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A branquimanicomialização da política de saúde mental brasileira

 

The “whiteness” of the “committal” process within Brazilian mental health policy

 

Cibele da Silva HENRIQUES*

 https://orcid.org/0000-0003-1975-1763

 

Resumo: O artigo analisa como se estrutura o processo de branquimanicomialização do cuidado em saúde mental para a população negra na sociedade brasileira, identificando os conflitos e as correlações de forças. Para a sua construção, recorreu-se à pesquisa qualitativa, por meio de investigações bibliográficas e documentais. De modo geral, verificaram-se contradições na construção da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), a constância de uma cultura manicomial, hospitalocêntrica e racista ao longo da construção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), resultando, inicialmente, na filiação da branquitude nos cargos de gestão, na branquimanicomialização da clínica do cuidado, na mercadorização da desinstitucionalização e na criminalização da redução de danos por meio do financiamento das comunidades terapêuticas.

Palavras-chave: Branquitude. Manicomialização. Racismo. Reforma Psiquiátrica.

 

Abstract: This article analyses the structure of the “whiteness” of the “committal” process within mental healthcare for the black population within Brazilian society, identifying the conflicts and correlations of forces. Qualitative research was conducted, through bibliographical and documental investigation. There are evident contradictions within the construction of Brazilian Psychiatric Reform (BPR). The continuance of a committal based, hospital-centric, and racist culture throughout the structure of the Psychosocial Care Network (Rede de Atenção Psicossocial  - RAPS) were clear, resulting in a link between “whiteness” and management positions, the “whiteness” of the “committal” process within clinical care, the commodification of deinstitutionalisation, and in the criminalisation of harm reduction through the financing of therapeutic communities.

Keywords: Whiteness. Committal. Racism. Psychiatric Reform.

 

Submetido em: 31/01/2023. Revisto em: 14/4/2023. Aceito em: 22/5/2023.

 

1 Introdução

 

O

s estudos críticos da branquitude, de origem estadunidense, iniciaram-se durante a luta pelos direitos civis de negras/os no cenário político e social do apartheid sulista, tendo como pioneiro o ativista pan-africanista W. E. B. Du Bois (1935), com a sua publicação Black Reconstruction in the United States, que tratou como fenômeno político os privilégios brancos e suas expressões entre trabalhadores brancos e negros norte-americanos no século XIX.

Du Bois (1935) apresenta as vantagens públicas e psicológicas presentes nas divisões social e técnica do trabalho para os brancos estadunidenses para compensar os baixos salários recebidos, os quais denominou “[...] the public and psychological wage [...]” (Du Bois, 1935, p. 700), que optamos por traduzir literalmente como salário público e psicológico, que é ofertado às/aos brancas/os, como, por exemplo, o acesso aos melhores equipamentos educacionais, aos cargos públicos com maior prestígio e remuneração, enquanto, para negras/os, eram ofertados a manutenção dos graus de inferioridade e os insultos públicos no acesso aos serviços.

 

Os estudos críticos sobre a branquitude[1] também foram realizados em outros países, como Inglaterra, Austrália, África do Sul, entretanto, destacamos a retomada crítica feita pelo militante pan-africanista martinicano Frantz Fanon, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, publicado na década de 1950, no qual defende a abolição da raça, em que a construção da negritude – compreendida como um meio necessário para romper com os valores da branquitude – se constitui como ponto de partida para a retirada das máscaras brancas, não sendo um fim, mas um devir da construção da (des)racialização das relações sociais, políticas, econômicas e culturais.

 

Pensar a construção da negritude a partir da relação com a branquitude no Brasil é um desafio constante, pois é preciso descortinar o salário público e psicológico que se traduziu em melhores oportunidades de acesso aos bens e serviços, como, por exemplo, legislação e subsídios estatais para aquisição de terras (1850), a instituição da educação pública compulsória para a branquitude com a constituição de reserva de emprego no funcionalismo público e/ou assalariamento que possibilitou o associativismo por categoria profissional para o acesso a serviços de saúde e proteção à invalidez, acidente e morte. Esse processo também assegurou um efeito de cunho psicológico – a promoção da saúde mental da branquitude, em detrimento das condições psíquicas da população negra. A branquitude não experimentou a miséria, a fome, beber e tomar banho com água de esgoto e dormir com ratos ao seu redor.

 

A tristeza negra, batizada de banzo, considerada um estado de depressão psicológica oriunda das violências sofridas pelas/os africanas/os escravizadas/os e sequestradas/os, sustentou o sistema de privilégios da branquitude, que dormia tranquilamente na terra do café sob os gritos da tortura que levou à morte a população negra. A maioria dos estudos brasileiros da branquitude enfatiza a dimensão psicológica, sem anunciar os efeitos das vantagens materiais oportunizadas pelo Estado, como a não criminalização das culturas europeias, a liberdade de crença, culto e danças típicas, a criminalização pela pertença racial, o acesso à água encanada e esgoto sanitário por meio da legalização de loteamentos e urbanização desses espaços. Ademais, o acesso em idade regular à escolaridade possibilitou o preenchimento de vagas nos postos de trabalho com maior prestígio e remuneração.

 

Na década de 1930, a criação de serviços sociais no Brasil não se constituiu como um instrumento de reparação socioeconômico para os desterrados – indígenas e negras/os que atravessaram três séculos sob o simulacro do açoite, do tronco, que foram substituídos por novas formas de exploração. Pelo contrário, constituiu-se como uma filantropia sociorracial realizada pela branquitude para minorar as insurgências populares que reivindicavam melhores condições de vida e de trabalho e colocavam em xeque o processo de industrialização e urbanização que nasceu sob o signo do autoritarismo varguista (Henriques, 2021).

 

Nesse sentido, não se pode pensar numa cidadania após quatro séculos de escravidão, pois indígenas e negras/o e seus descendentes tiveram que lutar pelos insumos necessários para sua sobrevivência, uma vez que sua integração na vida econômica e social do país não foi tida como prioridade pelo poder público na Nova República.

 

Como aponta Fernandes (2008), as/os negras/os libertas/os e alforriadas/os, ao adentrarem o mundo dos brancos, foram colocadas/os no porão da sociedade, foram deixadas/os à própria sorte e sequer lhes foi concedida a possibilidade de disputar o trabalho livre na pátria livre, como fora aos imigrantes brancos. Logo, a senzala vazia nas mãos do senhor benevolente – o Estado – se transformou em prisão, em segregação para negras/os, que mesmo livres experimentaram cárceres institucionais construídos pela elite branca possuidora de terras (Fernandes, 1982, p. 47).

 

Para negras/os vadias/os, capoeiras e indigentes que não tinham trabalho e moravam nas ruas das cidades, como também para aqueles que tinham enlouquecido, o Estado erigiu espaços de confinamento que não tratavam das moléstias e dos miasmas causados pela escravidão, pois eram depósitos humanos – cemitérios de vivos –, como nomeou Lima Barreto. Vale rememorar que, para as/os alienadas/os da Corte Portuguesa, foi criado anteriormente, em 1852, o Hospício Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, a primeira instituição pública de alienados do Brasil, que, inicialmente, não recebeu negras/os para tratamento de moléstias da mente, pois sua função social era tratar da saúde da elite lusitana, a qual não era considerada coisa ou objeto, como os povos originários e escravizados.

 

A situação de negras/os ao longo da Nova República, sob a ordem competitiva, não afiançou outros moldes de existência para além daqueles do modo escravagista – o cárcere. O Estado, ao instituir uma série de legislações repressivo-raciais que objetivavam a indução e a correção moral pelo trabalho, criou as bases legais para o processo de criminalização da população negra, que morava em becos, vielas, mocambos, favelas, e tinha em comum o passado da escravização.

 

Em 1890, nesse cenário de criminalização da ‘liberdade de negras/os’, foi criado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, que versou oficialmente sobre as questões do menor e do delito; dos desempregados/as – ‘vadios/as’ – e do ilegal exercício da religiosidade – ‘práticas religiosas de matriz africana’. Num curto período de dois anos de sua promulgação, deu-se, consecutivamente, a base para a construção de um aparato jurídico coercitivo-penal que promoveu a criminalização de negras/os que não tinham como se senhorear, para os quais restou o legado da loucura, da prisão e do trabalho forçado nas colônias. Enfim, a herança do disciplinamento moral para o trabalho, a segregação até a morte. Aqueles que se insubordinavam contra a dominação-exploração logo eram classificados como alienadas/os (Henriques, 2021).

 

Tal legislação penal foi criada ao mesmo tempo que se constituíram as instituições de segregação no aparato penal e assistencial, como as colônias agrícolas de alienados, para onde foram levadas/os negras/os libertas/os classificadas/os como ‘desviadas/os moralmente’ e que tinham moléstias diversas, ou seja, que precisavam de ações correcionais e/ou assistenciais, as quais, no pós-abolição, já não podiam ser o açoite e o tronco. Assim, mediante tal impossibilidade, constituíram-se profilaxias morais e laborais que eram mediatizadas pelo trabalho forçado (Mattos; Abreu; Guran, 2013).

 

Cabe relembrar que as colônias agrícolas de alienados e o Lazareto da Gamboa, no Rio de Janeiro, eram o destino inicial, após o desembarque, das/os africanas/os com moléstias sociais e de saúde, antes de irem para a comercialização no Complexo do Valongo. Contudo, tais espaços ao longo do processo de alforrias e extinção da escravidão se tornaram destino das/os negras/os de origem africana no Brasil por conta da indigência que vivenciaram após a abolição formal da escravidão, que podemos conceber como uma “[...] experiência coletiva negra da indigência da fome, da exclusão e da loucura” (Mattos; Abreu; Guran, 2013, p. 17).

 

As colônias agrícolas e os lazários eram espaços que segregavam a líberdade, enquanto “[...] (re)coisificavam negras/os libertas/os que eram tratadas/os como objetos e abjetos humanos, menos valorosos que os animais dos quais eles cuidavam nessas colônias agrícolas” (Venâncio, 2011, p. 2-3). Entre os integrantes das colônias agrícolas, era comum a presença de pretos e pardos que tiveram a liberdade duplamente negada pelo Estado Imperial e Republicano — quer seja como escravo, quer seja como liberto —, pois, ao saírem do trabalho forçado compulsório, restaram-lhes as ruas. Mas, ao ocuparem as ruas, foram compulsoriamente recolhidos para realizarem o tratamento moral para o trabalho, que os capacitava para exercer as mesmas atividades de plantio e coleta de produtos agrícolas e de cultivo de gado. A primeira experiência da branquimanicomialização é a construção de um aparato assistencial racializado de cariz coercitivo-religioso para negras/os, que tinha a função social de contenção moral, pela via religiosa, e material, pela via assistencial[2].

 

Por meio da branquimanicomialização das leis, o Estado republicano delineava o ir e vir das/os negras/os nas cidades, bem como aplicava as correções morais para aquelas/es que eram ‘desviantes’ das normas sociais, tidas/os como insubmissas/os e ébrias/os. Assim sendo, travestido de um senhor benevolente, branco e patriarcal, passou a operar de modo autoritário o controle social sobre negras/os por meio da instituição de um aparato legal, passou a criminalizar, judicializar e manicomializar a reprodução social dos desterrados.

 

A filantropia erigida pela branquitude com a instituição de serviços sociais para dar conta do processo de saúde e sofrimento psíquico e sua cronificação, decorrente ou não do uso intensificado de álcool e outras drogas, é o que denominamos de Branquimanicomialização, pois é um mecanismo de manutenção de controle e poder nas mãos da elite empresarial-civil-militar, que contribui para a renovação do capitalismo frente às suas crises cíclicas. Em suma: para renovar o capitalismo, precisa-se renovar o racismo, e no Estado democrático de direito é necessária a contenção institucionalizada e legalizada de corpos objetificados para o trabalho intermitente – os escravizados livres (Mattos, 2007).

Assim, tem-se como objetivo central desvelar como a branquimanicomialização pode promover um encarceramento mental, social e econômico da população negra, que impede o gozo da condição humana. Em termos específicos, intenciona-se colaborar para o aprofundamento dos estudos fanonianos (2008) sobre a abolição da raça a partir da formação sócio-histórica brasileira. Em segundo lugar, entender como se forajam as amarras manicomiais da identidade; e, por fim, como os dispositivos institucionais podem renovar o racismo por meio da contenção social, medicamentosa e prisional.

 

2 A construção social da saúde mental da população negra no Brasil: o manicômio na encruzilhada

 

A construção da saúde mental como um serviço estatal no Brasil se constituiu como privilégio de poucos, melhor dizendo, da branquitude. Negras/os periféricas/os experimentaram a construção do cuidado de saúde mental pela constituição de aparatos assistenciais próprios como as irmandades negras[3] e práticas populares de terreiro, umbanda e candomblé[4]. Somam-se a isso as festas populares católicas, nas quais o sopão era a atração principal, e a reunião comunitária ocorria nos cemitérios, já que a população negra sempre morreu de causas evitáveis. Em contraponto, o tratamento branquimanicomializado ofertado pela nova república foi a contenção e o encarceramento social. A senzala deu lugar às colônias correcionais, que, numa versão urbanizada, originou os hospícios, os quais são reatualizados pelas comunidades terapêuticas.

 

Historicamente, a saúde mental se conservou como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais transmutadas em mal-estar social com o advento do cuidado intramuros sem liberdade, ambas racializadas, mas com destinos diferentes – brancas/os ocupavam os divãs terapêuticos, e negras/os vivenciavam o confinamento e a tortura dos hospitais psiquiátricos. 

 

A branquimanicomialização do cuidado na saúde mental se constituiu como uma tecnologia social excludente que colaborou para a renovação das práticas manicomiais, do racismo e do punitivismo destinado aos chamados doentes mentais ou pessoas com transtornos mentais, por meio do seu isolamento e encarceramento compulsório, que, somado aos baixos salários e péssimas condições de trabalho dos profissionais que trabalhavam nos equipamentos de saúde mental de cunho manicomial, em sua maioria, negras/os pobres e periféricos, ensejou a construção do Manifesto de Bauru[5], que reivindicava o cuidado em liberdade e, portanto, inaugura a reforma psiquiátrica brasileira[6].

Chauí (2014) explica que, na sociedade brasileira, as leis sempre foram armas para preservar privilégios. Não definem claramente direitos e deveres, pois se constituem em instrumentos de repressão e opressão que operam sobre aquelas/es que não conseguem prover sua subsistência ou estão em situação de indigência, sobre as/os quais se foram historicamente tecidas relações sociais abusivas e autoritárias por parte do Estado, operacionalizadas por profissionais que classificam a população negra e pobre em merecedoras/es e não merecedoras/es.

 

A branquimanicomialização é uma tecnologia de controle social que intervém na reprodução social por meio da institucionalização da vida social, que, no caso da população negra, deu-se pelo confinamento compulsório nos hospitais psiquiátricos e/ou nas penitenciárias, ambas com caráter religioso. Mesmo com a institucionalização de serviços sociais pelo Estado Varguista, a sobrevivência dos negros continuou a ser mediatizada pelo trabalho de ganho e de vendas nas ruas e no campo. Para negras/os das periferias urbanas, a “questão social”, produto da apropriação privada da riqueza socialmente produzida, continuou a ser tratada como ‘caso de polícia’.

 

Em suma, os serviços sociais criados na Era Vargas (1930-1945) não continham um conteúdo econômico reparatório para negras/os, ou seja, não buscaram garantir para a diáspora afro-brasileira um amplo acesso à terra, moradia, trabalho e saúde. Pelo contrário, eram restritos e regulados pela legislação trabalhista, que tinha uma matriz moral e disciplinar. No Brasil, houve a constituição de um modelo peculiar de cidadania. Num primeiro momento, parece que todos estão inseridos, mas, na realidade, isso não ocorreu, pois a cidadania no Brasil tem classe, cor, raça e etnia e gênero. O direito ao estudo e ao trabalho foi destinado àquelas/es que possuíam recursos financeiros acumulados e, ao mesmo tempo, tiveram subvenções no acesso à terra para trabalhar, em geral, aos lusos, descendentes e imigrantes.

 

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1962), ao estudar a construção da cidadania e das relações de trabalho no Brasil, denominou Cidadania Regulada essa concepção restrita de civilidade que apenas destinou proteção social para os trabalhadores que possuíam contrato de trabalho regulamentado pelo poder público. Portanto, que apenas contemplou uma minoria, pois a maioria de pardas/os e negras/os continuou à mercê da filantropia social branca, que, ao mesmo tempo que distribuía leite, controlava o exercício da sexualidade das mulheres negras, ofertava cuidado em saúde mental por meio do isolamento social e do confinamento institucional.

 

Holston (2013), ao estudar a cidadania no Brasil, relata que o país apresenta um tipo de cidadania usual, que todas as nações em algum momento experimentaram e desenvolveram. No entanto, chama atenção para a manutenção desse modelo assentado em privilégios, que se mantém historicamente, independentemente do regime de governo:

 

Uma cidadania que administra as diferenças sociais legalizando-as de maneira que legitimam reproduzem a desigualdade. A cidadania brasileira se caracteriza, além disso, pela sobrevivência de seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas. Ela persistiu sob os governos colonial, imperial e republicano, prosperando sob a monarquia, a ditadura e a democracia (Holston, 2013, p. 22).

 

Expõe que, quando esteve no Brasil, em 1980, não ouvia os brasileiros falarem de cidadania, e, sim, de direitos específicos. Não os correlacionavam com o direito à cidadania, mas com a condição de trabalhador. Destaca que a cidadania tem um sentido diferente para aos brasileiros de todas as classes. No entanto, para negras/os, a condição de ser cidadão indicava “[...] distância, anonimato e nada em comum” (Holston, 2013, p. 23).

 

Para mais, defende que os regimes de cidadania desigual podem ser desfeitos por movimentos de uma cidadania insurgente. Aponta que, desde 1970, os trabalhadores negros vêm gestando nas periferias das cidades brasileiras uma cidadania insurgente que desestabiliza esse modelo restrito de democracia e tenciona essa “[...] cidadania diferenciada” (Holston, 2013, p. 22).

 

Sem dúvida, no Brasil, a cidadania negra foi vilipendiada pela classe dominante. Foi relegada aos de cor preta e parda uma inserção secundária na sociedade de classes. Assim, a cidadania no Brasil se constituiu historicamente como um privilégio de poucos e um atributo desejado por muitos. Leia-se: desejada por muitos homens negros e mulheres negras que sempre experimentaram o lado avesso da modernidade – a colonialidade da fome e da loucura – remediada pela filantropia branca estatal, que sempre buscou, por meio da chancela do Estado, operar um poder material e simbólico sobre a população negra, o que denominamos branquimanicomialização (Quijano, 2005).

 

O manicômio, uma criação da branquitude para dar conta do sofrimento psíquico, que é racializado, só foi contraposto quando foi colocado na encruzilhada pelo psiquiatra negro e filósofo Franzt Fanon (2008), radicalmente revolucionário, um exímio marxista anticolonialista que defendeu o cuidado em liberdade, a abolição da raça como antídoto para o trauma colonial. É a partir dos estudos críticos fanonianos da branquitude que desenvolveremos como se constitui a branquimanicomialização da política de saúde mental brasileira e a construção da negritude antimanicomial-proibicionista. 

 

3 Considerações finais sobre a branquimanicomialização da política de saúde mental brasileira em tempos de reconstrução democrática

 

Fanon (2008) argumenta que a abolição da raça é essencial nas sociedades democráticas como o Brasil, que foram colonizadas e passaram pelo processo de escravização, pois a violência colonial estrutura a ideologia manicomial como uma linha moral de cuidado para a população negra e periférica. Somam-se a isso os crescentes ataques à reforma psiquiátrica brasileira, materializada pela lei n.º 10.216 (Brasil, 2001), que assegura os direitos das pessoas com transtorno mental, e pela portaria n.º 3.088 (Brasil, 2011), que institui a RAPS para pessoas com sofrimento psíquico e/ou com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Em meio à aprovação de legislações pró-saúde mental na primeira década do ano 2000, vivenciam-se retrocessos na RPB com a introdução das comunidades terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Esse processo se materializa com a instituição de uma reforma psiquiátrica simpatizante, em 2015, momento que a presidente Dilma Rousseff, no contexto do revés conservador, teve a sua retirada da governança, com a ascensão da direita centrista e da extrema-direita no Brasil. Tais influxos constituíram um projeto de desmonte progressivo das práticas antimanicomiais.

 

Em 2016, a publicação da Portaria n.º 1.482 do MS (Brasil, 2016), chamada “[...] nova política nacional de saúde mental [...] (Brasil, 2016)”, agudizou a retomada da manicomialização por meio do financiamento inédito das comunidades terapêuticas (CTs) no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), mas operacionalizadas pelas secretarias municipais de assistência social. Em 2017, a Resolução nº 32 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) (BRASIL , 2017)incluiu os Hospitais psiquiátricos com financiamento na RAPS, com a proposta de fortalecimento, parceria e apoio das comunidades terapêuticas.

 

Os movimentos antimanicomiais compostos por trabalhadores, estudantes e usuários foram às ruas para protestar, e as associações coletivas de ensino e pesquisa também repudiaram essas ações, que se renovaram durante o Governo de Jair messias Bolsonaro (2019-2022) com a Nota Técnica nº 11/2019 (Brasil, 2019), com portarias e resoluções anteriores, publicadas entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, exceto a portaria 1.482/2016 (Brasil,2016), as quais compõem a nova política nacional de saúde mental, que durante a pandemia de COVID-19 promoveu a agudização da saúde mental da população brasileira, em especial, da população negra. As crianças e os adolescentes, conjuntamente com as mulheres negras, solos e chefes de família, pagam o custo do desmonte da política de seguridade social, pois a fome e a insegurança alimentar são uma questão de saúde pública. O SUS também se ressente com as repercussões.

 

A esse cenário, soma-se a recente redemocratização da sociedade brasileira, erigida pela associação dos movimentos sociais e de esquerda no cenário político denunciando o desmonte dos direitos sociais, assegurados pela constituição federal de 1988. A Política de Saúde ministrada pelo cariz conservador-militar-empresarial alcançou a marca de mais de 600.000 mortos. Em resposta a essa crise humanitária, foi eleito, em 2023, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva (2023-2026), com a proposta de união e reconstrução da política de saúde a partir do preceito constitucional do SUS.

 

Os avanços democráticos anunciavam a retomada da RPB, contudo, tem-se a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, vinculado à Secretaria Executiva do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. A criação desse departamento ameaça os princípios da reforma psiquiátrica e da defesa dos direitos humanos das pessoas em sofrimento mental, princípios que sustentam a frente ampla que elegeu o presidente Lula. A articulação do SUS ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para a construção de ações de fortalecimento das comunidades terapêuticas (CTs) alerta para a reatualização da branquimanicomialização do cuidado, no qual negros/as são novamente encarcerados nas identidades desviantes, perigosos e loucos, a partir do lobby empresarial que disputa espaço com Unidades de Acolhimento, Centros de Atenção Psicossocial especializados no sofrimento e adoecimento causado pelo uso de álcool e outras drogas e Serviços Residenciais Terapêuticos.

 

Assim, a aliança das entidades e dos movimentos antimanicomiais alinhou a revogação do decreto presidencial nº 11.392 de 20 de janeiro de 2023 (Brasil, 2023), que cria o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas para poder ampliar seu apoio ao fortalecimento da RPB no Governo Lula, com um compromisso explícito com a defesa dos direitos humanos.

Tal cenário de lutas, avanços e retrocessos deixa como lição que os grupos empresariais antirreforma psiquiátrica tendem a se utilizar de tecnologias sociais e jurídicas, como a pressão para o fomento de leis que são branquimanicomiais, ou seja, dispositivos de controle e poder que operam o cárcere da identidade de negras/os que são estigmatizados pela loucura com o uso prevalente de álcool e outras drogas a partir da relação com a identidade da branquitude, que não se vê aprisionada, mas está, pois é a gestora da lógica manicomial, como ensina Fanon (2008),  a política do narcisismo é relacional, na medida em que a guerra as drogas é uma luta da branquitude com suas ações manicomiais para ter controle e poder sobre a população negra que circula nas áreas do comércio ilícito, como trabalhadores, usuários e/ou apenas como residente das áreas em conflito permanente, produz para si o psicotismo social e medo ansiofóbico.  

 

É necessário revisitar os estudos críticos da branquitude para podermos acabar com as amarras coloniais, racistas e manicomiais tecidas por ela, pois é quem constrói o cuidado nos âmbitos jurídico, econômico e social, que é branquimanicomial. Não promove o cuidado em liberdade, mas a garantia do salário psicológico dos brancos – menor remuneração salarial de negras/os e a política de intolerância zero contra as drogas –, e classifica um jovem negro com drogas como traficante, enquanto um jovem branco apenas tem um back(cigarro de maconha) e está relaxando. É a construção de uma interprofissionalidade negra antimanicomial, antirracista e antiproibicionista, que não aceita a branquimanicomialização do cuidado e a criminalização da redução de danos, que garante os princípios da RPB, contudo, pouco dialoga com os povos do campo, da floresta, indígenas e de terreiro para a construção dos instrumentos da saúde mental.

 

Enfim, precisamos ter gestores de saúde mental negros e negras, crias das favelas, dos povos de terreiro e indígenas na RAPS e nas coordenações descentralizadas da pasta de saúde mental (municipal, estadual e federal), para que se alterem as diretrizes ético-político-pedagógicas da RPB, para que ela possa ser não somente radicalmente antirracista, mas ter uma práxis crítica construtivista com as populações do campo, da floresta, dos terreiros, negras, ciganas e refugiadas, com ações de base anticapacitista, antirracista, antissexista e antilgbtqifóbica, que promovam uma desinstitucionalização e despenitencialização, em que o cuidado em liberdade não seja somente voltado para o consumo, por meio da garantia de recursos financeiros ou benefícios assistenciais para a colocação em residências terapêuticas e/ou moradias assistidas e/ou compartilhadas, mas para a construção de abordagens psicossociais do bem-viver que tenham como premissa a ampliação dos centros de convivência, espaços de convivência de arte e cultura, inserção nas escolas públicas, com mediadores psicossociais em vez de escolares, pois os muros das escolas são manicomiais. Enfim, o cuidado psicossocial na lógica antibranquimanicomial é anticapitalista, e a mercadoria é um fetiche manicomial e colonial, assim como as máscaras de flandres que expressam o racismo colonial (Henriques, 2021), ainda sustentado pela branquitude nos espaços institucionais que produzem silenciamentos abissais, que são combatidos pelas denúncias e pela militância negra e periférica dos trabalhadores, usuários e familiares nos hospitais psiquiátricos, nos centros de atenção psicossocial, nas residências terapêuticas, nos domicílios, nas favelas, nas penitenciárias, nos presídios e no sistema nacional de atendimento socioeducativo.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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MATTOS, M.; ABREU, M.; GURAN, M. Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Laboratório de História Oral e Imagem. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:

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SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Quem Dará o Golpe no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1962. (Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, Volume 5, Dirigida por

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PASSOS, Rachel. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, Vitória, v. 10, n. 3, p. 10-23, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/21483/15672.

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QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

 

VENÂNCIO, A. Da colônia agrícola ao hospital-colônia: configurações para a assistência psiquiátrica no Brasil na primeira metade do século XX. Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos. v. 18, supl. 1. Rio de Janeiro: dez. 2011. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23976 . Acesso em: 13 abr. 2023.

 

 

 

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Cibele da Silva HENRIQUES

Professora adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lotada no departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado. Doutora pelo programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da UFRJ. Coordenadora de Graduação da Regional Leste da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Substituta eventual da Coordenação de Extensão do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da UFRJ. Integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Coordenadora do grupo de pesquisa e extensão Egbé: Estudos, pesquisas e debates sobre as relações étnico-raciais no Serviço Social e a Saúde da População Negra.

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* Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estatutária do Instituto Psiquiátrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (IPUB/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil). Av. Pasteur, 250- Urca, Rio de Janeiro (RJ), CEP: 22290-240. E-mail: cibhenriques@gmail.com.

 

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[1] A branquitude é um lugar estrutural da sanidade, do conforto e do bem-estar psíquico, cujos privilégios se materializam por meio de um conjunto de vantagens econômicas, sociais e materiais mediatizadas pelo Estado, bem como a inimputabilidade da violência estrutural, colonial e manicomial sobre a população negra.

[2] No clima republicano de constituição de um Estado, a criação, em 1890, do primeiro órgão destinado à organização da assistência a alienados no país — Assistência Médico-Legal a Alienados — encarregava as colônias da Ilha do Governador, juntamente com o então Hospício Nacional de Alienados — antigo Hospício Pedro II —, do tratamento da alienação mental. Nesse momento, consolidou-se uma divisão segundo a qual, conforme o artigo 78 do decreto 508, de 21 de junho de 1890, "[...] as Colônias S. Bento e Conde de Mesquita são exclusivamente reservadas a alienados indigentes, transferidos do Hospício Nacional, e capazes de se entregarem à exploração agrícola e a outras indústrias" (Venâncio, 2011, p.1). Assim, enquanto o Hospício Nacional era o único a receber pacientes pensionistas, oferecendo praxiterapia em atividades não agrícolas e servindo como “[...] porta de entrada' do sistema assistencial aos enfermos alienados a serem encaminhados para outros serviços, as instituições da Ilha do Governador eram pautadas no tipo institucional colônia agrícola, dirigida apenas a pacientes indigentes” (Venâncio, 2011, p. 2).

[3] A classe trabalhadora negra que desenvolvia atividades informais nas ruas dos grandes centros urbanos continuou sendo assistida de modo caritativo pelas casas da misericórdia e pelas irmandades negras religiosas de Santo Elesbão e São Benedito dos homens pretos e Nossa Senhora do Rosário. Para além, as irmandades negras serviam de abrigo em vida para os indigentes negras/os e em morte para as/os diaspóricas/os que não tinham como ser sepultadas/os. Portanto, as Irmandades Negras cuidavam das/os negras/os em vida e na morte e prestavam assistência alimentar aos que necessitavam de cuidados médicos e de saúde mental (Henriques, 2021).

[4] A performance ritualística que envolve corpo-mente-espírito se traduz em uma experiência quilombola de resistência coletiva que faz com que negras/as diaspóricos tenham essa tríade – corpo-mente-espírito – demonizada e estigmatiza por denominações pejorativas como macumbeiro; diabo; feiticeiras, ebós mal despachados, e sua circulação interditada em territórios em que residem os terreiros de culto da matriz africana e nos locais de culto a natureza coletivos, como cachoeiras, matas, praias e montanhas.

[5] O Manifesto de Bauru foi uma carta-denúncia-ocupação confeccionada no processo de redemocratização brasileira, antes de 1988, que foi escrita por 350 trabalhadores de saúde mental presentes ao II Congresso Nacional, que dão um passo adiante na história da loucura, pois denunciaram que o manicômio é expressão de uma estrutura de opressão, tal como ocorre nas fábricas, nos abrigos, nas prisões, nas instituições totais que reproduzem a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres.

[6] A chamada reforma psiquiátrica brasileira, inspirada em ideias e práticas do psiquiatra Franco Basaglia, que revolucionou o tratamento de pessoas com transtornos mentais nas cidades italianas de Trieste e Gorizia, em 1960. Passos (2018) menciona que o militante antimanicomial italiano se inspirou em Frantz Fanon, psiquiatra e intelectual negro martinicano anticolonial, para a ruptura com os muros culturais e físicos na forma como uma sociedade deve lidar com seus loucos, para reintegrá-los à sociedade.