tradições.
Para os conservadores, tudo nessa
sociedade natural e tradicionalmente coerente tem uma função: desde as pessoas,
as instituições, as crenças, os preconceitos. Estes últimos são compreendidos
por Burke (1982) como fruto do acúmulo de sabedoria entre os séculos e têm a
ver com a necessidade profunda de segurança do homem, possibilitando respostas
imediatas, evitando que fiquem hesitantes na hora de tomar decisões. O
conservador considera, desse modo, que qualquer ação objetivando mitigar ou
reduzir as desigualdades altera e perverte a ordem natural da sociedade. Os
esforços para reformar ou refazer algo em sociedade vai contra esse todo que é
coerente por natureza (BURKE, 1982).
Atualmente, há um fortalecimento dos ideais
conservadores remodelados para o contexto vigente e às necessidades do
patriarcado-racismo-capitalismo. O chamado neoconservadorismo, conservadorismo
moderno ou conservadorismo da atualidade recupera pilares importantes do
conservadorismo clássico, atualizando-o e adaptando-o aos tempos atuais. Uma
das características fortemente presente nos tempos atuais é o irracionalismo e
negação da cientificidade. Sobre isso, Souza (2016) considera que Burke
originou a forma peculiar de construção do discurso conservador, que rebate no
contexto que vivemos no Brasil.
A maioria dos
conservadores da contemporaneidade tende, outra vez, a elevar as paixões, os
sentimentos, as intuições, ao patamar de fonte verdadeira de conhecimentos,
posto que são provenientes das verdades profundas da alma humana e, por isso,
seriam mais puras que as conclusões eivadas pelo crivo artificial da razão e
do método científico. Esse afastamento e essa destruição da razão (Lukács, 1972),
tal como concebida pela modernidade, permitem situar Edmund Burke como um dos
pioneiros do irracionalismo (SOUZA, 2016, p. 376).
Para Souza (2016) este é um ponto de
permanência duradoura no conservadorismo: “[...] a negação da razão e a
entronização de uma concepção pragmática, imediatista, de ação e pensamento
[...]” (SOUZA, 2016, p. 368), que explicam a dificuldade de travar diálogos
desde os mais simples aos mais polêmicos com os adeptos do pensamento conservador.
Um desses temas é o aborto, que dificilmente tem avançado e contra o qual, há
décadas, apresentam a mesma argumentação irracional e apelativa ao divino.
As disputas parlamentares acerca do
aborto são iniciadas, segundo Rocha (2005), com a reabertura do Congresso em
1949, quando iniciativas buscavam suprimir os permissivos existentes no Código
Penal de 1940. Exemplo disso é um projeto do monsenhor Arruda Câmara, arquivado
no mesmo ano de sua publicação (BRASIL, 1949). Apesar de, na prática, não ter
efeito, é significativo que, logo na reabertura política, a questão do aborto
já fosse matéria de busca pelo retrocesso. O contexto da época remontava às
posições natalistas do Estado, havendo lei que tratava como contravenção penal
“[...] anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto ou
evitar a gravidez” (BRASIL, 1941, não paginado)[5].
Ávila
(1993) considera que tanto as posições natalistas quanto as controlistas
têm o mesmo cerne conservador, ora condenando os métodos contraceptivos e/ou
aborto, ora estimulando uma política eugenista de controle de natalidade entre
os mais pobres. Em ambos, consta o controle da reprodução e dos corpos das
mulheres marcados pela classe e raça/etnia pelo Estado.
Para
Barsted (1992),
A luta pelo direito ao aborto no Brasil tem no seu cerne
a radicalidade da contestação contra a interferência do Estado no corpo
feminino, contra a disciplinação moral e religiosa sobre este mesmo corpo por
parte dos setores religiosos e contra o moralismo da sociedade em geral e dos
setores de esquerda, em particular, que viam nessa questão do aborto um viés
divisionista e pouco relevante socialmente (BARSTED, 1992, p. 105).
O
movimento feminista, que vinha somando à luta contra a ditadura militar, retoma
suas pautas específicas com a abertura política. Rocha (2006) afirma que tais
pautas adentram a agenda política a partir da década de 1980, dando maior
visibilidade ao debate sobre aborto, ponto que gerou mais enfrentamentos entre
movimento feminista e instituições religiosas. O destaque desse período em
relação à agenda feminista é a elaboração do Programa de Atenção Integral à
Saúde da Mulher (PAISM).
Costa
(2009) destaca o movimento sanitarista como elemento chave no pontapé para o
entendimento de assistência integral à saúde e na construção do PAISM, bem como
da importância do movimento feminista para isso. Importante acontecimento dessa
época é a 1ª Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, chamada pelo
Ministro da Saúde e realizada em 1986, que resultou num documento descrevendo o
aborto como questão de saúde pública, reivindicando o direito de decidir sobre
o próprio corpo. Nesse sentido, propõem a garantia plena do atendimento ao
aborto nos casos previstos pela lei e sua descriminalização e legalização.
No
processo da Constituinte, em que pese a temática ter entrado por meio de
iniciativa da Igreja Católica, apoiada por parlamentares evangélicos,
ambicionando proibir a prática em todos os casos (ROCHA, 2006), há uma intensa atuação
das feministas no enfrentamento às ações conservadoras de setores contrários à
descriminalização do aborto no país. Lograram impedir que, na Constituição,
constasse o direito à vida desde a concepção, conforme a intenção de grupos religiosos,
assegurando a permanência do direito ao aborto nos casos previstos pelo Código
Penal. Segundo Rocha (2006), enquanto a Conferência Nacional de Bispos do
Brasil articulou os posicionamentos contrários ao aborto, a atuação do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) buscou a ampliação do direito.
De
acordo com Pinto (2003), a ausência da menção direta à legalização do aborto na
Carta das Mulheres aos Constituintes se dá por um recuo tático em vista do
avanço do pensamento conservador: “[...] a iminência da criminalização do
aborto mesmo em caso de estupro e perigo de vida da gestante levou o CNDM a
promover uma campanha nacional para que fossem mandados telegramas para manter
o direito ao aborto nesses casos” (PINTO, 2003, p. 76).
Barsted (1992) afirma que a
década de 1980 foi um período de intensa movimentação e luta pelo direito ao
aborto por parte dos movimentos de mulheres em busca de saúde e direitos
reprodutivos. Sob o slogan ‘nosso corpo nos pertence’, em defesa da
autonomia das mulheres e de sua saúde, “[...] o movimento de mulheres tornou o
aborto uma questão política, capaz de gerar adesões e reações, mas impossível
de ser ignorada” (BARSTED, 1992, p. 124). Ao mesmo tempo, foi intensa a pressão
dos religiosos: “[...] ora discreta, nos
bastidores da política, ora mais ofensiva, através de um intenso marketing na
grande imprensa ou de poderoso lobby junto aos congressistas e setores
governamentais em geral” (BARSTED, 1992, p. 124).
Na
década de 1990, continua uma intensa disputa em relação aos direitos
reprodutivos, com importantes ganhos, como o espraiamento dos serviços de
abortamento legal e a primeira Norma Técnica, em 1999, que orienta o
atendimento a essa demanda. As conquistas, porém, não passariam desapercebidas
pelos adversários e acirra-se também a reação conservadora, principalmente,
relacionada à Igreja Católica, que passa a se organizar mais intensamente para
frear os avanços e regredir nas construções das políticas de saúde no que se
refere ao campo da reprodução e da sexualidade.
Apesar
de intenso debate, o movimento feminista no Brasil deixa de lado a radicalidade
na defesa pela legalização do aborto e se ocupa em buscar sua garantia nos
casos já permitidos em lei, como resultado do contexto de avanço do conservadorismo
observado à época, após as conquistas da Constituição Federal de 1988. Nesse
contexto, organiza-se a incisiva corrente ‘lei e ordem’, “[...] tendência
doutrinária conservadora que propugna uma maior e mais severa intervenção repressora
do Estado sobre os comportamentos sociais [...]” (BARSTED, 1997, não paginado)
em oposição aos Direitos Humanos.
O
processo de ocupação de posições, no interior do Executivo, pelas feministas é
intensificado com a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) para o Governo
Federal, refletindo em avanços, ainda que limitados, nos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres. Normas técnicas são reeditadas e formuladas, a
discussão sobre aborto é incluída em agendas mais amplas e setores do governo
mostram, em determinados momentos, maior sensibilidade à pauta.
Passa
a ser amplamente utilizada a estratégia de avanços via Executivo Federal. Parte
das conquistas do movimento feminista se concretiza nas Normas Técnicas que
regulavam o tema, sendo as principais a reedição da Norma Técnica para Prevenção
e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e
Adolescentes, inicialmente publicada em 1999 e reeditada em 2005; a elaboração
da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento,
lançada em 2005; e o inédito Guia Técnico Teste Rápido de Gravidez na Atenção
Básica, publicado em 2013.
Um
avanço nas normas é a dispensa do Boletim de Ocorrência (BO), seguindo o que já
era posto no Código Penal de 1940. O texto despertou forte reação dos
conservadores, que acusavam o Governo Federal de objetivar a ampliação do direito
ao aborto via Executivo, o que claramente não era matéria das Normas. Sobre isso, reitera-se a análise em
Damião (2018): a fervorosa reação contrária à dispensa do BO para interrupção da
gravidez decorrente de estupro demonstrava o conservadorismo intrínseco à
sociedade patriarcal, cuja valoração da palavra da mulher acontece apenas
depois de submetida ao crivo e julgamento de terceiros (homens) e instituições
do Estado.
Tão
logo essas conquistas se vislumbram, a reação contrária a elas se fortalece e
se articula de forma mais organizada. Se os conservadores, na década anterior,
já se organizavam, a partir de 2002, e principalmente após a proposta do Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a preparação para as eleições de 2010,
essas alianças são aprofundadas e novas estratégias são engendradas não apenas
para conter os avanços pleiteados pelo movimento feminista, mas sobretudo para
retroceder naquilo que já havia sido conquistado.
O
PNDH-3, inicialmente, propunha a descriminalização do aborto sob o argumento da
autonomia da mulher para decidir sobre o próprio corpo. A elaboração ia ao
encontro das formulações feministas e tinha o grande êxito de colocar a mulher
no centro do debate. Entretanto, o trecho foi revogado após reação dos
conservadores, tanto os que faziam parte do governo quanto os externos a ele,
dando lugar apenas à preocupação sobre aborto como problema de saúde pública e
propondo acesso aos serviços de saúde, ou seja, uma grande perda no debate, não
apenas do ponto de vista retórico.
As
reações parlamentares em relação aos avanços via Executivo e Judiciário foram,
em grande medida, mobilizadas por meio de articulações de Frentes
Parlamentares, criadas com a finalidade de organizar a atuação de diversos
grupos frente a temas de interesse. Uma delas é a Frente Parlamentar Evangélica
(FPE), criada em 2003, que reunia diferentes denominações evangélicas. Biroli (2016) aponta que, dentre as convergências, essa
Frente expressa a negação da laicidade do Estado; a defesa da família como base
comum de sua característica e das proposições; questiona o feminismo e nega a
legitimidade dos direitos sexuais e reprodutivos; defende a concepção de família
natural e nega a homossexualidade; coloca as mulheres no papel restrito à
maternidade; exclui a responsabilidade do Estado nos cuidados voltados à
reprodução social, destinando-o apenas ao núcleo familiar.
Outro
exemplo é a Frente Parlamentar em Defesa da Vida, criada em 2005, cuja atuação,
segundo Biroli (2016), dá-se de forma reativa aos
avanços da década de 1990 e início de 2000. Por mais que os projetos de
ampliação do direito ao aborto não tenham tido êxito, os avanços, via
Executivo, com as normas técnicas e espraiamento dos serviços de aborto legal, foram
suficientes para suscitar o rechaço dos conservadores.
Em
maio de 2014, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 415, de 21 de maio (BRASIL,
2014), que estipulava orçamento destinado à remuneração de procedimentos de aborto
nos casos previstos pela lei via SUS. A iniciativa não ampliava o direito ao
aborto, mas garantia um elemento essencial para o funcionamento dos serviços: o
financiamento público. Infelizmente, após a pressão dos conservadores, a
portaria foi revogada (MIGUEL; BIROLI; MARIANO, 2016), o que mostra a atuação e
força desses grupos.
Para
Biroli (2016, p. 16), “[...] a face mais explícita
das reações no Legislativo talvez esteja no número de projetos de lei que
representam retrocessos na legislação atual sobre aborto”. A pesquisadora pontua
que, enquanto na década de 1990 foram apresentados pelo menos seis projetos de
lei para restringir o direito ao aborto e outros seis para ampliá-lo, entre
2010 e 2015, foram 36 propostas regressivas e apenas duas favoráveis à
ampliação do direito ao aborto. Segundo a autora, “[...] a reação conservadora
procura, assim, anular avanços construídos, ao mesmo tempo que se alimenta de
alianças e de pressões que resultaram nos recuos que marcam a conjuntura
política” (BIROLI, 2016, p. 16). Dentre as propostas favoráveis ao direito de
decidir, que não foram aprovadas, destacamos a de José Genoíno (PT), que previa
a descriminalização e legalização do aborto até os 90 dias de gestação e
obrigava a rede hospitalar pública e conveniada a ofertá-lo. O segundo destaque
é o PL 1135/1991, de autoria de Eduardo Jorge e Sandra Starling (ambos filiados
ao PT na época), com objetivo de revogar o artigo 124 do Código Penal, que
prevê detenção de um a três anos para a gestante que provocar aborto em si
mesma ou consentir que outro o faça.
Os
argumentos contrários ao direito ao aborto “[...] tiveram, como categoria
principal [...] a noção de um direito à vida que seria inviolável e teria
primazia absoluta sobre outros direitos” (BIROLI, 2016, p. 16). Esse argumento
está articulado a dogmas religiosos; argumentos morais; argumentos jurídicos
considerando vida desde a concepção, ou amparados na noção de que a opinião
pública é contrária, o que justifica o posicionamento de vários
parlamentares. O apelo à religião é um elemento central no discurso dos
contrários (MIGUEL; BIROLI; MARIANO, 2016).
A
partir do golpe de 2016, o conservadorismo exacerbado dos membros do
Legislativo passa a permear, também (e com mais força), o Executivo. A
princípio, isso ocorre em torno das pautas ditas econômicas, mas sem
deixar de lado a preparação de um cenário muito mais nefasto e agressivo no que
diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. A estratégia de “[...] permuta
de apoios entre a agenda anti-direitos sexuais e
reprodutivos e a agenda neoliberal, sustentada por representantes do empresariado
[...]” (EQUIPE..., 2016, p. 3) tornam-se ainda mais agressivas. É disso que
trata a próxima seção.
2 As estratégias neoconservadoras
contra o direito ao aborto no Brasil
Segundo
Souza e Sitcovsky (2020), a radicalização da extrema
direita, com suas novas estratégias, consiste numa “[...] resposta
político-ideológica estratégica [...] (SOUZA; SITCOVSKY, 2020, p. 194)”, com o
objetivo de viabilizar uma “[...] agenda de desmonte dos direitos sociais no
Brasil” (SOUZA; SITCOVSKY, 2020, p. 194). Tais estratégias, traçadas
internacionalmente, envolvem a intensa utilização das redes sociais e novas
tecnologias, a sofisticação do discurso conservador e o embasamento teórico,
ainda que este último seja deturpado. Os conservadores da atualidade buscam a
formação de quadros jovens e se aproximam do ambiente universitário, disputam
eleições locais e parlamentares, inserem-se nas comunidades e territórios,
articulam-se com setores da milícia, empresários evangélicos, agronegócio etc.
As
eleições de 2018 marcam a assunção de Bolsonaro e a continuidade da pauta ultraliberal.
Entre os recursos estratégicos mais utilizados nessa disputa, destacam-se a
intensa atuação da chamada nova direita, o uso massivo de fake news em
redes sociais, as campanhas de ódio de desumanização das esquerdas e o apoio de
milícias e redes paramilitares de poder, além de discursos escatológicos de
lideranças religiosas. Conformam “[...] características reacionárias,
obscurantistas e irracionalistas que se acirraram na conjuntura brasileira a
partir do chamado ‘bolsonarismo’” (SOUZA; SITCOVSKY, 2020, p. 193).
Machado
(2020) afirma que Bolsonaro, ao tomar posse, “[...] começou a lotear a máquina
do Estado com seus apoiadores, ampliando a presença de cristãos
neoconservadores no primeiro e segundo escalões do governo” (MACHADO, 2020, p.
104). Damares Alves, escolhida como ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos, atuou no “[...] aparelhamento da pasta, escolhendo
pastores e ativistas conservadoras, evangélicas e católicas [...]” (MACHADO,
2020, p. 104) para o desenvolvimento de políticas públicas relativas às
mulheres, à população indígena, aos idosos, às crianças e aos adolescentes,
tendo a família como dimensão central. O objetivo era “[...] rever as políticas
de direitos humanos dos governos petistas, em especial aquelas nos campos
sexual e reprodutivo” (MACHADO, 2020, p. 105).
Vaggione, Machado e Biroli (2020) caracterizam elementos novos que dão corpo ao
chamado neoconservadorismo, que, aliado ao neoliberalismo, é reativo às
conquistas dos movimentos feministas e LGBTQI, demonstrando adaptação de
estratégia e articulações para maximizar sua influência. Para os pesquisadores,
cinco dimensões o caracterizam. O primeiro elemento é a aliança e as afinidades
entre diversos setores - católicos, evangélicos, militares e ultraneoliberais. Agem como se não houvesse tensão ou
divergência entre os grupos, atuando articuladamente numa agenda reativa aos
direitos e adotando uns as estratégias dos outros para o fortalecimento das
ações. O segundo é a juridificação da moralidade:
tendência de traduzir posições morais em termos do direito, recorrendo ao
discurso do direito, inclusive aos direitos humanos, para esse fim. O terceiro
opera em contextos democráticos: destacando a proliferação de organizações da
sociedade civil, partidos políticos e funcionários públicos buscando impactar
legislação e políticas públicas segundo as ideias conservadoras. O quarto é o
caráter transnacional: ações refletem uma agenda comum, que transcende o
território nacional. O quinto é a relação entre neoconservadorismo e
neoliberalismo, que expressa um moralismo compensatório, utilizando a temática
da família para “[...] mobilizar inseguranças em um contexto que inclui os efeitos
de políticas neoliberais restritivas a investimentos sociais em nome do equilíbrio
orçamentário” (VAGGIONE; MACHADO; BIROLI, 2020, p. 38).
Uma
das estratégias utilizadas pelos grupos conservadores, nesse contexto, é o que Vaggione (2020) chama de juridificação
reativa, caracterizada pelo “[...] uso do direito por parte de atores
religiosos e seculares em defesa de princípios morais que estes consideram
violados pelas demandas dos movimentos feministas e LGBTQI” (VAGGIONE, 2020, p.
42). Assim, o direito é utilizado como ferramenta para defesa de princípios
morais, baseados em concepções religiosas.
A juridificação reativa acontece em duas perspectivas: a
primeira enquanto arena de disputa, na qual, diante do impacto dos movimentos
feminista e LGBTQI no desvelamento e contestação da influência religiosa no
direito, os religiosos reagem “[...] com o
propósito de defender uma concepção do legal atada a uma moral universal em
temas vinculados ao gênero e à sexualidade” (VAGGIONE, 2020, p. 43).
A
segunda perspectiva é a do direito enquanto estratégia para restauração
moral, por meio de um maquinário legal e conservador que aglutina “[...] hierarquias
católicas e evangélicas, advogados confessionais e políticos cristãos”
(VAGGIONE, 2020, p. 43). Para tanto, utilizam do argumento em defesa da vida, da
família e da liberdade religiosa como se fossem valores universais. Buscam
calcar no direito sua concepção moral desses temas.
Segundo
o autor, o neoconservadorismo transcende o campo religioso e a dicotomia entre
secular e religioso. Há um amalgama complexo entre secular e religioso que Vaggione (2020) demonstra ao analisar a forma como a moral
católica foi absorvida “[...] sob o manto do direito secular [...]”, na qual “[...]
a materialidade do direito guarda conteúdos morais e religiosos e, ao mesmo tempo,
os processa e instrumentaliza como parte de um discurso secular” (VAGGIONE,
2020, p. 46).
A emergência, a solidificação e, inclusive, o apoio
popular ao neoconservadorismo se vinculam à necessidade de certos setores de
defender a recuperação de uma ordem moral que se considera ameaçada. Se o
neoconservadorismo se volta ao passado para restaurar um modelo moral (nunca de
todo vigente), também o projeta em direção ao futuro enquanto utopia (uma utopia
reacionária) (VAGGIONE, 2020, p. 58).
Para
tal, contam com uma maquinaria legal neoconservadora, formada pela hierarquia
religiosa (tanto católica quanto evangélica), políticos cristãos e advogados e
juristas cristãos. Em relação aos políticos cristãos, enquanto os evangélicos
se apropriaram da estratégia diretamente eleitoral, formando partidos políticos
e apresentando candidaturas próprias, a hierarquia católica prefere convocar “[...]
políticos para que atuem com base em suas crenças, com uma inserção transversal
em diferentes partidos” (VAGGIONE, 2020, p. 61). Há uma atuação coordenada que
aglutina diferentes denominações religiosas e pertencimentos partidários, já
que compartilham “[...] a defesa de uma ordem moral diante do avanço dos direitos
sexuais e reprodutivos” como prioridade (VAGGIONE, 2020, p. 63).
Para
o autor, os advogados e juristas atuam em diversos campos: dentro de
organizações religiosas e/ou com o mote da defesa da vida e da família; nas
organizações e/ou associações de advogados e juristas cristãos; de
pesquisadores e professores, com o objetivo de construir e difundir a doutrina,
além de formar novos quadros para atuação nesses moldes.
Vaggione (2020) afirma que a juridificação reativa apresenta três perspectivas importantes
de atuação: a cidadanização do feto, traduzida na
busca por conceder ao embrião/feto status jurídico não apenas por leis,
mas também pelo reconhecimento social; a renaturalização
da família, formada pelo casamento de pessoas de sexo oposto, na qual os pais têm
autonomia para ensinar aos filhos o que consideram importante – daí a recusa
pela educação sexual e ideologia de gênero; a ampliação da liberdade religiosa
e de consciência, que significa, na verdade, a sobreposição da concepção moral
religiosa como universal, em detrimento dos direitos sexuais e reprodutivos.
Utilizam-se
do entendimento de que os direitos sexuais e reprodutivos são uma ameaça à
liberdade religiosa como uma estratégia de “[...] reduzir a legitimidade e a
legalidade dos direitos vinculados à sexualidade e à reprodução” (VAGGIONE,
2020, p. 76). Há, por parte desses grupos, o incentivo à objeção de consciência
e a sua extensão para todo e qualquer profissional que lide com aspectos dos
direitos sexuais reprodutivos, de médicos e enfermeiras ao pessoal administrativo.
Buscam como estratégia o emprego coletivo da objeção de consciência, direito
este originalmente individual.
Entre
os depoimentos colhidos por nós, é consenso que a ocupação do Executivo
Nacional por grupos de extrema direita, ligados ao fundamentalismo religioso,
piorou o cenário no debate e na luta pelo direito ao aborto. Identificam que,
durante governos progressistas, ainda que os avanços fossem limitados, havia
maiores possibilidades de intervenção. Ao menos as tentativas de retrocesso não
vinham diretamente do Executivo, desmontando políticas e direitos. Além disso,
a presença de setores sensíveis às temáticas no Governo Federal garantia o
funcionamento de serviços, a elaboração de normas técnicas etc. Por outro lado,
as ações do Executivo Federal de extrema direita e conservador provocam efeito
cascata, que compromete, de forma intensa, a pauta nos estados e municípios.
Em
2022, em mais uma ofensiva conservadora, o Ministério da Saúde lançou o documento
‘Atenção técnica para prevenção, avaliação e
conduta nos casos de abortamento’, com
informações inverídicas e distorcidas sobre o assunto, evidenciando um caráter
de desincentivo ao aborto legal e argumentação contrária à sua realização.
Diversos grupos manifestaram-se contrários ao documento, sendo as feministas
figuras centrais no rechaço a ele.
Iniciamos
este capítulo dizendo que, no Brasil, há uma disputa entre os conservadores,
contrários ao direito de decidir das mulheres quando colocada a questão do aborto,
e o movimento feminista, que luta pela afirmação desse direito.
O
movimento feminista, em aliança com outros setores e movimentos, foi
protagonista na busca pelo direito de decidir. A partir da análise das
entrevistas, foi possível identificar suas principais contribuições: manter a
luta pelo direito ao aborto viva, pois este é o grupo garantidor da pauta; mobilizar
e construir argumentos em diversas áreas do conhecimento, desde a teologia e
saúde à autonomia das mulheres; fazer pressão junto aos governos federal,
estadual e municipal e junto aos parlamentares; propiciar formação e
sensibilização de profissionais, como os da saúde e da comunicação, para
atuação em torno do tema; promover a capacitação para articulação e ações junto
ao judiciário; organizar mobilizações
para barrar tentativas de retrocesso; a proposição e implementação de políticas
públicas, bem como redação de normas e notas técnicas.
A
luta das feministas pelo direito ao aborto, de certa forma, amplia a noção de
democracia ao falar da autonomia sobre o próprio corpo e sobre as condições
objetivas e subjetivas que possibilitem escolhas reais. Isso passa pelo
reconhecimento das mulheres enquanto seres autônomos, capazes de decisão e de
autodeterminação, a quem o direito de decidir deve ser garantido. Encerrando
este tópico, gostaríamos de comentar alguns avanços na organização pelo direito
ao aborto que vai envolver outros coletivos auto denominados
de feministas.
Em
meados dos anos 2000, foi fundada a Frente Nacional Contra a Criminalização das
Mulheres e pela Legalização do Aborto (FNPLA), que reúne diversos setores do
movimento feminista, organizações de categorias profissionais, juristas,
profissionais da saúde e demais aliados, com o objetivo de construir estratégias
a ações conjuntas na luta pelo direito de decidir. A Rede de Assistentes Sociais
pelo Direito de Decidir (RASPDD), fundada em 2020, é uma das organizações que,
atualmente, compõe essa Frente e vem promovendo o debate e a articulação em
relação ao aborto.
Em
2015, setores feministas organizaram a ‘Primavera do Direito ao Corpo e à Vida
das Mulheres’, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, com mais de 500
mulheres, entre uruguaias, paraguaias, argentinas e brasileiras. O encontro
contou com passeata e dias de discussão e trocas entre as feministas desses
países. Em 2019, a tradicional Marcha das Margaridas teve como um dos temas o
direito ao aborto e agregou cerca de 50 mil pessoas em Brasília (DF).
O
Fórum Intersetorial de Serviços Brasileiros de Aborto Previsto em Lei vem
articulando debates e ações em torno da temática e tem sido organizado pelos
seguintes grupos: Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos; Grupo Curumim; ANIS – Instituto de Bioética; Rede Médica pelo
Direito de Decidir; Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras; Comitê Latino
Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM); Conselho
Federal de Psicologia (CFP); Coletivo Margarida Alves; Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde.
Recentemente,
em agosto de 2020, o Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), ligado ao Hospital de Clínicas da Universidade
Federal de Uberlândia (HC-UFU), ofertou, pela primeira vez no país, o serviço
de aborto legal via telemedicina. Motivado pela efetivação do atendimento às
vítimas de violência sexual no contexto de crise sanitária originada pela
pandemia de Covid-19, o núcleo, capitaneado pela ginecologista e obstetra
Helena Paro, propôs essa estratégia. Diversas organizações tiveram parte na
concretização disso, como a Global Doctors for Choice Brasil e Anis Instituto de Bioética, que assessoraram
a oferta, e órgãos como o Ministério Público Federal que, mesmo com as
investidas conservadoras contrárias ao serviço de aborto por telemedicina,
emitiram pareceres favoráveis à iniciativa.
Considerações Finais
Nossas
considerações finais trazem os principais aspectos que sintetizam o
conservadorismo sempre presente no debate e nas ações em torno dos direitos
reprodutivos, em particular o aborto. Foram selecionados oito pontos para a
análise, para os quais contribuíram as entrevistas de ativistas feministas na
pesquisa base deste artigo.
O
primeiro ponto trata da aliança entre religiosos de diferentes denominações,
pois, ainda que haja divergências em determinados momentos, de forma estratégica,
há uma aliança quando o assunto é o aborto.
O
segundo refere-se à aliança, chamada ‘BBB’, entre parlamentares de bancadas
conservadoras: da Bala (armamentistas), do Boi (representantes do agronegócio
latifundiário) e da Bíblia (religiosos fundamentalistas), negociando pautas e
votando em bloco no Congresso. Questões como o aborto podem ser utilizadas como
moeda de troca para outras pautas, como as econômicas e as antitrabalhadores.
O
terceiro diz respeito à utilização da pauta do aborto como forma de mobilizar
votos e apoio político, aumentando a eleição de parlamentares e fortalecendo
suas respectivas bancadas. Tais ações ficam mais evidentes segundo o calendário
eleitoral, estando presentes de forma mais acentuada a cada dois anos, quando
se dão as eleições.
O
quarto aborda o treinamento jurídico para atuação junto às cortes de direito,
incluindo um investimento a longo prazo em formação de quadros. Há a
apropriação do discurso sobre direito, dos direitos humanos e de termos como
autonomia. Tais conceitos são distorcidos e mobilizados a favor da argumentação
conservadora acerca do aborto (abrangendo também outros temas).
O
quinto ponto fala da atuação de profissionais no interior das políticas
públicas, com o objetivo de tolher e/ou atacar os direitos reprodutivos e aborto,
de forma individual ou coletiva, quando os conservadores ocupam as políticas
públicas por meio das organizações sociais na oferta de serviços, em destaque a
área da saúde. Tais instituições, ainda que devessem obedecer às regulações do
SUS, imprimem às suas ofertas a moralidade religiosa.
O
sexto refere-se à busca de retrocesso nos direitos por meio de regulação de
conselhos profissionais, a exemplo do Conselho Federal de Medicina (CFM). Um
dos depoimentos colhidos em nossa pesquisa menciona um documento do órgão que
tirava das mulheres a autonomia de escolha sobre vias de parto e outras
questões, sob o argumento conservador de defesa do direito do feto, que
[...] por vias transversas é conceder personalidade
jurídica ao feto, como se o feto fosse um sujeito de direitos e colocar em
colisão com direito das mulheres, sendo que as iniciativas legislativas de
fazer isso como o estatuto nascituro ou outros não passaram. Aí como você faz por
via absolutamente sem controle social, de um conselho profissional tão poderoso
como o CFM, de dizer que o médico vai ter o poder de dizer que aquela mulher
deve ter o seu consentimento negado, né, para um determinado procedimento, porque
ele vai defender o feto (EBR05).
Em
sétimo, está a busca por realizar mudanças, suprimir ou dificultar acesso a
direitos via Executivo Federal, sem que tais propostas sejam apreciadas por
instâncias de controle social. Essa questão ficou mais evidente com a ocupação
dos cargos do Executivo Federal após a vitória de Jair Bolsonaro. Conforme foi
sinalizado na seção anterior deste texto, isso se mostra na restrição das
políticas para as mulheres, nas alterações de regulações e orientações do SUS,
no desfinanciamento de políticas sociais etc. Um exemplo
é o documento ‘Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos casos de
Abortamento’, apresentado pelo Ministério da Saúde em 2022, o qual prega a
proteção da vida desde a concepção, afirmando não haver aborto legal no Brasil,
além de estabelecer a denúncia compulsória de casos de estupro, abrindo
caminhos para a investigação das mulheres que recorrem ao aborto nesses casos.
Por
fim, o oitavo ponto remete à intensificação da perseguição de feministas e
profissionais de saúde que atuam em serviços de aborto legal, muitas vezes
partindo das próprias instituições do Estado. Tal estratégia, para além da
criminalização do movimento feminista e profissionais envolvidos na temática,
visa à intimidação e ao silenciamento com vistas a paralisar suas ações.
Identificou-se que as tentativas conservadoras
para tolher o direito ao aborto sempre existiram, porém é notável que tais
setores vêm buscando novas estratégias para ampliar seus êxitos, envolvendo
desde a maior aliança entre diferentes setores religiosos e não religiosos nas
ações parlamentares e eleitorais, até o treinamento jurídico para profissionais
da saúde na formação de argumentos em busca de impedir o acesso ao aborto
legal.
O
movimento feminista, historicamente, luta pelo direito de decidir e tem atuado
barrando retrocessos, na ampliação do acesso ao aborto legal, pela ampliação
dos permissivos e pela descriminalização e legalização do aborto. Diante do
avanço conservador mencionado, há ainda mais desafios pela frente.
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Nayara
André DAMIÃO Trabalhou na concepção, delineamento, análise e
interpretação dos dados.
Assistente Social.
Doutora em Serviço Social e Política Social. Professora Assistente no
Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Mestra em Serviço
Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Foi
bolsista CAPES no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), quando
realizou período sanduíche na Universidad de Ciéncias Pedagógicas Enrique José Varona,
em Havana, Cuba.
Cássia
Maria CARLOTO Trabalhou na revisão crítica.
Assistente Social. doutora em Serviço Social pela PUC-SP. Docente
do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Coordena
o grupo de pesquisa: Gênero e Políticas Públicas. Participa da rede de estudos
REFAPS- Rede Família e Políticas Sociais
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* Assistente Social. Doutora em Serviço Social e Política Social.
Assistente Social na Prefeitura Municipal de Londrina. Professora Assistente na
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Rodovia Celso Garcia
Cid, PR-445, Km 380, Campus Universitário, Londrina (PR), CEP.: 86057-970. E-mail: nayara.damiao@gmail.com.
** Assistente
Social. Doutora em Serviço Social. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social e Política Social do Departamento de Serviço Social da
Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid, PR-445, Km 380, Campus
Universitário, Londrina (PR), CEP.: 86057-970. E-mail: cmcarloto@gmail.com.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1]
Tratamos aqui de um movimento que não é homogêneo, mas reúne diversos setores e
grupos, com diferentes concepções, estratégias e enfoques, que apresentam divergências
e contradições, mas que têm nos ideais feministas de emancipação das mulheres o
seu comum. Para um maior aprofundamento acerca do movimento feminista no Brasil,
ler Cisne (2014), Alvarez (2014), Pinto (2003).
[2]
Para nós, tal concepção se aproxima do conceito de Justiça Reprodutiva, sobre o
qual se pode aprofundar em Oliveira (2022).
[3] Aqui,
inclui-se todas as pessoas, de diferentes identidades, que possam ser afetadas
pela questão do aborto, considerando homens trans, pessoas não binárias, além de
outras identidades de pessoas que gestam.
[4] Trata-se
da tese intitulada ‘Entre o direito de decidir e a proibição: o aborto no
Brasil e em Cuba’, defendida em fevereiro de 2023 no Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina. A
pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
da Universidade, via Plataforma Brasil, e obteve aprovação por meio do parecer
de número 4.309.765.
[5]
Artigo 20 da Lei de Contravenções Penais de 1941, revogado em 1979.