A tendência
destrutiva do Estado e capital nas suas relações com a natureza
The destructive tendency of the
State and capital in their relations with nature
Everton
Melo da SILVA
Universidade Federal
de Alagoas, Unidade Educacional de Palmeira dos Índios,
Curso de Serviço
Social, Arapiraca, AL, Brasil
e-mail: everton.silva@palmeira.ufal.br
Resumo: O texto que segue
buscará discutir a relação destrutiva do Estado e do capital com a natureza,
considerando a essência da reprodução sociometabólica
do sistema do capital juntamente com o comando político do Estado. Por meio da
revisão bibliográfica de autores da tradição marxista que discutem os
fundamentos do capital e a destruição socioambiental, analisamos a lógica
totalizadora e destrutiva do capital, principalmente em tempos de crise
estrutural desde a década de 1970, a face do Estado na destruição
socioambiental e a eclosão da “questão ambiental” e suas expressões na
contemporaneidade. Conclui-se que essa crise estrutural acentuou o
caráter feroz e corrosivo do capital e do Estado sobre a natureza, em busca da
extração de recursos naturais para manter o ritmo de acumulação do capital que
causa danos socioambientais para natureza e sociedade.
Palavras-chave: Estado. Capital.
Destruição da natureza. Crise estrutural.
“Questão ambiental”.
Abstract: This article discusses the destructive relationship
of the State and capital with nature. It considers the essence of the
socio-metabolic reproduction of the capital system together with the political
command of the State. Through a bibliographical review of authors from the
Marxist tradition who discuss the foundations of capital and
socio-environmental destruction, we analyse the totalising and destructive
logic of capital, especially in times of structural crises since the 1970s, the
appearance of the State in socio-environmental destruction and the outbreak of
the “environmental issue” and its contemporary expressions. It concludes that
this structural crisis has accentuated the fierce and corrosive character of
capital and the State over nature seeking to extract natural resources to
maintain the pace of capital accumulation that causes socio-environmental
damage to nature and society.
Keywords: State. Capital. Destruction of nature. Structural crisis.
Environmental issue.
INTRODUÇÃO
A |
s
considerações deste artigo trazem à tona a necessidade de discutir a relação
entre Estado, capital e natureza, tendo em vista os danos socioambientais
gerados pelo desenvolvimento das forças produtivas na lógica do capital sob a
anuência do Estado. Partimos da compreensão, com base em Mészáros
(2011), que o Estado destrói e degrada a natureza para atender aos
determinantes do capital, constituindo-se enquanto um dos principais agentes de
destruição ambiental junto ao capital numa relação de exploração da força de
trabalho e de degradação e destruição da natureza e da sociedade (Silva, 2022).
O
capital é o primeiro a dominar a produção em escala planetária e a se
autorreproduzir sem limites (Marx, 2010), e as causas da destruição e
degradação ambiental, em escala vertiginosa, estão profundamente enraizadas no
modo de produção capitalista sob a lógica totalizadora do capital que ignora,
devido a sua forma de ser, as restrições e os limites físicos do planeta, uma
vez que o “tempo da natureza” é mais lento e processual, enquanto o “tempo do
capital” é mais dinâmico e imediato.
A
revisão bibliográfica ancorada em autores marxistas nos permitiu desvelar a
relação destrutiva entre Estado, capital e natureza, especialmente sob a ótica meszariana. O capital constitui-se como excepcional
depredador dos recursos naturais e explorador da força de trabalho, subjugando
as relações sociais, o meio ambiente (relação de homem e mulher com seu meio de
vida) e a natureza ao seu instinto de extração de mais-valia. Quanto mais o
capitalismo se expande, mais ele acelera seu poder destrutivo contra a
natureza. Há também uma relação destrutiva entre o trabalho alienado no
capitalismo e natureza, consequentemente, o capitalismo provoca uma “ruptura”
da relação da sociedade com a natureza, devido ao esgotamento dos recursos
naturais e seus nutrientes (e tudo nela existente) posto pela lógica do
capital. O capital conseguiu controlar o metabolismo do homem com a natureza
para atender aos seus determinantes fundamentais com auxílio do Estado, que
assegura e protege a propriedade privada dos meios de produção e contribui no
gerenciamento político do capital.
O artigo
é organizado em dois itens, além das considerações finais e desta breve
introdução. No primeiro, situamos a relação entre Estado e capital por meio da
análise meszariana que nos fornece a chave analítica
para entender a complementariedade que possibilita ao sistema do capital uma
dominação totalizadora. No segundo item, discutimos os fundamentos da “questão
ambiental” e suas expressões contemporâneas, a forma como ela afeta
diferentemente os países centrais e periféricos, bem como as “saídas” que Estado
e capital oferecem para a problemática ambiental. Na conclusão, retomamos o
objetivo do artigo e reafirmamos a tendência destrutiva do Estado e do capital
com a natureza e a sociedade (Silva, 2022).
A
relação entre Estado e capital na esteira da destruição socioambiental
O capital ignora a finitude da natureza no seu processo de
autorrealização, com engajamento e aplicação sistemática da técnica e da
tecnologia para cada vez mais extrair recursos naturais em menos tempo, assim
como extrair mais trabalho excedente. Esse processo é impulsionado pela ciência
– subordinada “[...] às exigências absolutas da expansão e da acumulação do
capital [...]” (Mészáros, 2011, p. 254) –, pois o
capital direcionou sua ação para o consumo desenfreado da natureza.
A aceleração dos níveis vertiginosos da destruição ambiental
ganhou impulsionamento com a crise estrutural do capital na década de 1970, que
ativou os chamados “limites absolutos”, sendo uma das características
justamente a degradação das condições ambientais (Mészáros,
2011). Essa crise possui diferenciações das anteriores, pois “[...] afeta a totalidade
de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou
subcomplexos, como também a outros complexos aos
quais é articulada” (Mészáros, 2011, p. 796-797). A
crise estrutural do capital possui as seguintes “novidades”:
(1) seu caráter é
universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo,
financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de
produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama
específica de habilidades e graus de produtividade etc.); (2) seu alcance é
verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo),
em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as
principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa,
contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como
foram todas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e
os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se
desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a
ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam
ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria
agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais
ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia (Mészáros, 2011, p. 795-796, grifos do autor).
O Estado ajusta “[...] suas funções reguladoras em sintonia
com a dinâmica variável do processo de reprodução socioeconômico,
complementando politicamente e reforçando a dominação do capital [...]” (Mészáros, 2011, p. 110). Outrossim, visa garantir a
manutenção da extração de mais-valia do trabalho excedente e a apropriação
privada destrutiva dos recursos naturais, evitando qualquer empecilho de
acumulação de capital por meio, especialmente, do aparato executivo,
legislativo, judiciário e militar. Além da “regulação estatal”, o Estado
se tornou um essencial consumidor direto da produção destrutiva capitalista. O
caso mais sintomático é o impulsionamento e o consumo militar-industrial, que
requereu a manutenção constante do estado de guerra pós-1970 e o clamor à
necessidade da “segurança nacional” das nações, estimulando a militarização da
vida social.
O Estado
atua ativa e diretamente na lógica do capital financeiro, com participação em
ações na bolsa de valores de multinacionais que agem diretamente contra o meio
ambiente. A título de exemplo, “[...] empresas estatais constituem hoje 80% do
valor do mercado de ações (segundo o índice MSCI) na China, 62% na Rússia e 38%
no Brasil. Além disso, das dez mais valiosas corporações do mundo, no mercado
de ações, quatro são estatais (três chinesas e uma japonesa)” (Marques, 2015,
p. 25). Outro dado importante, apontado por Marques (2015), expõe que “[...] as
dez maiores corporações de gás e petróleo do mundo, medidas por suas reservas,
são estatais, e as treze maiores, proprietárias de três quartos das reservas
mundiais de petróleo, têm participação do Estado” (Marques, 2015, p. 26).
Compreendemos que, mesmo que a participação acionária privada (seja por meio de
bancos ou fundos de investimentos) seja majoritária, ou até mesmo predominante
no comando de empresas estatais que destroem diretamente o meio ambiente, o
Estado tem uma tendência destrutiva contra a natureza e a sociedade quando
legisla para organizar a economia capitalista, favorecendo, via normas, leis e
decretos, a destruição ambiental, inclusive liberando recursos públicos para o
capital. Não obstante, o Estado atua diretamente na destruição da natureza, a
título de exemplo temos a construção de hidrelétricas no Brasil (Usina
Hidrelétrica de Itaipu, Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Usina Hidrelétrica de
Belo Monte etc.), a construção da Transamazônica e Transposição do Rio São
Francisco, que são obras estatais, comandadas diretamente pelo Estado
brasileiro (Silva, 2022).
A relação sociometabólica entre
Estado e capital, representada pela “[...] crescente participação do capital
estatal em setores fundamentais da economia e seu peso decisivo na indústria de
combustíveis fósseis [...]” (Marques, 2015, p. 26), explica, em alguma medida,
o porquê de o Estado não ter muito interesse, devido a sua natureza e forma de
atuação, em cumprir os acordos internacionais, ou seja, ele torna-se cada
vez mais indisponível para aceitar tratados dos organismos multilaterais ou
quando assina esses tratados não consegue cumprir. De acordo com Relatório
produzido pela Câmara dos Deputados (dimensão legislativa do Estado
brasileiro), o Brasil não avançou em nenhuma das 169 metas de “desenvolvimento
sustentável” da Organização das Nações Unidas (ONU): “[...] das 169 metas,
54,4% estão em retrocesso, 16% estagnadas, 12,4% ameaçadas e 7,7% mostram
progresso insuficiente” (Relatório..., 2021, não
paginado).
Os capitalistas pressionam constantemente para a
flexibilização dos tratados com medidas que atendam à lógica de seus interesses
encontrando aliados no próprio Estado, enquanto agente econômico direto na
economia, o que faz de ambos os responsáveis pela destruição ambiental.
A tendência de flexibilização das normas ambientais
aprofundou-se com o avanço da crise estrutural do capital (1970), que encontrou
no neoliberalismo as condições materiais e ideológicas adequadas para a
progressão do capital. Desde a eclosão da “questão ambiental” – conceito que
será tratado no próximo item – existe a “[...] crença que o Estado é ainda
capaz de nos ‘salvar’ ou ao menos de assumir sua parcela maior de
responsabilidade na condução de políticas susceptíveis de reverter a degradação
em curso da biosfera [...]” (Marques, 2015, p. 23), inclusive angariando
recursos para “salvar a natureza” juntamente com os organismos internacionais,
como FMI, Banco Mundial, ONU etc.
O mercado impulsiona, em alguns momentos, o Estado a
assumir a frente para minimizar os impactos de algumas expressões da “questão
ambiental”, a fim de manter o ritmo de acumulação de capital. O mercado
instrumentaliza o Estado “[...] sob o comando das instituições financeiras
internacionais, [...] a ampliação de maiores lucros via formas de gestão e
fluxos, induzindo sempre em maior intensidade à ampliação da produção de
valores de troca [...]” (Fontenele; Conceição, 2021, p. 78). Há uma imbricação
entre Estado e mercado quanto à “gestão ambiental”: o mercado tende a regular a
“economia verde” e o Estado trata dos aspectos “ecológicos humanitários” e da
pífia preservação do meio ambiente, mas socializando, ideologicamente, a culpa
pela degradação ambiental. Há o reconhecimento do mercado acerca das
problemáticas ecológicas a partir do momento que esse passou a ver a “questão
ambiental” também como fonte de lucro.
O avanço
das forças produtivas no capitalismo, por meio da ciência, técnica e inovações
tecnológicas, perpetuou a centralidade da “taxa de utilização decrescente” na
relação dos indivíduos com as mercadorias, que ocupa “[...] uma posição de
domínio na estrutura capitalista do metabolismo socioeconômico [...]” (Mészáros, 2011, p. 655). O capitalismo monopolista
direcionou seu caminho contra a durabilidade das mercadorias – mercadorias
fabricadas com “prazos de validade” –, uma vez que o seu objetivo é a realização
do valor de troca, assim, a utilidade e durabilidade se tornaram secundárias
para esse modo de produção, processo que concretiza a “obsolescência planejada”
(Mészáros, 2011).
A
produção capitalista ficou voltada predominantemente à redução da taxa de utilização
das mercadorias com a diminuição do tempo de vida útil, deixando de lado
qualquer tendência à durabilidade e qualidade, o que revela outra face perversa
do capitalismo: a produção exorbitante direcionada à destruição após a
realização do valor de troca. Isso demanda que a sociedade consuma “[...]
artificialmente e em grande velocidade (isto é, descartar prematuramente)
imensas quantidades de mercadorias [...]” (Mészáros,
2011, p. 640).
Desse
modo, temos a imposição do capitalismo em consumir em ritmo crescente na mesma
proporção que se incentiva a descartabilidade das mercadorias, processo
coadunado com a produção de bens sem qualidade e com pouca duração. Para sua
autorreprodução sem limites – condição ineliminável do capital (Mészáros, 2011) –, é necessário que sejam descartáveis as
mercadorias “duráveis” e as “não-duráveis”. O exemplo estarrecedor é a troca de
automóveis[1] e dispositivos
digitais[2] que possuem alto
nível de complexidade tecnológica e matérias-primas resistentes – entretanto, a
cada dois/três anos, como forma de sempre estimular a aquisição da “última
geração” de carros e telefones, o consumidor é impulsionado a seu descarte pelo
apelo emocional e subjetivo das multinacionais e corporações, que instalaram a
cultura da troca constante como forma de aceleração do consumo imediato. Não
obstante, quando pautamos a aceleração da produção e o aumento do consumo, não
devemos perder de vista que isso só é possível com a “[...] desvalorização da
mão humana que as fabrica” (Lopes;
Porfírio, 2014, p. 14).
O
capital é contra qualquer medida de durabilidade ou reutilização da mercadoria,
ou até mesmo contra o “consumo consciente”. O oposto disso seria a produção do
socialmente necessário, preocupada com as condições de reprodução
físico-química-biológica do planeta. Todavia, sob os imperativos do capital, o
ponto central é que o padrão de produção desenfreada para o consumo destrutivo
e imediato é reproduzido negando as “[...] necessidades básicas à esmagadora
maioria” (Mészáros, 2011, p. 652). Dito de outra forma,
o “luxo” – produção e consumo de mercadorias de “luxo”, aquelas que não têm
relação com as necessidades básicas humanas – e as necessidades supérfluas
criadas são mantidas e priorizadas sob o “chão” da manutenção da fome e
miséria.
Nesta
direção, temos a “riqueza da produção” (humanamente viável e que considera os
limites da natureza) substituída pela exacerbada “produção de riqueza”, sob os
imperativos do capital e com danos irreversíveis para natureza e humanidade.
Nas palavras de Mészáros (2011, p. 267), “[...]
passamos da prática de ‘destruição produtiva’ da reprodução do capital para uma
fase em que o aspecto predominante é o da produção destrutiva cada vez maior e
mais irremediável”. A produção genuína foi diametralmente substituída pela
autorreprodução destrutiva, com implicações impiedosas para o presente e futuro
do mundo de homens e mulheres (Mészáros, 2011). Essa
percepção implica reconhecer que existem diferenças entre as necessidades
humanas e as necessidades do capital. Enquanto:
[...] a concentração
é antropocêntrica, [a] socialização é não-antropocêntrica porque é
humanizadora, porque não se funda na exploração, mas na transformação da
natureza segundo aquilo que é necessário, não à produção de excedente, mas a
satisfação das necessidades humanas, e não se funda na exploração do próprio
humano, mas na associação de produtores livres, que irão produzir não mais a
riqueza do patrão, mas valores de uso socialmente necessários (Cruz; Bigliardi; Minasi, 2013, p. 10).
Há um
rompimento radical, sob a lógica totalizadora do capital, entre necessidade e
produção, o que desencadeia uma dupla ruptura. De um lado, “[...] os produtores
são radicalmente separados do material e dos instrumentos de sua atividade
produtiva, tornando-lhes impossível produzir para o seu próprio uso, já que nem
sequer parcialmente estão no controle do próprio processo de produção” (Mészáros, 2011, p. 624). E, do outro lado, “[...] as
mercadorias produzidas com base em tal separação e alienação não podem emergir
diretamente do processo de produção como valores de uso relacionados à
necessidade” (Mészáros, 2011, p. 624).
Desta
forma, a crise estrutural do capital atinge a produção-circulação-distribuição,
o conjunto das relações sociais e todas as dimensões da vida social –
principalmente a relação da sociedade com a natureza –; atinge todos os países,
tanto os centrais quanto os periféricos, embora de formas diferentes; é uma
crise que o capital não tem condições de “resolver”, pois atingiu seus limites
últimos; e essa crise persistirá enquanto o capital dominar a totalidade da
vida social com sua autorreprodução (Mészáros, 2011).
A degradação socioambiental se constitui como “[...] componente estrutural da
crise do capitalismo global [...]” (Marques, 2015, p. 42), uma crise que
exacerba a insustentabilidade ambiental, tornando-a uma doença congênita,
crônica e degenerativa, que é parte deste tipo de crescimento econômico;
portanto, não existem saídas reais por dentro dele, nem aquelas mediadas e propostas
pelo Estado.
A
seguir, iremos discutir os fundamentos da “questão ambiental” que eclodem com a
crise estrutural do capital na década de 1970 e suas principais expressões na
contemporaneidade, com a finalidade de entender as relações entre Estado,
capital e destruição socioambiental que atravessam a sociabilidade capitalista.
“QUESTÃO AMBIENTAL” E SUAS EXPRESSÕES NA CONTEMPORANEIDADE
Com o
desenvolvimento acelerado do capitalismo monopolista e a partir dos contornos
totalizantes da crise estrutural do capital, temos o desvelamento da essência
destrutiva do capital com relação aos recursos naturais e aos meios de vida dos
homens e mulheres, que eclodem rigorosa e intensamente na chamada “questão
ambiental”, constituindo-se como “[...] um conjunto de deficiências na
reprodução do sistema, o qual se origina na indisponibilidade ou escassez de
elementos do processo produtivo advindos da natureza, tais como matérias-primas
e energia e seus desdobramentos ideopolíticos” (Silva,
2010, p. 67).
O uso do
conceito “questão ambiental” está diretamente vinculado a uma crítica a
terminologias “neutras”, como “crise do meio ambiente” ou “crise ecológica”
(entre suas derivações), essencialmente utilizadas, em larga medida, por
movimentos ambientalistas –nos quais a consciência coletiva sobre a degradação
ambiental em escala global surgiu fortemente na década de 1960/1970, com apelo
crítico ao modo de vida e consumo no capitalismo, e não à essência destrutiva
do capital e necessidade de superação do modo de produção capitalista.
Apreendemos, por meio de Silva (2010, p. 81-82), que “[...] não é o ambiente
natural que se encontra em crise, mas o sistema do capital, o qual faz recair
sobre os trabalhadores e sobre a própria natureza as mazelas de sua dinâmica
crescentemente predatória”.
A
preocupação com a degradação do meio ambiente tem ocupado a agenda
institucional de partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo diretrizes
econômico-administrativas do empresariado, além das ações estatais. Com a
“questão ambiental”, uns apostam na saída técnica e científica para a
problemática ambiental sem questionar a essência destrutiva do capital, outros
na perspectiva de mudança societária radical, uma sociedade emancipada sem a
exploração do trabalho, livre do capital e Estado, pautada em uma nova forma
relacional entre a humanidade e a natureza, que atenda às necessidades reais da
sociedade (Silva, 2010).
Pensar a
ecologia sob a perspectiva crítica radical é considerar que, no capitalismo, a
relação das pessoas com o meio ambiente é mediada pela forma de trabalho
alienado sob as bases da propriedade privada. Neste sentido, há problemas nas
relações interespecíficas do gênero humano, uma vez que esse é dividido em
classes sociais fundamentais: os que possuem os meios de produção e aqueles a
quem só restam a força de trabalho para vender, isto é, as relações
interespecíficas dos homens e mulheres por meio das classes sociais e da luta
de classes. A sociedade “[...] nunca se defronta com a natureza como bloco,
como espécie, mas como uma sociedade dividida, complexa e diferenciada em
classes” (Foladori, 2001, p. 207). Nunes (2019)
explicita que:
A desigualdade
social proveniente da alienação do trabalho e da natureza encontra expressão na
impossibilidade das classes não proprietárias em ter as suas necessidades
naturais e sociais atendidas, ou seja, acesso a trabalho, alimentação, ar puro,
água limpa, moradia, vestimenta, educação, arte, lazer e todas aquelas que numa
perspectiva marxiana, podem conduzir a humanidade no seu rico processo de
humanização, mas cujo acesso no sistema do capital está mediado pelo mercado
(Nunes, 2019, p. 38).
Não dá
para culpabilizar a “espécie humana” pela destruição ambiental tomando-a em
abstrato, pois os agentes que centralizam a riqueza socialmente produzida são
os responsáveis pela catástrofe ambiental com a anuência e a ação direta do
Estado.
Com a
eclosão da “questão ambiental”, são colocadas em xeque não só a (re)produção do capital – pois a finitude da natureza é um
limite para ele –, mas a atuação do Estado perante a economia e a sociedade.
Como o Estado está a serviço do capital, ele intervenciona com ação corretiva
sobre os defeitos estruturais, atua na administração e no gerenciamento das
contradições e fornece condições políticas para a sua reprodução (Mészáros, 2011).
Na contemporaneidade, a “questão ambiental” revela-se:
a) na deterioração dos recursos naturais (solo, recursos
minerais, água, florestas etc.), provocada pelas ações humanas, ameaçando a
capacidade autoreprodutiva da natureza. A escassez
e/ou deterioração dos recursos naturais são funcionais ao sistema do capital,
que se perpetua por meio da apropriação privada dos recursos, gerando lucro
para seus detentores (Silva, 2010);
b) na produção indiscriminada de resíduos sólidos,
devido ao consumo destrutivo e à “obsolescência programada”, que reduz o tempo
útil das mercadorias;
c) na poluição (ar, água e solo), queimadas e desmatamento,
processos inerentes à lógica de produção do capital (Silva, 2010), seja na
indústria, na mineração ou no agronegócio;
d) nos desequilíbrios dos ecossistemas, provocados pela
ação antropogênica que degrada e/ou extermina ecossistemas inteiros, afetando o
ciclo de vida das espécies da fauna e flora (aliás, a quadra contemporânea
aponta que as epidemias/pandemias virais decorrem da intervenção e alteração
dos ecossistemas);
e) na consciência ambiental, quando se produz um
pensamento ambientalista que reforça a dualidade humano-natureza (biocêntrica
ou antropocêntrica), ou conciliadora com o capital, como o “desenvolvimento
sustentável”;
f) na luta de classes, contra a lógica destruidora da
natureza e do ser humano pelo capital, pois não é incomum observar que homens e
mulheres já não mais se relacionam com o meio ambiente sem destruí-lo de forma
indiferenciada, provocando, inclusive, relações conflituosas entre as pessoas
(as classes sociais) sobre a forma de acesso à terra, à água, às florestas e a
outros recursos naturais.
Além
dessas expressões mais latentes, devemos considerar que a vivência da classe
trabalhadora com as mazelas sociais e ambientais é produto da
exploração do trabalho e destruição da natureza. Portanto, a “questão
ambiental” não deve ser entendida restritivamente como circunscrita aos problemas ambientais isolados dos problemas
sociais; deve tanto “[...] abarcar as inter-relações entre destruição da
natureza, exploração do trabalho, apropriação privada dos meios de produção
(incluindo a propriedade da terra), concentração da riqueza socialmente
produzida e seus efeitos deletérios nas condições de vida [...]” (Costa et
al., 2021, p. 3), quanto os rebatimentos diferenciados nas “[...]
comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos) e [na]
classe trabalhadora nas favelas, nas periferias dos centros urbanos e no campo”
(Costa et al., 2021, p. 3).
As
expressões da “questão ambiental” recaem, diferenciadamente, entre os países
centrais e periféricos, porque as formas de intervenção e acumulação de capital
em determinados territórios mudam de acordo com a divisão internacional do
trabalho, que coloca os países “em seus lugares” perante a lógica predatória,
como na forma de apropriação dos minérios “sem preocupação” com os rejeitos,
com as comunidades tradicionais e com o esgotamento da biodiversidade e do solo
dos países periféricos, por exemplo (Silva, 2010).
O
sistema do capital determina que os países periféricos recebam e armazenem mais
resíduos sólidos que os países centrais, como é o caso do descarte de lixo
eletrônico. Segundo a pesquisa de Oliveira Neto (2019,
p. 47), “[...] estima-se que 50-80% do total de lixo eletrônico produzido no
mundo seja enviado de países desenvolvidos (Austrália, Japão, Coréia, Europa
Ocidental e América do Norte) para países em desenvolvimento (Brasil, Índia,
China, Gana, Nigéria, México, Paquistão, Cingapura e Tailândia) [...]”. Pobreza
e miséria assolam os países periféricos devido à lógica e à forma de acumulação
do capital regidas pelos determinantes do Imperialismo, e ainda recebem as
indústrias mais poluentes e lixo eletrônico de países com capacidade
tecnológica para reciclar.
Essa
relação desigual e combinada entre os países centrais e periféricos, juntamente
com a eclosão da “questão ambiental” no contexto da crise estrutural, levou
alguns pesquisadores, como Chesnais e Serfati (2003)
e Foster e Clark (2006), a utilizarem o conceito de “Imperialismo ecológico”
para explicar a relação desigual entre os países no tocante ao domínio
ambiental e às problemáticas ambientais. Para Foster e Clark (2003),
[...] o imperialismo ecológico apresenta-se de diversas
maneiras, mediante o saque de recursos de certos países por outros e pela
consequente transformação de ecossistemas inteiros dos quais estados e nações
dependem; movimentos massivos de trabalho e populações vinculados à extração e
transferência de recursos; a exploração das vulnerabilidades ecológicas de
certas sociedades para promover um maior controle imperialista; a descarga de
dejetos ecológicos que amplia a fenda entre centro e periferia; e, em conjunto,
a criação de uma ‘descontinuidade metabólica’ global que caracteriza a relação
do capitalismo com o meio ambiente ao mesmo tempo em que limita o
desenvolvimento capitalista (Foster; Clark, 2003, p. 226).
Na
esteira do pensamento marxista, Chesnais e Serfati (2003)
afirmam que o capital “[...] é plenamente capaz de transferir o peso das
degradações para países e classes mais fracas [...]” (Chesnais; Serfati, 2003, p. 43), inclusive, ele pode “[...] dirigir
toda a potência militar dos imperialismos dominantes para tarefas de
‘manutenção da ordem’ em todas as partes do mundo em que as degradações das
condições de existência dos povos, sob efeito das destruições ambientais,
possam provocar levantamentos” (Chesnais; Serfati,
2003, p. 43).
Essa “dominação
ecológica” dos países centrais sob os países periféricos é uma forma de
controle da utilização dos recursos naturais e do gerenciamento da destruição
ambiental na tendência de “garantir a ordem” – leia-se, a ordem do capital sob
o comando político do Estado – sobre como, quando e de que forma os países
centrais podem consumir os recursos naturais e gerir os resíduos sólidos.
Todavia,
aquela dominação vem acompanhada de apelo ideológico do “desenvolvimento
sustentável”. Como as relações capitalistas tratam a natureza como algo externo
às relações sociais, levam os chamados “preservacionistas” a proporem formas de
proteção à natureza isolando-a do contato humano, como se não fosse possível a
homens e mulheres em sociedade se relacionarem com seu meio natural fora das
bases da propriedade privada e do uso indiscriminado dos recursos naturais;
isto é, como se as pessoas não pudessem construir outro projeto societário sem
as relações mercantilizadas e a mercadorização da
natureza.
Uma das
linhas de frente do capital e do Estado para “driblar” a “questão ambiental” é
apostar no discurso ideológico da “economia verde”, visando conciliar o uso
sustentável dos recursos naturais com o capitalismo. Assim, o capitalismo tem
apostado nos discursos do uso discriminado dos recursos provenientes da
natureza, do “desenvolvimento sustentável”, da “eficiência energética” – com as
energias “limpas” – e da “justiça ambiental”[3] para a classe
trabalhadora, especialmente com as comunidades tradicionais como formas e
mecanismos de saídas da “questão ambiental”.
A “pauta
ecológica” ganhou proporções em todas as dimensões da vida social, desde a
economia à cultura, ganhou força e centralidade no conjunto de preocupações
sobre o “futuro da humanidade” com vistas a “cuidar do nosso lar”, o que
provocou o atravessamento de disputas políticas e ideológicas e de projetos
societários. O “verde” se tornou a “cor ideológica”
do modo de produção capitalista para conter a destruição ambiental com o “capitalismo
verde”, a “economia verde”, “marketing verde” e os “empregos verdes”.
Entre outras variações, esses são inseridos pelo capital como passíveis de se
efetivarem, mas dentro da lógica do mercado, dentro da lógica de reprodução do
próprio capital, sem questionar seu fundamento de exploração do trabalho e de
destrutividade da natureza. A “pegada verde” do capitalismo propõe “[...]
medidas de monitoramento do consumo per capita dos países [...];
pagamentos por serviços ecossistêmicos; financiamento e investimento em
tecnologia para setores da economia verde; precificação do carbono; eliminação
de subsídios a setores poluidores [...]” (Nunes, 2019, p. 160). Temos ainda as
propostas de “[...] expansão de setores de baixo impacto
ambiental, do incentivo de ações como agricultura sustentável, da gestão de
resíduos, transportes verdes, [...] prédios verdes, manejo florestal e
pagamento por serviços ambientais” (Zacarias, 2012, p. 140). Para
a sociedade do consumo, chega à proposta do “consumo verde” com “[...] produtos
ecologicamente corretos, saudáveis ao meio ambiente” (Zacarias, 2012, p. 138).
Essa ofensiva consegue dar fôlego ao capital em tempos de
crise estrutural porque as “propostas verdes” tendem a “[...] reorientar a
composição orgânica do capital, restabelecendo para os oligopólios e para os
grandes aglomerados financeiros internacionais possibilidades de apropriação da
natureza [...]” (Araújo; Silva, 2012, p. 138-139). A natureza passa a ser vista
apenas como valor monetário, onde os recursos naturais são apropriados
diretamente para a acumulação, transformando a natureza apenas em uma fonte de
lucro (Fontenele; Conceição, 2021). Esta é a essência do capital: “[...]
acumular em meio à mais flagrante destruição ecológica
[...] e
continuar a destruir a terra a um ponto sem volta – tanto para a sociedade
humana quanto para a maioria das espécies vivas do mundo” (Foster, 2002,
p. 7).
Há uma
funcionalidade nos discursos apocalíticos, porque colocam na ordem do dia a
continuidade da reprodução do capital no tempo presente, no contexto de
aprofundamento da crise estrutural, mesmo que isso signifique a depredação dos
recursos naturais (finitos) e essenciais também à produção futura do capital.
Se é
verdadeiro que não existe capitalismo sem crise, é igualmente verdadeiro que
não existe capitalismo sem destruição da natureza e sem “questão ambiental”,
mesmo com o uso sofisticado de tecnologias – as chamadas tecnologias “limpas” –
e de conhecimentos científicos (Foladori, 2001).
Portanto, a lógica destrutiva do capital exalta o progresso técnico e
científico, o desenvolvimento das forças produtivas em geral, como forma de
dominação (e de continuidade da dominação) do homem sobre a natureza sob o respaldo
das ações diretas e indiretas do Estado.
CONCLUSÃO
O objetivo deste artigo foi discutir a
relação destrutiva entre Estado, capital e natureza ao apontar a tendência
destruidora do aparato estatal. É reiterativo afirmar que soluções por dentro
da lógica do capital, direcionadas politicamente pelo Estado, não passam de
mitigação e soluções superficiais, que não atingem o cerne da “questão
ambiental”. A tendência do capitalismo, mesmo com o cenário de degradação,
destruição ambiental e barbarização da vida social, é
avançar na extração de recursos naturais e aprofundar as desigualdades
socioambientais. A “questão ambiental” se revela na degradação, deterioração e
destruição da natureza, do ser humano e das relações sociais, em escala global,
com impactos diferentes entre as classes sociais e entre os países, a depender
da sua posição econômica na totalidade da economia mundial; apresenta-se na barbarização da vida social, com a banalização destrutiva
do meio ambiente; e na própria condição degradante na qual vivem homens e
mulheres sob os determinantes do capital e do essencial comando político do
Estado.
Com a latência inegável da destruição
socioambiental, até mesmo o capitalismo se colocou para “enfrentar” esse
problema juntamente com o Estado, obviamente de forma paliativa, com resultados
pífios, ou até mesmo tendenciando as possibilidades de geração de algum tipo de
lucro com as ações de remediação ambiental, sob a ideologia das “propostas
verdes”, mas nada que questione a lógica e a essência destruidora do capital.
Assim, não há como reverter o quadro de destruição ambiental sob a
solidificação das bases do capital, do trabalho alienado e do Estado.
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Everton Melo da SILVA
Doutor em Serviço social pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Professor Adjunto do curso de Serviço social da
Unidade Educacional de Palmeira dos Índios, Campus Arapiraca, UFAL. Professor
do Programa de Pós-graduação em Serviço Social/UFAL. Pesquisador do Grupo de
Estudos e Pesquisas Marxistas GEPEM/UFS e Grupo
de Estudos e Pesquisa TRASSO/UFAL.
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Editoras responsáveis
Ana Targina Ferraz –
Editora-chefe
Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora Temática
Submetido em: 24/2/2024. Revisto em: 1º/8/2024.
Aceito em: 15/8/2024.
Este é um artigo publicado em acesso
aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original
seja corretamente citado. |
[1] O
Brasil saltou de 54.506.661 milhões de veículos em 2008 para 107.948.371
milhões em 2020, sendo desses 58.016.405 automóveis e 23.862.010 motocicletas,
segundo dados do IBGE (2021). Somente
São Paulo acomoda mais de 28% desse total de veículos.
[2] O
professor e pesquisador Fernando Meirelles da Fundação Getúlio Vargas liderou a
32ª Pesquisa Anual do uso de TI nas Empresas (2021) e revelou que, em 2020,
estavam em uso no Brasil 440 milhões de dispositivos digitais, sendo 198
milhões de computadores (47%) e 242 milhões de smartphones (53%). O relatório
completo da pesquisa pode ser acessado no site: https://portal.fgv.br/noticias/retrospectiva-2021-brasil-tem-dois-dispositivos-digitais-habitante-revela-pesquisa-fgv . Acesso em: 4 nov. 2021.
[3]
Conferir nosso tratamento crítico ao tema em Santos, Silva e Santos (2022).