Uma menina na casa: estupro, aborto
e a pandemia de COVID-19 no Brasil
A little girl’s home: rape, abortion, and the COVID-19
pandemic in Brazil
https://orcid.org/0000-0001-6987-2569
E |
u não sei quem ela é. Conhecê-la
significaria desrespeitá-la novamente. Imagino-a com as poucas coisas que
carregava ao fugir de casa para o desterro: dois bichos de pelúcia e uma bolsa
de menina. Ela foi descrita no noticiário como uma menina negra de dez anos, de
família pobre, do interior de São Mateus, no Espírito Santo, vítima de abuso
sexual na própria casa[1]. Sua família extensa
morava na mesma casa, onde seus avós, tias, tios e primos sobreviviam com
auxílio emergencial desde que o trabalho informal havia sido interrompido pela
pandemia de COVID-19 no Brasil. A menina deixou sua existência anônima para
trás para se tornar um escândalo nas notícias: grávida como resultado de um
estupro. Em plena pandemia, ela necessitava de um aborto[2].
Neste ensaio, analiso como as políticas
globais de saúde pública têm presumido que a casa é um espaço protetor. Para
controlar o risco de transmissão, os corpos foram isolados em espaços
domésticos. A casa tornou-se uma fronteira entre o
espaço público, ocupado por corpos considerados essenciais, e o espaço
doméstico, ocupado por corpos dependentes de cuidados para sobreviver. Ao
assumir que a casa é um local de refúgio e proteção, os corpos foram despojados
de vulnerabilidades anteriores à pandemia; eles seriam como seres vivente
agrupados em famílias cuidadoras. Gênero e outros regimes de opressão que
tornam os corpos menos seguros, como classe e raça, atravessaram em um corpo
biológico abstrato ameaçado pelo vírus. No entanto, foi o corpo biológico da
menina que escapou do confinamento doméstico para se anunciar como matéria
desapropriada. Ela saiu de casa em plena pandemia porque estava com dores
abdominais. No hospital, descobriram a gravidez.
De casa, foi a avó da menina quem falou por ela, como
tutora legal e cuidadora. Sua avó-guardiã ofereceu fotos de bichos de pelúcia à
imprensa; eles pareciam novos – talvez fossem transitórios, parte de sua viagem
de ida de casa para o hospital. Os médicos em seu estado natal citaram “[...] objeção
de consciência [...]” (CASO..., 2020, não paginado) para negar o direito ao
aborto legal. A menina viajou 1.450 quilômetros para chegar a um centro de
saúde que finalmente realizou o aborto. Sua chegada ao hospital foi
clandestina; escondida no porta-malas de um carro, como uma refugiada passando
por uma sentinela de fronteiras. Gritos como “assassina” podiam ser ouvidos do
lado de fora (TATSCH, 2020). Depois do aborto, nem a menina nem a avó voltaram
para casa. Eu as chamo de desterradas em seu próprio território. O agressor foi
preso e a casa abusiva foi aberta por estranhos em busca de evidências
materiais da violência que existe apenas no corpo da sobrevivente[3].
A violência sexual contra a menina não
começou durante o confinamento pandêmico. Se a gravidez alterava o corpo da criança,
ninguém percebia, porque as relações sociais se limitavam a casa, ou talvez
porque seu corpo muito imaturo mudava pouco com a gravidez. Os noticiários
dizem que ela sofria violência desde os seis anos de idade – seu corpo
biológico não se manifestava como conquistado, e a menina mantinha silêncio
sobre a violência:
Quando ela ainda estava internada [...]
a menina [...] soube pelo celular que prenderam o tio que ela acusou de
estupro. ‘Isso é bom, porque agora o vovô pode sair’, disse ela. A criança temia
que seu tio matasse seu avô. Foi por causa dessa ameaça que ela não contou a
ninguém sobre a violência que estava sofrendo (TATSCH, 2020, não paginado).
Os motivos íntimos de silêncio da
menina subvertem nossas expectativas sobre as relações cuidadoras em um lar pater
familias. A ameaça do agressor a levou a acreditar
que sua confissão teria poderes de vida ou morte em sua casa, como Maya Angelou
(2009), que explicou por que ela caiu em silêncio depois que parentes mataram o
homem que a estuprou: “Apenas minha respiração, levando minhas palavras para
fora, poderia envenenar as pessoas e elas se enrolariam e morreriam como
as lesmas pretas e gordas que apenas fingiam. Tive que parar de falar”
(ANGELOU, 2009, p. 86).
Após sair de casa durante a pandemia, o
corpo da menina percorreu novas zonas de inteligibilidade. Sua gravidez, no
entanto, não foi suficiente para dirimir disputas
dentro da narrativa de como melhor proteger e garantir os direitos de seu corpo
violentado. As disputas giravam em torno do que Adriana Petryna (2004)
descreveu como “[...] cidadania biológica [...]”: “[...] uma demanda por, mas com
acesso limitado a uma forma de bem-estar social baseada em critérios médicos,
científicos e jurídicos que reconheçam o dano e o compensam” (PETRYNA, 2004, p.
261). Os onze dias desde que ela saiu de casa até ir para o esconderijo foram acompanhados
por intensa controvérsia pública sobre o aborto – se era para proteger sua
saúde ou desnecessário e, portanto, uma ofensa moral. Não se tratava de
uma controvérsia biomédica, já que o aborto é um procedimento menos arriscado
para um corpo de dez anos do que o parto. Ao contrário, era uma polêmica em
torno do aparecimento da gravidez como um Outro em uma disputa com a
menina sobre a apropriação de seu próprio corpo.
Quando a gravidez veio à tona, a menina foi
retirada de casa e encaminhada a um abrigo público. Uma nova metafísica da
presença ocupou a cena pública, todas num mesmo corpo: a menina trazia dentro
de si a ferida da violência, mas a gravidez era o que desafiava a cidadania
biológica recentemente conquistada pela menina como vítima da violência. Uma
vez que a menina estava no abrigo, a casa da avó-guardiã foi invadida enquanto homens
e mulheres em oração apagavam a fronteira estabelecida pela política de saúde
da pandemia entre espaço público e casa.
Um juiz foi chamado para o caso, embora
sua voz fosse desnecessária sob as leis brasileiras de aborto[4]. O momento da gravidez
coincidiu com a promulgação das regras de distanciamento social e o fechamento
das escolas pela pandemia: ela estava grávida de 22 semanas. O juiz não
conheceu a menina, mas a conheceu por meio dos relatos de quem presenciou seu
sofrimento, relatos feitos para conceder a cidadania biológica aos corpos em
sofrimento: “Ela abraçou um ursinho de pelúcia contra o peito e, à simples
menção da gravidez, sofria, gritando, chorando e negando constantemente,
simplesmente repetindo que não queria” (SENRA, 2020; ver também ‘choque e
clichê’ em SONTAG, 2013).
A que o juiz se referia quando dizia
que a “garota não queria”? Acredito que essa foi uma tentativa de reconhecer a
própria agência da menina – um corpo apropriado por seu agressor, mas que ela
queria reivindicar de volta como um corpo com sua própria agência:
O desejo da vítima de interromper a
gravidez, decorrente de situação de violência a que ninguém jamais deveria ser
submetido, precisa ser respeitado e levado em consideração nessa decisão, mesmo
que ela não esteja legalmente habilitada para a prática de todos os atos da
vida civil (MOTA; DALVI, 2020, não paginado).
O juiz serviu como a guardiã final dos desejos da menina
em relação ao aborto e à sua ilusão de que ela estaria protegendo o avô ao manter
silêncio sobre a violência. O juiz foi agente dos valores da cidadania
biológica, concedendo-lhe o arbítrio encarnado no corpo. Alguns ficaram
intrigados com essa preocupação com a agência da menina em um cenário de
violência, que aliena o arbítrio. Para mim, é precisamente esta ambivalência
que caracteriza os regimes de expropriação violenta – o corpo da vítima foi
subjugado, mas se a vítima resiste, apropria-se do corpo sobrevivente.
A casa abusiva foi desmantelada. Os corpos da menina e de
sua avó-guardiã estão escondidos, eles estão sobrevivendo em um não-lugar até
que a notícia se cale. Em um intervalo de 11 dias, elas deixaram o anonimato
para outro espaço de inteligibilidade, forçadas pelo medo da perseguição a um
corpo que fez aborto. A transição entre esses espaços pode permitir o estabelecimento
de novas formas de pertencimento para que o corpo da menina persista e seja
habitável.
Referências
ANGELOU, Maya. I Know Why the Caged Bird Sings.
New York: Penguin Random House, 2009 [1969].
CASO da menina de dez
anos expõe falhas no Espírito Santo e resistência ao aborto. Folha de São
Paulo, 18 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/08/caso-de-menina-de-10-anos-expoe-falhas-no-espirito-santo-e-resistencia-ao-aborto.shtml.
Acesso em: Acesso em: 28 mar. 2023.
DINIZ, Debora; DIOS, Vanessa
Canabarro; MASTRELLA, Miryam; MADEIRO, Alberto. “The Truth of the Rape at
Reference Abortion Services in Brazil.” Revista Bioética,
Brasília (DF), v. 22, n. 2, p. 288-295, 2014.
MADEIRO, Alberto; DINIZ,
Debora. Legal Abortion Services in Brazil: A National Study. Ciência e Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-573, 2016.
MOTA, Amaro; DALVI,
Bruno. “Menina que engravidou após ser estuprada no ES vai interromper a gravidez
em outro estado.” G1 ES e TV Gazeta, Vitória, 16 ago. 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2020/08/16/menina-que-engravidou-apos-ser-estuprada-deixa-o-es-para-interromper-gravidez-em-outro-estado.ghtml.
Acesso em: 28 mar.
2023.
PETRYNA, Adriana. Biological Citizenship: The Science
and Politics of Chernobyl-Exposed Populations. Osiris,
Chicago, v. 19, p. 250-265, 2004.
SENRA, Ricardo.
Estupro de criança revela lado animalesco do homem, diz Marco Aurélio, do STF. BBC
Brasil, Londres, 17 ago. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53814276. Acesso em: 28 mar. 2023.
SONTAG, Susan. Regarding the Pain of Others.
New York: Farrar, Straus and Giroux, 2013.
TATSCH, Constança.
Ameaçada, menina de dez anos relata alívio ao ver que tio foi preso. O Globo,
São Paulo, 19 ago. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/aborto/ameacada-menina-de-10-anos-relata-alivio-ao-ver-que-tio-foi-preso-1-24593664.
Acesso em: 28 mar. 2023.
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Débora DINIZ
Antropóloga, professora
universitária, pesquisadora, ensaísta, e documentarista brasileira. Desenvolve
projetos de pesquisa sobre bioética, feminismo, direitos humanos, e saúde.
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* Antropóloga. Doutorado em Antropologia. Professora da
Universidade de Brasília. (UnB, Brasília (DF), Brasil). Campus Universitário Darcy
Ribeiro, Brasília (DF), CEP.: 70910-900. E-mail: d.diniz.debora@gmail.com.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso
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desde que você respeite os termos da licença.
[1] De
acordo com as leis brasileiras de proteção à criança, a identidade da menina é
confidencial. Por respeito aos direitos da vítima, apresentei este artigo ao
juiz e promotor responsável pelo caso antes da publicação. Todas as informações
foram obtidas de fontes publicadas.
[2] O
aborto é legal no Brasil em três situações: risco de vida da mulher, estupro e se
o feto for diagnosticado com anencefalia. Fizemos uma pesquisa sobre os
principais serviços públicos que oferecem acesso ao aborto e descobrimos que
15% das vítimas eram meninas de 10 a 14 anos. A casa era o local mais comum
para o estupro. Ver Madeiro e Diniz (2016).
[3] A palavra
“vítima” não é suficiente para garantir o acesso de uma mulher, menina ou
pessoas gestantes aos serviços de aborto legal. Em um estudo anterior,
mostramos como táticas de veridição – que vão desde testes de memória sobre a
cena da violência até testes para identificar o agressor usando material
retirado do feto – são usadas para produzir a “verdade sobre o estupro”. Nesse
caso, foi feito teste genético para comprovar a ligação genética entre o feto e
o homem acusado de estuprar a menina (DINIZ et al., 2014).
[4] Segundo o Código Penal, o estupro é
presumido quando a gravidez é de meninas mais jovens que 14 anos.