Saúde mental e relações de
camaradagem nos partidos políticos da esquerda radical
Mental health and relationships of comradeship in political parties of the radical left
Clara BARBOSA*
https://orcid.org/0000-0001-7134-3332
Resumo: Trata-se das considerações de uma pesquisa, feita com militantes de
Minas Gerais de três partidos políticos da Esquerda Radical Brasileira (Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU)), sobre como essas organizações
têm elaborado análises e ações políticas relativas à saúde mental, intra e
extrapartidariamente. Junto a isso, realizamos uma revisão bibliográfica de
produções de acepção marxista acerca da saúde mental e militância. Como
resultado, ressalta-se que a coletivização das expressões de sofrimento e o
fortalecimento de vínculos políticos humanizadores e emancipatórios (as
relações de camaradagem) nesses espaços auxiliam a minorar o sofrimento dos
sujeitos, compreendendo que a problemática possui raiz social.
Palavras-chave: Sofrimento Psíquico. Saúde Mental. Militância Revolucionária. Partidos Políticos.
Abstract: This
article addresses research conducted with 19 militants from Minas Gerais, and
three political parties from the Brazilian radical left; the Brazilian
Communist Party – PCB; the Liberty and Socialism Party – PSOL; and the
Socialist Unified Workers’ Party – PSTU. It considers how these organisations
have developed analyses and political actions related to mental health, both
intra and extra-party. Along with interviews, we conducted a bibliographic
review of output from the Marxist field dealing with mental health and
militancy. The results emphasise that the collectivisation of expressions of
suffering and the strengthening of humanising and emancipatory political bonds
(relationships between comrades) in these spaces help to alleviate the
suffering of individuals, as the common understanding is that the problem has a
social root.
Keywords: Psychic
Suffering. Mental Health. Revolutionary Militancy. Political Parties.
Submetido em: 23/1/2023. Revisto
em: 11/4/2023; 22/5/2023 Aceito
em: 22/5/2023.
INTRODUÇÃO
ste trabalho, fruto de uma dissertação de
mestrado (Santos, 2022), versa sobre como as organizações partidárias da
Esquerda Radical[1] tratam o
debate de saúde mental nas suas ações políticas cotidianas. De caráter exploratório
e qualitativo, a pesquisa, realizada entre os meses de
agosto e setembro de 2021, foi desenvolvida com 19 militantes do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Socialista
dos Trabalhadores Unificado (PSTU).
A
referida dissertação tinha como hipótese inicial que essas organizações não se
atentavam propriamente às discussões e intervenções relacionadas ao tema da
saúde mental. Traçamos os seguintes objetivos: 1) observar a presença da
discussão de saúde mental no programa político destas organizações; 2)
identificar se, nesses partidos políticos, há espaços para que o(a) militante
em sofrimento psíquico possa dialogar sobre sua condição; e 3) apontar quais
elementos podem proteger ou prejudicar a saúde mental destes(as) militantes nesses
partidos, a fim de traçar estratégias para intervir nestas situações.
Percebemos
a necessidade de realizar entrevistas com militantes desses três partidos,
visto que, para a construção do referencial, não fora encontrado material
bibliográfico suficiente que tratasse detalhadamente dessa temática. Com o levantamento
das referências para o trabalho, percebemos que, além das entrevistas e
anteriormente a elas, deveríamos nos atentar para selecionar produções que
faziam análises acerca da saúde mental e do sofrimento psíquico a partir de um
eixo crítico, a fim de evitar uma caracterização genérica que reforçasse um
pluralismo imprudente das experiências de sofrimento e de diagnósticos (algo
fortalecido na atualidade), trazendo maior objetividade para a discussão,
justamente por compreendermos a existência de uma indissociabilidade entre a conformação
da saúde mental e o modo de vida no sistema capitalista.
Como
optamos por uma metodologia envolvendo pesquisa com seres humanos, este
trabalho foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz (CEP-EPSJV/Fiocruz), sendo aprovado sob o
Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 48055221.9.0000.5241. Junto
ao projeto detalhado, foram submetidos dois documentos, que compõem parte dos
aspectos metodológicos: um questionário, elaborado no Formulário Google,
para coleta de informações gerais acerca dos(as) entrevistados(as), com a
finalidade de selecionar militantes de diferentes idades, gêneros, raça, etnia,
sexualidades, vínculos de trabalho, dentre outros aspectos, pois partíamos do
pressuposto de que permitiria ter um perfil heterogêneo de entrevistados(as) e,
possivelmente, de respostas.
Esse
formulário continha o Registro de Consentimento Livre e Esclarecido (RCLE),
cujo “aceite” era necessário tanto para responder o questionário completo quanto
para a realização posterior das entrevistas. Com isso, os(as) militantes
declaravam estar cientes das condicionalidades desta pesquisa – objetivos,
riscos e benefícios –, autorizando o uso de suas respostas na dissertação, bem
como concordavam em participar de entrevista individual posteriormente, com um
roteiro próprio ao objeto da pesquisa. Para participação, a pesquisadora
recorreu ao intermédio de dirigentes do PCB, PSOL e PSTU, via Termo de Anuência
Institucional (TAI), para que pudessem discutir o documento (nele, estavam
descritos os principais detalhes da proposta de pesquisa) nos organismos e,
após, se colocarem à disposição para responder o Formulário Google e
participar da entrevista virtual individual. Sendo assim, justificamos a existência
desse TAI justamente para garantir uma discussão acerca do projeto de pesquisa
entre os(as) militantes nos respectivos organismos dos partidos, evitando
acesso prévio da pesquisadora aos(às) possíveis entrevistados(as).
Foram
19 sujeitos[2], tendo-se
buscado selecionar uma quantidade proporcional de entrevistados(as) de cada um
dos partidos. Tal quantitativo foi definido tendo em vista que a análise dos
materiais demandava tempo – enxuto em um período de mestrado, que possui
duração de dois anos, sendo apenas um deles dedicado à escrita e à pesquisa
empírica –, podendo, em caso de uma extensa quantidade de participantes,
prejudicar a qualidade da análise dos dados coletados. Estipulamos os seguintes
critérios de inclusão para realização das entrevistas: 1) militantes organizados(as)
no PCB, PSOL ou PSTU; 2) militantes que atuassem politicamente no município
escolhido para pesquisa; 3) maiores de 18 anos e 4) militantes orgânicos(as)
há, pelo menos, um ano nos referidos partidos políticos. Decidimos também que
os(as) militantes não necessariamente precisavam ter vivenciado um processo de
sofrimento psíquico diagnosticado para participação. Dessa forma, poderíamos
observar as concepções de saúde e/ou saúde mental que possuíam mesmo sem essa
experiência, bem como não foi definido como critério a existência de qualquer
tipo de relação/envolvimento com o campo da saúde mental. Excluiu-se a
possibilidade de entrevista àqueles(as) militantes menores de 18 anos que não
se encontravam ativos(as) na militância de algum dos três partidos (casos de
afastamento, por exemplo) e organizados(as) há menos de um ano.
Ressaltamos que este estudo privilegiou as
produções acadêmicas do campo marxista em relação às entrevistas com militantes
desses três partidos, tendo em vista a limitação determinada para a produção
deste artigo e a necessidade de realizar um debate qualificado sobre a temática
em questão. Assim, este trabalho fez uso de produções acadêmicas cuja linha
teórica é orientada pelo método da crítica da economia política, elaborado nas
obras de Karl Marx (Marx; Engels, 2007; Marx,
2013), e recorremos a tal método tanto por uma melhor delimitação do
fenômeno do sofrimento psíquico, quanto pela discussão a respeito da formação
da subjetividade no capitalismo. Embora haja uma resistência histórica no campo
marxista ao debate de subjetividade, tratando-o de forma reducionista e/ou
mencionando-o brevemente (Silveira, 2002), partimos da concepção de que essa
teoria possui condições suficientes de instrumentalizar uma análise da
subjetividade e suas múltiplas determinações.
Ao tomarmos a tradição
marxista, é comum observar um desconhecimento e estranheza por parte de
pesquisadores(as) e militantes revolucionários(as) sobre a relação existente
entre subjetividade e marxismo. Historicamente, a subjetividade tem sido
discutida de forma reducionista ou tampouco mencionada no campo marxista –
pode-se hipotetizar que essa questão se relaciona com as deturpações que
ocorreram nas obras marxianas e marxistas pelo regime stalinista –, sendo
perpetuado que o marxismo não possui arcabouço suficiente e com condições de
instrumentalizar uma análise da subjetividade, como se existisse, tal como é
propagado no senso comum, “[...] um antagonismo entre o campo da singularidade
e o dos projetos coletivos [...]” (Silveira, 2002, p. 7).
Na realidade, essa
argumentação possui fragilidades: desde Marx e Engels, passando por outros
autores da tradição marxista – como Vigotski (1930), Leontiev (2004), Fanon
(2008) e Martín-Baró (2017), para citar alguns –, a discussão da subjetividade
e sua indissociabilidade do meio concreto foi explicitada e trabalhada como um
desafio teórico-prático para os(as) revolucionários(as). Compreender como o
capitalismo conforma, homogeneíza e disciplina os sujeitos é necessário para
que se possa construir, de fato, uma nova sociabilidade, sem classes sociais e
sem qualquer tipo de opressão, em que haja espaço para a formação e a consolidação
de subjetividades das mais diversas e humanamente livres, algo que já era atentado
por esses autores que citamos. A resistência à discussão da subjetividade no
interior do marxismo, presente até hoje, obstaculiza a realização de uma
problematização sobre a inserção e a localização dos sujeitos na sociedade
capitalista – algo indispensável, pois, ao estabelecermos isso, identificamos
os papéis e as funções colocados por esse tipo de formação social, entendendo
os limites e as possibilidades do desenvolvimento das diversas dimensões
humanas (Gomes, 2017)
Assim, a discussão aqui presente está subdividida em duas seções, fundamentalmente
articuladas em suas sínteses conclusivas. Apresentamos a nossa
compreensão de que as relações de camaradagem, desenvolvidas nos espaços de
militância, auxiliam a minorar o grau de sofrimento psíquico dos sujeitos.
Tomamos as elaborações de Jodi Dean (2021) a respeito da camaradagem, além de
paralelos que estabelecemos com os escritos de Keppler (2011; 2018), Boulos
(2016) e Minetto (2018), que buscaram compreender como a militância pode afetar
a saúde mental dos sujeitos tanto como elemento protetivo e/ou de sofrimento. Assim,
tentamos explicar como a organização política e a defesa de um objetivo comum
de luta coletiva podem auxiliar, em um sentido positivo, a minorar as
experiências mais gravosas de sofrimento psíquico, devido ao avanço no processo
de consciência dos sujeitos e à instrumentalização crítica dos questionamentos
à ordem do capital de forma ativa.
Reafirmamos que as organizações partidárias do campo da ER não estão
isentas de reproduzir a ideologia dominante. Mesmo diante dessa contradição,
defendemos que o partido político permanece sendo o mais efetivo instrumento de
luta, além de uma potencial ferramenta para a
superação do sofrimento psíquico massificado, por se caracterizar como um espaço
que conforma o pertencimento político desses sujeitos (Dean, 2021) e por direcionar
à raiz geradora de grande parte dos empecilhos que enfrentamos ao refletirmos
criticamente sobre o debate de saúde mental: a sociabilidade do capital.
1 A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS COLETIVOS DE PRODUÇÃO DA SAÚDE
Partimos do princípio de
que é importante dar contornos de objetividade ao fenômeno sofrimento,
colocando-o no chão social, pois ele e suas mais variadas formas – neste
trabalho, analisa-se mais detidamente a sua expressão de ordem psíquica[3] –
não possuem uma definição exata, havendo uma pluralidade de concepções, sendo o
sofrimento tratado e analisado de maneira diferente nos campos da Filosofia, da
Medicina, da Psicologia etc. É pertinente, portanto, dizer que o termo sofrimento
foi disputado historicamente. Essa inexatidão de uma definição mais concreta
para o fenômeno traz consequências. Assim, se podemos afirmar, hoje, que a luta histórica
pela defesa do uso do termo sofrimento psíquico, no interior do campo da
saúde mental, encabeçada por sua ala crítica ou em diálogo com esta, foi uma
vitória, pautando a sua determinação social e deslocando-o do âmbito
estritamente privado, em contraponto aos termos doença mental e/ou transtorno
mental (que carregavam conotações biologicistas e organicistas) (Furtuoso;
Costa, 2021), há espaço, também, em contrapartida, para uma banalização e um
pluralismo imprudente do sofrimento (em termos de patologização), que trata,
inclusive, elementos antes comuns e cotidianos da vida em sociedade e dos sujeitos
como situações patológicas e adoecidas que necessitam de uma
intervenção profissional (Gomes, 2017).
Esse deslocamento e
reforço da esfera individual-privatista dialogam com a própria noção de indivíduo,
que é forjada pela sociabilidade do capital, como um ente que possui um “[...] encerramento
em si mesmo da personalidade humana [...]” (Pachukanis, 2017, p.
122, grifo nosso), de forma tal que mistifique a confirmação de que esse
sujeito está inserido e é diretamente influenciado pela comunidade e sua vida
social, mesmo que não seja perceptível inicialmente. Isso objetiva garantir que
os sujeitos não se compreendam ou se reconheçam enquanto seres sociais, fruto
não só de suas características biológicas e fisiológicas, mas que se produzem,
se constroem e transcendem seus limites naturais a partir das leis
sócio-históricas (Leontiev, 2004).
Sendo assim, em
oposição aos ditames da Organização Mundial de Saúde (OMS) e demais
instituições vinculadas ao projeto dominante de saúde, neste trabalho,
utilizamos a definição de saúde mental elaborada por Ignacio Martín-Baró (2017),
psicólogo salvadorenho e militante revolucionário, que salienta que a saúde
mental deve ser tomada não como um “[...] movimento de dentro para fora, mas de
fora para dentro; não como encarnação do funcionamento individual interno, mas
como a materialização, na pessoa ou no grupo, do caráter humanizador ou
alienante de uma estrutura de relações históricas” (Martín-Baró, 2017, p. 251).
Em suma: a saúde expressará as condições objetivas de vida dos sujeitos numa
certa sociedade e como esse processo é subjetivado, singularizado por esses
sujeitos.
Estabelecendo diálogo
com o método da crítica da economia política, Martín-Baró (2017, p. 29, colchetes
nossos) também ressalta que a “[...] distribuição da saúde mental está
vinculada com a distribuição da riqueza produzida no país [e em nível
mundial]”, colocando que a saúde mental e, consequentemente, o sofrimento
psíquico, são determinados pela forma como os sujeitos produzem e reproduzem
sua vida em uma sociabilidade particular. Detalhando essa análise do autor, Costa
e Mendes (2021a) acrescentam que, no sistema capitalista, essa distribuição da
riqueza socialmente produzida é fundamentada pela expropriação massiva de um
contingente significativo da humanidade, o que demarca a posição dos sujeitos
perante essa sociabilidade: esses despossuídos passarão a vender a sua força de
trabalho, a fim de garantirem sua sobrevivência e necessidades básicas (Marx,
2013).
Essa posição social –
sua condição de classe – será consubstanciada, em um “[...] todo coeso de
exploração e opressão das maiorias populares [...]” (Costa; Mendes, 2021a, p.
220), pela raça, etnia, gênero, sexualidade desses sujeitos. Ou seja, esses
sujeitos, oriundos de uma classe social, são concretos e multifacetados: têm
nome, história e características que necessitam ser compreendidos para que seja
possível analisar a forma como sua saúde mental se constrói, como expressam seu
sofrimento psíquico para, assim, podermos qualificá-los.
Na
realidade, saúde mental não é exclusividade do campo psi, mesmo que, num marco
de divisão do trabalho, ela seja retirada do todo que a constitui, sendo alvo
de disciplinas e profissões particularizadas. Por exemplo, um economista e suas
propostas de contrarreforma neoliberais, que venalizam ainda mais as condições
de vida das maiorias populares, age, mesmo sem saber, sobre as saúdes mentais
destas; provoca uma precarização objetivo-subjetiva. O preço do salário-mínimo
e do gás de cozinha, o desemprego, a pobreza, entre tantos outros exemplos, em
suas múltiplas determinações de classe, raça, etnia, gênero etc., são problemas
também de saúde mental, pois impactam na forma como vivemos e, portanto, como
nos sentimos [...]. Pensar que a saúde mental é ‘tratada’ nos moldes
tradicionais da psicologia, psiquiatria e psicanálise somente nos diz das
incoerentes e descaracterizantes compreensões e práticas hegemônicas sobre a
saúde mental. Isso não significa que economistas devam atuar como psicólogos,
mas que devem ter consciência das consequências concretas de suas ações. Do
mesmo modo para os trabalhadores do campo psi, aliado ao fato de que devem
buscar conhecimentos de outros complexos do saber-fazer. Não é possível separar
saúde mental de nossa ordem social (Martín-Baró, 1984/2017a); não se trata de
saúde mental num vazio histórico, como algo abstrato, uma suposta essência
humana igualmente idealizada e estática (Costa; Mendes, 2021a, p. 221).
O método marxiano parte do pressuposto de que, para compreensão da realidade,
é necessário estudar os sujeitos reais
e suas condições objetivas de vida (Marx; Engels, 2007). É na produção
dos meios de vida que se localiza a base
para o processo de formação da consciência dos homens e mulheres: inicia-se,
pois, com a satisfação de necessidades e o uso dos recursos para satisfazê-las,
levando à produção de novas necessidades, que se sofisticam e passam a ser,
também, básicas (Marx; Engels, 2007). Nesse ínterim, esses sujeitos se tornam
humanos. A consciência seria a representação mental (subjetiva) de uma
realidade concreta (objetiva) que se interioriza, mediada por vínculos
próximos. Essa internalização do mundo externo ocorre sob a forma de valores,
padrões, normas de conduta e ideias, a partir das relações travadas no seio
familiar – nossa introdução às relações sociais – para, em seguida,
interagirmos com o mundo exterior (nas escolas; no trabalho; nas igrejas;
organizações políticas etc.) (Iasi, 2011).
Logo, a dimensão subjetiva, a vida concreta e a formação de consciência
são indissociáveis, sociais e passíveis de modificações. Mas, numa sociedade
como a do capital, essas questões emergem como naturais e eternas, propiciando
um terreno fértil para a ideologia que oculta, inverte e obscurece o real (Marx;
Engels, 2007) – por conta da cisão de classes, que possui como pilares o
estranhamento, a alienação e a reificação das relações travadas socialmente. A
noção de indivíduo é moldada pelo capitalismo como um ente segregado da
comunidade e o único responsável por sua existência, para que este não se
compreenda como ser social e, sim, de uma forma que mistifique a confirmação de
que esse indivíduo está inserido e é diretamente influenciado por seu
entorno, mesmo que não seja perceptível inicialmente.
O princípio de realidade desses indivíduos, além de ser
considerado como algo dado, torna a experiência singular como critério
exclusivo da legitimidade e veracidade, inviabilizando um tratamento
totalizante do real. Logo, as alternativas colocadas pela ordem vigente para as
problemáticas advindas de suas bases materiais são individualistas e
individualizantes – consequentemente, a forma de lidar com as expressões do
sofrimento psíquico engendrado socialmente está nessa seara. A perspectiva
individual de resposta ao sofrimento psíquico parte dessa noção de cidadão
atomizado do meio social, que deve dar conta plena e singularmente das adversidades
da vida, que, na realidade, são frutos da plena ação da sociabilidade do
capital (Safatle, 2021).
A reorganização da
dinâmica sistêmica, decorrida com a ofensiva neoliberal da década de 1970 (Antunes,
2010), visando manter a acumulação de lucro em determinados padrões, dentre os
diversos rebatimentos nas condições de vida dos(as) trabalhadores(as),
provocou, também, a fragmentação intraclasse. Temos os(as) trabalhadores(as)
inseridos(as) e submetidos(as) aos mais diversos vínculos empregatícios:
trabalhadores(as) de carteira assinada, terceirizados(as), em regime parcial,
que trabalham em domicílio, informais, desempregados(as), autônomos(as),
trabalhadores(as) rurais, dentre outros. Juntamente com isso, como descrito por
Iasi (2017) e Neves (2020), a centralidade do pertencimento de classe é
substituída por uma miríade de identidades pulverizadas que não só visam ofuscar
a posição de classe dos sujeitos, interferindo negativamente na formação de
consciência, como obscurecem o fato de que a sociedade em que vivemos permanece
capitalista, portanto, uma sociedade de classes, fundamentada na exploração, na
opressão e no fetichismo da mercadoria.
Essa hifenização da
classe coloca empecilhos para a luta dos(as) trabalhadores(as) – ou seja, um
reconhecimento das experiências similares, vivenciadas enquanto classe –,
tratando a classe social como mais uma dentre diversas identidades do sujeito (Antunes,
2010). Não só isso: os vínculos trabalhistas frágeis e as incertezas acerca do
futuro trazem receios e inseguranças reais para a tomada de um posicionamento
contrário ao que está em vigor, além de estimular a concorrência interna à
classe, reforçada pelo sistema capitalista, como forma de potencializar a
fragmentação. O aprofundamento da fragmentação intraclasse, as modificações nas
relações de trabalho, marcadas pelo desemprego estrutural e por uma
precarização que extrapola o espaço sócio-ocupacional, capilarizando-se
socialmente, consolidam um meio tensionado e propício para o aprofundamento do
sofrimento gerado pelo sistema e intrínseco às relações sociais estranhadas (Machado; Giongo; Mendes, 2016).
Em paralelo a essa afirmação,
acrescentamos que a medicalização social e a lógica de psicopatologização da
vida são desdobramentos da decadência ideológica burguesa deste momento
histórico, evidenciando a falência das relações sociais vigentes e a construção
de respostas parciais e limitadas da burguesia para enfrentamento da crise em
curso, deslocando-as do contexto político-econômico. Para legitimação dessas
táticas (medicalização e psicopatologização), faz-se necessário, por parte da
classe dominante: 1) reafirmar a perda da centralidade da classe, defendendo a
existência estrita de uma multiplicidade de identidades pulverizadas, que não
podem compor uma unitotalidade (Neves, 2020), e 2) patologizar e despolitizar
os conflitos sociais (Safatle, 2021).
Além da medicalização e
psicopatologização do social, um outro aspecto que ressaltamos foi o
deslocamento das lutas políticas como questões de responsabilidade
exclusivamente individual, tratando as reivindicações de cunho político-social como
uma problemática privativa, que, como dito anteriormente, faz parte da
ferramenta de despolitização do caráter social dos conflitos, expressos
subjetiva e objetivamente (Safatle, 2021).
Desse modo, alguns
setores da classe dominante passam a engendrar esses métodos de despolitização
e empresariamento para efetivar o enquadramento dos(as) trabalhadores(as) à
ordem vigente de duas formas diferentes, utilizando, estrategicamente,
instituições político-econômicas burguesas para legitimar seu arcabouço ideológico
e material, tais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e a OMS (Lima, 2014). Assim, de um lado, é reforçado – tanto retórica
quanto concretamente – que, caso o(a) trabalhador(a) venha a apresentar um
quadro intenso de sofrimento proveniente das novas configurações relacionais, a
culpa de seu sofrimento é exclusivamente dele(a). Mais: esse sofrimento, bem
possivelmente, nem será reconhecido, pois, como é hegemonicamente disseminado
pelo processo de neoliberalização, as adversidades se capilarizam somente
quando os sujeitos não se modelaram a “[...] uma adaptação positiva para
contextos cada vez mais adversos” (Pronko, 2019, p. 167). Por outro lado, se o
sofrimento é considerado legítimo, é transferido para o âmbito da intervenção
biomédica, em que há uma gama de medicamentos disponíveis, diversos critérios
diagnósticos para aspectos da vida social e uma flexibilização das
classificações de doenças.
Destaca-se que a via
individualizante de refletir/intervir na saúde mental é insustentável do ponto
de vista de superar o aguçamento do sofrimento psíquico e a estrutura social
que o gera e o aprofunda, mas sustenta, em alguma medida, a manutenção dessa
sociabilidade. Partimos da perspectiva da necessidade de coletivizar tal sofrimento
comunitariamente, tratando-o, como colocado por Fanon e Geronimi (2020/1959),
como uma patologia da liberdade: um desdobramento, denunciativo e/ou
demandante de cuidado, da ausência de liberdade social, em que as
características reificadas vão operar. Assim, o alvo de uma tratativa eficaz da
questão, no sentido de superá-la, é a sociedade (Martín-Baró, 2017), com a
transformação de seus pilares pela via coletiva.
Em acréscimo a essas considerações
de Fanon e Geronimi (2020/1959), Machado, Giongo e Mendes (2016) elaboraram que
o “sofrimento social” do qual, concordamos, o sofrimento psíquico é uma
resultante, constitui-se pela perda da confiabilidade no potencial de
transformação da classe; por uma precarização subjetiva e um carecimento da radicalidade
“de futuridade intrínseca à ordem do capital” (Machado; Giongo;
Mendes, 2016, p. 232). Tais apontamentos são válidos para a militância também.
Em se tratando da ER, essa crise de futuridade emerge, segundo Fernandes
(2019), como uma espécie de melancolia[4]
que, conforme compreendemos, soma-se ao fatalismo do conjunto da classe
trabalhadora em relação às possibilidades de projetos societários alternativos.
A despeito de haver organizações e lutas em torno disso, ainda não se encontram
fortalecidas o suficiente a ponto de dirigirem um processo mais amplo de
radicalidade.
Machado, Giongo
e Mendes (2016) trazem que o domínio
do desalento, da desconfiança e da angústia fundamentam um “[...] impedimento
da unidade política do proletariado como classe social capaz de fazer história [...]”
(Machado; Giongo; Mendes, 2016, p. 232), e isso “[...]
divide e impera hoje, assim como as condições da proletariedade universal e o
lema da ordem sociometabólica do capital” (Machado; Giongo;
Mendes, 2016, p. 232). O atual modo de existência neoliberal do capitalismo
agrava essa desconstrução da concepção de coletividade, fortalece o culto de si
e da valorização do sucesso individual, e o movimento político revolucionário
não se consolida imune a esses valores e princípios.
A defesa de uma abordagem coletiva
do sofrimento não significa, portanto, que o partido político que reivindica
tal abordagem (quando a reivindica) já a realiza dentro de suas estruturas e,
ainda, sem problemas. Mais: é um equívoco responsabilizar a militância e a
organização partidária exclusivamente
pelas problemáticas que advêm de uma origem social, bem como esperar delas a
superação desse sofrimento – algo que é distinto da cobrança, por parte dos(as)
militantes, de uma postura da organização diante desse desafio e da necessidade
do debate.
Enfatizamos, então, quatro razões[5]
que são essenciais para o desenvolvimento da seção seguinte:
A)
Cabe
dimensionar o desafio e o papel das organizações de dar direção e o teor do
debate da saúde mental tomando a tradição teórica marxista, atualizando-a aos
contextos de atuação militante (a depender da localidade no país, da estrutura
de atuação e dos sujeitos a quem se dirige, por exemplo), compreendendo sua
complexidade e incorporando-a em seu projeto (Minetto, 2018).
B)
Ressalta-se
que não será por decreto que os partidos vão extinguir o sofrimento psíquico,
nem o colocarão com a relevância que se deve. Atentar para isso não é o mesmo
que isentar o partido daquilo que é de sua alçada, mas é identificar as suas
frentes de atuação e enfatizar que “[...] o
nosso maior problema é o capitalismo, não a militância” (Keppler, 2018, não
paginado, grifos nossos);
C)
Destaca-se
que o sofrimento é ineliminável de qualquer modo de vida. Entretanto, a sua
configuração no capitalismo possui gravidade, pois, além da sua conformação alienada
e estranhada, o sofrimento se engendra em meio a relações sociais que
coisificam os seres humanos. Ao se sofisticar, torna-se um motor subjetivo da
vida e fortalece, dentre outras características, o tensionamento e o
encapsulamento do sujeito em si, tônica do processo de neoliberalização
necessária para a continuidade da racionalidade econômica. A resposta a essa
fonte estrutural de sofrimento deve caminhar conjuntamente à construção de
espaços coletivos de produção de saúde (Maia Neto, 2018), especialmente na
militância partidária, visando produzir um bem-estar alinhado aos princípios
revolucionários, em contraponto a uma sociedade que se fundamenta em gerir o sofrimento
psíquico como mecanismo de aumento de produtividade (Safatle, 2021). A externalização
do sofrimento será compatível com a trajetória dos sujeitos que o vivenciam,
seus vínculos, identidades e como construíram suas vidas até o momento. Embora
a origem social desse fenômeno seja a mesma, as expressões são distintas e
diversas. Limitar essa análise ao caráter estrutural da sociedade,
desconsiderando a dimensão subjetiva desse processo (nisso, incluem-se não só
os sujeitos, mas o interior das organizações), torna impossível disputar as
consciências dos(as) trabalhadores(as) em direção à luta política e dar sentido
estratégico a esse sofrimento (Maia Neto, 2018).
D) Salienta-se que essa reelaboração coletiva precisa considerar a
diversidade de subjetividades existentes e possíveis, que historicamente foram
subjugadas às demandas sistêmicas não só na ordem do capital, mas também nas
experiências socialistas. Esse elemento, elaborado por Vigotski (1930) em seu
texto A Transformação Socialista do
Homem, permite-nos compreender (e afirmar) que o cerne de uma transformação
social tem como espinha dorsal pensar os sujeitos da velha ordem a ser
destruída, como concretizarão uma nova sociabilidade e subjetividade (essa
última estando em oposição ao modo de vida reificado que levam os primeiros).
O debate de saúde mental na militância busca pensar, apresentar e
construir alternativas criativas e concretas ainda nos marcos da ordem, no
âmbito da emancipação política, sem se limitar a esta, demonstrando como essa
dimensão é insuficiente para a resolutividade da questão (Keppler, 2018; Maia Neto,
2018). O objetivo, portanto, deve ser alinhar essas propostas ao fim último da
transformação social, de forma a dialogar com os projetos de vida dos sujeitos,
seus anseios e desejos não cumpridos pelo capitalismo, canalizando-os em um
sentido coletivo.
2 AS RELAÇÕES DE CAMARADAGEM E A SUPERAÇÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO
A militância engendra um corpo comunitário que tem potencial de romper
com a vivência de um sofrimento psíquico individualizante e busca “[...] transformar
a dor em vínculos éticos mais fortes e maduros” (Maia Neto, 2018, p. 16). Em
sentido amplo, instrumentaliza os sujeitos, organizados voluntariamente nos
partidos, a serviço de um objetivo político comum (Dean, 2021). Tal objetivo
compreende que a luta coletiva rumo ao comunismo parte de uma necessidade que
extrapola uma barganha pela sobrevivência (Keppler, 2018), estando ancorada em
uma concepção societária que exige além dos mínimos sociais necessários.
Compreender os propósitos organizativos do partido nas lutas sociais e
suas pautas construídas por homens e mulheres do mundo de hoje – com
características e traços determinados pelo capitalismo, possuindo limitações –
é buscar concebê-lo, também, como um espaço de produção de saúde, de
reconhecimento da diversidade de subjetividades que são assoladas pelo sistema
e que se dedicam à tarefa de transformação da realidade material (Maia Neto,
2018). Para que isso seja possível, Dean (2021) argumenta que outras formas de
vínculos precisam ser fortalecidas na militância, tanto para renovar o
compromisso ético e político compartilhado quanto pela exigência de consolidar
relações humanas de caráter igualitário, opostas às vigentes. Assim, a autora, ressaltando
as relações de camaradagem, aponta a necessidade de sua existência na ação
política do partido comunista e como tal ação exige reconhecimento, sem
opressão e solidário, entre os setores proletarizados e marginalizados no modo
de produção capitalista.
Dean (2021) assevera que a figura do camarada é simultaneamente negativa
e positiva: ao conformar esse pertencimento político em prol de um fim comum (a
supressão do capitalismo), distancia-se daqueles(as) que não compartilham do
mesmo horizonte e demarca-se um posicionamento com quem se encontra na mesma
condição, depositando uma expectativa ativa: “Ao lutarmos juntos por um mundo
livre de exploração, opressão e intolerância, precisamos poder confiar uns nos
outros e contar uns com os outros. A palavra ‘camarada’ dá nome a essa relação”
(Dean, 2021, p. 26-27).
Em contraposição às características marcantes da sociabilidade do
capital ressaltadas por Keppler (2018) – individualismo, ego, vaidade,
competitividade, opressão e, acrescenta-se, exploração –, Dean (2021) aponta
qualidades que devem compor o/a camarada, contrárias às citadas logo
acima: disciplina, alegria, coragem e entusiasmo. Essas qualidades não são
engessadas, nem padronizam o(a) militante – pelo contrário, são prerrogativas
que tornam a camaradagem um vínculo genérico,
ou seja, não definido por gênero, raça ou fronteiras nacionais, mas pela
existência e consolidação de relações de igualdade, fidelidade a uma verdade
histórica e solidariedade as quais vão além, por exemplo, de afetos familiares
ou da amizade.
‘Camarada’ apresenta uma promessa equalizadora
e, quando essa promessa é cumprida, deparamos com certos apegos que, embora
indesejados, permanecem em nós: apegos a hierarquia, prestígio e inadequação. Aceitar a igualdade requer coragem. [...]
Dirigir-se a uma pessoa como ‘camarada’ a faz lembrar que se espera algo dela.
Disciplina e alegria são duas faces da mesma moeda, dois aspectos
da camaradagem como forma de pertencimento político. Como forma de
tratamento, figura de relação política e portador de expectativas, ‘camarada’
rompe as identificações hierárquicas de sexo, raça e classe da sociedade
capitalista. Insiste no caráter igualador da condição comum daqueles que se
encontram do mesmo lado de uma luta política e transforma esta condição comum igualadora
em algo capaz de produzir novos modos de trabalho e pertencimento. Assim, camarada é um portador de anseios
utópicos, conforme teorizou Kathi Weeks (Dean, 2021, p. 30-31, grifos
nossos).
Dessa forma, o(a) camarada seria um contraponto político à
pulverização de particularidades que se constituem como obstáculos para o
avanço da consciência de classe. O objetivo do projeto político baseado nas
relações de camaradagem é evidenciar a classe social como o denominador comum
entre as diversas identidades possíveis (sem deslegitimá-las), apontando-as como
um elemento favorável aos(às) trabalhadores(as) (Neves, 2020), por demonstrar
as múltiplas formas de existência que o capitalismo se empenha em invalidar
pela lógica de mercado.
Nesse sentido, pode-se afirmar que os vínculos de solidariedade,
pertencimento e a ampliação das relações possuem ecos nas conceituações de
disciplina, alegria e entusiasmo presentes na figura do(a) camarada. Primeiro,
porque “[...] ninguém é camarada sozinho [...]” (Dean, 2021, p. 130), isto é,
essa relação e sua veracidade se concretizam no trabalho político prático,
necessariamente coletivo, rumo a um desejo de tornar vitoriosa uma sociedade
sem classes, sendo a disciplina “[...] sua lei e sua linguagem” (Dean, 2021, p.
130). Somando-se a isso, exigem-se solidariedade
e fidelidade a uma verdade política, como pontuado por Dean (2021). Essa
disciplina reforça o pertencimento e
a compreensão das limitações que cada sujeito possui, o que significa visualizar
os erros, aprender com eles e modificá-los, reconhecer que existirão outros
dentro do coletivo que conseguem realizar atividades que não dominamos – e
vamos admirá-los por isso –, bem como desenvolvemos a capacidade de entender
nossas qualidades e exercitamos a compassividade com os limites dos outros (Dean,
2021).
A ampliação da rede de relações (Boulos, 2016) desdobra-se nos atributos
de alegria e entusiasmo tratados por Dean (2021). A alegria é originária da
intensificação do senso de coletividade. Já o entusiasmo advém do
dimensionamento, por parte dos sujeitos, das vulnerabilidades e fragilidades de
cada um (como pontuamos acima), sem que isso se torne um sinônimo de
culpabilização e responsabilização; ao contrário, transforma-se em um motor
para a construção de um trabalho - antes impossível de ser realizado sozinho – feito
de forma coletiva (Dean, 2021).
A coragem estabelece um paralelo com as demais características, uma vez
que se constitui como a capacidade de autocrítica, associada pelos bolcheviques
à firmeza, resolutividade e potencial de resistência frente aos empecilhos da
realidade (Dean, 2021). Mesmo não tendo sido elencadas nos demais trabalhos
analisados, posturas como essa foram visíveis e gerais nas entrevistas: houve,
em sua maioria, balanços negativos a respeito da atuação das organizações,
reconhecendo que os partidos não se atentam centralmente para a temática da
saúde mental. Além disso, apresentaram que, em alguns momentos, as organizações
já mostraram resistência ao assunto, cometendo equívocos e reproduzindo
posicionamentos contraditórios, o que demanda formação e trabalho políticos. Entretanto,
mesmo com essas pontuações, não deixaram de ressaltar os avanços ao longo dos
anos, sendo o fortalecimento das relações de camaradagem destacado como propulsor
disso:
Em relação ao trato à saúde mental no partido,
eu vejo isso muito nas relações de camaradagem, que não é uma palavra vazia
para gente, sabe? Eu vi também o desenvolvimento de muitos [...] no sentido de
desenvolver a sua própria paciência revolucionária. Porque a gente tem um monte
de jargão, um monte de tema, que as pessoas vão reproduzindo e, às vezes, não
se atentam ao seu significado e a importância delas no cotidiano. Então,
infelizmente, na marra, as pessoas foram desenvolvendo. Isso eu avalio como
positivo, apesar de toda barbárie. Eu vejo um avanço do partido nesta
compreensão de ter paciência com as limitações das pessoas, porque não que elas
queiram, mas porque a gente vive na sociedade que a gente tanto critica e quer
superar, [...] então, vi este desenvolvimento, de saber escutar, de saber se
colocar, e também de entender como tem uns camaradas adoecidos, a gente vê
muitos camaradas com ansiedade lá no alto, a questão da própria depressão, de
tentativas de autoextermínio, enfim, estas questões que têm sido cada vez mais
frequentes, a gente vê também que o coletivo tem amadurecido neste sentido. Infelizmente,
da pior forma possível [risos], mas tem amadurecido e avançado, e eu fico realmente
muito feliz e contente de ver que nestes últimos 4-5 anos que estou no partido,
de ver este amadurecimento e este desenvolvimento, porque se a gente não se
colocasse neste lugar de construir os movimentos sociais, a gente estaria
reproduzindo e deslegitimando processos de adoecimento [...] (ENTREVISTADO A5)
Existe, também, a possibilidade de cenário estudada por Keppler (2011) e
Minetto (2018), em que a militância se torna um ambiente suscetível para o
sofrimento. Embora tenhamos identificado um panorama distinto das considerações
das autoras, vale ressaltar que as pontuações realizadas por elas não estão
descontextualizadas, pois foram questões elencadas pelos(as) militantes nas
diferentes pesquisas encontradas numa determinada conjuntura, em que o debate
de saúde mental era ainda mais irrisório em relação à atualidade. São
destacados como potencializadores de sofrimento, por exemplo, o tarefismo da militância – muitas vezes, esse acúmulo
de tarefas é visto como sem sentido diante do objetivo final da
organização –, o excesso de reuniões, os conflitos relacionais dentro e fora do
espaço militante (família, amigos(as) e colegas de trabalho) e o confronto
entre os desejos pessoais e as vontades coletivas.
Tomando as produções de Boulos (2016) e Dean (2021), pode-se inferir que
os impasses identificados na pesquisa de Keppler (2011) se exacerbaram
justamente por conta das relações de camaradagem, de não compreenderem, à
risca, a necessidade da coletivização das atividades e responsabilidades
políticas, bem como podem não ter exercitado, de maneira sólida, a democracia
interna (Keppler, 2018).
Isso exemplifica alguma das fragilidades na solidariedade desses espaços
e, também, da concepção de camarada, a tal ponto que, na pesquisa de
Minetto (2018), o sofrimento psíquico de militantes já passa a ser tratado como
um desafio político para as organizações revolucionárias. Uma vez que os
depoimentos e as falas dos(as) entrevistados(as) são perpassados pela lógica
vigente, é comum que haja a atribuição de uma responsabilidade exclusiva aos
partidos ou à militância acerca dessas causalidades, ainda que não
explicitamente. É válido colocar, novamente, que tal compreensão não é
semelhante a desresponsabilizar por completo as organizações, dado que há um
papel a ser desempenhado por elas no assunto.
Keppler (2018) pontua, em outro momento, um revés dessa postura de
culpabilização dos partidos: se depositamos a culpa do nosso sofrimento
psíquico na militância de caráter revolucionário, a qual vislumbramos ser a
principal saída para resolução de uma fonte significativa dos nossos problemas
(o capitalismo), resta como alternativa cuidar individualmente de si,
renunciando disputar formas de enfrentamento desses impasses presentes na
construção da luta política, sem enfatizar que o cerne do que nos esmaga é o
sistema social. Isso menospreza uma das primordialidades do instrumental
teórico marxista: a compreensão da tarefa histórica de destruir toda forma de
alienação, libertando o conjunto da humanidade dessa cristalização subjetiva e
objetiva para a construção de um novo modo de vida, balizado na emancipação
humana.
Assim, um mesmo ambiente que dá abertura para a construção de respostas
que produzam saúde por uma via libertadora pode construir relações nocivas
entre os sujeitos, processo que converge com a formação da consciência de
classe. A construção de um elo político baseado na camaradagem é a materialização
do estágio mais avançado da consciência, o que não significa que esteja imune a
recuos: ao mesmo tempo que esse tipo de relação é o maior exemplo desses saltos
da consciência, a reprodução de uma lógica empresarial e de opressões na
militância pode acarretar tais recuos.
Extrapolando o caso dos(as)
militantes, cabe relembrar que a massificação do sofrimento psíquico é uma
condição que tem perpassado os sujeitos da classe trabalhadora como um todo,
sujeitos esses que, ao avançarem em seu processo de consciência, podem vir a buscar
uma organização política a fim de se instrumentalizar para a luta. Suas
expressões de sofrimento passarão a ser contextualizadas de acordo com o
cenário político e o espaço militante e, por isso, não devem ser uma
preocupação secundarizada dos partidos, dado que estarão presentes ao se
considerar a divisão de tarefas, o cotidiano militante, as reuniões etc.,
influenciando o processo de luta e a concretização do conjunto da vida social.
Mesmo que não seja uma tática
estruturada e planejada nesse sentido, há setores da burguesia que vêm
respondendo à situação de sofrimento psíquico aguda da classe trabalhadora e
suas frações de diferentes formas – mais uma razão para os partidos políticos
darem especial atenção à discussão. Anteriormente ao cenário de sofrimento
atual, essa questão diz respeito à compreensão daquilo que se encontra no campo
subjetivo, sua relação indissociável com a realidade objetiva, e como a ordem
do capital não consegue sanar as promessas que oferta aos sujeitos, nem
responde plenamente a outros desejos e anseios da classe (Maia Neto, 2018)
que não estão na esfera da mera sobrevivência ou no âmbito jurídico-político.
Essas demandas, de caráter humanitário, integram a noção de comunismo como “[...] condição de
possibilidade da própria história” (Dean, 2021, p. 193).
Dar ênfase apenas aos entraves do
nosso instrumento de luta, ao invés de somar à crítica as tentativas de
superação desse cenário (intra e extrapartidário), demonstra que o problema se
localiza não na ferramenta em si, mas em como estamos travando relações no seu
interior, considerando estritamente as exigências que a realidade coloca,
desconectadas dos limites e capacidades de cada militante – e dos anseios e
aspirações da classe no geral. Portanto, a divisão de tarefas, o planejamento
de táticas e a reorganização das frentes de atuação devem estar baseados na
relação de confiança e solidariedade entre pares, que se reflete na figura do
camarada (Dean, 2021), com um esforço cotidiano dos(as) militantes para se
aproximarem daquilo que defendem e aspiram (Keppler, 2018), ao se vincularem a
um projeto coletivo sensível às necessidades objetivas e subjetivas dos(as)
militantes e dos(as) trabalhadores(as).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste trabalho foi de
apresentar reflexões sucintas acerca da indissociabilidade entre saúde mental e
militância radical, compreendendo que o sofrimento psíquico é oriundo das
relações sociais, sendo particular em cada forma de sociedade. Como a que
vivemos é constituída pela fetichização, desumanização dos sujeitos e de seu
modo de vida, essas características demarcam a manifestação desse sofrimento e,
consequentemente, camuflam a fonte geradora desse desgaste (Furtuoso; Costa,
2021).
Conforme apresentado na introdução,
este estudo tomou como base não só entrevistas com 19 militantes do PCB, PSOL e
PSTU, como produções acadêmicas cuja linha teórica é orientada pelo método da
crítica da economia política. Destaca-se que, levando em consideração o limite
exigido para a elaboração do presente artigo, não apresentamos uma diversidade
de falas dos(as) entrevistados(as), optando por trazer sínteses e assertivas
daquilo que identificamos junto aos sujeitos da pesquisa, privilegiando, assim,
o diálogo com autores(as)
da tradição marxista que realizaram/realizam discussões dentro da temática. Por
isso, cabe salientar que esta produção científica é sintética, possui limites e
provém de uma dissertação. A análise crítica aprofundada das falas trazidas
pelos(as) militantes, cotejando com as referências bibliográficas, encontra-se
na pesquisa de mestrado da autora (Santos, 2022).
Observamos que o cenário atual de
precarização da vida, resultante de uma crise sistêmica, ocasiona uma série de
consequências para os(as) trabalhadores(as), que vão desde o desemprego
estrutural (Machado; Giongo; Mendes, 2016) a uma fatalização subjetiva
manifesta em quadros de sofrimento psíquico grave (Costa; Mendes, 2021b), esse
último sendo alvo de atenção em âmbito internacional de diversas instituições
devido à sua agudização (World Health Organisation, 2012; 2015; 2018). Essas
instituições oferecem suas explicações para o cenário (revelando parcialmente
alguns aspectos reais e ocultando outros, simultaneamente), porém, não possuem
intencionalidade de dar razões esmiuçadas, pois isso significa colocar em xeque
o modo de produção. Assim, enfrentar coerentemente o sofrimento psíquico (e
outras formas de sofrer) consiste, em primeiro lugar, na percepção e no
reconhecimento por parte dos movimentos sociais e das organizações políticas do
campo revolucionário (e aqui nos atemos aos partidos políticos) de que o
capitalismo é uma fonte primordial de produção de sofrimento dos sujeitos de
ambas as classes (Keppler, 2011; 2018). Logo, não há como refletir a relação
indivíduo x sociedade de maneira atomizada.
De tal modo, não há como conceber a
situação de saúde dos sujeitos como uma questão privada, bem como não basta só
o incentivo à busca por cuidado e intervenções profissionais, algo legítimo,
mas que não vai à raiz do problema: exige, principalmente, um debate e ações
consistentes na temática de saúde mental que estejam alinhados aos princípios
políticos dessas organizações (Minetto, 2018), agregados ao fortalecimento de
vínculos políticos de cunho humanizado e solidário, exemplificados na figura do(a)
camarada (Dean, 2021).
Identificamos que essas defasagens
estão relacionadas ao mapeamento – nos casos do PSOL e do PSTU, na sua
ausência; no caso PCB, ainda em um estágio inicial –, ou seja, a um
dimensionamento objetivo do problema tomando o método e a ênfase que deve ser
dada à questão de saúde mental nas e pelas organizações. Sem esse mapeamento
estruturado, discussões e reflexões acerca do assunto não são aprofundadas, não
havendo, assim, política ou ação bem elaborada.
Com isso, deve-se iniciar o
processo de construção de uma política de saúde mental interna a essas
organizações que será distinta, a depender da localidade das regionais e das
demandas. Porém, primeiramente, é preciso partir de um mapeamento das condições
da realidade: uma caracterização do sofrimento psíquico; o que tem provocado o
seu agravamento; quais as consequências reais desse processo para os trabalhadores
e para os militantes; a relação disso com a crise em curso, dentre outros.
Depois de construída essa política interna, faz-se necessário avaliar e
reavaliar sua pertinência e seu impacto.
Por fim, ressaltamos que essas
críticas aos partidos da ER não compactuam com a defesa da obsolescência desse
instrumento, nem afirmam que tais organizações sejam perfeitas. Pelo contrário,
é por compreendermos o partido político como a ferramenta mais viável para o
enfrentamento da atual conjuntura (mesmo com todos os seus entraves) que
problematizamos a insuficiente atenção ao debate de saúde mental e, anterior a
ele, a histórica secundarização da subjetividade pelas experiências socialistas
(Martín-Baró, 2017).
Ambos os temas citados acima são
necessários para a consolidação de um projeto político marxista, uma vez que essas
organizações, ao considerarem o querer subjetivo da classe trabalhadora
(Iasi, 2011) e, consequentemente, dos(as) militantes que as estão construindo
cotidianamente, terão instrumentalidade para denunciar tanto o porquê das
falhas (e impossibilidades) concretas do sistema capitalista de responder aos
anseios e desgastes dos sujeitos quanto podem mobilizar e vocalizar essas
demandas em torno do campo revolucionário e seus princípios (Maia Neto,
2018), unindo-as ao valor da emancipação humana.
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________________________________________________________________________________________________
Clara BARBOSA
Mestra em Educação
Profissional em Saúde pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio –
Fiocruz (EPSJV-Fiocruz) (2022). Especialista em Saúde Mental na modalidade Residência
Multiprofissional pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (2020).
Bacharela em Serviço Social pela UFJF (2017). Atualmente, trabalha como
Assistente Social no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Doutoranda
em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
________________________________________________________________________________________________
* Mestra em Educação Profissional em Saúde. Assistente
Social no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ, Rio de
Janeiro, Brasil). Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil). Rua Oswaldo Neves Martins, 142/118,
Centro – Angra dos Reis. E-mail: clarab.santos7@gmail.com.
[1] Para tratar da Esquerda Radical, faremos
uso da sigla “ER” ao longo do artigo.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[2] Destaca-se que não adentramos em muitas
das falas dos(as) entrevistados(as) e, também, outras discussões pertinentes e
transversais ao tema – tais como o debate de opressões (machismo, racismo,
LGBTfobia, dentre outros) – devido aos limites do artigo científico. Apesar das
falas elucidativas, optamos, neste espaço, por focar na análise de algumas dessas
juntamente à articulação teórica com o arcabouço marxista, tendo em vista a
lacuna identificada nas leituras acerca do tema saúde mental e militância político-partidária.
Para maior acesso às falas, recomendamos a leitura da dissertação da autora Santos
(2022).
[3] Em Furtuoso e Costa (2021, p. 5), os
autores travam um debate sobre o uso do termo sofrimento psíquico
substituindo-o apenas pelo uso de sofrimento, pois “[...] para nós [os
autores] todo sofrimento é psíquico (assim como é social e possui uma dimensão
orgânica), sendo este termo não apenas um pleonasmo, como o adjetivo ‘psíquico’
um indicativo de apreensão psicologizante, mesmo que crítica – seja por uma
redução do entendimento à dimensão psicológica ou cerebral ou pela centralidade
de tal compreensão em tais dimensões. Por isso, optamos pelo termo
‘sofrimento’, num processo de superação, mas incorporando as críticas expressas
no termo ‘sofrimento psíquico’ e a tradição práxica
que nele/por ele se fundamenta” Furtuoso; Costa, 2021, p. 5). Ambos argumentam
que a continuidade do uso de sofrimento psíquico pode reforçar
concepções psicologizantes e psiquiatrizantes, algo
que a própria tradição crítica da saúde mental combate. Apesar da concordância
com os argumentos apresentados pelos autores, essa discussão do uso estrito da
palavra sofrimento para demarcar o sofrimento de ordem psíquica é
relativamente nova na saúde mental, não havendo tempo para um debruçamento mais
qualificado para expor as produções a respeito dessa utilização neste trabalho em
questão. Por isso, opta-se, aqui, por manter o uso de sofrimento psíquico,
não apenas por ser um termo já consolidado na área da saúde mental – na sua ala
crítica e radical –, mas também por conta de um posicionamento político,
demarcando a relevância histórica do conceito sofrimento psíquico, sua
tradição de luta e sua importância para disputar politicamente discussões e ações
incipientes acerca desse tema nas organizações revolucionárias brasileiras.
[4] Segundo Fernandes (2019, p. 300, colchetes nossos), a melancolia estaria ligada a “[...]
vitórias passadas [do movimento e organização dos(as) trabalhadores(as)], de uma
maneira que afeta seus horizontes estratégicos atuais [...]” (Fernandes, 2019,
p. 300), fazendo com que, enquanto ocorrem os ataques à classe trabalhadora, a
ER permaneça tendo dificuldades de mobilizar os(as) trabalhadores(as) devido ao
processo de despolitização em curso de realizar um trabalho de base árduo para
superar essa estratégia e ocupar o espaço onde, por muito tempo, se encontrava
o Partido dos Trabalhadores (PT).
[5] Tal exposição foi realizada a fim de propiciar
uma forma didática de exposição daquilo que a pesquisa nos permitiu observar e
analisar.