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“NÃO SE APLICA”: Políticas Penais e Custódia Psiquiátrica

Feminina na Bahia

 

“NOT APPLICABLE”: Penal policies and female psychiatric custody in Bahia

 

Jessica Hind Ribeiro COSTA *

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Descrição gerada automaticamente http://orcid.org/0000-0003-4640-3318

 

Helena Loureiro MARTINS **

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0001-7758-6044

 

Resumo: Este estudo objetivou compreender que definição de saúde se aplica aos tratamentos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), segundo dados do Plano Estadual De Atenção às Mulheres Privadas De Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (2018). Para tanto, utilizou-se de pesquisa qualitativa, estudo de caso com procedimento de revisão de literatura e revisão normativa. Como resultado, tem-se uma definição de saúde adstrita ao enfrentamento de enfermidades, conforme o biologicismo do final do século XIX e começo do século XX. Deste entendimento, decorre a desconsideração de dimensões do estado de integridade biopsicossocial da mulher. Considerando o HCTP e os presídios femininos como equivalentes enquanto instituições totais, conclui-se que as pacientes psiquiátricas possuem menos direitos sociais previstos na Constituição Federal do que aquelas que cumprem pena.

Palavras-chave: Saúde da Mulher. Instituições Totais. Direitos.

 

Abstract: This study aims to understand the definition of health that applies to treatment at Custodial Psychiatric Treatment Hospitals (HCTP) according to data from the State Plan for the Care of Women Deprived of Liberty and Released from the Prison System of Bahia (2018). Qualitative research, and case study with literature review and normative review were employed. The resulting definition links health to confronting illness, which conforms to the biology of the late 19th and early 20th centuries. This understanding results in disregarding women’s state of biopsychosocial integrity. Viewing HCTPs and women’s prisons as equivalent, as total institutions, it concludes that psychiatric patients have fewer social rights provided for in the Federal Constitution than those who are imprisoned.

Keywords: Women's Health. Total Institutions. Rights.

 

Submetido em: 31/1/2023. Revisto em: 3/5/2023/ 29/6/2023. Aceito em: 14/7/2023.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

E

ste trabalho é resultado de uma tentativa de compreensão sobre que definição de saúde propicia às mulheres das penitenciárias terem perspectiva de direitos sociais previstos na Constituição Federal (Brasil, 1988) como o trabalho, a proteção à maternidade (berçário), lazer (pátio de convivência, direito à visita íntima) e às mulheres do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico não. Essa comparação só é possível pelo estatuto jurídico desse Hospital que, embora se proponha a tratar mulheres com demandas psiquiátricas, se submete à estrutura física e legislativa própria do direito penal.

 

Ao longo dessa investigação, foi utilizada pesquisa de abordagem qualitativa e de objetivo explicativo, pelo caráter subjetivo e simbólico das variáveis do estudo (Godoy, 1995), recorrendo à análise de dados bibliográficos secundários extraídos da revisão de literatura e de dados documentais em revisão normativa. Além disso, foi utilizada a técnica do estudo de caso, como uma “[...] categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente” (Trivinos, 1987, p. 133). O objeto do estudo de caso foi o Plano Estadual De Atenção às Mulheres Privadas De Liberdade e Egressas Do Sistema Prisional da Bahia (2018), por estar em vigor e incluir o HCTP como destinatário de suas políticas de garantia de direitos para mulheres.

 

Inicialmente, buscou-se contextualizar a instituição dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico da Bahia enquanto instituição total (Goffman, 1987) de privação de liberdade, bem como sua previsão, junto aos presídios femininos, no Plano Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (Bahia, 2018).

 

Em seguida, foram elencados os direitos sociais previstos nesse Plano para as mulheres em cumprimento de pena e para as mulheres em cumprimento de medida de segurança. Por fim, as pesquisas de Globekner (2011), Foucault (2019), Silva (2005), dentre outras, apresentaram o panorama histórico do qual se analisa se a concepção de saúde está de acordo com a previsão de direitos sociais no âmbito das mulheres em tratamento no HCTP.

 

ENTRE MANICÔMIOS E PRISÕES: AS MULHERES À MARGEM

 

Nem ao hospital, nem ao presídio. O espaço destinado àquelas(es) que cometem infração penal sob domínio de um transtorno psiquiátrico é uma instituição de características híbridas e propósito questionável: Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), onde, em lugar da pena, cumpre-se Medida de Segurança. Atribui-se à Inglaterra do século XVIII o pioneirismo dessa terceira via, importada definitivamente ao Brasil com a criação do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, de 1921 (Carrara, 1998).

 

Estão ativos atualmente 26 estabelecimentos desta natureza, nos quais cerca de 151 mulheres encontram-se internadas (BAHIA, 2018). Apesar dos espessos muros, físicos e legais que os sustentam, muitas contradições os cercam e os permeiam. Evidência disso é que, embora se conclua que a infração foi motivada por uma crise de saúde mental, o modelo de tratamento (internação ou ambulatorial) é definido não pelo diagnóstico, mas pela pena que seria imputada ao ato cometido (Brasil, 1940).

 

Além disso, parte deles, como o da Bahia, funciona em prédios construídos arquitetonicamente conforme o modelo prisional. As(os) pacientes são distribuídas(os) em celas gradeadas e conduzidas, entre uma consulta médica e outra, sob vigilância de policiais penais armados(as). Tal perspectiva coloca as mulheres ao mesmo tempo na condição de presas e doentes, agravando o estigma social em que vivem e culminando, por vezes, em situações de autoestigma e perda de percepção de valor ou de titularidade de direitos.

 

Esse formato de organização é a junção de duas das três categorias que Goffman (1987) chama de instituições totais, quais sejam: os conventos, para as pessoas inofensivas que demandam cuidado; os manicômios, para as pessoas que demandam cuidados, mas representam uma ameaça à comunidade de maneira não intencional; e as prisões, para proteger a comunidade do perigo de males que se supõe intencionalmente causados.

 

São características que unem essas instituições totais: a) o rompimento de barreiras tradicionais entre os locais de trabalho, descanso, lazer, de modo que todas essas vivências passam a acontecer em um mesmo local, sob uma mesma autoridade, b) a convivência compulsória em grupo de pessoas tratadas da mesma forma e submetidas à mesma rotina, c) em sequência de horas e sistema de regras predeterminadas e d) cujas atividades obrigatórias são reunidas em um plano racional pensado para atender aos objetivos da instituição (Goffman, 1987).

 

Embora teoricamente mais próximo do que seriam os manicômios, a consequência criminal dos perigos não intencionais mencionados por Goffman fez do HCTP um manicômio dentro do sistema prisional. Essa condição particularmente híbrida resulta na dificuldade de alcance de políticas públicas tanto sanitárias quanto prisionais.

 

Do ponto de vista sanitário, a lei nº 10.216, conhecida como Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2001), desafiou radicalmente a eficácia desse tratamento manicomial hegemonicamente aplicado a pacientes psiquiátricas(os), cuja reintegração social não poderia se dar a partir do isolamento. Com isso, vedou expressamente a internação dessas(es) pacientes em instituições com características asilares. No entanto, a Reforma anuiu indiretamente à existência do HCTP quando manteve em seu texto a previsão de internação compulsória nos casos determinados pela Justiça.

 

A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), apoiada na Lei 10.216/01, buscou consolidar a atenção à saúde mental aberta à base comunitária. Isto é, no lugar do isolamento, o convívio com a família e a comunidade. Trata-se, como impulsionado pela Reforma Psiquiátrica, de uma emergente tentativa de desinstitucionalização do modelo de saúde mental, ou seja, de superação das instituições totais a partir do protagonismo do paciente em relação à cura, e não do tratamento como um fim em si mesmo. O termo, de origem anglo-saxã, se destacou no Brasil a partir dos movimentos sanitaristas das décadas de 1960-1970, de proposta universalista e igualitária da qual procedeu também o Sistema Único de Saúde (Venturini, 2010). Essa abertura de portas, em termos teóricos, em lugar ter servido como parâmetro progressivo às políticas públicas, revelou o seu distanciamento permanente do HCTP.

 

Na tentativa posterior de compatibilizar os opostos, foram editadas portarias e resoluções[1] deliberando que, embora autorizadas, tais instituições deveriam ser paulatinamente substituídas por tratamentos ambulatoriais e que, enquanto em funcionamento, não poderiam ter características asilares. A definição de instituição sem características asilares é trazida pela Reforma Psiquiátrica como aquela que, dentre outros quesitos, garante à paciente “[...] I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;” e “II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (Brasil, 2001).

 

A partir dessa realidade de marginalidade e exclusão que estava associada à ideia de doença mental, surgiram os processos de reforma psiquiátrica que se converteram rapidamente em um movimento contra cultural questionador da própria doença mental e da psiquiatria (Desviat, 1999). Na mesma linha, Paulo Amarante (1995, p. 91) define o fenômeno como: “um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”.

 

Na contramão do apagamento cultural e identitário proporcionado pelas instituições totais, a inclusão de fatores como família, trabalho e vivência de comunidade nesta concepção de saúde da lei de 2001 demonstra a sua coesão com a então publicação da Constituição Federal (Brasil, 1988). No mesmo artigo 6º, a Constituição elencou a saúde, o trabalho, a educação, o lazer e a proteção à maternidade como um conjunto de direitos sociais a serem garantidos a todas as pessoas no Brasil.

 

Na mesma Constituição, está expresso o direito à saúde como pertencente à coletividade e alvo de dever prestacional pelo Estado, a partir do acesso universal e igualitário. Destaca-se, além disso, a partipação da comunidade e o atendimento integral como diretrizes de sua prestação. A atinência à participação da comunidade está intimamente ligada ao atendimento integral enquanto diretriz, uma vez que, juntos, demonstram a compreensão do ser humano enquanto ser sociologicamente complexo, cuja cura só pode se valer, também, das diversas camadas que o compõem, em oposição ao tratamento isolador das instituições totais.

 

Ademais, tal conjunto expõe a visão de que o conceito de saúde tem seu conteúdo variável conforme o contexto da população diretamente envolvida. Na América Latina especialmente, em que as desigualdades sociais afetam o acesso a recursos básicos, desenvolveu-se a ideia de saúde integral como aquela comprometida positivamente com as diferentes dimensões existenciais dos sujeitos, atendendo ao direito individual e coletivo de realização do potencial humano (Globekner, 2011).

 

Apesar desta ideia internalizada nas normas federais de saúde e na previsão constitucional, o HCTP é formalmente um estabelecimento penal (Brasil, 1984) e seu cumprimento efetivo depende de que suas diretrizes sejam também levadas em consideração pelas políticas públicas penais dos estados responsáveis pela sua administração.  Com isso, espera-se que as políticas públicas penais considerem não só o tratamento de saúde no direcionamento de recursos aos estabelecimentos, como que o faça a partir de uma compreensão de saúde que harmonize com as características não asilares previstas.

 

No tocante ao estigma associado as características até aqui mencionadas, é necessário primeiramente analisar que as mulheres no HCTP conseguem ao mesmo tempo se incluir no grupo de criminosas e loucas, ambos certamente associados a periculosidade e que necessariamente culminam com a exclusão social. Nesse sentido, merece destaque os estudos de Goffman sobre as questões de estigma, as quais serão apresentadas de forma breve.

 

O estigma social é definido pela desaprovação das características e crenças pessoais que confrontam as normas culturais prevalentes em determinado grupo social, conduzindo os portadores destas características ou adeptos destas crenças à marginalização. Portanto, o estigma é a “situação do indivíduo que é inabilitado para a aceitação social plena” (Goffman, 1982, p. 4) e refere-se a “[...] um atributo profundamente depreciativo” (Goffman, 1982, p. 6).

 

No que se refere às consequências do estigma para os indivíduos estigmatizados, o principal impacto é a internalização do estigma, fenômeno denominado autoestigma ou estigma internalizado. Dessa forma, quando as pessoas percebem que pertencem a uma categoria socialmente desvalorizada, podem antecipar a desvalorização e a discriminação, mesmo quando elas não ocorrem efetivamente, realçando o sentimento de vergonha e levando-as a rever suas conceituações a respeito de si mesmos. O problema do autoestigma é a criação de um círculo vicioso, em que a internalização do estigma conduz à diminuição da autoestima e prejudica as relações sociais, provocando, muitas vezes, seu isolamento social e a hesitação para a busca de ajuda profissional e tratamento adequado para sua condição (Felicissimo et al., 2013).

 

Certamente o estigma e a percepção de si afetam diretamente a identidade da mulher que vivencia o HCTP e também certamente afeta o seu estado de saúde. O estigma e o autoestigma passam a se constituir, assim, como obstáculos a vida plena em sociedade, dificultando a construção das relações sociais. O sujeito sofre, não apenas pela característica ou pela doença, mas também pela segregação que inferioriza e nega oportunidades para uma vida digna (Rocha, 2013). Assim, fundamental é repensar as políticas públicas e iniciativas que possam proporcionar para as mulheres do HCTP a oportunidade de vivenciar uma existência digna, mesmo no ambiente de restrição ora debatido.

 

Entre as iniciativas mais recentes a este respeito, tem-se a Política Nacional de Atenção à Mulher Privada de Liberdade e Egressa do Sistema Prisional (2014), que tem como uma de suas diretrizes assegurar o “direito à saúde, educação, alimentação, trabalho, segurança, proteção à maternidade e à infância, lazer, esportes, assistência jurídica, atendimento psicossocial e demais direitos humanos” às mulheres nos estabelecimentos penais.

 

Conforme o mesmo documento, esta Política Nacional deve ser articulada junto aos órgãos estaduais, para que elaborem Plano próprio de cumprimento. Diversos planos foram então elaborados, dentre eles o Plano Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (Bahia, 2018), o qual elegemos como estudo de caso acerca do conceito de saúde adotado, e então passamos a analisar.

 

A SAÚDE “N/A: NÃO SE APLICA” E AS AUSÊNCIAS PERCEBIDAS NO ÂMBITO DO HCTP-BA

 

O Plano Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (Bahia, 2018) teve como estratégia partir do levantamento de dados sobre as mulheres dos estabelecimentos prisionais administrados pela Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP). De posse desses dados, o Plano então passou a traçar objetivos e metas para os anos seguintes nesses estabelecimentos.

No Plano, consta o HCTP-BA como um dos seus alvos e se destaca entre os estabelecimentos descritos por considerá-lo “[...] um espaço de abrigamento, acolhimento e tratamento [...]” (Bahia, 2018, p. 11), em contraponto aos de responsabilização penal. Já no levantamento de dados, contudo, sua condição de destaque transfigura-se em marginalização, uma vez que as categorias de análise não parecem ser aplicáveis ao Hospital.

 

É o que se infere da série de interrogações que preenchem apenas a coluna destinada ao HCTP na tabela de dados sobre a população LGBTQIA+, por exemplo. A ausência de dados sobre gênero e sexualidade contribui para uma falsa percepção de que as mulheres em tratamento estão em um estado de neutralidade frente aos seus desejos e ao seu processo de autoconhecimento, passivas em face das intervenções químicas.

 

Tabela  1 – Dados da população LGBT

 

CPF

HCT

CPFS

CPI

CPJ

CPPA

CPTF

CPVC

CPJEQ

Heterossexual

 

86

?

80

-

50

28

-

40

22

Homossexual

 

14

?

4

10

3

-

10

20

1

Bissexual

 

-

?

2

-

6

1

3

9

4

Transexual

 

-

?

-

-

-

1

-

-

-

Travesti

 

-

?

-

-

-

-

-

-

-

Espaço

diferenciado

-

?

-

-

-

-

-

-

-

Fonte: Bahia (2008, p. 15)

 

Outro dado cuja tabela o Plano não preenche para as mulheres do HCTP é o relativo ao trabalho. Enquanto os conjuntos penais têm o trabalho remunerado como direito social garantido, para o HCTP "N/A: Não se Aplica".

 

Tabela  2 – Dados de atividade laborativa

 

CPF

HCT

CPFS

CPI

CPJ

CPPA

CPTF

CPVC

CPJEQ

Com trabalho

 

37

N/A

44

17

25

11

46

7

-

Remunerada

 

-

N/A

5

6

-

-

3

1

-

Não

Remunerada

37

N/A

39

11

25

11

40

6

-

Sem trabalho

 

68

N/A

43

50

35

20

24

60

38

Fonte: Bahia (2008, p. 19)

 

Essa não previsão, sobretudo para as pacientes em longa internação, é duplamente danosa: ao passo em que comunica a ideia de que do transtorno psiquiátrico decorre um estado de incapacidade laborativa, diminui as perspectivas da egressa de retorno ao mercado de trabalho pelo lapso de experiências.

 

Importa mencionar neste ponto que, embora aqui referenciado como direito, a previsão do trabalho remunerado nos moldes da Lei de Execuções Penais deve ser visto com cautela, na medida em que tem caráter obrigatório para os condenados definitivamente. Enquanto, por um lado, a Constituição Federal proíbe as penas de trabalhos forçados, a previsão da LEP encontra sua legitimação jurídica em uma forma de coerção indireta, qual seja a consequência de cometimento de falta grave pelo(a) preso(a) que se recusa a trabalhar.    

 

Já àqueles(as) que trabalham regularmente, é conferida a remição de pena, ou seja, a diminuição do número de dias a cumprir em privação de liberdade proporcionalmente a cada dia de trabalho realizado, instituto que não encontra respaldo na Medida de Segurança. Assim, a perspectiva de direito ao trabalho como direito social no contexto prisional é apenas um lado do ponto de vista, cuja importação à rotina do Hospital de Custódia só será frutífera na medida em que repensado sob o prisma do compromisso com a saúde, e não sob um prisma utilitário sobre os corpos sujeitos à restrição de liberdade.

 

Seguindo no documento, o dado acerca da existência de espaço específico para gestante é identificado em alguns estabelecimentos e outros não. Para o HCTP: "N/A: Não se Aplica", evidenciando uma estrutura que desconsidera a possibilidade de o internamento compulsório para tratamento psiquiátrico ocorrer concomitantemente à gravidez da mulher.

 

Mais uma evidência nesse sentido é a falta de previsão de visita íntima nesses espaços, diferente do que ocorre com os conjuntos penais, que a têm garantida. Essa ausência afeta sobretudo as mulheres em estado de longa internação, cujas relações prévias, quando não rompidas pelo estigma, só podem ser cultivadas sob permanente vigilância.

 

                                                           Tabela 3 – Infraestrutura física

 

CPF

HCT

CPFS

CPI

CPJ

CPPA

CPTF

CPVC

CPJEQ

Espaço específico para

gestantes e berçário

-

N/A

X

-

-

-

-

-

-

Unidade Básica de Saúde

 

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Escola

 

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Biblioteca

 

X

X

X

X

X

X

X

X

X

Espaço separado para provisórias e sentenciadas

-

N/A

-

-

-

-

-

-

-

Espaço específico para o regime semiaberto

-

N/A

-

-

X

-

X

-

-

 

Local específico para visita

íntima

X

N/A

-

-

-

-

-

-

-

Local específico para visita de

menores

-

X

-

-

-

-

-

-

-

Refeitório

 

X

X

-

-

-

-

-

-

-

Espaço para atividade laborativa

 

X

X

X

X

-

X

X

X

X

Fonte: Bahia (2008, p. 20)

 

Além disso, à época da coleta de dados desse documento, foi registrado que as mulheres do HCTP não tinham acesso ao pátio comum externo do estabelecimento. Essa restrição de acesso à luz natural para mulheres já em privação de liberdade em uma instituição total, é sobretudo gravosa tendo em conta que elas estão ali pelas suas necessidades de saúde mental.

 

A ausência de dados não só é sintomática por si, como também repercute nos quesitos que serão considerados na destinação de recursos de políticas públicas. No fim desse mesmo documento, são estabelecidas metas a serem cumpridas nos próximos anos, como ampliação de pátios, suprimentos para o espaço da gestante e implantação de locais para visita íntima onde não há. Para o HCTP, no entanto, qualquer quesito é inócuo se a ele "N/A: Não se Aplica".

 

A não resposta se estabelece, pois, também como uma conclusão. O fato de não se aplicar demonstra a incapacidade de fornecer às mulheres condições básicas de dignidade. A tal fato, pode-se traçar um paralelo com a Teoria da Não Decisão (Bachrach; Baratz, 1963) a qual compreende que conceitos de poder, força, influência e autoridade interferem diretamente na ausência de decisões (sobretudo judiciais) acerca de um tema.

 

A presente pesquisa também encontrou como resposta uma lacuna no tocante aos dados referentes aos direitos das mulheres no HCTP, os quais existem (e são assegurados) às mulheres internas em presídios, dando a entender, que numa hipotética escala de importância, as mulheres do HCTP detêm ainda menos valia, o que culmina na inexistência de iniciativas de efetivação de direitos.

 

QUE SAÚDE TRATAR? A (IN)COMPATIBILIDADE COM AS DIRETRIZES DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

 

Diante desse cenário, percebe-se que a concepção de saúde adotada no âmbito do Hospital de Custódia não é compatível com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, tampouco com as portarias e resoluções que tentam adaptá-la ao HCTP. Isto porque, para sua efetividade, estas diretrizes precisariam ser também incorporadas pelas políticas públicas penais que o abarcam.

 

Sabendo que não foram incorporadas, a partir do exemplo do Plano da Bahia, coloca-se a questão sobre que concepção de saúde é adotada por essas políticas quando referem-se ao modelo de tratamento psiquiátrico. Diante de um tratamento de saúde baseado no isolamento compulsório, sem comprometimento interrelacional senão com outras pessoas também consideradas doentes, sem previsão de experiência laborais, afetivas, de maternidade e lazer, ou seja, de direitos sociais, ligados ao conceito de saúde integral e de base comunitária da Constituição, passamos a buscar paralelos na sistematização histórica proposta por Globekner (2011).

 

 Em seu texto, Globekner (2011) aponta que o período entre a Revolução Industrial do século XIX e o começo do século XX produziu uma definição de saúde similar, de base reducionista e biologicista. Nessa, a comunidade científica detinha-se unicamente à descoberta e ao controle de doenças que acometiam a população.

 

Com isso, a saúde tornou-se um conceito negativo, ou seja, sinônimo da ausência de doenças, apenas, de forma diversa do caráter universalizante pelo qual a saúde é vista tanto na Constituição quanto na gama legislativa que acompanhou a reforma psiquiátrica. Uma vez que a visão do próprio ser humano era, por sua vez, cartesiana e mecanicista, decorria a atenção sobretudo ao enfrentamento dos sintomas disfuncionais de doenças, destacadamente as infecciosas. Parte-se, pois, de “[...] noções de função biológica e normalidade estatística” (Almeida Filho; Jucá, 2002).

 

Sendo a mera superação da doença identificada como objetivo, justifica-se a atinência do tratamento à relação paralela entre paciente e equipe médica, essa última enquanto protagonista e portadora exclusiva do saber necessário à recuperação do estado de saúde. Esse protagonismo médico psiquiátrico foi uma conquista também advinda da primeira metade do século XX, quando a doença mental passou a ser reconhecida como objeto de um campo de estudo médico particular e autônomo (Silva, 2005).

 

Nesse processo de conquista da autonomia, coube então à psiquiatria provar-se também competente, segundo os paradigmas científicos em voga, para dominar esse novo objeto que lhe foi confiado. Assim, formou-se o contexto de biologização das ciências incorporada pela psiquiatria para afirmar-se campo médico legítimo.

 

A isso, soma-se a tradição apresentada por Foucault (2019) de que o tratamento de pacientes de saúde mental deveria realizar-se em estabelecimentos alheios ao centro da comunidade urbana. Já no início da História da Loucura traçada pelo autor, é apresentado o percurso percorrido pelas(os) pacientes que, uma vez diagnosticadas(os), passavam a ocupar leprosários, pouco antes desativados com o controle sanitário da lepra, com isso herdando não só sua estrutura excludente, como também o estereótipo de portarem consigo um mal contagioso e degradante.

 

Essa tradição foi reforçada nacionalmente pelas influências higienistas e eugenistas que se estabeleceram na saúde pública do Brasil no começo do século XX. Para essas teorias, os corpos considerados racialmente degenerados assim o eram por uma interrupção em seu curso evolutivo, tornando-os intrinsecamente incapazes de corresponder às expectativas civilizatórias (Carrara, 1998). A separação desses corpos em instituições seguras se fazia necessária, então, para estudá-los, controlá-los e impedir sua reprodução.

 

A perspectiva segregacionista ganhou expressão mundial ao firmar-se como basilar na construção ideológica do nazismo e seus campos de concentração. Sua decadência pós-guerra, portanto, demandou que viesse acompanhada de uma reformulação do que se entendia por saúde.  A partir de então, a Constituição da Organização Mundial da Saúde, em 1946, reconheceu o conceito de saúde como "[...] o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade [...]" (Brasil, 1948, não paginado), tendo sido o presente conceito promulgado no país através do Decreto 26.042, de 1948, resultado da ratificação do Brasil aos atos firmados por ocasião da Conferência Internacional de Saúde.

 

A definição abrangente de saúde, embora criticada pela sua amplitude genérica (Segre; Ferraz, 1997), foi o pontapé inicial para se entender que a saúde não é uma responsabilidade individual, mas uma gama de fatores biopsicossociais. Desse modo, as experiências na dinâmica em comunidade são fundamentais não só para a restauração de saúde, como para a própria formulação do conteúdo deste conceito.

 

Nesse sentido, só é possível compreender a violação dos parâmetros de saúde que geraram um diagnóstico recorrendo ao estudo dos próprios padrões de funcionalidade de seu contexto. Assim, a comunidade passa a compor o próprio diagnóstico, em uma análise necessariamente dialética com o indivíduo em seus limites e potencialidades relativos.

 

Tratando-se do Brasil, em que as condições de desigualdade afetam sobremaneira as mulheres em diversos aspectos de sua existência, a consideração do contexto originário das pacientes sob custódia nos HCTPs é indispensável.   Empobrecimento, condições de trabalho precárias, abandono afetivo, heteronormatividade compulsória, maternidade sem rede de apoio, sobrecarga doméstica, violência sexual são fatores que estão, para além das desregulações químicas, diretamente comprometidas com o adoecimento psíquico feminino.

 

Nesse sentido, não é admissível que normas de políticas públicas contemporâneas, sobretudo aquelas setoriais, de especial proteção à população marginalizada, permaneçam alheias a essa compreensão crítica, tal como revela os parâmetros de saúde em que se baseia o Plano Estadual de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (2018). O reducionismo ao enfrentamento de doenças e enfermidades, conforme entendia o biologicismo do final do século XIX e começo do século XX (Globekner, 2011), desconsidera dimensões de bem-estar e qualidade de vida como componentes do estado de integridade da mulher. Considerando o HCTP como um espaço que acolhe as mulheres em estado de profunda vulnerabilidade biopsicossocial, as normas a que se sujeita não podem pretender, portanto, alcançar efetividade sem trazer consigo a análise e oferta dos direitos que lhes foram negados.  

 

Tanto na produção acadêmica como nas políticas públicas na esfera penitenciária, o encarceramento parece figurar como a fase final do sistema de justiça, ignorando-se que após o retorno à liberdade, as pessoas libertas do cárcere têm pela frente muitos desafios para a reintegração social. Maior é o problema quando diante de um sistema no qual a inimputabilidade e a ausência de critérios claros de progressão e soltura são características.

 

Sintoma dessa realidade é o fato de não haver dados oficiais e ou indicativos de efetivação de garantias semelhantes às asseguradas às detentas do sistema prisional. Se os dados sobre questões relacionadas são inexistentes, menos ainda se conhece sobre a condição dessas pessoas no HCTP, consequentemente, dificultando uma intervenção mais adequada por parte do Estado, no sentido de contribuir para a efetiva reintegração social de pessoas que tiveram a liberdade cerceada por um determinado período de tempo pelo cometimento de ato infracional sob influência de transtorno mental.

 

Essa orientação abre espaço para o debate sobre o tratamento a ser dado às mulheres, através de políticas governamentais que, amparadas no arcabouço normativo, pudessem incentivar nas internas o respeito a si próprios/as e o sentido de responsabilidade que permita o resgate da autonomia plena e a autossustentação, o que deveria estar associado a um pleno cuidado em saúde mental, de acordo com as premissas da Reforma Psiquiátrica, e também com as garantias amplamente debatidas dos direitos assegurados pelas mulheres em cumprimento de pena de restrição de liberdade (Costa, 2011).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A manutenção do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico com suas características asilares correspondentes a uma instituição total está lastreada na conivência de políticas públicas penais cujos recursos materiais e humanos não o alcançam. Tomado o exemplo dos dados extraídos do Plano Estadual de Atenção às Mulheres. Privadas de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional da Bahia (Bahia, 2018), conclui-se que sua visão de tratamento de saúde viola os parâmetros estabelecidos por diversas referências normativas, como a Reforma Psiquiátrica, a Organização Mundial de Saúde e a Constituição Federal de 1988, que sustentam esse direito como de base comunitária e integral, diverso da visão de saúde como mera ausência de doença, próprio do pós 2ª Guerra Mundial.

 

Trata-se de instituição que favorece a marginalização de mulheres, as quais permanecem isoladas, sem acesso a um efetivo tratamento de saúde, muito mais se aproximando de um ambiente prisional. No entanto, difere-se deste último por ser um ambiente ainda mais ineficaz no tocante a efetivação de direitos. Percebe-se também que, enquanto atendimento que prioritariamente deveria visar o tratamento de saúde das internas, o HCTP está ainda bastante distante de uma efetiva proteção das garantias e premissas asseguradas pela luta antimanicomial. Esta integração, para ser efetiva, deve visar o tratamento igualitário, mas atentando para as desigualdades do caminho de pacientes repletos de sequelas de estigmas e violências de gênero. Mostram-se, pois, insuficientes as tentativas de desinstitucionalização adstritas aos mesmos muros físicos e simbólicos do modelo penitenciário, como no HCTP-BA.

 

Em seu lugar, subsiste o protagonismo medicalizante que evidencia influências de uma ideia de saúde própria do final do século XIX e início do século XX. Essa concepção, baseada na manipulação biologizante dos corpos, produz danos especialmente às mulheres internadas, por desconsiderar os fatores plurais que contribuem diretamente para o seu adoecimento psíquico. Dentre esses fatores, estão privações de direitos sociais como lazer, maternidade e trabalho, que o Plano, aqui tomado como estudo de caso, garante expressamente às mulheres que cumprem pena.   Por outro lado, reconhecidas as limitações generalizantes dessa via metodológica, não se observa a mesma previsão expressa às que estão sendo tratadas. A essas, conforme infere-se de suas lacunas, a mesma concepção de saúde “N/A: Não se Aplica”.

 

 REFERÊNCIAS

 

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Jessica Hind Ribeiro COSTA Trabalhou na concepção, delineamento e redação do artigo e revisão crítica do texto.

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Doutora em Direito das Relações Sociais e Novos Direitos pela Ufba. Pós-Doutora em Desigualdades Globais e Justiça Social (FLCSO-UNB). Pós-Doutora em Direito e Novas Tecnologias pela Mediterranea International Centre for Human Rights Research. Pós-Graduada em Direito Civil pelo Complexo Educacional Damásio. Especialista em Teoria e Práticas Clínicas em atenção psicossocial aos usuários de substâncias psicoativas pela Ufba. Professora do curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica do Salvador.

 

Helena Loureiro MARTINS Trabalhou na concepção, delineamento e redação do artigo e realizou análise e interpretação dos dados de forma exclusiva.

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Mestra em Ciências Humanas e Sociais. Servidora Pública da Agência Reguladora do Estado da Bahia.

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* Advogada. Doutora em Direito das Relações Sociais e Novos Direitos. Professora do curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica do Salvador (UCSAL, Salvador, Brasil). Av. Prof. Pinto de Aguiar, nº 2589, Pituaçu, Salvador (BA), CEP.: 41740-090. E-mail: jessicahindribeiro@gmail.com.

 

** Advogada. Mestra em Ciências Humanas e Sociais. Servidora Pública da Agência Reguladora do Estado da Bahia. (Agerba, Salvador, Brasil). 4º Avenida, 435, Centro Administrativo da Bahia, Salvador (BA), CEP.: 41745-002. E-mail: helenaloureiro.martins@gmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] São elas a portaria interministerial n. 1.777/MJ/2003 (Brasil, 2003), responsável por instituir o Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário (PNSSP) e a Resolução nº 05, de 4 de maio de 2004 (Brasil, 2004), do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).