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Antissemitismo, uma obsessão

 

Anti-semitism, an obsession

 

Sérgio SCHARGEL*

Antissemitismo, uma Obsessão: Argumentos e Narrativas | Amazon.com.br

 

RESENHA/ BOOK REVIEW

 

 

 

 

 

 

 

 

Eliane Pszczol e Heliete Vaitsman (org.). Antissemitismo, uma obsessão: argumentos e narrativas. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2020.

244 p.

           

 

A

scensão de Jair Bolsonaro no Brasil trouxe consigo uma série de discussões e livros na tentativa de compreender a multiplicidade do fenômeno e de suas repercussões. Um deles é Antissemitismo, uma obsessão, organizado por Eliane Pszczol e Hliete Vaitsman, uma coletânea de artigos de pesquisadores que trabalham com a intolerância à comunidade judaica e suas repercussões. Um livro fundamental para compreender um aspecto do autoritarismo bolsonarista que, ainda que secundário frente a outros como a homofobia ou mesmo o racismo, também se faz presente.

 

Poucos grupos receberam tanta atenção do imaginário sobre a criação de inimigos quanto os judeus. Do Egito ao contemporâneo, os judeus têm sido alvo preferencial de ataques. Entretanto, o antissemitismo, como sugere François de Fontette (1989), sofre uma reconfiguração a partir do século XIX, assumindo seu caráter moderno. Se até então o antissemitismo estava ligado majoritariamente ao cristianismo e a uma rejeição da religiosidade judaica ― um antissemitismo antirreligioso, por assim dizer ―, o eugenismo e o avanço científico o atualizam para o campo racial. O judaísmo não deve mais ser extirpado como uma religião, como outrora, mas como raça, como etnia. Não são mais somente os culpados pela morte de Cristo, mas os culpados pela degenerescência em seu aspecto mais abstrato.

 

O antissemitismo no Bolsonarismo, contudo, é contraditório. Não somente os pesquisadores da coletânea percebem isso, mas também outros autores, como Michel Gherman (2022). Isto porque Jair Bolsonaro, ao mesmo tempo em que tira uma fotografia ao lado de um homem vestido de Adolf Hitler, recicla o slogan da Alemanha Nazista, mente que teve um avô que lutou na Guerra ao lado de Hitler, coloca um Secretário da Cultura que se veste e emula Joseph Goebbels, entre diversos outros sinais de aproximação com antissemitismo e nazifascismo, também se aproxima de uma parcela da comunidade judaica (GHERMAN, 2022). Esse paradoxo chegou ao seu paroxismo quando 60% da comunidade judaica brasileira votou no candidato em 2018, segundo dados do Datafolha (2018).

 

Entretanto, Bolsonaro acena constantemente a Israel. Um aceno que, na verdade, é mais à comunidade neopentecostal do que para os judeus, mas que acaba por servir a ambos. Tanto melhor que afasta a incômoda imagem do nazifascismo, afinal, como pode um nazifascista ser apoiado por um pedaço da comunidade judaica? Algo semelhante ao que acontece em alguns países da Europa Ocidental, como identificado por José Pedro Zúquete (2011), em que a extrema-direita cooptou o judaísmo e o feminismo como ferramentas para combater um novo inimigo específico, o Islã. Uma forma, portanto, de rejeitar imagens e comparações incômodas com movimentos de extrema-direita do passado. Afinal, um antissemitismo explícito e extremo, que prega violência física, após o Holocausto e Israel, não é tão bem-visto quanto antes de 1945.

 

Se Bolsonaro tem essa relação paradoxal com o judaísmo, de toda forma o autoritarismo de extrema-direita parece deixar mais confortável e favorecer manifestações nazifascistas. Como identifica Adriana Dias no livro, há um crescente quantitativo em organizações neonazistas no Brasil, para além de manifestações públicas pontuais (PSZCZOL; VAITSMAN, 2020). Em 2019, por exemplo, um homem foi a um bar em Minas Gerais com uma braçadeira com a suástica (CHEREM, 2020) o que se repetiu mesmo ano com um jovem em um shopping em Curitiba (BARAN, 2019). Um adolescente apareceu lendo Mein Kampf em uma página do tradicional jornal Correio Braziliense (PODER360, 2019), ao passo que uma escola privada de Recife teve alunos compartilhando em suas redes sociais a saudação nazista. Os alunos foram além, afirmando que a saudação era à definição de um novo orador da turma, identificado como “o novo Führer da série nessa caminhada para a construção de um novo e inovador Reich” (PSZCZOL; VAITSMAN, 2020, p. 09). Isso sem perder de vista o maior exemplo possível, o caso de Roberto Alvim travestido de Goebbels.

 

Como as organizadoras lembram logo no início do livro, há de se considerar de dois pontos fundamentais: 1) o tamanho reduzido da comunidade judaica brasileira (107 mil e 500, ou 0,05% da população); 2) a pluralidade. Se torna até complexo falar em comunidade judaica, ou em judeu, considerando a heterogeneidade do judeu brasileiro. Um fenômeno que, por óbvio, aparece em qualquer grupo, mas que é particularmente intensificado pelos processos de diáspora e assimilação, e até pela dificuldade em se definir judaísmo e compreender o que é ser judeu. O “judeu imaginário”, descrito por Michel Gherman (2022) como imagem ideal do Bolsonarismo, generaliza e torna universal um particular bastante limitado e discrepante das várias e complexas identidades judaicas.

 

É impossível falar de antissemitismo no Brasil sem falar, ao menos brevemente, de Barroso. Além da tradução dos Protocolos, um documento falso, plagiado de um romance satírico, que imagina uma suposta dominação global judaica, Barroso publicou outros títulos como Brasil, colônia de banqueiros. Seu colega integralista, Plínio Salgado, ainda que menos explícito, também destilava antissemitismo. Em um artigo no jornal A Offensiva, por exemplo, justifica que a derrota na ‘Batalha da Sé’[1], se dera por financiamento do “judeu internacional”: “Fomos agora atacados, dentro de São Paulo, por uma horda de assassinos, manobrados por intelectuais covardes e judeus. Lituanos, polacos e russos, todos semitas, estão contra nós, empunhando armas assassinas contra brasileiros” (DORIA, 2020, p. 143).

 

Barroso era mais intenso. Se Salgado via no comunismo o inimigo principal do Integralismo, com o judaísmo internacional[2] como secundário ― embora ambos se misturassem ― em Barroso isso se inverte, e o autor chega a declarar que a função do Integralismo é combater o judaísmo (DORIA, 2020, p. 143). Salgado culpa o judaísmo pela derrota na ‘Batalha da Sé’, Barroso culpa a raça maldita por virtualmente qualquer problema que enxerga no Brasil, até mesmo o declínio da produção de café no início do século XX (PSZCZOL; VAITSMAN, 2020). Como lembram Carlos Reiss e Michel Ehlich, o judeu imaginado de Barroso e outros antissemitas assume uma figura em um plano ideal, um alvo imaginário que tem pouca ou mesmo “[...] nenhuma relação com pessoas judias reais” (PSZCZOL; VAITSMAN, 2020, p. 21).

 

Há, portanto, farto material brasileiro sobre antissemitismo para se cobrir. Fenômeno que remonta desde os princípios da colônia, mas se reconstruiu sob novas vestes no contemporâneo. Em comum, elementos clássicos do judeu imaginário ou do judeu internacional, que aparecem por meio de subterfúgios retóricos em personagens, como Bolsonaro, que paradoxalmente buscam se aproximar da comunidade judaica. Ainda que, na prática, seja um aceno pontual e localizado, voltado para outro grupo politicamente mais poderoso.

 

Como quase todo livro que consiste em uma coletânea de artigos, Antissemitismo, uma obsessão é irregular. Alguns trabalhos, como o de Adriana Dias, fornecem dados e insumos fundamentais à compreensão do Bolsonarismo, do antissemitismo e da tradição autoritária brasileira. Outros, mais voltados para um ensaístico, contribuem com reflexões perspicazes e mesmo pessoais. Assim, o livro organizado por Pszczol e Vaitsman se destaca como uma opção para entender um dos lados menos compreendidos do Bolsonarismo, e sua relação ambígua com o antissemitismo, principalmente quando em diálogo com outros livros como O não judeu judeu, de Michel Gherman.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

 

Referências

 

BARAN, K. Jovem é filmado usando suástica em shopping de Curitiba. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 dez. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/12/jovem-e-filmado-usando-suastica-em-shopping-de-curitiba.shtml. Acesso em: 22 dez. 2022.

 

BARROSO, Gustavo. Brasil, colônia de banqueiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.

 

BARROSO, Gustavo. Os protocolos dos sábios de Sião. São Paulo: Agência Minerva, 1936.

 

CHEREM, C. E. Homem que usou suástica no braço em MG vira réu por apologia ao nazismo. UOL, Belo Horizonte, 27 jan. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/01/27/homem-que-usou-suastica-no-braco-em-mg-vira-reu-por-apologia-ao-nazismo.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 22 dez. 2022.

 

DATAFOLHA. Eleições 2018. São Paulo, 25 out. 2018. Disponível em:http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/10/26/3416374d208f7def05d1476d05ede73e.pdf. Acesso em: 12 mai. 2021.

 

DORIA, Pedro. Fascismo à brasileira: como o integralismo, maior movimento de extrema-direita da história do país, se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo. São Paulo: Planeta, 2020.

 

FONTETTE, François de. História do anti-semitismo. Rio de Janeiro: Zagar, 1989.

 

GHERMAN, Michel. O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. São Paulo: Fósforo, 2022.

 

PODER360. Associações israelitas repudiam foto de aluno com livro de Hitler na capa do Correio Braziliense. 21 abr. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/associacoes-israelitas-repudiam-foto-de-aluno-com-livro-de-hitler-na-capa-do-correio-braziliense. Acesso em: 22 dez. 2022.

 

ZÚQUETE, J. P. Novos tempos, novos ventos? A extrema-direita europeia e o Islão. Análise Social, Lisboa, v. 46, n. 201, 2011. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41494867. Acesso em: 23 jun. 2021.

 

 

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Sergio SCHARGEL

Doutorando em Ciência Política pela UFF. Mestre em Letras pela PUC-Rio, mestre em Ciência Política pela Unirio. Bolsista CAPES, ex-bolsista CNPq. Venceu o Prêmio Abralic de melhor dissertação do biênio 2020-2021, que se transformou no livro O fascismo infinito, no real e na ficção. Sua pesquisa e produção artística são focadas na relação entre literatura e política, tangenciando temas como teoria política, literatura política, fascismo, extrema direita, judaísmo, antissemitismo e a obra de Sylvia Serafim.

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* Jornalista e Publicitário. Mestre em Ciência Política pela Unirio e em Literatura pela PUC-Rio. Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense. (UFF, Gragoatá, Brasil). Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Campus do Gragoatá, Bloco O, CEP.: 24210-201. E-mail: sergioschargel_maia@hotmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023. Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] Como ficou conhecida a disputa física entre integralistas e antifascistas na região da Sé, em São Paulo.

[2] No início dos anos 2000, como lembram Pszczol e Vaitsman (2020), houve um movimento inicial de combate a essas formas de intolerância, com a condenação do editor da Editora Revisão por suas práticas antissemitas, revisionistas (como o nome indica) e negacionistas. Não somente republicava livros de Barroso, mas também de negacionistas do Holocausto.