Ameaça neoconservadora aos direitos sexuais e reprodutivos de
crianças e adolescentes
The neoconservative threat to the sexual
rights of children and adolescents
Valeria Nepomuceno Teles de MENDONÇA*
https://orcid.org/0000-0002-6154-8016
Mirella Cavalcante Vilar LIMA**
https://orcid.org/0000-0001-9576-7105
Resumo: O artigo discute a relação entre
o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes
e o enfrentamento à violência sexual com o objetivo de demonstrar que um dos
impactos do neoconservadorismo nas políticas sociais no Brasil foi deixar
meninos e meninas mais expostos a esta violência. O levantamento no Catálogo de
Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior (Capes), a leitura de produções sobre o tema e consulta aos documentos
das normativas jurídicas internacionais e nacionais, indicam que os direitos
sexuais e reprodutivos compõem o amplo campo dos direitos humanos de mulheres,
crianças e adolescentes nos tratados e convenções internacionais dos quais o
Brasil é signatário. No contexto do Governo Bolsonaro, a propagação de valores
conservadores e do combate uma suposta ideologia de gênero representou um
entrave ao reconhecimento dos direitos sexuais de crianças e adolescentes e
reprodutivos dos adolescentes e caminhou na contramão da proteção integral
preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Palavras-chave: Criança e adolescente. Direitos
sexuais e reprodutivos. Neoconservadorismo.
Abstract: The article discusses the relationship between
the recognition of the sexual and reproductive rights of children and
adolescents and the confronting of sexual violence, aiming to demonstrate that
one impact of neoconservatism on social policies in Brazil has been to leave
boys and girls more exposed to this form of violence. A survey of the Catalogue
of Theses and Dissertations for the Coordination of the Improvement of Higher
Education Personnel (Capes), and a bibliographic review of works on the subject
and of documents on international and national legal regulations was
undertaken. This indicates that sexual and reproductive rights form a broad
field within the human rights of women, children and adolescents in
international treaties and conventions to which Brazil is a signatory. Under
the Bolsonaro Government, the propagation of conservative values and the fight
against a supposed gender ideology represented an obstacle to the recognition
of the sexual rights of children and adolescents and the reproductive rights of
adolescents, and went in the opposite direction to the
full protection advocated by the Statute of the Child and Adolescent.
Keywords: Child and adolescent; Sexual and reproductive
rights; Neoconservatism.
Submetido em: 31/8/2022. Revisto em: 16/2/2023.
Aceito em: 28/2/2023.
Introdução
O |
debate acerca dos
direitos sexuais de crianças e adolescentes e reprodutivos dos adolescentes tem
sido tensionado nos últimos anos pela onda neoconservadora no mundo. No Brasil,
o tema tem sido pauta nas esferas dos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário em consequência da aprovação de legislações que caminham na
contramão do reconhecimento de tais direitos, a exemplo do Projeto de Lei 478/2007 (BRASIL,
2007), que trata do Estatuto do Nascituro.
O reconhecimento da
sexualidade e, consequentemente, dos direitos sexuais de crianças e
adolescentes e reprodutivos dos adolescentes, é essencial para o enfrentamento
à violência sexual, devendo permear as políticas sociais, com estratégias de
acordo com as faixas etárias e o peculiar desenvolvimento desse público,
estando em consonância com a doutrina da proteção integral estabelecida no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990).
A
partir disso, este artigo se propõe a demonstrar que um dos impactos do
neoconservadorismo nas políticas sociais no Brasil foi deixar meninos e meninas
mais expostos à violência sexual. Dessa forma, o presente texto lança luz sobre
a necessária relação entre o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos
e o enfrentamento à violência sexual. Para tanto, realizamos um levantamento para conhecer a
discussão no âmbito das produções do Serviço Social a partir do Catálogo de Teses
e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior
(Capes) referente aos anos 2019, 2020 e 2021, através dos seguintes descritores:
direitos sexuais e reprodutivos; direitos sexuais e reprodutivos de crianças e
adolescentes; educação sexual; e violência sexual contra crianças e
adolescentes. A pesquisa resultou em apenas sete dissertações e uma tese, o que
nos revelou a importância de o Serviço Social aprofundar a discussão sobre
tema.
Para fundamentar o
debate apresentado no artigo, foram essenciais as produções de Jimenez, Assis e Neves (2015), Pimentel
e Valença (2020); Pereira (2020); Souza (2015); Barroco (2015) dentre outras.
Sobre os documentos, consultamos
leis, convenções internacionais e planos de políticas públicas. Em particular, a
Lei 8069/90 (BRASIL, 1990); a Convenção sobre os Direitos da Criança (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 1990); o Plano Nacional de
Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2020); a Campanha Tudo tem seu tempo (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2020); e o Projeto de Lei nº 3.179/2012 (BRASIL, 2012).
Outro aspecto explorado no artigo é o surgimento do neoconservadorismo e
suas características na atual conjuntura brasileira, estabelecendo os nexos e
retrocessos que se colocam para o enfrentamento à violência sexual contra
crianças e adolescentes.
2 Os direitos sexuais de crianças e
adolescentes e reprodutivos dos adolescentes na perspectiva da proteção
integral
O reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos ganhou espaço no
âmbito internacional a partir de 1948, com a aprovação pela ONU da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Já o
surgimento dos conceitos de saúde sexual e reprodutiva ocorreu principalmente
no contexto da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento,
realizada no Cairo no ano de 1994 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1994). Tais
conceitos foram ratificados no ano seguinte, na Conferência Internacional sobre
Mulheres, também conhecida como Conferência de Pequim (FRANZE; BENEDET; WALL,
2018), ainda que o tema dos direitos reprodutivos já estivesse pautado pelos
movimentos de mulheres há pelo menos uma década. No Brasil, as reivindicações
dos movimentos de mulheres nesse campo são incorporadas, especialmente, pela
política de saúde, com a inclusão do planejamento familiar e métodos
anticoncepcionais.
Crianças e adolescentes
possuem direitos sexuais, mas, para os adolescentes, ainda cabe o debate sobre
os seus direitos reprodutivos. Compreendemos, conforme Nogueira Neto (2012),
que o tema da sexualidade infanto-adolescente tem raiz na dignidade humana e na
liberdade, pressupondo, ainda, a diversidade, o respeito e a tolerância. Além
disso, o tema deve ser reconhecido enquanto direito fundamental, e, quando
ameaçado, deve ser protegido por um arcabouço jurídico-social com vistas a
garantir a sua realização de maneira saudável e livre de violências.
Corroborando com Carvalho
et al. (2012), entendemos que há a “[...] necessidade de pensar os
direitos sexuais de crianças, em primeiro plano, como um direito ao saber e à
liberdade de manusear informações, dúvidas e brincadeiras diversas, mesmo que
sejam consideradas impróprias ao universo infantil” (CARVALHO et al., 2012,
p. 78). A compreensão contemporânea sobre garantir os direitos sexuais de
crianças implica possibilitar que elas reconheçam seu corpo e saibam nomear
suas partes e identificar aquelas que são intimas, permitindo, com isso, a
prevenção das situações de abuso e exploração sexual (MEYER, 2017). Aos
adolescentes, tais informações também são necessárias, podendo avançar para outros
aspectos, a exemplo da autonomia sobre seu corpo, do direito de expressar
livremente sobre sua orientação sexual e do direito de escolha do(a)
parceiro(a) sexual (BRASIL, 2009). Quanto aos seus direitos reprodutivos, estes
são expressos através do acesso às informações específicas sobre concepção, contracepção
e planejamento reprodutivo.
Entretanto, tanto em
relação às crianças quanto aos adolescentes, tratar do tema se constitui tarefa
difícil, pois concordamos com Jimenez, Assis e Neves (2015, p. 1093) quando
afirmam que, apesar de tais direitos serem reconhecidos por tratados internacionais
ratificados pelo Brasil,
[...] a
temática é complexa e contraditória. A própria noção de infância/adolescência é
uma construção social e cultural que pode variar grandemente no tempo histórico
ou entre as culturas, podendo variar também a partir de fatores, como a classe
social. Os limites convencionados social e culturalmente para delimitar as
fases da vida vão incidir no momento considerado adequado para a criança
receber as informações sobre sexualidade e reprodução, bem como para a anuência
ou não da prática sexual (JIMENEZ; ASSIS; NEVES, 2015, p. 1093).
O desafio persiste historicamente, considerando-se que familiares e
profissionais de diferentes áreas continuam equivocados em associar a discussão
sobre educação sexual e autoproteção à sexualização precoce de crianças. A
perspectiva adotada por nós é a mesma apontada por Pimentel e Valença (2020),
quanto estes destacam que:
Estimular a reflexão acerca dos direitos sexuais de
crianças e adolescentes como elemento essencial para o desenvolvimento saudável
de sua sexualidade e forma de proteção e prevenção às situações de violência. A
sexualidade é compreendida aqui como um elemento natural e que faz parte da
condição humana. É integrante de um conceito mais abrangente, para além do ato
sexual e da reprodução, uma vez que o indivíduo é um ser sexuado, desde o seu
nascimento até a morte (PIMENTEL; VALENÇA, 2020, p. 12).
As crianças e adolescentes no
Brasil, muito tardiamente, passaram a ter seus direitos fundamentais garantidos
em leis, sendo os principais demarcadores a aprovação da Constituição Federal
de 1988 (BRASIL, 1988) e da Lei nº 8.069 de 1990 (BRASIL, 1990). Esta última inaugura,
no marco legal brasileiro para a infância e a adolescência, a doutrina da
proteção integral em oposição à doutrina da situação irregular, presente na
legislação anterior – o Código de Menores de 1979 (BRASIL, 1979). Tal doutrina
estabelece que todas as crianças e os adolescentes brasileiros sujeitos de
direitos e pessoas em condições especiais de desenvolvimento. E é por essa sua
condição que passam a ter direitos especiais, além de serem detentores de todos
aqueles conferidos aos adultos.
A Lei 8.069/1990 foi uma oportunidade de adequar o marco legal
brasileiro à Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia
Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 (FUNDO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 1990). A citada
Convenção prevê que os Estados devem adotar medidas de proteção das crianças
contra as violências. Em seu Art. 19, ela também define que os Estados elaborem
programas de atenção à criança e pessoas responsáveis por elas:
1. Os Estados Partes devem adotar todas as medidas
legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger
a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou
abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração,
inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do
tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção devem incluir, quando
cabível, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais visando
ao provimento do apoio necessário para a criança e as pessoas responsáveis por
ela, bem como para outras formas de prevenção, e para identificação,
notificação, transferência para uma instituição, investigação, tratamento e
acompanhamento posterior dos casos de maus-tratos mencionados acima e, quando
cabível, para intervenção judiciária (FUNDO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 1990, não paginado).
Na trilha das definições da Convenção da ONU de 1990 para adoção, por
parte dos países, de medidas para prevenção das violências e proteção das
crianças, o Art. 5º do ECA estabelece que “[...] nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais” (BRASIL, 1990, não paginado) e atribui a todos o dever de prevenir
a ameaça de tais violências.
É indiscutível a importância da Lei
8.069/1990 para a prevenção, proteção e responsabilização dos autores de
violência de natureza sexual contra crianças e adolescentes. Entretanto, é evidente
o não tratamento do Estatuto ao tema da sexualidade e dos direitos sexuais e
reprodutivos, tendo em vista que “[...] predomina
a compreensão negativa da sexualidade, ou seja, aquela segundo a qual crianças
e adolescentes devem ser protegidos de possíveis violências, abusos e exploração
sexual” (JIMENEZ; ASSIS; NEVES, 2015, p. 1095).
A falta do tratamento do Estatuto ao
tema da sexualidade e dos direitos sexuais e reprodutivos está na contramão dos direitos humanos, que, por sua vez, passou a incorporar
os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, crianças e adolescentes. Além
disso, negar que tais direitos compõem o conjunto dos direitos humanos destinados
às crianças e adolescentes contraria a doutrina da proteção integral, para a
qual não há excepcionalidade. Entender que crianças e adolescentes possuem, por
exemplo, o direito à educação sexual, é uma das formas de garantir o
desenvolvimento saudável da sexualidade e agir na prevenção da violência.
3 A relação entre a garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos e o enfrentamento à violência sexual contra crianças e
adolescentes
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um dos fenômenos que
perpassam a realidade brasileira, demandando intervenção do Estado, da
sociedade em geral e das famílias, haja vista os impactos nas condições de vida
e desenvolvimento (físicos, emocionais e sociais) desse público. Além disso, a
violência sexual contra crianças e adolescentes configura-se como uma das mais
graves violações dos direitos humanos desse público e figura como uma expressão
da questão social.
Situamos a violência sexual no espectro mais amplo das violências no
modo de produção capitalista. Nessa direção,
Libório (2004) afirma que, ao olhar para a violência contra crianças e
adolescentes, deve-se considerar a inter-relação entre a violência estrutural (relacionada
a forma de organização socioeconômica e política) somada à violência social
(envolve as diversidades das relações de sexo, raça/etnia e geração) e à
violência interpessoal (ocorre no seio das relações pessoais mais diretas). A
inter-relação mencionada pela autora direciona a compreensão da violência
sexual contra crianças e adolescentes enquanto um fenômeno com múltiplas
determinações, com bases históricas, sociais e culturais.
A violência sexual cometida contra crianças e
adolescentes é subdividida em duas subcategorias: o abuso sexual e a exploração
sexual. O abuso sexual é marcado por relações de cunho sexual interpessoal
forçado, podendo ser intrafamiliar ou extrafamiliar, e a exploração sexual
apresenta caráter comercial e mercantil (FALEIROS; FALEIROS, 2012).
Cabe destacar que tal fenômeno e seus
desdobramentos recaem mais severamente sobre as crianças e adolescentes em
condições mais precarizadas. Logo, é mister considerar que:
Certamente as crianças
que convivem num meio hostil, sob condições socioeconômicas adversas estão mais
expostas à violência, intimamente relacionada à violência estrutural que o
próprio sistema capitalista impõe à sociedade: a violência do desemprego, da precarização
do trabalho, da baixa qualidade de moradia, da falta de serviços públicos
essenciais, da discriminação racial, dentre tantas outras violências que
invadem o espaço da família e fragilizam cada vez mais as relações na sua
realidade social (MENDONÇA, 2015, p. 20).
No contexto brasileiro, a década de 1990 representou o marco de
visibilidade do tema na esfera pública, o que impulsionou um conjunto de
políticas sociais destinadas ao enfrentamento da violência sexual. Porém, apesar
dos avanços alcançados, os dados ainda registram a sua permanência e agravamento.
Uma pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública chama a atenção para os casos de
estupro ou estupro de vulnerável no país. Entre 2017 e 2020, 81% das vítimas
desses crimes tinham até 14 anos de idade (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2021). Os perfis das vítimas, dos agressores e do contexto dos crimes
se reafirmam: as vítimas são na maioria meninas (80%), a violência é quase
sempre perpetrada por pessoas conhecidas (86% dos casos) e o local de
ocorrência frequentemente é a própria residência da vítima (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA A INFÂNCIA, 2021).
Conforme os dados do Disque 100, disponibilizados pelo Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), no período de julho de 2020
a dezembro de 2022, foram recebidas 18.681 denúncias relacionadas à violência
sexual contra crianças e adolescentes[1],
contendo 29.861 violações de direitos. Dessas, 2.543 tinham como vítimas crianças
de 0 a 6 anos, recorte etário que compreende a primeira infância; em 4.415, as
vítimas tinham entre 7 e 14 anos; e 8.783 denúncias envolviam adolescentes de
12 a 17 anos (BRASIL, 2022).
Os dados acima demonstram a imprescindibilidade da oferta de um conjunto
articulado de políticas sociais que contemplem a prevenção, a proteção das
crianças e adolescentes vítimas e a responsabilização dos agressores. Apesar
dos avanços trilhados para consolidação do Sistema de Garantia de Direitos de
Crianças e Adolescentes (SGDCA), a exemplo do reordenamento das instituições,
em particular da justiça e polícia, da criação dos Conselhos Tutelares, criação
de programas e serviços de proteção para as situações de violências, ainda há
desafios a serem enfrentados para que meninas e meninos tenham seus direitos
sexuais e reprodutivos resguardados. Identificamos como desafios a não
prioridade de aplicação do orçamento público para a política de criança e
adolescente, a dificuldade de acesso à justiça e a incapacidade dos conselhos
de direitos de deliberarem sobre a política de atendimento.
O acesso à informação sobre direitos sexuais e reprodutivos se configura
numa das estratégias essenciais para o enfrentamento à violência sexual contra
crianças e adolescentes, a qual deve ser viabilizada, primordialmente, pelo
Estado. O Plano
Nacional pela Primeira Infância (PNPI), reforça essa ideia ao indicar, para o
enfrentamento à violência sexual, a “[...] elaboração de material – educação
para a prevenção contra o abuso sexual infantil – para os pais lerem para e com
os seus filhos de 0 a 8 anos e para cuidadores, para aprenderem sobre seus
corpos, os cuidados, o papel da família, quem pode ajudar e como se proteger” (REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA, 2020, p. 136).
Considerando o que prevê a Lei 8.069/90 quanto à prioridade absoluta, em seu
Art.4º, alínea c, criança e adolescente têm a “[...] preferência na
formulação e na execução das políticas sociais públicas” (BRASIL, 1990, não
paginado). Portanto, cabe ao Estado a viabilização da disseminação dos direitos
sexuais e reprodutivos pela via das políticas públicas.
Porém, nos últimos anos, têm se apresentado movimentos de reação a essa
perspectiva, o que demanda análises sobre os desdobramentos do neoconservadorismo
na proteção integral de crianças e adolescentes especialmente no que tange à
sexualidade, pois o contexto aponta para a retração dos direitos e moralização da
vida social.
4 A cruzada bolsonarista contra os direitos
sexuais de crianças e adolescentes e reprodutivos dos adolescentes
As últimas décadas têm
sido marcadas pela maior intensidade da propagação de valores e posições
conservadoras, que tem se expressado através do neoconservadorismo. Brown
(2019) ressalta que no bojo do ideário neoliberal a moralidade tradicional e a
lógica do mercado são igualmente importantes, o que dialoga com Barroco (2015)
na compreensão de que a reorganização do pensamento neoconservador se apresenta
como estratégia para conter as tensões originadas pelo neoliberalismo, configurando-se
como uma ideologia da crise (SOUZA, 2015).
Assim:
O neoconservadorismo apresenta-se, então, como
forma dominante de apologia conservadora a ordem capitalista, combatendo o
Estado social e os direitos sociais, almejando uma sociedade sem restrições ao
mercado, reservando ao Estado a função coercitiva de reprimir violentamente
todas as formas de contestação à ordem social e aos costumes tradicionais
(BARROCO, 2015, p. 625).
Entre as nuances da díade neoconservadorismo e
(ultra)neoliberalismo, destaca-se a crítica ao papel do Estado com base no
argumento de que, em decorrência das experiências localizadas do estado de bem-estar
social, havia gastos excessivos com a oferta de serviços sociais. Ao mesmo
passo, os grupos neoconservadores se preocupavam com o surgimento de movimentos
sociais com pautas progressistas nas décadas de 1950 e 1960 e de políticas
sociais ofertadas pelo Estado a esses públicos, a exemplo dos movimentos
feministas e LGBTQIA+, o que representava, para os neoconservadores, a
existência de uma crise moral em decorrência do abandono dos valores
tradicionais.
Ambos os interesses convergiram para o questionamento do papel do Estado
na materialização dos direitos sociais, com suas demandas diversas e plurais,
através da oferta de políticas sociais. Pereira (2020) afirma que as direções
política, econômica e ideológica passaram a exigir o enxugamento e
desresponsabilização do Estado, colocando no mercado e na família a responsabilidade
por suprir a reprodução social de seus membros, tendo como base de sustentação
a defesa da moral e dos valores tradicionais.
Pereira (2020) também ressalta que esse fenômeno é inédito e gera efeitos no
aumento das desigualdades sociais, tendo em vista que desmonta os direitos
sociais, enfraquece o poder político e protetivo dos Estados e busca consagrar
o papel do mercado enquanto dirigente de todas as esferas da vida, com ataques
à democracia. Nesse contexto, reserva-se ao Estado apenas a função coercitiva
para conter questionamentos à ordem e aos valores vigentes,
direcionada às parcelas mais pauperizadas da população (BARROCO, 2015).
Essa conjuntura favoreceu a reorganização de grupos de extrema direita,
tendo o neoconservadorismo como ideário. Tais grupos têm ocupado governos
nacionais pela via eleitoral, a exemplo do que ocorreu nas eleições dos Estados
Unidos (2016), no Brasil (2018) e na Hungria (2022). Os resultados dos pleitos
eleitorais nesses países demonstraram que a direita extremada tem disputado a
direção da sociedade pela via institucional, apresentando projetos reacionários
com desdobramentos nos marcos legais e políticas sociais e econômicas.
Concordamos com Lacerda (2019) quando demarca que as manifestações de
junho de 2013 representaram o marco de início deste movimento no Brasil. E foi
no bojo do Golpe de 2016, com o governo interino de Michel Temer e,
posteriormente, em 2018, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro como
Presidente, que se consolidou um governo conservador, alinhado com os
fundamentos da díade neoconservadora/ultraneoliberal em escala mundial.
Na realidade brasileira, o recrudescimento do conservadorismo
arregimentou o caldo da formação histórico-social do país, que carrega as
marcas do racismo, da misoginia e do patriarcalismo, demonstrando que não se
trata de um fenômeno totalmente novo, mas que congrega o velho e o novo, e que,
conforme ressalta Souza (2015), apresenta colorações e tendências mais à
direita, flertando com ideias reacionárias.
Para avançar na compreensão desse fenômeno e dos seus desdobramentos na
agenda das políticas e direitos sociais, é imprescindível conhecer os
fundamentos que o baseiam. Pereira (2020) ressalta que figuram entre os mais
notórios os seguintes fundamentos:
[...] a defesa da família patriarcal, na qual
cada membro tem papéis bem definidos; da moral ‘humanista’ e a consequente desvalorização
de demandas de grupos específicos; da meritocracia; do trabalho como reparador
do caráter; da retidão e da obediência ante as hierarquias sociais; do
patriotismo; do cristianismo e da devoção a Deus; do respeito às forças policiais
e militares (PEREIRA, 2020, p. 122).
Compreendemos que a
defesa da família patriarcal engloba as questões sobre a sexualidade e os
direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, crianças e adolescentes. No que tange às meninas e meninos, e, especialmente, ao enfrentamento à
violência sexual, os conteúdos que têm sido mobilizados no discurso da direita
extremada colocam em xeque a proteção integral principalmente por cercear o
acesso à informação e por deslegitimar as diversidades, partindo de modelos
preconcebidos de família, de infância e adolescência e das vivências da
sexualidade.
No que tange aos
direitos sexuais de crianças e adolescentes e reprodutivos de adolescentes,
Carvalho et al. (2012) ressaltam que, mesmo havendo o reconhecimento no campo
legal, na prática esses direitos não são efetivados, principalmente por haver
uma incompreensão que associa, exclusivamente, os direitos sexuais à violência
sexual, evidenciando a violação de tais direitos e invisibilizando a
necessidade de afirmá-los. Entendemos
que tal associação contribui para uma visão conservadora quanto ao
desenvolvimento da sexualidade do público infanto-adolescente.
Conforme aponta Lazarin (2019), esse avanço
neoconservador nas pautas relacionadas às crianças e adolescentes trata-se de
uma reação às mudanças de paradigmas contidas nos marcos legais, a exemplo do ECA.
A autora afirma que tal ideário busca limitar um conceito de infância e adolescência,
descolado da realidade social, “[...] que condiga com uma sociedade em que não
se discuta e problematize [sic] as
desigualdades sociais e cujo projeto não é de coexistência das diversidades,
mas de conformação às regras de vida arbitrariamente impostas” (LAZARIN, 2019,
não paginado).
A reação conservadora em direção aos direitos sexuais de crianças e
adolescentes e reprodutivos de adolescentes tem relação com as disputas em
torno da dita ideologia de gênero. Tal termo, conforme Miskolci e Campana (2018), tem origem no seio da Igreja Católica, em documentos do Vaticano que
objetivavam deslegitimar os estudos sobre gênero. Concordamos com os autores
que, enquanto fenômeno transnacional, trata-se de “[...] uma contraofensiva
político-discursiva poderosa contra o feminismo e sua proposta de
reconhecimento e avanço em matéria de direitos sexuais e reprodutivos (MISKOLCI;
CAMPANA, 2018, p. 276).
Diante disso, entendemos
que, em relação às crianças e adolescentes, o combate à ideologia de gênero vai
na contramão da garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, além de
influenciar o conteúdo e a forma do enfrentamento à violência sexual, pois
falseia a realidade e vincula o debate sobre sexualidade às questões morais com
argumentos de que há um movimento de sexualização precoce, do aumento da
gravidez na adolescência e da degradação da unidade familiar (neste caso, a cis-heteropatriarcal). Tal movimento engloba, dentre outras investidas, o movimento contrário à educação
sexual nas escolas, as propostas de educação domiciliar e a mobilização para
proibição do aborto legal em casos de estupro de vulnerável.
No Brasil, conforme afirma Lacerda (2019), o debate acerca da ideologia
de gênero ganhou visibilidade no Congresso Nacional em 2013, como reação às
iniciativas do Executivo Federal, do Conselho Nacional de Educação e nos
debates sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) em torno da inclusão da
igualdade de gênero e do respeito às diversidades no sistema de ensino. Desde
2019, o debate sobre a ideologia de gênero compõe as pautas prioritárias do
Governo Bolsonaro, capitaneado, principalmente, pelo Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, ressonando nos espaços dos poderes Legislativo,
Judiciário e nos executivos estaduais e municipais e em ampla parcela da
população.
A partir de uma retórica
protetiva, o Governo Bolsonaro lançou, em 2020, o Plano Nacional de Prevenção Primária
do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência e a Campanha 'Tudo tem
seu tempo’. As iniciativas defendem a abstinência sexual como estratégia para
prevenção à gravidez na adolescência. Sobre tais medidas, a Sociedade Brasileira
de Pediatria (SBP) se posicionou defendendo que, “[...] embora teoricamente
protetoras, as intenções de abstinência geralmente falham, pois
a mesma não é mantida e estes programas não são eficazes para retardar o início
das relações sexuais ou alterar comportamentos de risco” (SOCIEDADE BRASILEIRA
DE PEDIATRIA, 2020, p. 3).
Tais
iniciativas se fortaleceram, ainda, no âmbito do Ministério da Educação, em
relação à educação sexual nas escolas. Para o ex-Ministro Milton Ribeiro, a
oferta desses conteúdos estimula a sexualização precoce, afirmando que é
necessário evitar temas de “[...] cunho ideológico” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2022,
p. 44). Conforme Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação, este tipo de discurso demonstra que há um “[...] aparelhamento
das políticas educacionais em sintonia com valores religiosos e
discriminatórios” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2022, p. 36)[2].
Destaca-se,
ainda, a relação desses embates com as propostas em tramitação no Congresso
Nacional, com apoio do Governo Bolsonaro, direcionadas para a autorização do
ensino domiciliar. Entre outros Projetos de Lei, o de nº 3.179/2012 (BRASIL,
2012) e demais projetos apensados alteram o Código Penal (Art. 246 – crime de
abandono) e a Lei nº 8.069/90, tornando legítimo o direito de as famílias
ofertarem o ensino domiciliar sem o intermédio de uma instituição regular de
ensino.
A
mudança no escopo legal, conforme aponta Oliveira e Barbosa (2022), além
dos prejuízos ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, é uma ameaça ao
direito à educação pública de qualidade, haja vista o risco de desfinanciamento e desvalorização dessa política. Ainda
priva os estudantes da socialização, da prevenção das violências, do acesso à
conteúdos e da convivência com as diversidades.
A
cruzada bolsonarista nesta área questiona, ainda, o direito ao aborto legal em
casos de estupro de vulnerável, previsto no Código Penal brasileiro. O Governo
Federal compõe articulações internacionais de movimentos pró-vida
e busca institucionalizar, nas políticas públicas, a ideia da proteção à vida desde
a concepção.
Os elementos acima mencionados
são parte do avanço neoconservador na proteção integral de crianças e
adolescentes, demonstrando que não se trata apenas de uma mudança de conteúdo,
mas de uma ofensiva contra as conquistas logradas nos últimos 30 anos no Brasil.
5
Considerações finais
Na discussão contemporânea, a garantia dos direitos sexuais de crianças e
adolescentes e reprodutivos de adolescentes perpassa pelo acesso à informação
sobre os corpos, afetos e vivência da sexualidade. Quanto ao tema, o Brasil é
paradoxal: ao mesmo tempo que é signatário de tratados internacionais que garantem
esses direitos, a principal lei nacional (a Lei nº 8.069/1990) não reflete
explicitamente essa garantia. Sobre isso, consideramos que, sem tais conteúdos,
as crianças e os adolescentes ficam mais expostos à violência sexual, tendo em
vista a dificuldade em identificar os sinais da violência, as formas de
denunciar e pedir ajuda.
Nossas análises apontam que o combate à ideologia de gênero pelo Governo
Bolsonaro influenciou o conteúdo das políticas sociais nessa área, configurando-se
numa contraofensiva aos direitos sexuais e reprodutivos. Confronta a lógica da
proteção integral, que tem como pressuposto principal a condição peculiar de
desenvolvimento de crianças e adolescentes. O discurso contrário à ideologia de
gênero falseia a realidade com base em valores conservadores que violam os direitos
sexuais e reprodutivos.
Dito isso, entendemos que o
reconhecimento e a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e
adolescentes é um caminho imprescindível para a materialização da doutrina da
proteção integral, contribuindo para que meninas e meninos, conforme demarca o Art.
5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, não sejam objeto de nenhuma forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Referências
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Valeria Nepomuceno
Teles de MENDONÇA Trabalhou na concepção,
delineamento e redação do artigo, bem como na análise e interpretação dos
dados, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada.
Possui graduação em SERVIÇO SOCIAL pela
Universidade Federal de Pernambuco (1983), mestrado em Serviço Social pela
Universidade Federal de Pernambuco (1994) e doutorado em Serviço Social pela
Universidade Federal de Pernambuco (2007). Professora do Departamento de
Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco e do seu Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social. Líder do Grupo de Estudos, Pesquisas e
Extensões no campo da Política da Criança e do Adolescente - GECRIA. Tem
experiência na área de Serviço Social, com ênfase em gestão institucional e de
programas sociais, atuando nas áreas de Direitos Humanos, especialmente
direitos da criança e do adolescente e direito à cidade.
Mirella Cavalcante Vilar LIMA Trabalhou na concepção, delineamento e redação do
artigo, bem como na análise e interpretação dos dados, revisão crítica e
aprovação da versão a ser publicada.
Mestranda em
Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em
Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em
Gestão da Política de Assistência Social, pela Universidade Veiga de Almeida (UVA)
e Especialista em Direitos da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco (UFRPE). Integra o Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensões
no Campo da Política da Criança e do Adolescente (GECRIA/UFPE). Atualmente é
servidora pública lotada na Secretaria Executiva de Assistência Social do
Recife, exercendo a função de Analista em Assistência Social e Direitos Humanos
– Assistente Social.
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* Assistente Social. Doutora em Serviço
Social. Docente da Graduação em Serviço Social e do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco, (UFPE, Recife,
Brasil). Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife (PE), CEP.: 50670-901.
E-mail: valeria.nmendonca@ufpe.br.
** Assistente Social. Mestranda no Programa
de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco.
Analista em Direitos Humanos e Assistência Social da Prefeitura do Recife. (PMR,
Recife, Brasil). Av. Cais do Apolo, 925, Recife (PE), CEP.: 50030-903. E-mail: mirella.vlima@ufpe.br.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2022 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1] Os dados são referentes à subespécie de
violação de liberdade sexual (física e psíquica), que agrega, conforme Manual
da Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, as
denúncias de abuso e importunação sexual física e psíquica, estupro, exploração
sexual e assédio sexual. Tal Manual foi publicado em 2021, como parte das
mudanças realizadas pelo MMFDH na forma de registro das denúncias no Disque
100. A mudança realizada dificulta a realização de análises comparativas entre
séries históricas.
[2] Já em 2017, no Governo Temer, foram
retiradas as expressões orientação sexual e gênero de
algumas partes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).