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Eletroconvulsoterapia em perspectiva ou para a crítica do eletrochoque[1]

 

Electroconvulsive therapy in perspective, or a critique of electroshock

 

Vinícius Pinheiro de MAGALHÃES**

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-2909-3517

 

Larissa Daiane Vieira BARROS**
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 https://orcid.org/0000-0001-5268-9450

 

Resumo: O objeto do presente ensaio teórico são os fundamentos balizadores da técnica da Eletroconvulsoterapia (ECT), procedimento médico psiquiátrico que consiste na indução de convulsões pela via da administração de cargas elétricas no cérebro com finalidade terapêutica.  A proposta do texto é tecer uma crítica ontoepistemológica da ECT e de seus fundamentos teórico-conceituais à luz da Reforma Psiquiátrica e da Determinação Social da Saúde Mental. Trata-se de ensaio teórico sustentado em revisão ampliada da literatura. Compreendemos a ECT como uma técnica fundamentada em tendência teórica estreita que assujeita seus usuários em nome de intervenção invasiva orientada para ação de curto-médio prazo, cuja finalidade é o controle de corpos de segmentos historicamente vulnerabilizados.
Palavras-chave: Eletroconvulsoterapia (ECT). Reforma psiquiátrica. Saúde mental.

 

Abstract: This essay sets out the guiding principles of Electroconvulsive Therapy (ECT), a psychiatric medical procedure that consists of inducing seizures by administering electrical currents to the brain for therapeutic purposes. The purpose of the text is to weave an onto-epistemological critique of ECT and its theoretical-conceptual foundations in light of Psychiatric Reform and the Social Determination of Mental Health. It is a theoretical essay based on an extended literature review. We understand ECT to be a technique based on a narrow theoretical trend that is applied its users in the name of invasive intervention oriented to short- to medium-term action, the purpose of which is to control the bodies of historically vulnerable segments of society.
Keywords: Electroconvulsive therapy (ECT). Mental health. Psychiatric Reform.
 
Submetido em: 28/1/2023. Aceito em: 22/5/2023.

 

1 Introdução

 

O

 objeto do presente ensaio teórico são os fundamentos balizadores da técnica da Eletroconvulsoterapia (ECT). Trata-se de um procedimento médico psiquiátrico que consiste na indução de convulsões pela via da administração de cargas elétricas no cérebro com finalidade terapêutica (Antunes et al., 2009).

 

Depois de vinte anos do evolver da Política Nacional de Saúde Mental, conjunto de leis e portarias resultantes de importantes tensionamentos do movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, um horizonte de estagnação e retrocessos desponta a partir de 2016 (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020). Dessa conjuntura decorreu uma série de medidas que a Nota Técnica nº 11 de 2019 - CGMAD/DAPES/SAS/MS chamou de Nova Política Nacional de Saúde Mental, numa evidente inversão de rota que caracteriza uma contrarreforma psiquiátrica (Nunes et al., 2019). Faz parte dessas recentes ações do Ministério da Saúde o incentivo à Eletroconvulsoterapia, com a sinalização de disposição pelo financiamento dos aparelhos para aplicação da técnica no Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2019).

 

As disputas pelo direcionamento da Política de Saúde Mental no Brasil refletem a diversidade de modelos de atenção e assistência nesse campo, com destaque para divergências e contradições essenciais que demarcam uma distância de ordem paradigmática. Dois modos de produção de saúde e subjetividade, representantes de dois paradigmas, com suas epistemologias, instituições, práticas e tecnologias distintas, o modelo asilar e o modelo psicossocial (Costa-Rosa, 2000).

 

Essa divergência paradigmática não se limita à dimensão teórico-conceitual da loucura, abrangendo, ademais, uma distinção essencial em face da definição do objeto e dos meios de intervenção; das formas de organização institucional; das formas de relação com os usuários; e das implicações éticas de práxis.

 

O modelo asilar tem a doença como objeto, o que justifica o asilo e a medicamentalização como meios de intervenção e assistência, além da disposição de uma organização institucional verticalizada e centralizada, donde se estrutura uma relação de tutela com usuários e comunidade, cujo produto é a serialização de subjetividades. O anverso desse processo caracteriza o modelo psicossocial, que tem no sujeito o centro de sua intervenção, mediada pela perspectiva da transdisciplinaridade num quadro de organização institucional com relações horizontais e democráticas, estrutura que permite a participação e o controle social, e donde decorre a produção de subjetividades singularizadas (Costa-Rosa, 2000). 

 

Do exposto, infere-se a ECT como uma técnica que também pode ser atravessada por tais disputas, pois, conforme caracterização de Costa-Rosa (2000), pode se configurar como meio de intervenção/tecnologia que cristaliza influência de determinado paradigma de atenção à loucura. A disputa entre os modelos de atenção reverbera no debate técnico sobre a ECT, sua eficácia e possibilidade de inclusão no SUS, como serviço da Política de Saúde Mental.

 

De um lado, parte da literatura tem indicado a ECT em casos refratários ao tratamento medicamentoso; em casos que demandam intervenção com respostas rápidas, sobretudo nas situações clínicas graves; nos casos onde se supõe que o procedimento é o recurso de menor risco; ou quando a tecnologia é uma opção do usuário (Alvarenga; Rigonatti, 2005; Antunes et al., 2009; Barbosa; Rocha, 2008).

Uma outra tendência tem questionado sua utilização. Para além da denúncia de seu símbolo manicomial, os críticos lançam mão de reflexões éticas do campo da Reforma Psiquiátrica Brasileira para problematizar a finalidade da ECT e seu reducionismo sintomatológico; seu paradigma produtor de provas científicas questionáveis; a falta de consenso especializado sobre seu uso; a subestima de seus efeitos colaterais; além de suas profundas vinculações àquilo que há de mais reacionário e conservador no espectro político brasileiro (Kolar, 2017; Oliveira, 2019; Passarinho, 2022; Passos et al., 2021; Read; Kirsch; Mcgrath, 2019; Silva; Caldas, 2008).

 

Assumindo o compromisso de defesa dos valores ideoteóricos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, propõe-se, com o presente ensaio teórico, problematizar tendências de análise superficiais da literatura sobre a ECT, quais sejam: a da reprodução acrítica da técnica; a da crítica ideológico-anacrônica; e a da crítica metodológica.

 

Boa parte das revisões sistemáticas tem procurado esclarecer a natureza da ECT, descrevendo, com base na literatura, suas indicações, contraindicações, efeitos colaterais e eficácia em face de uma diversidade de transtornos psiquiátricos (Perizzolo et al., 2003; José; Cruz, 2020; Rosa et al., 2004; Antunes et al., 2009; Moser; Lobato; Belmonte-de-Abreu, 2005), o que termina por revelar uma tendência à reprodução acrítica do procedimento.

 

No polo tendencial oposto, alguns estudos (Schneider, 2011; Coscrato; Bueno, 2011; Andrade; Medeiros; Patriota, 2011; Santos et al., 2018), ainda que almejando uma crítica bem intencionada, recaem num anacronismo ideológico, posta a descontextualização da técnica de seus atuais critérios de uso e de sua versão moderna, sofisticada, caracterizada como ECT Modificada (Scherer; Scherer, 2011) pretensamente humanizada, que recorre aos relaxantes musculares, anestésicos e vigília de maior quantidade de recursos humanos quando do momento de sua aplicação (Alvarenga; Rigonatti, 2005; Barbosa; Rocha, 2008; Madeira et al., 2012).

 

Ademais, também é relevante anunciar o limite da crítica meramente metodológica da ECT, tendência que justifica a problematização da técnica à medida que expõe o viés no método que estrutura as pesquisas clínicas de eficácia (Read; Kirsch; Mcgrath, 2019), prescindindo de reflexão sobre os reducionismos diante do sujeito, do objeto e da finalidade produzidos por certo modelo de cientificidade hegemônico na sociabilidade capitalista.

 

Assim, o que se propõe com este texto, ancorado na perspectiva da Determinação Social da Saúde, é uma crítica ontoepistemológica da ECT, de seus fundamentos teórico-conceituais que lançam mão de determinada compreensão de sujeito, de objeto e de expectativa de desfecho/finalidade, empreitada que passa ao largo da reprodução de sua defesa acrítica, transcendendo também a mera problematização metodológica das pesquisas que endossam sua eficácia. Sustentam-se as reflexões propostas neste ensaio a partir de revisão ampliada de trabalhos que discutiram a ECT, cuja pesquisa foi realizada nos bancos de dados do Periódicos CAPES e no SciElo.

 

2 Fundamentos históricos e teórico-metodológicos da ECT

 

Toda a fundamentação histórica e teórico-metodológica do presente objeto de estudo está edificada em dois pressupostos básicos: 1º a tese de que a subjetividade, isto é, os fenômenos psíquicos, os quais incluem o sofrimento mental e a loucura, é expressão da sociabilidade; e 2º a tese de que, de igual modo, as formas de conhecimento da subjetividade, ou seja, suas epistemologias, também são expressões da vida social, resultantes de acúmulo do ser social em sua interação produtiva e transformadora com a natureza.

 

Compreender a loucura como expressão da sociabilidade significa a tentativa de aproximação de um fenômeno complexo, fruto de múltiplas determinações. Trata-se de considerar a loucura, apesar de transistórica, como expressão da Questão Social, isto é, como fenômeno que assume particularidades significativas sob o modo de produção capitalista, quadro em que se anuncia a possibilidade inédita de redução dos vetores da adversidade humana, ao mesmo tempo em que recrudesce tal sofrimento em face de um conjunto de desigualdades decorrentes da contradição capital-trabalho – pobreza, fome e violência – e da alienação – reificação das relações sociais, objetificação de segmentos historicamente vulnerabilizados e desrealização humana (Marx, 1983, 1984; Netto; Braz, 2012).

  

No quadro do capitalismo monopolista, o Estado passa a assumir a responsabilidade pelo manejo e oferta de respostas à Questão Social. É deste período o processo de institucionalização do modo manicomial de contenção da loucura, balizado na modernização de uma das estratégias de tratamento proposta por Philippe Pinel (1745-1826), o asilamento; recurso que a psiquiatria soube explorar no desenvolvimento de seu saber técnico (Amarante, 2007).

 

A ECT emerge nesse quadro de vigência do modelo asilar para o tratamento da doença mental, instituição que não só marcou as origens como conformou a natureza da psiquiatria. A técnica da ECT foi fundamentada no pensamento de Ladislas Joseph Meduna (1896-1964), para quem existiria uma relação de antagonismo entre a convulsão e a esquizofrenia; teoria proposta entre 1933-34. Contudo, seus precursores foram Ugo Cerletti (1867–1963) e Lucio Bini (1908–1964) na Roma de 1938 (Silva; Caldas, 2008).

 

A prática entra em crise no período de 1960-1970, sobretudo pelo avanço dos psicofármacos como estratégia terapêutica no campo da assistência psiquiátrica e pela capilaridade da crítica de movimentos antimanicomiais que denunciaram sua utilização abusiva, como meio de tortura e punição nos manicômios (Silva; Caldas, 2008). 

 

Mais recentemente, houve tendência de crescimento do número de trabalhos produzidos, principalmente na conjuntura da efetiva regulamentação da técnica no Brasil. O polêmico Projeto de Lei 4.901/2001 do deputado federal Marcos Rolim (PT/RS) estimulou um debate que evidenciou as disputas em torno da proposta de regulamentação da ECT.  

 

Representando os atores vinculados aos movimentos sociais pelos direitos humanos, Marcos Rolim colocou em debate a possibilidade de regulamentar restritivamente a prática da Eletroconvulsoterapia. No PL, defendeu-se que a técnica deveria ser tratada como terapêutica de exceção, pois, segundo o documento, seus benefícios seriam temporários, e a combinação de seus efeitos colaterais promoveria dano permanente no tecido cerebral (Brasil, 2001).

 

O Projeto de Lei foi arquivado depois de quase dois anos de tramitação, o que pode ter sido influenciado pela resposta rápida do Conselho Federal de Medicina (CFM) em repúdio à matéria proposta, considerada uma afronta ao ato/poder médico, culminando na regulamentação da ECT por meio da Resolução CFM nº 1.640/2002 – posteriormente atualizada para a Resolução CFM nº 2.057/2013 – que incorpora alguns critérios de regulação defendidos no PL sem abrir mão de compreender o procedimento: como método eficaz e seguro; como atribuição privativa e ato médico; e como técnica de indicação precisa, num evidente contraponto à tese da terapêutica de exceção (Conselho Federal de Medicina, 2002).

 

Para além dos aspectos históricos da ECT, importa a reflexão sobre seus fundamentos teórico-metodológicos, empreitada que adentra no campo da filosofia da ciência e no da ontologia do conhecimento e seu ulterior influxo nas epistemologias da saúde e saúde mental.

Sobre a ontologia do conhecimento, ou o advento das possibilidades de conhecimento do real, a tradição marxista deu a sua contribuição ao refletir sobre o trabalho, categoria que explica a emergência da sociabilidade. É no trabalho, isto é, no metabolismo, relação transformadora entre homem e natureza, onde está o salto ontológico que permitiu a transição do modo de ser orgânico ao modo de ser social (Barroco, 2010; Netto, 1994). 

 

O trabalho pressupõe atividade reflexiva, o ato de planejar, de estruturar, na dimensão do pensamento, sua ação e intervenção transformadora sobre a natureza. Essa capacidade opera na direção da produção de um patrimônio não só objetivo, mas também subjetivo, imaterial, posto que o ato de transformar a natureza modifica o próprio agente da ação, gradativamente mais experiente, com maior arsenal de recursos técnicos e de possibilidades de intervenção para a reprodução social, daí depreendendo-se o fundamento para a complexificação do conhecimento do ser social (Netto, 1994).

 

O contexto político, econômico e sociocultural da modernidade ofereceu condições favoráveis a essa tendência à complexificação da capacidade reflexiva do ser social. Trata-se de conjuntura “[...] parametrada [sic] na concepção de homem enquanto ser social autocriador – portador de racionalidade e teleologia, que sob condições concretas constrói sua história” (Guerra, 2014, p. 76). É na modernidade que a razão – “[...] [aquilo] que dá inteligibilidade aos fatos [...] [e que é] determinante de uma forma de apreensão e compreensão do real [...]” (Guerra, 2014, p. 78) – emerge com potencialidades de reprodução, no nível do pensamento, do movimento da realidade.

 

Está na particularidade de determinado período histórico da modernidade o momento cujas condições objetivas e subjetivas contribuíram para a emergência de uma racionalidade dialética, uma forma de conhecimento desalienadora e desmistificadora. O contexto do Iluminismo, da Revolução Francesa e, particularmente, o decurso do projeto da Ilustração marcaram uma etapa progressista da filosofia burguesa, quadro que anunciou efervescência político-cultural na direção da ruptura com o feudalismo e seu Estado absolutista (Coutinho, 2010).

 

Coutinho (2010) avalia que essa etapa progressista do pensamento burguês entrou em declínio a partir de 1830-1848, quando a burguesia consolidou a sua hegemonia no direcionamento do ordenamento social, almejando, doravante, a manutenção de seu status quo, o que significou a tentativa de inviabilização do projeto de recente ator na arena de luta entre as classes sociais, o proletariado; seguiu-se a Miséria da Razão. A reboque dessa inflexão na racionalidade moderna, verificou-se, nos termos de Tonet (2013), uma cisão entre as dimensões do saber e fazer, do trabalho intelectual e manual, e, conforme Guerra (2014), da filosofia e da técnica científica.

 

A principal expressão dessa tendência no campo do conhecimento foi o positivismo de Auguste Comte (1798 – 1857). Seu projeto propunha a separação entre a filosofia (reflexão acerca da essência das coisas e do devir) e a ciência positiva – esta balizada em estratégias metodológicas semelhantes às das ciências da natureza para a compreensão da dinâmica social.

 

O positivismo de Comte, de forma semelhante, influenciou significativamente outra tendência de análise da vida social, o funcionalismo. Para Émile Durkheim (1983 apud Guerra, 2014) a compreensão da realidade social só poderia ser viável pela observação e experimentação dos fatos sociais, os quais deveriam ser considerados como coisa, como dado exterior, anterior e superior aos indivíduos, possuindo força de coação social.

  

Importa destacar que esse processo não é um fenômeno restrito às ciências sociais, às formas de conhecimento da realidade social. No campo da saúde, essa tendência reducionista de compreensão da realidade reverberou naquilo que se chamou de paradigma biomédico. Conforme Barros (2002), trata-se de perspectiva fundamentada principalmente nas elaborações teóricas de René Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1643-1727), donde se estruturou uma ciência médica pretensamente objetiva e neutra, supervalorizadora do singular, da biologia, da patologia, da doença, mesmo que associadas de forma mecânica a um todo orgânico – o que repunha a ordem social e natural da vida dos homens sob escrutínio e domínio da ciência médica (medicalização) e de seus recursos químico-farmacológicos (medicamentalização). 

 

No campo da saúde mental, esse reducionismo marcou as origens da própria psiquiatria enquanto especialização da ciência médica que tem na loucura seu objeto de intervenção. Não necessariamente cartesiano, o saber que emergiu na Idade Clássica para pensar a loucura foi aquele balizado no empirismo-positivista, o qual “[...] define o objeto da ciência enquanto fato publicamente observável” (Pinto, 2012, p. 406). O empirismo-positivista que fundamentou a psiquiatria, desse modo, conforme Franco Basaglia (apud Amarante, 2007), alheou a doença – objeto abstrato – da complexa realidade dos sujeitos.

 

Essas expressões do positivismo e funcionalismo espraiaram-se nas áreas da saúde e saúde mental, mas não sem resistências. As formas de conhecimento do real são produzidas por certa correspondência com o modo de organização da vida social. Tal relação produz tendências de compreensão que anuviam as possibilidades de sua aproximação com a essência e a estrutura da realidade (positivismo, funcionalismo, empirismo); entretanto, contraditoriamente, também provoca a elaboração de um conhecimento contra-hegemônico, comprometido não com a manutenção do status quo, mas com a sua derrocada (Breilh, 2010). 

 

Os meios de intervenção sobre a saúde coletiva e a loucura são atravessados por essas disputas teóricas. No campo da saúde mental, por exemplo, essas disputas conformam os paradigmas asilar, de um lado, e da atenção psicossocial de outro, os quais apresentam estratégias e finalidades diversas acerca do objeto desse campo de práxis (Costa-Rosa, 2000).

 

Do exposto, infere-se a ECT como uma técnica fundamentada em tendência teórica estreita, tecnologia dura[2] inspirada no paradigma asilar, que, em nome de intervenção invasiva orientada para ação de curto-médio prazo, assujeita seus usuários com sinais e sintomas de sofrimento psíquico – à revelia das possibilidades de atuação face à realidade sociocultural do sujeito –, tendo como finalidade o controle de corpos de segmentos historicamente vulnerabilizados.

 

3 Para a crítica ontoepistemológica da ECT

 

Defendemos a tese de que, para a crítica rigorosa da ECT, há que superar as tendências que analisam a técnica de forma superficial, prescindindo de mediações relevantes que a atravessam. Lançar mão da fundamentação teórica da Determinação Social da Saúde é transcender tais tendências de análise, a fim de pensar esse objeto na perspectiva de totalidade, síntese de múltiplas determinações, o que dá conta de particularizá-lo como tecnologia de saúde caracterizada pelo estreitamento de sua compreensão de loucura, de onde resultam intervenções alienadas daquilo que é essencialmente terapêutico.

 

Em Breilh (2006, 2013), referência latino-americana para o debate da epidemiologia crítica e da determinação social da saúde, o processo de saúde-adoecimento se relaciona, para além de uma exposição descontextualizada a fatores de risco, a um modo de reprodução social determinado pelo atual metabolismo sociedade-natureza. Trata-se de uma reflexão que lança luz sobre a saúde enquanto dimensão da totalidade social, expressão do modo de produção capitalista, verificando-se a proporcionalidade entre inequidade social[3] e produção de fisiopatologias que deterioram o genótipo e o fenótipo das pessoas.

 

Assim, Determinação é o processo pelo qual a saúde-doença-morte expressa a totalidade social, o que anuncia não apenas uma epistemologia contra-hegemônica de reflexão sobre o campo da Saúde Coletiva, mas a utopia do bem-viver, profundamente vinculada à construção de nova sociabilidade, baseada, finalmente, em relações de equidade e de justiça social e ambiental emancipadoras (Breilh, 2013).

 

Acerca da contribuição da Determinação Social no campo da Saúde Mental, Dimenstein et al. (2017), ancoradas na perspectiva da Atenção Psicossocial, refletem sobre a imprescindível mediação do território no processo de compreensão e intervenção na saúde-doença-cuidado das pessoas. Trata-se de espaços complexos, diversos, que revelam vulnerabilidades e potencialidades, marcados pela determinação de inequidades, mas também pela autonomia relativa de indivíduos e grupos na produção de saúde.

 

Nessa perspectiva, “[...] as condições de vida e, consequentemente, de saúde, estão fortemente relacionadas aos espaços utilizados pelas pessoas, onde circulam, vivem e desenvolvem suas atividades diárias” (Dimenstein et al., 2017, p. 76). Ademais, “[...] uma perspectiva territorial de compreender os processos saúde-doença-cuidado a partir de suas [múltiplas] determinações aproxima-se daquilo que vem sendo denominado por ‘cuidados culturais’, isto é, um cuidado culturalmente sensível, congruente e competente” (Dimenstein et al., 2017, p. 77).

 

 

Um pressuposto importante para a crítica da ECT, desse modo, é aquele levantado pela Determinação Social da Saúde Mental, teoria que não restringe o sofrimento psíquico a fenômenos químico-cerebrais que demandam intervenções no corpo, mas que, doutra sorte, particulariza a loucura às condições de vida no território, mediadas pela cultura de saúde local, níveis de vulnerabilidade e acesso a serviços sociais, processos que sofrem os influxos do metabolismo sociedade-natureza sob o modo de produção capitalista.

 

Assim, fundamentado na Determinação Social da Saúde Mental, pretende-se anunciar, ainda que timidamente, três dimensões possíveis para a crítica da ECT e de sua literatura de endosso: a crítica de sua cientificidade; a crítica de seu objeto; e a crítica de sua função social.

 

Parte expressiva da literatura sobre a ECT defende a técnica como um dos recursos mais eficazes, seguros e bem estabelecidos no campo científico da psiquiatria para o tratamento de sintomas psiquiátricos graves (Perizzolo et al., 2003; José; Cruz, 2020; Rosa et al., 2004; Antunes, 2009; Moser; Lobato; Belmonte-de-Abreu, 2005). O papel da crítica ontoepistemológica da ECT está em propor as seguintes problematizações em face de pretensa cientificidade: Evidências para quem? Evidências de quê? Evidências a que fim?

 

A primeira questão dá conta de expor a fragilidade da epistemologia hegemônica na tentativa de afiançar a ideia de sua neutralidade, de sua imunidade aos atravessamentos de classe e da determinação social. Para Walter de Oliveira (2019), essa suposta cientificidade tem sido sustentada em processo de “[...] naturalização de algumas verdades previamente estabelecidas [...]” (Oliveira, 2019, p. 53), quais sejam: a de que a terapêutica é eficaz nos casos de depressão profunda e de síndromes psicóticas; a de que o procedimento de aplicação não é desumano; além dos argumentos de que os riscos são reduzidos e os benefícios se estendem a outros transtornos psiquiátricos.

 

Numa perspectiva kuhniana, Oliveira (2019) argumenta que tais verdades são produto de replicações enviesadas dos achados dos primeiros estudos sobre a eficácia da técnica, que remontam o período do início do século XX até a década de 1960. Segundo o autor, “[...] há escassez de estudos que apliquem métodos qualitativamente diferentes dos utilizados nas primeiras fases” (Oliveira, 2019, p. 54).

 

Outrossim, ainda desterra os conflitos de interesse que envolveram os primeiros ideólogos da eficácia da ECT, a exemplo do divulgador da técnica, Dr. Richard Abrams, que, além de produzir inúmeros estudos para a American Psychiatric Association (APA) e ter profunda aproximação com o National Institute of Health (NIH) – órgão regulador vinculado ao Estado –, também foi proprietário da Somatics, uma das fábricas que vendiam o aparelho do Eletrochoque (Oliveira, 2019).

 

Tais elementos podem contribuir como possíveis justificativas para a pouca capilaridade no campo médico psiquiátrico de estudos que anunciam, por dentro mesmo da epistemologia clínica, a falta de consenso especializado sobre o uso da técnica, a subestima de seus efeitos colaterais e as fragilidades de seu paradigma produtor de provas científicas questionáveis (Kolar, 2017; Read; Kirsch; Mcgrath, 2019).

 

Noutro ponto, a literatura de endosso da ECT sustenta a eficácia da técnica com base no argumento de sua rapidez face à oferta de respostas aos sintomas psiquiátricos graves, com vistas, principalmente, à sua remissão[4] (Madeira et al., 2012; Barbosa; Rocha, 2008; Neves et al., 2006; Alvarenga; Rigonatti, 2005; Rodrigues; Dalgalarrondo, 2003). Evidências de quê?

 

Esses argumentos revelam/denunciam um processo de assujeitamento promovido pela epistemologia hegemônica da psiquiatria, posto o apagamento daqueles e daquelas que experimentam os sintomas, bem como o alheamento de seu contexto econômico, político e cultural. De fato, o objeto de intervenção da ECT é o sintoma, manifestação da experiência do desequilíbrio químico do cérebro, fenômeno depurado de qualquer determinação que transcenda a dimensão biológica.

 

Balizado nesse estreitamento metodológico é que a ciência psiquiátrica hegemônica dá conta de legitimar a suposta efetividade da ECT, sustentada principalmente em pesquisas que concluem eficácia de curto prazo na remissão de sintomas. A este respeito, o psiquiatra Paulo Amarante (apud Passos et al., 2021, p. 57) defende “[...] que a ECT não é capaz de atingir a psicose a que se pretende tratar, e que o comportamento calmo após a realização do procedimento é parte da recuperação de um sofrimento provocado”.

 

O estreitamento metodológico característico desse modo de fazer ciência pela psiquiatria hegemônica caminha na direção de mascarar as relações de determinação social do sofrimento mental das pessoas, alheando a loucura da estrutura social que a produz e/ou recrudesce, o que, em última instância, demarca o fenômeno sintomático como alvo fundamental dessa especialidade médica, prescindindo de determinações essenciais catalisadas, por exemplo, pelo capitalismo, racismo e patriarcalismo. Evidências a que fim?

 

Se tal ciência de classe legitima o status quo, sua tecnologia tem a finalidade de controle e docilização de corpos potencialmente subversivos. Alguns estudos demonstraram o predomínio da técnica no público feminino, psicótico grave e depressivo (Pastore et al., 2008; Santos Jr. et al., 2013). A predominância da técnica no público feminino, malgrado as especificidades regionais que contextualizam tais estudos, pode ter inúmeros significados, incluindo o dado de que é o público mais acometido por transtornos de ansiedade, de humor e somatoformes no Brasil (Ludermir, 2008; Santos; Siqueira, 2010).

 

A perspectiva da Determinação Social da Saúde Mental ilumina a compreensão de que tal predominância no contexto da sociedade brasileira decorre dos atravessamentos do sistema patriarcal, o qual, de forma consubstancial e coextensiva com o capitalismo e o racismo, catalisam sensações de baixa autoestima, sobrecarga e estresse, também resultantes de nova conformação do mundo do trabalho, superexplorador desse segmento alvo de desvalorização, objetificação, violência e desumanização (Ludermir, 2008).

Contudo, para além do evidente quadro produtor de sofrimento mental em mulheres, há que se atentar para aquilo que Anna Luiza Gomes e Alynne Nagashima (2018) chamaram de tendência à patologização do feminino, exercício de poder que reflete a dominação hétero-patriarcal, classista e racial no Brasil, o que ocorre principalmente pela via de sua medicamentalização e outros mecanismos de tamponamento dos sinais e sintomas de seu sofrimento.

 

Desse modo, importa destacar, de forma conclusiva, os limites da técnica da ECT defronte à complexidade da vida social e do sofrimento mental de seus usuários, sobretudo num contexto de recrudescimento do capital sobre o trabalho em que ainda vigora a desestruturação dos serviços territoriais de saúde mental, os quais são produtores de subjetividades singulares, criativas e subversivas.

 

4 Referências

 

ALVARENGA, P. G.; RIGONATTI, S. P. Uso de olanzapina e eletroconvulsoterapia em um paciente com esquizofrenia catatônica refratária e antecedentes de síndrome neuroléptica maligna. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 27, n. 3, p. 324–327, 2005.

 

AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

 

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BARROCO, M. L. S. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010.

 

BARROS, J. A. C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico?. Saúde e Sociedade [online]., v. 11, n. 1, p. 67-84, 2002. Disponível em: Doi: 10.1590/S0104-12902002000100008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/4CrdKWzRTnHdwBhHPtjYGWb/ Acesso em: 24 jul. 2022. 

 

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Vinicius Pinheiro de MAGALHÃES Trabalhou na redação, na concepção e delineamento do manuscrito.

Assistente Social no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG). Tutor e preceptor do núcleo de Serviço Social na Residência Multiprofissional em Saúde do HC-UFG. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (PROSS-UFS).

 

Larissa Daiane Vieira BARROS Trabalhou na revisão crítica do texto.

Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (IPS-UFBA) no curso de graduação em Serviço Social. Tutora do núcleo de Serviço Social no Programa de Saúde Mental na Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário Prof. Dr. Edgard Santos da UFBA (HUPES-UFBA). Doutora em Saúde Pública e Mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (ISC-UFBA).

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[1] Ensaio teórico decorrente de reflexão desenvolvida na experiência da Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Hospital Universitário Prof. Dr. Edgard Santos (HUPES/UFBA).

 

* Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Assistente Social do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás. (HC-UFG, Goiânia, Brasil). Primeira Avenida, s/nº, Setor Leste Universitário – Goiânia (GO), CEP: 74605020. E-mail: viniciuspmaga@gmail.com.

 

** Assistente Social. Doutora em Saúde Pública. Professora do Instituto de Psicologia, no curso de graduação em Serviço Social, da Universidade Federal da Bahia. (UFBA, Salvador, Brasil). Estrada São Lázaro, nº 197, Federação, Salvador (BA), CEP: 40210730. E-mail: laravbarros@gmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[2] “Em relação às tecnologias de trabalho, estas podem ser classificadas em três tipos e sempre estão associadas no processo de trabalho, quais sejam: aquelas que estão representadas pelas máquinas e instrumentos, as chamadas tecnologias duras; as que se inscrevem no conhecimento técnico, as tecnologias leve-duras; e aquelas representadas pelas relações, as tecnologias leves” (Merhy; Franco, 2009, p. 3).

[3] Para Breilh (2006), “[...] a desigualdade é uma injustiça, ou iniquidade (com i) no acesso, uma exclusão produzida com respeito à fruição, uma disparidade na qualidade de vida, ao passo que a inequidade (com e) é a falta de equidade, ou seja, é a característica inerente a uma sociedade que impede o bem comum e instaura a inviabilidade de uma distribuição humana que outorgue a cada um conforme sua necessidade, e lhe permita contribuir plenamente conforme sua capacidade” (Breilh, 2006, p. 210-211).

[4] A despeito de haver dados sobre tendências a recaídas sintomáticas no curto prazo pós-aplicação, percentual que varia, em algumas pesquisas, de 40% a pouco mais de 60% nos casos de depressão, fundamentando a necessidade de ECT de manutenção como estratégia de prevenção (Antunes et al., 2009; Neves et al., 2006; Alvarenga; Rigonatti, 2005; Moser; Lobato; Belmonte-de-Abreu, 2005).