Aborto Legal e seguro para meninas brasileiras em tempos de
barbárie: um diálogo com Debora Diniz
Legal
and safe abortions for Brazilian girls in barbaric times: a dialogue
with
Debora Diniz
https://orcid.org/0000-0002-8745-0826
O |
texto de Debora Diniz intitulado: ‘A
casa de uma menina: estupro, aborto e a pandemia de COVID-19 no Brasil’ nos traz
reflexões essenciais e sensíveis sobre o conhecido caso da menina de dez anos
do Espírito Santo que engravidou vítima de um estupro de vulnerável (art. 217-A
do Código Penal),[1]
praticado por um parente dentro de casa e sua via-crúcis para ter acesso
ao aborto legal e seguro. Em especial diante do conjunto de experiências
terríveis que ela teve que passar até finalmente conseguir realizá-lo em um
serviço localizado a mais de 1.480 km de sua casa. Isso garantiu a dignidade, o
direito à vida e a um futuro, depois desse acesso ter-lhe sido negado no
hospital universitário de seu estado sob a justificativa de recusa
consciente pelos médicos.
É revoltante saber que, mesmo após a
autorização judicial e a enorme distância percorrida até outro estado para a
realização do procedimento legal, o médico-chefe
do serviço de saúde da cidade de Recife que aceitou acolher a menina, chegou a
ser xingado de assassino por populares mobilizados por uma articulação
conservadora supostamente pró-vida que cercaram o prédio tentando
impedir que a menina entrasse na clínica. A criança teve que ser escondida no
porta-malas no carro para conseguir entrar no local, como noticiado na mídia, após
a divulgação criminosa de seu nome.[2] Como afirma Debora Diniz
em seu texto, “[...] A menina deixou sua existência anônima para trás para se tornar
um escândalo de notícias [...]” (DINIZ, 2023, p. 8), o que pode ter aumentado
ainda mais o seu trauma.
A autora denuncia como corpos
isolados de meninas em espaços domésticos são todos os dias violados pela
família patriarcal, o que se agravou ainda mais na pandemia, sendo-lhes negada
a cidadania biológica, a partir de políticas globais (e locais) que presumem
que o lar seria o espaço protetor. No entanto, os números mostram a violência
que se expressa no grande quantitativo de meninas grávidas na infância, fruto
de crimes praticados dentro de casa, com a subsequente negação quase que
absoluta do direito ao aborto legal e seguro às meninas estupradas em nosso
país, mesmo estando esse direito previsto no Código Penal brasileiro desde a
década de 1940 (art. 128) (BRASIL, 1940).
O conceito
de cidadania biológica, citado por Debora Diniz no texto a partir de Adriana Petryna (2004) é essencial para compreender esses incontáveis casos de
negativa de acesso ao aborto legal em meninas, que se define a partir da ideia
da seletividade e da limitação do acesso “[...] a uma forma de bem-estar social baseada
em critérios médicos, científicos e jurídicos que reconheçam a lesão e a
compensem” (PETRYNA, 2004, p. 261).
Como
esse, são milhares de casos todos os dias de meninas que engravidaram vítimas de
estupro antes mesmo de completarem 14 anos, idade legal para o consentimento
sexual válido a partir da perspectiva de seu amadurecimento para poder exercer
seu direito de escolha, mas que não tiveram acesso à interrupção legal da
gravidez. O direito à dignidade e à proteção integral da infância é negado a
essas meninas, que acabam sendo obrigadas pela família e/ou pelo Estado a serem
mães ainda crianças por omissão na concretização da política pública do aborto
legal, o que ainda traz riscos à vida delas (FARIA; MORÉ, 2012).
Nesse
sentido, segundo os números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022),
79,6% dos casos de estupro de vulneráveis (com vítimas até 14 anos) foram
praticados por parentes próximos ou pessoas conhecidas da vítima, dentro da casa
da família, que deveria ser um local de acolhimento e proteção, em 2022.
Destaque-se que a maioria das vítimas de estupro de vulnerável em nosso país é
de meninas negras em situação de vulnerabilidade, ou seja, é uma questão de
gênero, raça e classe. A essas meninas é negado o acesso ao aborto legal.
No
cenário nacional, outro caso recente de violação de direitos foi o da menina de
12 anos do Piauí que, fora da escola e já mãe de uma criança de um ano, após
ter tido negado acesso ao aborto legal na sua primeira gravidez, quando foi desencorajada
a seguir com o procedimento, foi novamente estuprada, o que resultou numa
segunda gravidez. Nesse outro momento, apesar de a interrupção da gravidez ter
sido autorizada pela Justiça de Teresina em primeira instância, tal decisão
acabou suspensa pelo Tribunal daquele estado, a pedido da Defensoria pública e
da mãe da menina.
Assim,
enquanto no caso da menina capixaba, como narra Debora Diniz, a avó dela
assumiu o amoroso papel de avó-guardiã e as responsabilidades maternas para garantir os
melhores interesses da menina, que foi por ela guiada e apoiada, a menina piauiense
não só não teve esse apoio da família como foi justamente sua mãe quem impediu
a realização do procedimento garantido por lei, apesar da própria menina ter
inicialmente manifestado acordo com a realização do aborto e expressado sua
vontade de voltar logo para a escola. Este caso ganhou contornos ainda mais sofridos
quando o recurso interposto por parte da Defensora Pública se deu pela inconstitucional
forma jurídica de defensora do feto, contra os interesses de uma menor
de 14 anos que deveria ser protegida. Nessa qualidade, a defensora recorreu em
nome do feto contra a decisão judicial que autorizava o aborto legal e seguro, indo
contra os legítimos interesses da menina violentada (MORI, 2023). Até
hoje não se tem notícia de que ela tenha logrado o acesso ao aborto legal, devendo
ser mencionado que o atraso na realização do procedimento impõe maiores riscos
a cada dia, razão pela qual a interrupção precisa ser realizada no menor tempo
possível. Tal caso chegou, inclusive a ser denunciado perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que realizou audiência pública no início de
março de 2023 (CARVALHO, 2023).
Por fim, devemos lembrar outra situação
gravíssima, o da menina de Santa Catarina, que se tornou conhecida a partir do
vazamento do vídeo da audiência que mostrava a juíza perguntando à menina na
audiência se ela “[...] aguentaria mais um pouquinho com o bebê (sic)?”[3]. A juíza visava conseguir
mais tempo para tentar impedir a interrupção da gravidez até que não fosse mais
possível realizar o procedimento abortivo, o que a levaria a encaminhar o
futuro bebê para adoção caso não quisesse ficar com ele, apesar do
consentimento já expressado pela menina e sua mãe pelo aborto legal. Além
disso, essa menina foi colocada em um abrigo para impedir o aborto legal e
seguro e separada da mãe, que chegou a implorar à juíza para ficar junto de sua
filha, o que foi negado (BOITEUX, 2023).
O que esses casos têm em comum é uma
disputa, que é ideológica e não biomédica nem jurídica, uma vez que, como
aponta Debora Diniz, “[...] o aborto é um procedimento menos arriscado para um
corpo de dez anos do que o parto [...]” (DINIZ, 2023, p. 10), bem como legalmente
uma menina de menos de catorze anos que engravida tem direito ao aborto legal e
seguro, uma vez que a violência é presumida por ser crime de estupro de vulnerável.
A grande questão, portanto, é como efetivamos um direito previsto em lei e recomendado
pela ciência biomédica diante da atuação de parte da Justiça e dos serviços de
saúde em sentido totalmente oposto. São muitas meninas vivendo um não-lugar,
a maioria delas negras e pobres, sobre as quais a violência estatal incide
mediante a omissão das autoridades médicas (e jurídicas) em garantir-lhes o
acesso ao aborto legal e seguro para assegurar sua dignidade, as quais são
cotidianamente revitimizadas pela nova violência, após já terem sofrido demais,
ao serem obrigadas a serem mães ainda na infância, com todos os riscos e
traumas que isso acarreta.
Referências
BOITEUX, Luciana. Uma aberração
jurídica contra os direitos das meninas e mulheres ao aborto legal. Portal
Catarinas, [s.l.], 3 fev. 2023. Disponível em: https://catarinas.info/uma-aberracao-juridica-contra-os-direitos-das-meninas-e-mulheres-ao-aborto-legal/.
Acesso em: 15 mar. 2023.
BRASIL. Decreto-Lei No 2.848, de 7
de dezembro de 1940. Código
Penal. Rio de Janeiro, 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
Acesso em: 10 mar. 2023.
DINIZ, Débora. A casa de uma menina: estupro,
aborto e a pandemia de COVID-19 no Brasil. Argumentum, Vitória, v. 15, n. 1, p.
8-11, jan./abr. 2023.
FARIA, Rejane de; MORÉ, Carmen Ojeda. Repercussões
da gravidez em adolescentes de 10 a 14 anos em contexto de vulnerabilidade
social.
Psicologia do Desenvolvimento. . DOI: 10.1590/S0102-79722012000300020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/prc/a/DC8YLNWQvnVr6Mkm6BLCxMR/abstract/?lang=pt.
Acesso em: 9 mar. 2023.
FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
(2022). Relatório Violência contra meninas e mulheres no 1o.
semestre de 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contra-meninas-mulheres-2022-1sem.pdf?v=v2.
Acesso em: 10 mar. 2023.
MORI, L. As falhas
em rede de proteção à infância no caso da menina de 12 anos grávida pela 2ª vez.
BBC News Brasil, São Paulo, 14 fev.
2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce57yx0p70mo.
Acesso em: 10 mar. 2023.
PETRYNA,
Adriana. Biological Citizenship: The Science and Politics of Chernobyl-Exposed
Populations. Osiris, Chicago, v. 19, p.
250-265, 2004.
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Luciana
BOITEUX
Advogada
Feminista. Mestre (UERJ) em Direito da Cidade. Doutora em Direito Penal (USP)
em Direito Penal e Criminologia. Professora Associada II de Direito Penal e
Criminologia da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (licenciada). Uma das
signatárias da ADPF 442 no STF que pleiteia a descriminalização do aborto no
Brasil. Atualmente exerce o mandato de vereadora no Rio de Janeiro.
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* Advogada.
Doutora em Direito Penal. Professora Associada de Direito Penal e Criminologia
da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
(UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil). (licenciada). Rua Moncorvo Filho, n. 8,
Centro, Rio de Janeiro (RJ), CEP.: 20211.340. E-mail: lucianaboiteux@ufrj.br.
© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso
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[1] O
crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal prevê
como crime: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
menor de 14 (catorze) anos [...]” (BRASIL, 1940, não paginado), ou seja,
presume a violência nesses casos.
[2] O médico
Olímpio Barbosa de Souza Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros
(CISAM) localizado em Recife (PE), onde foi realizado o procedimento de
interrupção legal da gravidez da menina do Espírito Santo, processou um
representante de grupos de extremistas que se opuseram de forma violenta à
assistência à menina e narrou no processo que “[...] havia a presença de
diferentes grupos religiosos e figuras políticas contrárias ao ato, os quais [...] tumultuavam e obstruíam a entrada do
hospital, bem como dirigiam ofensas à menor e aos profissionais médicos
envolvidos.” Fonte: Processo n° 0043066-27.2022.8.17.2001
da 23a. Vara Cível de Recife. Que pode ser pesquisado pelo número no
link: https://srv01.tjpe.jus.br/consultaprocessualunificada/processo/.
[3] Vídeo completo pode ser acessado no Canal
The Intercept Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VJK1bZxAu7Y.
Acesso em: 8 mar. 2023.