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Aborto voluntário em Cuba: avanços e desafios

 

Voluntary abortion in Cuba: advances and challenges

 

Arelys Esquenazi BORREGO *

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-9366-8688  

 

Resumo: Cuba foi o primeiro país da América Latina e do Caribe a descriminalizar o aborto e criar regulamentações para que ele pudesse ser realizado de forma legal, segura e gratuita. O artigo objetiva analisar a situação atual do aborto voluntário em Cuba. A principal conclusão alcançada é que, apesar dos avanços conquistados nas mais de seis décadas da Revolução, ainda existem vários desafios do ponto de vista jurídico e social. Além das questões legais, outros desafios relacionam-se com o aperfeiçoamento dos procedimentos médicos e programas/métodos mais eficazes e abrangentes associados a educação sexual, contracepção, entre outros. O método de pesquisa utilizado triangula a pesquisa bibliográfica, a análise de documentos oficiais e a estatística descritiva.

Palavras-chave: Aborto voluntário. Direitos sexuais e reprodutivos. Justiça reprodutiva. Mulheres. Cuba.

 

Abstract: Cuba was the first country in Latin America and the Caribbean to decriminalise abortion and create regulations allowing it to be performed legally, safely and free of charge. This article analyses the current situation of voluntary abortion in Cuba. The main conclusion is that, despite the advances achieved over the more than six decades of the Revolution, there are still several challenges from a legal and social point of view. In addition to legal issues, other challenges relate to the improvement of medical procedures, and more effective and comprehensive programmes and methods associated, for example, with sex education and contraception. The research methodology was triangulated bibliographical research, analysis of official documents and descriptive statistics.

Keywords: Voluntary abortion. Sexual and reproductive rights. Reproductive justice. Women. Cuba.

 

Submetido em: 16/9/2022. Revisto em: 28/1/2023. Aceito em: 6/3/2023.

 

Introdução

 

A

denominada maré verde tem conseguido na América Latina e no Caribe (ALC) – devido ao ímpeto do movimento feminista e suas décadas de luta em favor da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres – articular diferentes setores da sociedade, gerando debates e ativismos em torno do direito ao aborto voluntário das mulheres e pessoas que gestam (BERGALLO; JARAMILLO; VAGGIONE, 2018). Nos últimos dois anos o panorama jurídico na região latino-americana mudou ligeiramente, em função das mudanças favoráveis à descriminalização e/ou legalização do aborto em vários países, dentre os quais se destacam: Argentina, México, Equador e Colômbia – com particularidades em termos de extensão e abrangência das transformações aprovadas em cada um desses países (MORÁN e BARRAGÁN, 2021; SILVA, 2022).

 

Apesar dos recentes avanços em termos de reformas legais que descriminalizam e/ou reconhecem legalmente o direito ao aborto para mulheres e pessoas que gestam, a ALC continua a ser uma das regiões do mundo com leis mais restritivas em relação à interrupção voluntária da gravidez (SINGH et al., 2018). Atualmente, o panorama regional configura-se da seguinte forma:

 

Apenas oito países da América Latina permitem a interrupção voluntária da gravidez: Argentina, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico, Cuba, Colômbia, México e Uruguai. A maior parte, dez países, criminaliza a interrupção voluntária da gestação, mas permite o procedimento em alguns casos específicos, como gravidez decorrente de estupro, má formação do feto e risco de morte da gestante. É o caso de Bolívia, Brasil[1], Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Já os países que proíbem a interrupção da gravidez em qualquer circunstância são República Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Jamaica, Honduras, Haiti e Suriname (SILVA, 2022, p. 4).

 

Concomitantemente, posições neoconservadoras e reacionárias também estão se fortalecendo na região, dificultando o avanço da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Especificamente, o movimento antiaborto na ALC (autointitulado como pró-vida) está se fortalecendo em total sintonia com o avanço dos partidos de extrema direita, as políticas ultra/neoliberais e os grupos neoconservadores, que promovem uma agenda anti-direitos através de discursos e ações contra a (inexistente) ideologia de gênero, em (aparente) favor da proteção da vida ou em defesa da (suposta) família original criada por Deus (TORRES SANTANA, 2020a).

 

Ambos os movimentos – e seus resultados políticos, legais e sociais, tanto a favor, quanto contra – demonstram que a descriminalização e/ou legalização do aborto está longe de ser um direito formal plenamente consolidado para a grande maioria das mulheres e pessoas que gestam na ALC. Ao mesmo tempo, o fato de a questão do aborto ter sido colocada no centro do debate público em muitos países, assim como os recentes avanços feitos pela maré verde demonstra a possibilidade e a necessidade de continuar avançando na luta por direitos, políticas públicas e condições reais de vida para as mulheres e meninas, a partir de uma perspectiva feminista anticapitalista e emancipatória.

 

No contexto regional, Cuba destaca-se por ter sido pioneira na descriminalização e institucionalização do aborto. Conquistas que devem ser analisadas como parte de um conjunto mais amplo de avanços em termos de direitos maternos, sexuais e reprodutivos das mulheres nos mais de sessenta anos da revolução cubana (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Entretanto, a ilha não está imune às influências das tendências regionais acima descritas. O ímpeto da maré verde reverbera em Cuba, no entanto, posições neoconservadoras também estão se consolidando e se articulando em paralelo.

 

O artigo objetiva analisar a situação atual do aborto voluntário em Cuba. Para isso, divide-se em duas seções. A primeira apresenta um breve panorama histórico, desde o triunfo da Revolução até a atualidade, destacando alguns dos principais avanços em relação à saúde e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres cubanas, com foco fundamentalmente na questão do aborto. A segunda seção destaca, tanto do ponto de vista jurídico quanto social, alguns dos principais desafios colocados para o movimento de mulheres/feminista cubano, assim como para o próprio processo revolucionário. Em relação aos métodos de pesquisa, procuramos triangular: i) revisão bibliográfica; ii) análise de documentos oficiais, leis e regulamentações do Ministério da Saúde Pública; iii) estatísticas descritivas, baseadas na análise de séries temporais e/ou indicadores disponíveis em fontes públicas oficiais, tais como censos, anuários estatísticos e demográficos no campo da saúde.

 

1 Aborto voluntário em Cuba: principais avanços desde o triunfo da Revolução

 

Em Cuba, os avanços mais significativos em relação ao direito ao aborto voluntário consolidaram-se logo após o triunfo da Revolução. Entretanto, os primeiros passos foram dados antes de 1959, especificamente, no ano 1936, com a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez com base em três causas: se a vida da mãe estava em perigo, no caso de estupro ou se havia a possibilidade de transmitir uma doença grave ao feto (ROSALES ZEIGER, 2020). Esse importante avanço foi possível devido à existência de diversos movimentos de mulheres/feministas que, desde antes do triunfo da revolução cubana, vinham exigindo direitos para as mulheres (GONZÁLEZ PAGÉS, 2005) – embora, na sua maior parte, a partir da perspectiva do feminismo liberal.

 

Assim, embora o aborto fosse legal nos três casos acima mencionados, era uma prática generalizada entre as mulheres, sendo realizado de forma ilegal na maior parte do tempo (FLEITAS RUIZ, 2013). Existiam clínicas clandestinas privadas que ofereciam o serviço, de forma segura e confidencial, às mulheres da classe média-alta (ROSALES ZEIGER, 2020). Porém, também existiam clínicas clandestinas que realizavam o procedimento abortivo a menores custos, mas em instalações sem as condições médicas e sanitárias exigidas (FLEITAS RUIZ, 2013). Isso explica por que, antes de 1959, o aborto era uma das principais causas de óbitos maternos no país. Segundo estimativas, o número de mortes maternas devido a abortos inseguros era mais de 60 por 100 mil nascimentos (ROSALES ZEIGER, 2020), com impactos diferenciados para as mulheres segundo a sua classe social, cor da pele, território etc.

 

Com o triunfo da Revolução ocorreu uma mudança radical no setor da saúde em Cuba. Esta transformação assumiu uma perspectiva socialista que, devido à sua natureza, profundidade e articulação, coincidiu com as mudanças acontecidas em outros âmbitos da sociedade – especialmente dentro da política social (ESQUENAZI BORREGO; PANDOLFI; CARRARO, 2022). A transformação neste setor começou logo em 1959 e consolidou-se na década dos anos sessenta, aproximadamente, vinte anos à frente do resto dos países da ALC, que só começaram suas reformas sanitárias nos anos oitenta (FLEITAS RUIZ, 2013). A abordagem preventiva, comunitária e social da medicina em Cuba, assim como a acessibilidade, cobertura universal e gratuidade dos serviços prestados pelo Sistema Nacional de Saúde (SNS), tornou possível transformar, radicalmente, o panorama sanitário da ilha (ESQUENAZI BORREGO, 2021).

 

No caso das mulheres, quando se sistematizam as principais mudanças no setor da saúde desde o ano 1959 até o presente, é possível identificar uma ampla gama de legislações, programas e ações que tiveram (e ainda têm) um impacto positivo, direta ou indiretamente, na saúde das cubanas (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Sua consolidação e sua diversificação ao longo de pouco mais de seis décadas da Revolução tornam possível a existência de uma política de saúde materna, sexual e reprodutiva que tem sido constante ao longo do tempo (ESQUENAZI BORREGO et al., 2021). Ao mesmo tempo, isso evidência que a saúde e os direitos maternos, sexuais e reprodutivos das mulheres têm sido uma parte relevante da agenda do Estado e do governo em Cuba (ESQUENAZI BORREGO, 2021).

 

Deve-se notar que no processo de idealização, implementação e monitoramento das políticas, programas e serviços em favor dos direitos e da saúde materna, sexual e reprodutiva, várias organizações sociais desempenharam um papel relevante, especialmente a Federação de Mulheres Cubanas (FMC), criada em 1961. Nesse sentido, a existência de um sujeito político ativo, que através da FMC se organizou e reivindicou seus direitos, também determinou a profunda transformação que é gerada na política e nos serviços de saúde voltados para as mulheres em Cuba (PROVEYER CERVANTES, 2010). Isto também se deve ao duplo caráter que, como sujeito social, as cubanas assumirão neste processo, sendo, em simultâneo, as principais beneficiárias ou receptoras destes direitos/programas/serviços de saúde, e suas principais gestoras (CÉSAR, 2005).

 

Uma das transformações mais relevantes no campo da saúde sexual e reprodutiva em Cuba foi a descriminalização e institucionalização do aborto voluntário nos primeiros anos do processo revolucionário. No primeiro caso, desde 1961 a prática foi retirada da clandestinidade e, posteriormente, com a aprovação do Código Penal do ano 1989, tipificou-se legalmente quais condutas em relação ao aborto induzido seriam consideradas ilícitas e puníveis por lei (ESQUENAZI BORREGO, 2021).

 

O Código, ainda vigente, analisa a questão do aborto no Capítulo VI de seu Título VIII, especificamente nos artigos 267 ao 271. A legislação concebeu a figura do aborto como crime somente nos casos em que ele é realizado visando lucro, sem o cumprimento de certas condições médicas exigidas pelo Ministério da Saúde Pública, ou quando é realizado sem a autorização da gestante (artigos 267 e 268). Da mesma forma, sanções específicas são regulamentadas no caso de violências e/ou morte sobre uma grávida (artigos 269-271) (GONZÁLEZ, 2017).

 

No segundo caso, a institucionalização ocorreu nos anos 1960 com a introdução da prática do aborto induzido nas maternidades e, mais tarde, nas policlínicas. Um papel-chave neste processo foi desempenhado pela FMC que, “[...] em seu primeiro Congresso (1962), contribuiu para reorientar a busca de soluções para institucionalizar o aborto como um serviço, com as condições médicas e sanitárias necessárias, dentro do Sistema Nacional de Saúde” (CASTRO ESPÍN, 2010, p. 5, tradução nossa).

 

Nos anos 1970, praticamente todos os hospitais materno-infantis e gerais especializados em gineco-obstetrícia tinham serviços dedicados à interrupção voluntária da gravidez. Isto foi identificado como um dos principais fatores que contribuíram para uma redução do aborto como causa de morte materna em quase 50% durante aquele período (CABEZAS CRUZ, 2006). Por sua vez, a prática da regulação menstrual foi introduzida no final dos anos oitenta, principalmente nas policlínicas (CABEZAS CRUZ, 2006).

 

Deve ser destacado que, desde o início, a institucionalização do aborto voluntário em Cuba foi estruturada em torno de três princípios básicos: i) a mulher é quem decide sobre seu corpo e se vai levar a gravidez a termo; ii) a interrupção voluntária da gravidez será realizada em ambientes controlados e feita por pessoal especializado da área da saúde; iii) será realizada de forma totalmente gratuita (BENÍTEZ PÉREZ, 2014).

 

Assim, o aborto induzido é uma prática médica disponível para todas as mulheres de 18 anos de idade ou mais que o solicitem, sendo realizado sem qualquer condicionalidade/restrição dentro das primeiras 12 semanas de gestação.[2] A partir deste momento, a interrupção voluntária da gravidez só é permitida em casos excepcionais, por exemplo, quando há risco para a saúde ou vida da gestante ou do feto, sendo realizada nestes casos com autorização de uma comissão médica (ROSALES ZEIGER, 2020; ANTÓN RODRÍGUEZ; DEL SOL GONZÁLEZ, 2022).

 

Tanto a descriminalização, quanto a institucionalização do aborto voluntário em Cuba tiveram entre seus objetivos proporcionar às mulheres a segurança do SNS, reduzir a mortalidade materna por esta causa, assim como promover e garantir o direito das mulheres e pessoas que gestam de decidir sobre seu próprio corpo, sexualidade e sua reprodução (BENÍTEZ PÉREZ, 2014). Desta forma, sintetizam-se em relação à defesa do aborto voluntário argumentos relacionados tanto às questões de saúde reprodutiva, quanto a elementos associados à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

Haveria também avanços que, direta e indiretamente, teriam um impacto positivo em relação ao aborto induzido. Por exemplo, nos anos sessenta, a “[...] introdução de métodos contraceptivos para o planejamento familiar foi implementada no país, sendo os primeiros o dispositivo intrauterino e a contracepção hormonal” (CABEZAS CRUZ, 2006, p. 4, tradução nossa). Todas estas inciativas foram implementadas como parte do desenvolvimento do Programa Nacional de Planejamento Familiar, criado anteriormente em 1964, como resultado do trabalho conjunto entre a FMC e o SNS (CASTRO ESPÍN, 2020).

 

Também na década de setenta, a educação sexual foi explicitamente reconhecida como uma política de Estado e como um direito das mulheres cubanas. Ambos os aspectos foram endossados tanto nos acordos do II Congresso da FMC em 1974, como nas resoluções do I Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) em 1975 (CASTRO ESPÍN, 2012). Paralelamente, desde o início da década já vinha sendo articulado um grupo multidisciplinar[3] que ajudou a estabelecer as bases para criar o Programa Nacional de Educação Sexual (ProNES) na primeira metade dos anos setenta. Este programa foi concebido com a participação do Ministério da Saúde Pública (MINSAP), do Ministério da Educação (MINED) e da FMC (CASTRO ESPÍN, 2011). O ProNES foi atualizado no ano de 2003 e, posteriormente, renomeado Programa Nacional de Saúde e Educação Sexual de Cuba (PRONESS) (CASTRO ESPÍN, 2012). Em 2011, o Ministério da Educação criou um novo marco normativo (Resolução No. 139) para a implementação pedagógica do processo de saúde e educação sexual no currículo dos diferentes subsistemas educacionais.

 

Na última década, avança-se de uma abordagem mais restritiva focada só na educação sexual para uma visão mais ampla que integra educação e saúde sexual, na qual, além de incorporar os direitos das mulheres, crianças e jovens, também se avança na incorporação de outros direitos sexuais e reprodutivos, como os das pessoas LGBTQIAP+ (CASTRO ESPIN, 2011). Desta forma, além da abordagem de gênero, as questões de identidade de gênero, orientação sexual e não-violência também são incorporadas ao novo Programa Nacional de Educação e Saúde Sexual.

 

Por fim, vale destacar que em 2019 aprova-se por referendum uma nova Constituição na ilha. A Carta Magna recentemente aprovada representou legislativamente um importante avanço, uma vez que concedeu status constitucional aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (GONZÁLEZ FERRER, 2019). Além disso, a atual Constituição não só reconheceu como prioridade a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como também estabeleceu que é dever do Estado cubano garanti-los por meio dos mecanismos legais e institucionais pertinentes. A incorporação desse importante avanço legislativo foi resultado do trabalho conjunto de especialistas da área do direito, da saúde etc., e da participação ativa da FMC no processo de redação e debate com a população do anteprojeto de lei.

 

2 Aborto voluntário em Cuba: desafios atuais

 

Cuba foi o primeiro país da ALC a descriminalizar e institucionalizar o aborto voluntário, o que foi uma importante conquista tanto do ponto de vista da saúde pública como dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No entanto, apesar desses inegáveis avanços, o direito ao aborto voluntário na ilha ainda não possui respaldo legal por meio de lei específica. Em outras palavras, em Cuba o aborto induzido é uma prática legal, segura, gratuita e regulamentada, mas não legislada.

 

Neste sentido, o artigo No 36 do Regulamento da Lei da Saúde Pública identifica o aborto como um serviço que deve ser garantido pelo SNS. Entretanto, a própria Lei de Saúde Pública, criada no ano 1983, não reconhece explicitamente o direito ao aborto das mulheres e pessoas que gestam (TORRES SANTANA, 2020b). Atualmente, a garantia deste serviço e sua forma de implementação está regulada através de duas normativas: Normas de saúde para a interrupção voluntária da gravidez e Guias Metodológicas para a implementação de todos os tipos de interrupção voluntária da gravidez – ambos documentos do Ministério da Saúde Pública (MORALES ALFONSO, 2016).

 

Por sua vez, a Carta Magna aprovada em 2019, embora confira status constitucional aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não faz menção direta ao aborto voluntário (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Neste sentido, o direito das mulheres e pessoas que gestam à interrupção voluntária da gravidez encontra-se diluído no conjunto de direitos consagrados coletivamente no artigo no 43, que inclui, entre outros, os direitos sexuais e reprodutivos. Dessa forma, ao contrário de outros direitos conquistados pelas cubanas, o aborto voluntário só é amparado explicitamente por normas de baixa hierarquia legal.

 

Segundo Torres Santana (2020b) e Caraballoso (2022a), é fundamental blindar o direito para garantir que a interrupção voluntária da gravidez não seja apenas regulamentada e institucionalizada por meio de normas e protocolos médicos – documentos que geralmente estão focados na prática médica e na garantia deste serviço simplesmente como questão de saúde pública ou saúde reprodutiva. É preciso avançar na garantia desse direito por meio de legislação de maior porte jurídico que seja concebida de forma mais integral, incorporando, a partir da perspectiva da justiça reprodutiva[4], o direito das mulheres e das pessoas que gestam de decidir livre e conscientemente sobre seus corpos, reprodução, sexualidade e maternidade/paternidade.

 

Isso também deve ser avaliado como uma necessidade diante do avanço de grupos neoconservadores, religiosos ou não, que tem ocorrido em toda a América Latina e Caribe – tendência da qual Cuba também não escapa (MORALES ALFONSO, 2020). Nesse sentido, feministas e ativistas pelos direitos sexuais e reprodutivos em Cuba têm mostrado preocupação e criticado fortemente como nos últimos anos avançam na ilha, posturas anti-direitos, que se embasam no discurso da denominada ideologia de gênero, para, explicitamente, condenar o direito ao aborto, a educação sexual como parte da educação integral, entre outros avanços alcançados pelas cubanas (GONZÁLEZ, 2017; TORRES SANTANA, 2020b; CARABALLOSO, 2022b).

 

Essas posturas são cada vez mais visíveis e articuladas dentro da sociedade cubana, mesmo quando continuam a ser uma minoria em termos de população e consenso social. Exemplo disso foram as polêmicas suscitadas a partir da consulta popular, primeiro, em torno da recentemente aprovada Constituição de 2019 (MORALES ALFONSO, 2020) e, depois, em relação ao Código das Famílias (CARABALLOSO, 2022b) – aprovado em referendum em setembro de 2022.

 

Diante do gradual avanço de posturas neoconservadoras que se fortalecem dentro e fora do campo religioso em Cuba (CARABALLOSO, 2022a), legislar o direito ao aborto voluntário constitui uma pauta fundamental a ser priorizada dentro do processo de reordenamento jurídico em curso – processo que também tem o desafio de incorporar transversalmente a perspectiva da igualdade de gênero em todas as leis e políticas públicas (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Considera-se estratégica a promulgação a curto prazo de uma nova legislação, ou parte dela, que dê suporte e garanta o direito das mulheres e pessoas que gestam à interrupção voluntária da gravidez.

 

Dado que a futura Lei da Saúde Pública – cujo projeto de lei[5] foi apresentado em dezembro de 2022 ao parlamento cubano – não será levada a referendo popular, a capacidade de influência desses grupos neoconservadores será bastante limitada e, portanto, maior a possibilidade de o Estado e a FMC avançarem na ampliação e consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (TORRES SANTANA, 2020b). Nesse sentido, recentes declarações do titular do MINSAP demonstram, a partir do discurso político, consciência e compromisso com esses direitos (ANTÓN RODRÍGUEZ; DEL SOL GONZÁLEZ, 2022). Ao mesmo tempo, as declarações também demostram a necessidade de blindar legislativamente os avanços conquistados pelas cubanas, na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos, ante um contexto de ofensiva neoconservadora que também tem expressões em Cuba.

 

Aspiramos que a nova regulamentação proteja ainda mais o direito à interrupção voluntária da gravidez contra o avanço de conservadorismos e fundamentalismos que colocam em risco, no mundo e na região, uma conquista fundamental para as mulheres (ANTÓN RODRÍGUEZ; DEL SOL GONZÁLEZ, 2022, p. 2, tradução nossa).

 

Outro desafio vincula-se às práticas médicas (métodos e processos) mais recorrentes por meio das quais o aborto induzido é realizado. Na ilha existem várias opções para a interrupção voluntária da gravidez: regulação menstrual, aborto cirúrgico ou farmacológico/medicamentoso.[6] No caso das gestações mais avançadas, o aborto cirúrgico (também conhecido como legrado) geralmente é o método mais utilizado em Cuba; pois o aborto farmacológico, a partir do uso de mifepristone e misoprostol (entre outros medicamentos similares) não é sempre uma opção disponível e/ou possível. Isso está relacionado, em parte, à dificuldade que Cuba tem de importar e produzir medicamentos, seja pela escassez de divisas ou pelos impactos do bloqueio econômico na ilha (OXFAM, 2021).

 

Em relação a esta problemática, é fundamental reduzir o número de procedimentos clínicos e promover outros métodos menos invasivos (CARABALLOSO, 2022b), por exemplo, transitar para uma composição com maior preponderância do aborto farmacológico. As recentes declarações de José Ángel Portal Miranda, Ministro da Saúde Pública, dão sinais positivos a esse respeito (CARABALLOSO, 2022b).

 

Outros desafios enfrentados pela ilha são as altas taxas de fecundidade e aborto entre as adolescentes (MOLINA CINTRA, 2019). Na década anterior, a porcentagem média de aborto entre as adolescentes superava as demais faixas etárias e mantinha uma tendência crescente: “[...] 20% das adolescentes entre 15 e 19 anos haviam feito aborto em 2015” (RODRÍGUEZ GUSTÁ; DÍAZ BERNAL; MORALES CHUCO, 2018, p. 23, tradução nossa). Nos últimos anos os indicadores mostram uma ligeira mudança na tendência. Exemplo disso é que entre 2019 e 2020 diminuíram as gestações, suas interrupções voluntárias e os nascimentos por cada mil mulheres entre 15 e 19 anos (EDITH, 2022). No entanto, além desses dados específicos mais alentadores, a tendência geral mostra que, embora pequenas reduções nas taxas de fertilidade e aborto na adolescência sejam alcançadas em anos específicos, esses resultados não se sustentam ao longo do tempo (MOLINA CINTRA, 2019).

 

Verifica-se, também, que não há correspondência elevada entre os valores quantitativos obtidos e as ações que vêm sendo realizadas no âmbito dos programas de saúde e educação sexual e reprodutiva no país; especialmente aqueles voltados para os(as) adolescentes. “Isso é uma evidência de que mesmo esses programas e ações não têm a eficácia necessária” (MOLINA CINTRA, 2019, p. 132, tradução nossa).

 

O exposto acima é um problema relevante que também deve ser analisado para outras faixas etárias.[7] Em Cuba, embora o aborto não seja reconhecido como método contraceptivo, historicamente houve uma alta aceitação social dele como meio de limitar a fertilidade (BENÍTEZ PÉREZ, 2014). Em termos de tendências, as taxas de aborto voluntário na ilha aumentaram notavelmente na década de 1980 e logo diminuíram na década de 1990 (ver Tabela 1). Posteriormente, na primeira década dos anos 2000, resultados obtidos na Enquete Nacional de Fecundidade (ENF) do ano 2009 apontavam para o fato de que:

 

[...] 21% das mulheres cubanas entre 15 e 54 anos relataram ter experimentado pelo menos uma gravidez que terminou em aborto induzido ou regulação menstrual [...]. O número médio de abortos ou regulações menstruais por pessoas que vivenciaram esses eventos é da ordem de 1,6 (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICAS, 2010, p. 46, tradução nossa).

 

Atualmente, os indicadores sobre a interrupção voluntária da gravidez são consideravelmente inferiores quando comparados com os resultados dos anos oitenta e noventa, embora ainda apresentem valores relativamente elevados. De acordo com o Anuário Estatístico de Saúde de 2020, a taxa de aborto voluntário foi de 22,1 interrupções por cada mil mulheres entre 15 e 49 anos (ver Tabela 1). No entanto, deve-se notar que os indicadores atuais de Cuba são substancialmente inferiores às médias da ALC, região que tem se caracterizado por uma das maiores taxas de aborto do mundo: aproximadamente 44 por mil mulheres (ROSALES ZEIGER, 2020).

 

Tabela 1 - Abortos induzidos. Cuba, anos selecionados.

Anos

Por 1000 mulheres entre 15 e 49 anos

Por 100 partos

Por 100 grávidas

1970

36,1

31,9

24,2

1975

57,4

65,4

39,5

1980

42,2

76,1

43,2

1985

55,0

83,6

43,3

1990

45,6

78,3

43,9

1995

25,6

56,6

36,0

2000

23,0

52,7

34,5

2005

19,1

51,5

33,8

2010

22,3

55,7

35,6

2015

30,0

72,8

41,9

2020

22,1

58,6

36,7

Fonte: CUBA (2005-2020). Elaboração própria.

 

O panorama anteriormente descrito, em relação ao aborto voluntário, parece ser contraditório com a existência de um alto nível de conhecimento e uso de métodos contraceptivos por parte da população cubana. Segundo a ENF-2009, aproximadamente 99,9% das mulheres entre 15 e 54 anos referiram espontaneamente conhecer pelo menos um método para evitar a gravidez. Com relação ao uso de métodos contraceptivos, a pesquisa mostrou que 87,5% das mulheres nessa faixa etária já usaram esses métodos (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICAS, 2010). Deve-se notar também que Cuba mantém, há mais de 15 anos, uma cobertura anticoncepcional de mais de 75% (ESQUENAZI BORREGO et al., 2021) – resultado que posiciona Cuba acima das taxas de cobertura anticoncepcional da maioria dos países da região latino-americana.

 

Os resultados da Enquete Nacional de HIV/AIDS de 2017 – último levantamento desse tipo realizado no país – apontaram para um aumento sustentado ao longo do tempo nas taxas de proteção na primeira relação sexual. No entanto, a pesquisa também revelou que, independentemente do gênero, três em cada cinco pessoas não se protegeram na primeira relação sexual – 62,2% dos homens e 61,6% das mulheres (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICA E INFORMACIÓN, 2019). É por isso que alguns pesquisadores(as) destacam que as taxas de aborto voluntário em Cuba não são produzidas, fundamentalmente, por falhas anticoncepcionai, mas sim que em alguns casos se alterna com o uso de métodos anticoncepcionais e, inclusive, em mulheres muito jovens e adolescentes antecede a utilização deles (BENÍTEZ PÉREZ, 2014).

 

No âmbito da saúde sexual e reprodutiva também se identificam outras problemáticas, tais como: i) uso irregular de métodos contraceptivos; ii) predominância de uso de métodos femininos e uso relativamente baixo de métodos contraceptivos masculinos; iii) prevalência da esterilização feminina e uso mínimo de esterilização masculina; entre outras questões (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Diversas pesquisas também destacam a existência de dificuldades em termos da

 

[...] quantidade, qualidade, diversidade e satisfação insuficientes da demanda por anticoncepcionais por razões econômicas, capacidade e qualidade dos serviços, atraso tecnológico para a produção nacional de métodos modernos e dificuldades para importação (MOLINA CINTRA et al., 2020, p. 558, tradução nossa).

 

Problemas de acesso a anticoncepcionais, principalmente no caso das camisinhas, têm se tornado recorrentes nos últimos anos na ilha (CARABALLOSO, 2022a). Nesse sentido, a Enquete Nacional de HIV/AIDS do ano 2017 identificou que “[...] quase uma em cada dez pessoas (8,9%) teve dificuldade em algum momento do ano em adquirir o produto, devido à escassez em algum ponto de venda do mercado nacional” (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICA E INFORMACIÓN, 2019, p. 109, tradução própria).

 

Todas essas questões evidenciam problemáticas que devem ser urgentemente transformadas, tanto por seus impactos na saúde sexual e reprodutiva de toda a população quanto pelos possíveis desdobramentos em relação às taxas de aborto. Neste sentido, é fundamental diversificar a tipologia dos contraceptivos, bem como fomentar um melhor treinamento dos(as) profissionais de saúde sobre a segurança e os benefícios de cada método de contracepção (GUERRERO BORREGO et al., 2018). Da mesma forma, deve-se ampliar a divulgação dirigida a homens e mulheres sobre os métodos contraceptivos masculinos – métodos muito menos procurados que os de uso feminino –, vinculando também sua utilização na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Outros aspectos a melhorar são o conhecimento, o acesso e a cobertura da anticoncepção de emergência (BENÍTEZ PÉREZ, 2014).

 

É importante destacar que a vigente Lei de Saúde Pública (1983) não aborda especificamente a questão da cobertura contraceptiva. Nesse sentido, a futura lei deverá incorporar o tema para estabelecer esse direito na legislação, bem como, a partir dela, criar os mecanismos para garantir a disponibilidade dos diferentes métodos contraceptivos e promover o seu uso (TORRES SANTANA, 2020b).

 

Outro desafio identificado é a persistência no imaginário popular de mitos, estereótipos e sexismo machista sobre questões de planejamento reprodutivo, uso de anticoncepcionais e saúde/direitos sexuais e reprodutivos em geral (BENÍTEZ PÉREZ, 2014) – questões que se manifestam de forma mais acentuada nos(as) adolescentes (MOLINA CINTRA, 2019). Estes aspectos continuam a ser assumidos erroneamente como “assuntos de mulher”, as quais são identificadas como as principais (e por vezes únicas) responsáveis pelo processo de tomada de decisão e pela utilização de métodos contraceptivos e de planejamento da reprodução (OFICINA NACIONAL DE ESTADÍSTICA E INFORMACIÓN, 2019; MOLINA CINTRA et al., 2020). “Essa responsabilidade não compartilhada afeta o comportamento das taxas de aborto que não conseguem estabelecer uma tendência sustentada de queda” (FLEITAS RUIZ, 2013, p. 197, tradução própria).

 

Nesse sentido, é imperativo envolver mais os homens na gestão da sua própria saúde sexual e reprodutiva e nas tomadas de decisão em conjunto com a(o) parceira(o) (GUERRERO BORREGO et al., 2018). Da mesma forma, é necessário aumentar o desenvolvimento de produtos de comunicação e de educação em saúde sexual e reprodutiva com uma abordagem de gênero e direitos (ÁLVAREZ SUÁREZ, 2015). Também é essencial melhorar o aconselhamento sobre questões de saúde sexual e reprodutiva nos diferentes níveis de ensino e nos serviços de saúde (GUERRERO BORREGO et al., 2018). Nesse sentido, um dos desafios mais importantes que a ilha enfrenta hoje, neste campo, é fortalecer a integralidade, eficácia e abrangência do Programa Nacional de Educação e Saúde Sexual (MOLINA CINTRA et al., 2020).

 

 Conclusões

 

As leis, programas e ações na esfera da saúde promovidas após o triunfo da revolução cubana estabeleceram os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos fundamentais (ÁLVAREZ SUÁREZ, 2015). Essas transformações também consagraram o direito à interrupção voluntária da gravidez, promoveram a ampliação do acesso a métodos contraceptivos e incorporaram a educação sexual ao processo educativo nos diferentes níveis de ensino. Também se avançou em matéria de direitos maternos, a partir da promoção do exercício de uma maternidade desejada, responsável e com diversas garantias – tanto do ponto de vista legal como das políticas públicas, através de um amplo e consistente programa materno-infantil.

 

Isso fez de Cuba um país pioneiro na região latino-americana na defesa, promoção e garantia dos direitos maternos, sexuais e reprodutivos das mulheres, contribuindo para a obtenção de resultados positivos em um conjunto de indicadores demográficos e na saúde das mulheres (ESQUENAZI BORREGO et al., 2021). Atualmente, Cuba apresenta resultados coincidentes com países de alto nível de desenvolvimento social (ESQUENAZI BORREGO, 2021). Isso também se aplica no caso dos indicadores da saúde sexual e reprodutiva.

 

Além destes avanços, também devem ser destacados os passos que vêm sendo dados em prol de uma maior emancipação sexual e reprodutiva das mulheres cubanas (CASTRO ESPÍN, 2020). Isso se concretiza em aspectos tais como: i) o progressivo desmantelamento do ideal de sexualidade exclusivamente associado à reprodução; ii) controle efetivo das mulheres sobre seus próprios corpos; iii) a descriminalização e institucionalização do aborto voluntário como prática legal, segura e gratuita; iv) maior acesso a métodos contraceptivos; v) desenvolvimento de programas em saúde e educação sexual e reprodutiva; e, por último, vi) a construção de uma visão de sociedade que, gradativamente, vem assumindo a esfera sexual e reprodutiva como parte da plenitude e diversidade humana (ÁLVAREZ SUÁREZ, 2015). No entanto, deve-se destacar que a conquista destes avanços não tem sido um processo linear ou sem ausências de contradições e/ou tensionamentos no interior da sociedade cubana – ainda marcada pela presença de relações patriarcais de gênero (ESQUENAZI BORREGO, 2021).

 

Nesse sentido, apesar de todos os avanços conquistados, também são identificados desafios relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas que gestam. Especificamente, no caso da interrupção voluntária da gravidez, destacou-se que é fundamental ir além da descriminalização, da institucionalização e da garantia de tal procedimento de forma legal, segura e gratuita. É imprescindível blindar esse direito por meio da criação de legislação específica, ou parte dela, que tenha um status jurídico superior às normativas vigentes, legislação que também deve ser concebida de forma mais integral. Isso implica incorporar aspectos relacionados a: i) prestação de serviços de saúde (e de cuidados) focados tanto na parte física quanto psicológica das mulheres e pessoas que gestam; ii) questões relacionadas aos métodos e procedimentos utilizados na terminação voluntária da gravidez; iii) incorporação de outros aspectos como o direito à não violência; entre outros. Todos eles são elementos que devem ser considerados na futura Lei de Saúde Pública, a ser promulgada ainda em 2023 – lembrando que são questões que transcendem a própria legislação e que devem ser incorporadas na prática dos(as) profissionais da saúde e na sociedade cubana em sentido mais geral.

Não se trata apenas de fortalecer o direito ao aborto voluntário e, paralelamente, melhorar os serviços e métodos associados a esse procedimento. Também é fundamental avançar na prevenção para evitar a gravidez não planejada ou desejada, principalmente entre as(os) adolescentes. Para isso, é necessário fortalecer a disponibilidade, tipologia e cobertura dos métodos contraceptivos, assim como melhorar a qualidade e eficácia da educação sexual e reprodutiva em todo o país.

 

Esses são desafios que exigem continuar avançando na abordagem que vem sendo desenvolvida, a qual tem priorizado a vida e a saúde integral das mulheres, mas que também demandam incorporar, desde uma perspectiva feminista, a noção de justiça reprodutiva. Isso exige que, associado ao fortalecimento da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, também se legisle e garanta efetivamente, por meio de políticas públicas, o direito à igualdade de gênero, não discriminação, não violência, autonomia reprodutiva, à informação, assim como a um maior bem-estar econômico e social das mulheres e pessoas que gestam.

 

Além dessas questões específicas, o maior desafio que se coloca é avançar não só em termos de legislações e políticas públicas, mas também em termos da subjetividade e de consciência social, para que as mulheres, e todos os(as) cubanos(as), possam exercer plenamente o direito de decidir sobre seus corpos, sobre sua reprodução, sexualidade e sobre uma maternidade/paternidade desejada e consciente. Trata-se de não perder de vista que um projeto de sociedade que visa ser alternativo à lógica do capital tem que garantir que todas as pessoas possam exercer sua sexualidade e reprodução de forma plena e emancipatória.

 

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Arelys ESQUENAZI BORREGO

Doutora em Política Social (2021) - Programa de Pós-graduação em Política Social (PPGPS) da Universidade Federal de Espírito Santo (UFES). Possui mestrado (2016) e graduação (2012) em Economia - Faculdade de Economia, Universidade da Havana. Desenvolveu-se como professora instrutora da Faculdade de Economia, Universidade da Havana (2012-2017). Forma parte da equipe de pesquisa de Política Social da Faculdade de Economia da Universidade da Havana. Participa de vários grupos de estudos do PPGPS: Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis (GPTP), Núcleo de Estudos em Movimentos Sociais (NEMPS) e do Grupo de Estudos Críticos do Desenvolvimento, todos registrados em CNPq. É investigadora em uma equipe de cooperação internacional sobre Os Sistemas de Proteção Social na América Latina, composto por pesquisadores do Brasil, Cuba e Chile. Participa também do projeto internacional de pesquisa titulado "Early Child Development" (Projeto Capes Print n 88887.311889/2018-00), junto a outros pesquisadores de Brasil, Cuba, África do Sul e UK.

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* Economista. Doutora em Política Social. Pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da Universidade Federal do Espírito Santo. (Ufes, Vitória, Brasil). Av. Fernando Ferrari, nº 514, Goiabeiras, Vitória (ES), CEP.: 29075-910. Bolsista FAPES. E-mail: arelyseb@gmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2022 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

 

[1] No caso do Brasil, o aborto previsto em lei contempla só três situações: em caso de estupro, em caso de risco de vida da mãe e em caso de anencefalia do feto – esta última incluída pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Não há, na legislação brasileira, previsão de aborto em caso de malformação do feto, à exceção da anencefalia.

[2] No caso das adolescentes, a interrupção voluntária da gravidez sempre deve ser realizada com a autorização do/a tutor/a legal e com o consentimento informado da pessoa.

[3] No ano 1972 criou-se o Grupo Nacional de Trabalho sobre Educação Sexual, que depois em 1988 se denominaria como Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX).

[4] Segundo Oliveira (2016, 2022), os conceitos de saúde reprodutiva, direito reprodutivo e justiça reprodutiva são termos relativamente recentes que têm como marco decisório para sua conceituação a Conferência de População e Desenvolvimento de Cairo (1994). Diferentemente dos dois primeiros, o conceito de justiça reprodutiva tenta ir além da visão individual de liberdades/direitos, assim como do modelo de prestação de serviços e de cuidados em saúde. Desse modo, privilegia-se a ênfase nas questões coletivas/sociais/estruturais tentando trazer para a análise as determinações do contexto histórico, econômico, social, político, jurídico, religioso etc. na efetivação das leis, direitos e políticas públicas em relação ao aborto; mas também tentando visibilizar/reconhecer as variadas condições de vida e subjetividades da diversidade de mulheres existentes. Portanto, a justiça reprodutiva pretende ir além do aspecto meramente reprodutivo, interpelando questões como a justiça social e a democracia. Nesse sentido, subscrevemos um enfoque da justiça reprodutiva que dá centralidade para as formas articuladas/integradas da opressão (gênero, sexualidade, raça, etnia, nacionalidade etc.) e da exploração (classe social) – desde a perspectiva do feminismo marxista da reprodução social (ARRUZZA; BHATTACHARYA, 2020). Consideramos que, mesmo sendo um conceito reivindicado para fortalecer as análises e lutas feministas dentro do capitalismo, também é uma chave analítica valiosa para pensar as experiências de transição ao socialismo e os desafios da emancipação humana.

[5] O anteprojeto de Lei de Saúde Pública, embora tenha sido apresentado aos/as deputados/as do parlamento cubano durante sessão conjunta das comissões de Saúde e Esportes e de Assuntos Constitucionais e Jurídicos da Assembleia Nacional do Poder Popular (ANPP), ainda não é um documento de acesso público. Segundo recentes declarações do titular do Ministério de Saúde Pública, o anteprojeto será divulgado entre janeiro e março de 2023 e, uma vez feitas diversas consultas especializadas, será levado à votação no pleno da ANPP (NODA ALONSO, 2022).

[6] Deve-se notar que em Cuba as mulheres não costumam escolher o método de interrupção voluntária da gravidez, sobretudo quando o tempo de gestação é mais avançado e a regulação menstrual já não é uma opção possível. Nesse caso, a escolha entre aborto farmacológico ou aborto cirúrgico é deixada a critério médico.

[7] As causas desse fenômeno podem ser variadas e complexas, razão pela qual os especialistas cubanos reconheceram a necessidade de estudos mais integrais, baseados em pesquisas de abrangência nacional e com foco nessas questões. É por isso que, em março de 2022, foi realizada em Cuba a terceira Enquete Nacional de Fertilidade (ENF-2022). No entanto, os resultados desta última enquete ainda não têm sido divulgados publicamente.