Saúde mental em tempos de ultraneoliberalismo
Mental health in ultra-neoliberal times
https://orcid.org/0000-0003-0477-6386
https://orcid.org/0000-0003-1680-5009
Resumo: O processo de
agudização da barbárie permeado pelo conservadorismo, reacionarismo e as faces
da discriminação trouxeram à tona não somente a amplificação do cenário de
violência e fome, mas também as plataformas antes silentes no que se refere ao
adoecimento psíquico. O artigo objetiva
tecer discussões acerca da saúde mental em tempos de ultraneoliberalismo,
o qual emergiu de forma mais efetiva com a ascensão da extrema direita na
realidade brasileira. Por meio de uma reflexão teórica, com o uso de dados secundários,
o estudo vislumbra o cenário de necropolítica potencializado cotidianamente na
arena da saúde mental e seus rebatimentos na sociedade, frente ao capitalismo em
sua face mais voraz.
Palavras-chave: Saúde Mental. Ultraneoliberalismo. Necropolítica.
Abstract: The process of
worsening barbarism, permeated by conservatism, reactionism and facets of
discrimination, has exposed not only how violence and hunger have intensified,
but also amplified previously silent platforms related to psychological
illness. The article discusses mental health in ultra-neoliberal times, which increasingly
emerged with the rise of the extreme right in Brazil. Through theoretical
reflection, with the use of secondary data, the study reveals a scene of necropolitics, potentiated daily in the mental health arena,
and in its repercussions on society, in the face of the most voracious form capitalism.
Keywords: Mental Health. Ultra-neoliberalism
Necropolitics.
Submetido em:
31/01/2023. Revisto em: 5/4/2023 e 11/6/2023. Aceito em: 12/6/2023.
Introdução
O |
sistema capitalista descortina as agruras
evidenciadas pelas expressões da questão social. As discussões envolvem a
economia, a historicidade social, as plataformas e a cultura do reconhecimento,
contudo a realidade da sobrevivência humana atinge ápices cada vez mais
desafiadores. A fome, a violência e a desproteção social assombram o cotidiano,
logo, há um desafio silencioso que se espraia na subjetividade do sujeito,
envolto por tabus e preconceitos. Trata-se do sofrimento mental, que teve seu
véu retirado de forma mais abrangente no contexto pandêmico, e se revelou como
questão social de urgência no âmbito da sociabilidade capitalista.
O artigo objetiva discutir sobre a realidade do
adoecimento mental em tempos de agudização da barbárie sob a ótica ultraneoliberal evidenciada na realidade brasileira, assim
como os seus rebatimentos nas políticas de saúde mental em cenário de
necropolítica potencializada no governo Bolsonaro. Com aporte metodológico
elencado em uma reflexão teórica baseada em uma pesquisa de enfoque misto, que
de acordo com Prates (2012), difere-se de análises que sejam apenas quantitativas
ou qualitativas, tendo em vista que considera características de ambos os tipos
de pesquisa, com articulação de dados que ora assumem perspectivas estatísticas
ou numéricas, ora fundamentam argumentos qualitativos, necessários para
compreensão da problemática em questão. Dentre as fontes de dados secundários
que fomentaram o caráter misto da análise, pode-se expressar a pesquisa com
base nos relatórios da Organização Mundial de Saúde, Organização Pan-americana
de Saúde, Ministério da Saúde, dados quantitativos expressos no Portal da
Transparência do Governo Federal e SIGA Brasil, sendo o último, um sistema que
contempla informações sobre orçamento e planejamento em nível federal.
O estudo se debruça sobre o sistema capitalista
contemporâneo, as expressões da questão social evidentes, o silenciamento sobre
a discussão do adoecimento mental, os dados sobre orçamento na área de saúde,
assim como os desafios efetivos na implementação de uma rede de atenção
psicossocial que de forma efetiva possa atender as demandas da população
brasileira. Tecer críticas sobre a problemática da saúde mental se faz
relevante, com vistas a ponderar os limites, como também as possibilidades que
pudessem nos colocar no rumo de uma ordem societária. Devaneio? Talvez. Mas
como diria Carlos Drummond de Andrade: “[...] tenho apenas duas mãos e o
sentimento do mundo”.
Capitalismo em Tempos de Agudização da Barbárie
Hodiernamente, o sistema capitalista parece ter
atingido o ápice no processo de ebulição. A amplificação do exército industrial
de reserva, assunto discutido por Marx na segunda metade do séc. XIX, apresenta
não apenas a atualidade, como também a presencialidade do que foi elencado como
realidade há quase duzentos anos. O Brasil adensa o caldo do desemprego com
dados que chegaram a mais de 14 milhões de pessoas durante a pandemia. O
resultado desse contexto é o aumento da pobreza e o retorno do Brasil ao mapa
da fome. Neri (2022) aponta que em 2021, 62,9 milhões de pessoas passaram a
viver com renda per capta de R$ 497,00 ao mês, o que representa cerca de 30% da
população brasileira em situação de vulnerabilidade, o que ocasiona a insegurança
alimentar.
As agruras do capital também se refletem nas
plataformas das expressões de violências. O Brasil é o quinto país em maior
quantitativo de feminicídios no mundo e apresenta o primeiro lugar no
respectivo ranking entre os países da América Latina (Organização Panamericana de
Saúde, 2022). A escalada da violência se amplifica em todas as suas faces, pois
a cada vinte e três minutos morre um jovem negro no Brasil. Esse é o reflexo de
que a população pobre, preta e de periferia sente primeiro.
Com a ascensão da extrema direita no Brasil, a
discussão sobre direitos humanos passou a ser associada ao comunismo, palavra esta
tratada de maneira disforme pelo viés do senso comum e da criminalização, fator
legitimado pela gestão maior do Estado brasileiro. Para Marx (2015), o comunismo
deve ser considerado como um fator real e necessário para a emancipação do
homem e se potencializa “[...] pela expressão positiva
da propriedade privada superada; antes de tudo, a propriedade privada universal”
(Marx, 2015, p. 341). Logo, caracteriza a superação da autoalienação,
seja no viés da família, religião ou outros aparelhos ideológicos
existentes na égide do sistema capitalista. Tal quadro pode ainda não se efetivar
no comunismo rude, porém, certamente no seu processo de aperfeiçoamento a
partir da busca pela emancipação humana efetiva.
A barbárie agudiza-se de forma que as expressões
da questão social são banalizadas e vislumbradas como resultados de uma população
que se perpetua no marasmo. O contexto do conservadorismo tem suas bases
elencadas por Edmund Burke (1982) e que reforçam a tese de que para alcançar
algo é preciso buscar, apontando a meritocracia como fundamento e as conquistas
como fim, em que o homem, no sentido genérico, deve exercer a liberdade na
busca, dentro das prerrogativas legais e limitadas à perspectiva do devir
conservador, de ordem social burguesa, balizada pela naturalização da
desigualdade. Entretanto, olvida-se que em um sistema desigual, nos quesitos de
acesso à saúde, educação, previdência, assistência social e demais protoformas
de políticas de inclusão, não há como tratar de maneira igual os desiguais,
como já dizia Aristóteles (2001).
A barbárie não apenas se recria, como
assenta-se no cotidiano humano, alicerçada pela espetacularização da vida,
fenômeno que Debord (2007)) afirma ser capaz de conceber as aparências como
afirmações, essas massificadas e conduzidas como realidade. Todavia caracterizam-se
como elementos pseudoconcretos. As redes sociais
podem trazer a referida caracterização, com a espetacularização expressa por
meio de mensagens, vídeos e textos que apregoam a indústria das fake news na contemporaneidade.
No processo de espetacularização, algumas vidas
são consideradas mais dignas de serem vividas, enquanto outras, são relegadas
ao ostracismo ou até mesmo submetidas ao processo de morte social, como aponta Agamben (2007) ao retratar o homo sacer,
como homem (genérico) que detém uma vida sagrada na égide biológica, a qual não
se deve eliminar pelas prerrogativas legais. Porém, a vida torna-se matável socialmente, a partir da constituição de juízos,
por exemplo; o autor afirma ainda que as mortes sociais são oriundas da criação
de campos de concentração ideológicos, os quais são erguidos cotidianamente e
podem alicerçar dentre outras coisas, os preconceitos, as discriminações e
sobretudo, discursos de ódio.
No processo de sociabilidade capitalista, o homo
sacer deixa de existir como protagonista. Ao
abrir as cortinas do teatro da vida, avalia-se que o homem constrói sua própria
história, todavia, como disse Marx (2011b), não a faz da maneira que gostaria,
pois há questões do passado que evidenciam a constituição das realidades presentes
e as gerações mortas fazem-se presentes nas ações cotidianas dos vivos.
O rumo na construção do processo histórico
depende do lugar humano na sociedade de classes, já que há variáveis que podem
ou não ser de acesso humano. A luta de classes, a disputa por território, a
legitimação da violência, as discriminações e criminalização das demandas
populacionais, dentre outras problemáticas, corroboram com o fazer
histórico-social na constituição das desigualdades. Nesse âmbito, escrever a
própria história é ousar diante de um sistema excludente, alienador e
controlador.
O resultado se espraia na caracterização da
necropolítica, que de acordo com Mbembe (2016),
evidencia-se quando um governo decide quem merece viver ou não, quem pode ter
acesso a algo ou manter-se-á à margem da sociedade. As considerações são parte
da realidade brasileira, principalmente a partir da emergência da extrema
direita, saudosista da ditadura militar, que demoniza o comunismo, alimenta
crenças sobre a meritocracia, supremacia da raça branca e se faz intolerante às
expressões da diversidade humana, sejam de classe, raça, gênero etc.
Para Lowy (2015, p.
663) “[...] o sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e
reproduz fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de Estado e as
ditaduras militares”. Tal afirmação mostra que o processo de produção e
reprodução é parte estratégica do capital para fomentar ainda mais a
desigualdade, os mecanismos de intolerância, as ideologias, a produção de fake
news (no caso contemporâneo) e acionar
proposituras de autoritarismos.
Para Marx e Engels (1998)
a sociedade civil é a base de toda a história e não o Estado, conforme apontou-se
nas reflexões hegelianas. Para fazer história as pessoas precisam primeiro
satisfazer as necessidades, tais como comer, vestir, ter uma moradia, saúde
etc., uma vez que, sem a satisfação do mínimo não há como construir história.
Marx (2015) salienta que é preciso transformar o mundo, entretanto, para que
tal modificação aconteça, faz-se necessário que a interpretação do mundo seja
correta e coerente, a partir de suas variáveis e contextos históricos, sociais
e econômicos, sob o risco de preleções esvaziadas de sentido, ou seja, é
preciso analisar a realidade pelas lentes do materialismo crítico, ir além da
aparência e superar os limites para exercer a captura do real.
Nesse processo, o neoliberalismo entra em cena
e conforme Dadot e Laval (2016), o referido sistema
está longe de abranger apenas plataformas de políticas econômicas, o mesmo se configura com normas de largo alcance e se
estende por todas as direções da vida cotidiana, das relações sociais ao
trabalho, obedecendo à lógica do capital como prerrogativa. Para Casara (2021),
o Brasil já vivencia as agruras do ultraneoliberalismo,
que se figura como a face mais atroz do modelo neoliberal, pois antes de caracterizar-se
como uma ideologia ou nova expressão de política econômica, apresenta-se como
racionalidade, em resposta ao processo de restauração do capital diante de mais
uma crise que atinge a sociabilidade humana até a medula.
A face ultraneoliberal
desconstrói as bases dos direitos sociais, políticos, civis e fundamentais com
maior densidade. Amplifica a centralidade no mercado, cria simbolismos a partir
de um imaginário de normas em que tudo pode ser atingido sem limites, inclusive
a ditadura no mundo real e virtual. Fomenta o declínio dos valores ético-políticos
em nome do ‘progresso’, postula de maneira reducionista a democracia ou a destitui,
considera pessoas na perspectiva da utilidade com a naturalização do caos e a
banalização da vida.
A perspectiva político-econômica não reflete a
caracterização de um Estado mínimo, pois ocorre exatamente o contrário. Seu
fortalecimento alavanca maior poder ao mercado e assevera o protagonismo das
elites dominantes, ao passo que se insere no cerne do processo de descivilização (Casara, 2021).
Dardot e Laval (2016),
refletem que:
Trata-se
aqui não da ação de uma monocausalidade (da ideologia
para a economia ou vice-versa), mas de uma multiplicidade de processos
heterogêneos que resultaram, em razão de ‘fenômenos de coagulação, apoio,
reforço recíproco, coesão, integração’, nesse ‘efeito global’ que é a
implantação de uma nova racionalidade governamental (Dardot; Laval,
2016, p. 31).
Os múltiplos processos desenvolvem-se de forma
a envolver o cenário social, econômico, histórico e cultural. É um modelo que
pulsa nas entranhas da sociabilidade capitalista e atinge a esfera humana por
meio de um imaginário que aponta respostas simplistas para problemáticas
complexas. Preconiza a aceitação e o conformismo diante das realidades, atua de
modo a plastificar a realidade e permear a necessidade de adaptação sem
indagações mais profundas.
Assiste-se ao movimento da agudização da
barbárie, um caminho em que algumas vidas importam, outras nada valem. Fomenta-se
a banalização da vida e a crença de que a intervenção do Estado por meio de
políticas públicas seria um assunto superado. Como diria Marx (2011a), onde
impera o modo de produção capitalista, o resultado que aparece se resume a uma
grande coleção de mercadorias. Assim, pessoas são coisificadas, objetificadas,
oprimidas e excluídas, e todos os olhares se voltam ao deus mercado, situação
que ficou ainda mais evidente durante o contexto pandêmico, no país que
alcançou a marca de segundo do mundo em quantitativo de óbitos, os quais já
passam de 700 mil mortes, com média de 135 mil casos diários (Organização
Pan-Americana da Saúde, 2023). A situação agravou com o desemprego e a
suspensão do auxílio emergencial, enquanto milhões de famílias retornavam ao
mapa da fome.
O caos instaurado abre feridas em outra
perspectiva, que se caracterizou como epidemia silenciosa e atingiu milhões de
pessoas. O que poderia ser tão relevante? No momento em que vidas se perdiam, o
desprezo à ciência era pautado na ordem do dia, o fundamentalismo religioso
fomentava raízes profundas nas bases políticas, a economia ruía e o escárnio
pelas mortes assinalavam o lado mais sombrio da necropolítica.
Houve um sofrimento intenso e profundamente
mergulhado na subjetividade humana, o qual denomina-se adoecimento mental,
oriundo de tabus históricos, sociais e culturais. Um assunto não visualizado,
falado ou discutido, mas que emerge nas agruras do capital e assola a população
até a medula. O século XXI desvela a epidemia silenciosa e faz emergir a
necessidade de discutir a saúde mental como questão social.
Saúde Mental e
Necropolítica
Novamente as cortinas da sociabilidade
capitalista se abriram e a pandemia rasgou o véu do tabu sobre questões
relacionadas à saúde mental, que se evidenciaram de forma atroz no cotidiano de
uma humanidade que já lutava pela sobrevivência ao coronavírus. O que foi olvidado
historicamente e culturalmente encoberto sobre o sofrimento psíquico não se
sustentavam mais. O distanciamento social aplacava corpos e mentes diante de um
cenário devastador relacionado às elevações de casos de depressão, transtornos
de ansiedade, síndrome do pânico, dentre outros agravos.
O conceito de saúde mental está associado à capacidade
de se conectar, desenvolver atividades comuns da vida diária de forma produtiva
e ter qualidade de vida (Organização Mundial de Saúde, 2022). É importante
tecer críticas ao conceito, pois ao viver em uma sociabilidade capitalista,
excludente e opressora, como é possível desenvolver todos esses potenciais e conseguir
manter a sanidade mental?
O fantasma do desemprego, da fome e das violências
nas mais diversas expressões, seja contra crianças e adolescentes, mulheres, LGBTI’s, pessoas
idosas, população negra e povos originários potencializam a arena de luta pela
resistência e sobrevivência. A situação agravou-se com o confinamento e a
redução de alguns serviços / atendimentos de saúde que não foram considerados
essenciais, os quais podem ser analisados conforme os dados da Nota Técnica No.
22 do Monitora COVID/ FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz, 2021)
sobre o processo de representação dos atendimentos em saúde no período de
01/01/2020 a 30/06/2021.
Tabela 1 - Grupos de
Atendimento no período pré-pandemia e pandemia.
Grupos de atendimento |
2018/2019 |
2020/2021 |
% |
|
Ações
de promoção e prevenção em saúde |
450.744.591 |
291.524.710 |
-35,30% |
|
Procedimentos
com finalidade diagnóstica |
1.419.336.493 |
1.236.482.184 |
-12,90% |
|
Procedimentos
clínicos |
2.037.133.703 |
1.481.019.025 |
-27,30% |
|
Procedimentos
cirúrgicos |
68.625.495 |
31.928.491 |
-53,90% |
|
Transplantes
de órgãos, tecidos e células |
2.603.727 |
2.080.749 |
-20,10% |
|
Medicamentos |
1.456.778.458 |
1.696.439.964 |
16,50% |
|
Órteses,
próteses e materiais especiais |
10.602.061 |
11.684.178 |
10,20% |
|
Ações
complementares da atenção à saúde |
51.218.779 |
43.717.994 |
-14,60% |
|
Fonte: Fundação Oswaldo Cruz
(2021).
Os dados mostram que apesar de os serviços de
saúde terem sofrido colapso no que tange a assistência em casos de COVID-19,
outras demandas ficaram represadas por não estarem caracterizadas na plataforma
da essencialidade. Conforme a tabela, somente os atendimentos voltados para a
aquisição e entrega de medicamentos, além de órteses, próteses e congêneres
tiveram alta entre 2020 e 2021. Os demais serviços, tais como procedimentos
clínicos, cirúrgicos e ações de promoção à saúde tiveram queda no quantitativo de
atendimentos, pela necessidade de suspensão ou redução dos serviços oferecidos.
Entende-se nesse pressuposto o contexto de emergência sanitária mundial,
entretanto outras frentes nos serviços de saúde que não puderam ser efetivadas
no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Ao retomar as ponderações acerca do adoecimento
psíquico, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2022), em 2019, quase
um bilhão de pessoas já viviam com algum tipo de transtorno mental, dado que
inclui 14% de adolescentes. Os casos relacionados ao suicídio já se
configuravam como a segunda maior causa de morte entre a população jovem de 15
a 29 anos e no Brasil é a terceira, somando-se há mais de 800 mil casos todos os
anos, mundialmente falando e cerca de 13 mil de casos no Brasil (Suicide Worldwide in 2019: global health estimates, 2019).
Ressalta-se que possivelmente o dado não seja
real, visto o fenômeno das subnotificações, as quais imperam sobretudo em
cidades com maior índice de pobreza, municípios pequenos e mais isolados, que
não detém recursos e mecanismos de investigação policial ou aparelho humano na
perspectiva da medicina legal, que apresente possibilidades de resposta acerca
dos óbitos que possa haver suspeita de suicídio.
Os dados da Organização
Mundial de Saúde (2022) refletem que durante o cenário pandêmico houve um
agravamento dos quadros de sofrimento psíquico em pelo menos 25%, com elevação
dos números sobre depressão e ansiedade em todo o mundo. Ainda de acordo com a Organização
Mundial de Saúde (2022), estima-se que uma a cada oito pessoas sofra com algum
tipo de transtorno mental, assunto emergente para ser debatido, já que pessoas
em sofrimento psíquico vivem em média 10 a 20 anos a menos que outras pessoas que
não possuem o referido quadro.
Como consequência do adoecimento mental pessoas
perdem a produtividade, o que para o sistema capitalista é um fator definidor de
insustentabilidade para a sobrevivência. Marx (2015) afirma que o homem atua
sobre a natureza a fim de produzir o que seja relevante para atender suas
necessidades. O primeiro desafio de quem encontra-se em situação de adoecimento
mental, envolve exatamente o processo de produtividade humana na esfera de uma
sobrevivência exigida pelo sistema vigente.
Conforme o Relatório Mundial de Saúde Mental da
Organização Mundial de Saúde (2022), em todo o mundo há lacunas no que se refere
às informações e pesquisas direcionadas à saúde mental e que em média, os países
investem 2% do orçamento da saúde pública nas bases da saúde mental. Cerca de 70%
desse montante é destinado aos hospitais psiquiátricos, ou seja, a visão
hospitalocêntrica lidera como alternativa de intervenção. Os dados do relatório
apontam ainda que metade da população mundial está localizada em países em que
há um profissional de medicina psiquiátrica para cada 200 mil habitantes ou
mais e que a disponibilização de medicamentos para o tratamento, sobretudo os
psicotrópicos, são limitados.
Os dados da Demografia Médica do Brasil expressos
por Scheffer et al. (2018) mostra que o país apresenta 10.396 profissionais de
medicina psiquiátrica, o que representa 5,01 profissionais a cada 100 mil
habitantes e a maior concentração está no Sudeste,
com 53,4% de médicos psiquiatras, seguido do Sul com 24,1%; o Nordeste com
12,6%, a região Centro-Oeste com 7,8% e em último lugar o Norte com 2,1% dos
profissionais, ou seja, no caso da região Norte, o percentual de especialistas
por 100 mil habitantes fica entre 0,69 e 1,62 profissionais. Os dados
refletem a ausência de equilíbrio na distribuição de médicos/as psiquiatras no
âmbito da realidade brasileira. Em comparação com 35 países, o Brasil está na antepenúltima
colocação no quantitativo de psiquiatras por habitantes, a frente apenas da
Turquia e do México, em um comparativo em que países como Suíça, Finlândia,
Noruega e Suécia ocupam os primeiros lugares.
Um dos desafios em tempos de ultraneoliberalismo envolve os recursos para as políticas públicas.
Sobre o quantitativo destinado para a área de saúde, aponta-se os dados do SIGA
Brasil, que expressa informações sobre o orçamento federal por meio do Sistema
Integrado de Administração Financeira (SIAFI) em conjunto com outras plataformas
de planos e orçamentos do governo federal, os quais revelam os seguintes dados:
Gráfico 1: Orçamento do
Ministério da Saúde
Fonte: SIGA Brasil ([2023]). Elaborado pelas autoras.
O gráfico mostra em bilhões, o quantitativo de
recursos que foram alocados para a saúde pública nos últimos cinco anos. A
elevação do quantitativo refere-se ao período de pandemia, entretanto, os dados
de 2022, referentes às despesas executadas já caíram e aproximam-se de
patamares anteriores à pandemia. O índice indicativo de 2018 é referente a
131,5 bilhões e em 2022, 166,8 bilhões; já a correção do Índice de Preços ao
Consumidor Amplo-IPCA revela a execução de 170,5 bilhões e em 2022 os dados mostram
171,1 bilhões, o que evidencia o corte nos recursos da saúde, sobretudo nas despesas
executadas. Apesar dessa queda, o Brasil já apresentou cerca de 700 mil mortes
por COVID-19 entre março de 2020 e março de 2023, com média de 86 mortes
semanais; e apresenta o quadro de 87,9% de pessoas com ao menos uma dose da
vacina e o dado cai para 81,4% pessoas com todo o esquema de vacinação completo
(Organização Pan-Americana da Saúde, 2023).
Pontua-se como marco relevante no desmonte de
direitos, a política de austeridade alicerçada no Governo Temer com a aprovação
da Emenda Constitucional 95, conhecida como Política de Ajuste Fiscal, que
estabeleceu o teto de gastos e congelou as despesas públicas por até vinte
anos. A medida vislumbra maior racionalidade de mercado, amplificado no
incentivo à concorrência, no desfinanciamento das políticas
sociais com a redução das despesas primárias. Ademais, engessa os recursos e
impossibilita o Estado no cumprimento de obrigações previstas na Constituição
Federal de 1988, ou seja, trata-se de um plano neoliberal que elimina o Estado
como garantidor do mínimo de direitos sociais (Menezes; Moretti; Reis, 2019).
Em síntese, o Sistema Único de Saúde já sofria com o processo de
subfinanciamento passa a conviver com o desfinanciamento,
que foi alavancado pelo orçamento de guerra a partir das medidas econômicas e
fiscais adotadas em face ao ultraneoliberalismo que
atua de forma avassaladora.
Sobre a saúde mental, o Portal da Transparência
(2022) e o SIGA Brasil não apresentaram dados precisos, ou seja, não há como
evidenciar o orçamento e recursos aplicados no âmbito da especificidade da referida
política. Em julho de 2022, cientistas criticaram o que chamaram de apagão
nos dados da saúde mental, em audiência noticiada pela comissão de direitos
humanos da Câmara Federal, visto a ausência de transparência na gestão e
apresentação dos dados, assim como o envio de recursos para comunidades
terapêuticas (Souza, 2022).
Conforme a Nota Técnica N. 21 do Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) (2017) há 1963 comunidades terapêuticas
no Brasil, as quais detém juntas mais de 83.000 vagas para tratamento. O maior
quantitativo de instituições encontra-se na região Sudeste do país, com 41,64%,
seguido pelo Sul, com 26,36%; o Nordeste com 16,51%; o Centro-Oeste com 8,82% e
a região Norte em último lugar com 6,67% das comunidades; cerca de 78,8% das
unidades possuem quartos coletivos que abrigam de 4 a 6 pessoas; 80% destinam-se
somente a pessoas do sexo masculino, 15% para ambos os sexos e 4% direcionadas
de forma exclusiva às mulheres. Outro dado relevante refere-se ao contexto da
diversidade sexual, pois cerca de 90,9% das comunidades terapêuticas afirmaram
acolher pessoas homossexuais, 51,6% atendem a população travesti e 43,6% dizem ofertar
vagas às pessoas transexuais (Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, 2017).
O dado reflete a baixa inclusão de pessoas quando o assunto envolve as
expressões de sexualidade, sobretudo as identidades de gênero. Outra avaliação
reflete as fontes de financiamento das comunidades, conforme a sinalização a
seguir:
Tabela 2: Fonte de Financiamento
das Comunidades Terapêuticas
Fonte: Perfil das Comunidades Terapêuticas
Brasileiras (2017).
Os dados mostram que das instituições
pesquisadas pelo IPEA no Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras (2017),
24,1% recebem financiamento do governo federal, 27,8% do governo estadual e
41,1% da esfera municipal, o que denota que parte dos recursos para a saúde
mental brasileira são direcionados às comunidades terapêuticas, o que pode ser
evidenciado também com os dados do Conectas Direitos Humanos e Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 2020).
Gráfico 2:
Financiamento Federal das Comunidades Terapêuticas
Fonte: Relatório sobre
Financiamento Público de Comunidades Terapêuticas 2017-2020
do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (2020).
O gráfico mostra a elevação do financiamento
governamental de comunidades terapêuticas (CT’s). Ao
estabelecer o comparativo entre 2017 e 2018 e os períodos que contemplam 2019 e
2020, constata-se o aumento em mais de 100% do quantitativo de recursos
destinados aos referidos serviços, o que apresenta dados relevantes, já que são
recursos que deixam de ser direcionados aos demais braços da Rede de Atenção
Psicossocial que estão sob responsabilidade do Estado.
Gráfico 3: Divisão dos recursos
pagos às CT’s por região
Fonte: Relatório sobre
Financiamento Público de Comunidades Terapêuticas 2017-2020
do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (2020).
A maior concentração de recursos públicos para o
financiamento de comunidades terapêuticas encontra-se na região Sudeste com 36%,
já a região com menor concentração é o Norte, com apenas 5%. Para além dos dados, a existência de recursos
advindos de emendas parlamentares, as quais são direcionadas para aquisição de
veículos, capacitação do corpo técnico de profissionais, manutenção das casas e
materiais e aquisição de insumos para serem utilizados em cursos
profissionalizantes (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 2020).
De acordo com Passos et al. (2020), as
comunidades terapêuticas funcionam com base no tripé denominado como trabalho,
disciplina e espiritualidade. A maioria das comunidades atuam na imposição da
religião de base adotada na instituição como parte do tratamento, já as
perspectivas do trabalho alicerçam-se em atividades não remuneradas impostas
como ‘laborterapia’. Contudo há o uso das pessoas em recuperação, sem qualquer
garantia trabalhista para a realização de atividades laborativas, em
substituição a contratação de profissionais, o que viola a lei 10. 216/2001, a
qual dispõe sobre os direitos de pessoas em situação de transtorno mental e
conduz o modelo de assistência em saúde mental.
Sobre o uso da religião como plataforma de
intervenção na recuperação, Ribeiro e Minayo (2015)
afirmam que há controvérsias sobre o assunto, pois quem está na gestão dos referidos
serviços acredita que ao vislumbrar a dependência química como pecado, que
precisa ser renunciado, desenvolve-se o potencial de saída do referido estágio
patológico por meio da austeridade e vivência religiosa, cotidianamente imposta.
Em análise oposta, evidencia-se a imposição de participação em atividades
religiosas, o que fere a liberdade de credo, além da violência institucional
com ritos de conversão, submissão a princípios morais e discriminação por questões
de identidades sexuais e de gênero.
Além dos fatores supracitados ocorre ainda o
isolamento da família e de outras formas de sociabilidade, exige-se a
abstinência sexual e comportamento moral de uma pessoa religiosa, bem como o recuo
do acesso à educação, visto o isolamento das comunidades terapêuticas. Consequentemente,
a precarização no acesso aos serviços de saúde pelo mesmo motivo, com vivências
cotidianas ligadas à disciplina, ao trabalho ‘laborterapia’ e às atividades
religiosas, o que pode se configurar como violação dos direitos humanos.
Sobre as religiões, Marx (2010) enfatiza que se
configuram como o ‘ópio do povo’, ou seja, apresentam o potencial de anestesiar
e dominar o indivíduo em suas perspectivas como sujeito protagonista de sua
própria história. Desenvolve o não-ser
do que seria o ‘ser’. Além de desafiadora, sobretudo para a tratativa de
dependentes químicos, há carência de pesquisas que potencializem a evidência
científica de que os aportes de abstinência ligados às imposições de
religiosidade em comunidades terapêuticas, possam evidenciar melhoras
significativas no tratamento, ao contrário, há críticas atrozes ao processo de
violação dos direitos em várias perspectivas.
Apesar das críticas ao modelo de comunidades
terapêuticas, conforme a Portaria 3.088 de 2011 do Ministério da Saúde, a qual
institui a rede de atenção psicossocial (RAPS) para pessoas que estejam em
situação de sofrimento mental devido ao uso de álcool, crack e outras drogas, as
referidas instituições passam a compor a rede do Sistema único de Saúde na modalidade
de serviços em regime residencial, os quais são ofertados para a população
adulta por até nove meses (Brasil, 2011). O ingresso das comunidades terapêuticas
na RAPS sinaliza o lado mais perverso do ultraneoliberalismo,
ao canalizar recursos do Estado para organizações que direcionam serviços de
maneira higienista e segregadora e de conversão religiosa.
Após as críticas sobre o apagão de
informações sobre a saúde mental, o Ministério da Saúde apresentou, por meio da
Secretaria de Atenção Primária da Saúde (SAPS), o relatório denominado ‘Dados
da rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS)’ com as
seguintes informações: o país tem atualmente 2.836 Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), distribuídos em 1910 municípios brasileiros. Conforme o
relatório, os Estados de Mato Grosso e Rondônia não têm serviços de atendimento
24h e os Estados do Acre, Roraima e Tocantins não apresentam Centros de Atenção
Psicossocial voltados para a infância e juventude – CAPSi;
outro dado apresentado reflete a distribuição de CAPS por região: Nordeste e Sul
apresentam o maior quantitativo de serviços, com uma média de 1,70 CAPS a cada
100mil habitantes no Nordeste e 1,52 no sul; já as regiões com menor
concentração de CAPS são o Centro-Oeste com 1,01 CAPS a cada 100 mil habitantes
e o Norte com 0,97. Os três Estados que apresentam o menor quantitativo de
centros de atenção são o Amazonas, com 0,59 CAPS por 100 mil habitantes,
seguido do Amapá com 0,57 e o Distrito Federal com 0,42 (Brasil, 2022).
Os dados do relatório revelam a falta de
investimentos e o ostracismo da saúde mental no Brasil. O quantitativo de CAPS
não atende nem metade dos municípios existentes, já que temos ao todo 5.568
mais o Distrito Federal e o Distrito Estadual de Fernando de Noronha (Belandi, 2022). O recorte por região também apresenta desafios,
já que as regiões Norte e Centro-Oeste apresentam o menor quantitativo de
serviços da rede em saúde mental.
No Brasil há apenas 224 equipes
multiprofissionais em atenção especializada em saúde mental, ou seja, um quadro
incipiente para o atendimento da demanda populacional. Tal severidade aparece
distribuída por região, pois no Norte, somente o estado do Pará conta com a composição de
equipe, o Centro-Oeste com duas, sendo uma em Goiás e outra no Mato
Grosso do Sul e somente na região Sul e Sudeste há equipes distribuídas em
todos os Estados (Brasil, 2022).
Sobre a cobertura de leitos voltados para a saúde
mental em hospitais gerais, os Estados do Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato
grosso, Roraima e Rondônia não apresentam qualquer iniciativa com proposta de
vagas. Estados do Pará, Rondônia e Roraima não têm leitos especializados em
psiquiatria (Brasil, 2022).
Os dados sinalizam a potencial concretização da
necropolítica na saúde mental, solapada pelos golpes do ultraneoliberalismo
no âmbito do Estado Brasileiro. Esse modelo que não se configura pela ideia do
Estado Mínimo na perspectiva econômica, pois o Estado atua de maneira forte e
enraíza as correntes que agudizam a barbárie por todos os poros, incluindo a
saúde mental como alvo do desmonte de políticas públicas. O cenário é caracterizado
pela racionalidade neoliberal, que de acordo com Casara
(2021), escancara as agruras mais profundas do sistema capitalista, fomenta a
naturalização do absurdo e do caos em meio à barbárie como parte do elemento
cotidiano.
A saúde mental não é apenas um aporte para a
sociedade civil. Ao que tudo parece, a história se refaz sob outras
determinações, haja vista que a saúde mental como direito, continua inacessível
para a maioria da população, ou seja, no que se refere ao enfrentamento das
expressões de sofrimento psíquico e adoecimento mental, há uma lacuna histórica
que envolve o direito e o acesso.
Muitas são as indagações e poucas respostas
podem ser elencadas diante de um cenário ultraneoliberal
que não apenas conduz, como também naturaliza a barbárie. O adoecimento mental envolve
expressões da Questão Social que demandam intervenções e inclusão de pessoas em
situação de sofrimento mental, a efetivação e monitoramento de políticas
públicas, as quais sofrem cortes ano após ano, como concretização da
necropolítica, alavancada com maior vigor no governo da extrema direita, evidenciado
pelo Bolsonarismo, que ditou normas de meritocracia, demonizou a população
pobre, preta e de periferia e fomentou o genocídio de indígenas, dentre outros
segmentos populacionais, o que inclui os que lutam para sobreviver ao adoecimento
mental.
De acordo com Marx e Engels (1998), a revolução
se faz no contexto da prática, na materialidade e não no discurso. Urge que a
luta pelas políticas de saúde mental se espraie na coletividade, pois trata-se
de uma problemática emergente, descortinada sobretudo pela pandemia. Como disse
o autor, os filósofos no passado já se preocuparam em ponderar a realidade do
mundo, cabe agora transformá-la.
Considerações Finais
As agruras alavancadas pelo sistema capitalista
opressor e excludente sinalizam que a ebulição atingiu seu ápice. A necropolítica
não apenas se instalou, como se legitimou pelas mãos da extrema direita, que
assumiu o poder na realidade brasileira pelas faces do Bolsonarismo, o qual não
foi eliminado com a recente eleição e posse de um governo progressista.
Expressões da questão social emergem e são silenciadas pelo negacionismo e conservadorismo,
alimentado pelo reacionarismo contemporâneo.
Há vidas que importam e outras que nada valem.
A ideia do homo sacer expressa por Agamben (2007) já não faz sentido, pois as vidas passam a
ser matáveis, inclusive fisicamente, e não apenas socialmente ou simbolicamente.
O devaneio doentio anseia pelo militarismo, como pelo desejo de eliminação de
minorias para garantir o privilégio das maiorias. As faces da violência são
descortinadas, mas pouco se fala sobre o adoecimento psíquico que assola
milhões, os quais, em sua maioria, não têm acesso a uma rede de serviços de
atendimento psicossocial condizente com o que é preconizado nas políticas públicas.
A raiz da problemática ecoa reflexões no
processo histórico brasileiro, haja vista que as questões relacionadas à saúde
mental foram envoltas no ostracismo, discriminação e no mutismo quase absoluto
no âmbito de políticas que calaram pessoas em instituições manicomiais como
proposta higienista por séculos. O limiar da ebulição capitalista já não
permite esconder a questão. É preciso debater, traçar estratégias de
intervenção para conter a epidemia silenciosa, contudo é preciso enfatizar que
os desafios de ordem mental não estão ligados apenas às patologias
psiquiátricas, mas também às expressões da questão social que emergem no
sistema capitalista excludente e cada vez mais violento, potencializado pela
racionalidade neoliberal.
Marx (2006) retratou como a discriminação, a
desigualdade e as opressões potencializam quadros de sofrimento psíquico, que desencadeiam
inclusive o suicídio. O adoecimento não é novo e o sistema capitalista fomenta
gatilhos de maior gravidade. Além disso, a sobrecarga, as relações adoecidas, a
coisificação do homem, a redução da força de trabalho à mercadoria, a mais-valia,
a condição desigual de gêneros e a face da pobreza que tem sexo e cor, são
condições que elevam as possibilidades para o desenvolvimento de depressão, síndrome
do pânico, transtornos de ansiedade, dentre outras patologias psiquiátricas que
se espraiam no cotidiano populacional.
Não basta expor números que não atendem as
demandas de saúde mental no país. É preciso resistir, como também potencializar
a busca constante pelo direito a ter direitos, pelos enfrentamentos e
possibilidades frente à ordem capitalista instaurada. É preciso lutar, pois
como já dizia Thiago de Mello (2006): “Sei que é preciso sonhar. Campo sem
orvalho, seca a fronte de quem não sonha”.
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Lidiany de Lima
CAVALCANTE
Trabalhou na concepção, delineamento, análise e interpretação de dados, redação
do artigo, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada.
Pós-doutorado em
Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Professora da Universidade Federal do Amazonas desde 2014. Desenvolve
atividades de pesquisa e extensão nas áreas de gênero, sexualidades, saúde mental
e enfrentamento ao suicídio.
Maria Isabel Barros
BELLINI
Trabalhou na concepção, delineamento, análise e interpretação de dados, redação
do artigo e revisão crítica.
Professora da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul nos Programas de Serviço
Social e Ciências Sociais. Desenvolve atividades de pesquisa e extensão nas
áreas de família, intersetorialidade, política de saúde e educação em saúde.
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* Assistente Social. Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. (UFAM, Manaus, Brasil). Av. Rodrigo Otávio Jordão, nº. 6200, Coroado I, Campus Universitário Senador Arthur Virgílio Filho, Manaus (AM), CEP.: 69080-000. Bolsista do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD/Amazônia). E-mail: lidiany@ufam.edu.br.
** Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora no Programa de Pós-graduação em Serviço Social e no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. (PUCRS, Porto Alegre, Brasil). Assistente Social na Escola de Saúde Pública da Secretaria de Estado de Saúde do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, nº 6681, prédio 8, sala 401.16, Paternon, Porto Alegre (RS). CEP 90619-900, Caixa Postal, 1429. E-mail: maria.bellini@pucrs.br e maria-bellini@saude.rs.gov.br.
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