Sexualidade, direitos sexuais e reprodutivos em
tempos de avanço conservador
Leila Marchezi
Tavares MENANDRO*
O 15° volume da Argumentum, o primeiro número de 2023, traz o
desafio de ampliarmos a discussão sobre um tema que gera longos debates no
campo da esquerda. Por vezes compreendido como discussão secundária, o debate
em torno da sexualidade e dos direitos sexuais e reprodutivos tem sido
historicamente tratado como assunto moral, capitaneado principalmente pela
religião cristã, perdendo-se de vista as dimensões políticas e sociais
implicadas diretamente na questão.
Debater sobre os direitos sexuais
e reprodutivos e a sexualidade é debater sobre o direito de viver de mulheres e
meninas e de todas as pessoas que fogem do padrão cis-heteronormativo
e binário (homem/mulher), uma vez que o discurso moralizante coloca essas
pessoas em situação de morte. Esta não se trata de uma discussão abstrata: no
Brasil, os dados oficiais do Ministério da Saúde demonstram que as
mulheres/pessoas que gestam que mais morrem por complicações decorrentes de
abortos inseguros são negras e pobres; também são as negras e pobres as mais
suscetíveis à esterilização. Da mesma forma, o Brasil é um país violento para
as pessoas que fogem do padrão cis-heteronormativo,
com grande risco de morte para as pessoas transexuais/travestis/transgênero,
segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
Esses dados estão longe de
descortinar fatos novos: eles são antigos conhecidos das populações que
convivem com a violência diária – fomentada por discursos e práticas
conservadoras – que traz lucros e mantém sob controle os corpos que resistem na
invisibilidade e no silenciamento impostos pelo sistema
patriarcal-racista-capitalista.
Embora o conservadorismo
brasileiro – que une classismo, racismo e sexismo –
não seja recente, ele se adensou nas primeiras décadas dos anos 2000, com
características também reacionárias. A questão é que o conservadorismo
contemporâneo não tem apresentado avanço apenas no Brasil, mas também ao redor
do mundo como mostra a ascensão ao poder de líderes orgulhosos com a chancela conservador.
A década de 2010 ficará marcada como o período em que tais líderes políticos
saíram do lugar de relativa passividade ou da dimensão discursiva para o lugar
da ação e do ataque a qualquer pequeno avanço conquistado pela classe trabalhadora
na arena dos direitos sociais. Em tempos de pandemia de coronavírus (COVID-19)
e de aprofundamento da crise capitalista, os efeitos da perversa estratégia
conservadora foram largamente sentidos na vida de milhares de trabalhadoras e
trabalhadores pelo mundo, seja pela
diminuição da renda das famílias,
pela falta de proteção ao emprego e pelo desemprego, ou pelas ações de
retrocesso dos direitos sexuais e reprodutivos.
No caso específico do Brasil, a
política de desfinanciamento das políticas sociais
imposta pela Emenda Constitucional 95 (EC 95) combinada ao descaso com a vida
da população e às ações negacionistas do Governo Bolsonaro, propiciaram a morte
de mais de 700 mil pessoas por Covid-19. Na área dos direitos sexuais e
reprodutivos, o baixo financiamento da política de saúde, as ações
conservadoras presentes em portarias e resoluções do Ministério da Saúde e o
coronavírus resultaram em um aumento significativo de mortalidade materna no
período de 2020 a 2022.
No Congresso Nacional, amontoam-se
projetos de lei (a maior parte propostos por apoiadores de Bolsonaro) que
buscam criminalizar o aborto em qualquer circunstância, mesmo em casos
previstos no art. 128 do Código Penal de 1940, que dispõe sobre a legalidade do
procedimento em casos de estupro e de risco de vida da gestante. Mesmo sendo
previsto em lei, os serviços de saúde têm penalizado meninas e mulheres que
apelam por seu direito, recusando-se a realizar a interrupção da gravidez. Este
foi o caso da menina capixaba que precisou viajar quilômetros para ter acesso
ao direito de continuar criança.
A recusa dos serviços de saúde em
proceder com o aborto previsto em lei leva as pessoas gestantes a apelarem para
ações no judiciário. No entanto, o poder judiciário é também conservador e tem
atuado discricionariamente em relação às legislações que tratam dos direitos
sexuais e reprodutivos, vide o caso da menina que foi aconselhada por uma juíza
a “aguentar mais um pouquinho” a gestação para que o bebê pudesse nascer; ou o
caso da criança que, em sua segunda gestação, teve o direito do feto colocado
como prioridade; ou ainda, o caso da gestante de gêmeos siameses – sem
possibilidade de sobrevivência e com risco à vida da mulher – que teve seu
pedido negado mesmo em última instância. Estes são apenas três exemplos dos
tantos que têm sido noticiados na mídia e é impossível não suspeitar de que há
muitos outros casos que se manterão invisíveis e desconhecidos.
Entretanto, os direitos
reprodutivos – tão atacados pelos conservadores – não tratam apenas do direito
à interrupção da gravidez. Eles abarcam uma série de elementos relativos à
esfera reprodutiva, entre eles: o direito a optar se e quando quer ter
filhos/as; o direito a decidir o tamanho da prole; o direito ao acesso a
serviços de saúde para acompanhar a gestação e o parto; bem como o direito a
ter informações sobre os benefícios/malefícios/efeitos colaterais, a escolher e
a acessar métodos contraceptivos reversíveis (sejam eles naturais, de barreira
ou hormonais) e irreversíveis (esterilização por meio de laqueadura tubária e
vasectomia). Junto a esses direitos caminham os direitos sexuais, que tratam
sobre o direito de exercer a sexualidade de forma plena, livre de violência,
coerção e julgamentos morais.
Neste ínterim, esta edição da Argumentum apresenta textos de pesquisadoras e
pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, propiciando uma discussão
ampla e, ao mesmo tempo, profunda sobre os direitos sexuais e reprodutivos nos
tempos atuais.
A Seção Debate conta com o ensaio
de Debora Diniz, intitulado A casa de uma menina: estupro, aborto e a
pandemia de COVID-19 no Brasil. Debatendo com este texto temos os textos de
Luciana Boiteux e de Nathália Lima. Diniz nos toca ao contar o trajeto doloroso
percorrido pela menina capixaba em busca do seu direito de realizar um aborto.
Ela nos provoca a pensar a casa como espaço contraditório e o corpo (que
resiste) como uma habitação possível. Após toda a tortura vivida pela criança
que envolveu estupro, peregrinação aos serviços de saúde e violência por parte
de religiosos fanáticos, Diniz chama a nossa atenção para a situação de
desterro da criança e da avó, imposta pela negação do direito ao anonimato. No
diálogo com Diniz, Luciana Boiteux chama a atenção para os elementos previstos
na legislação brasileira, constantemente desobedecida no que diz respeito aos
direitos sexuais e reprodutivos, marcando uma questão que envolve gênero, raça
e classe. Boiteux conclui que tanto as ações no âmbito do judiciário, quanto as
ações nos serviços de saúde – que negam o direito e o acesso ao aborto nos
casos já previstos em leis – fazem parte de uma disputa ideológica que subjuga
os corpos das meninas. Nathália Lima dialoga com Diniz na perspectiva de quem
vivenciou e combateu, junto com os movimentos sociais e coletivos feministas, a
cena grotesca promovida pelos religiosos que tentaram impedir o direito da
menina. Lima traz dados que demonstram que, no Brasil, o racismo está na raiz
das violências sofridas por meninas e mulheres negras ao longo da vida. Assim,
a ilegalidade e as dificuldades de acesso ao aborto legal também se configuram
como violência às mulheres negras, uma vez que elas são lançadas, em maior
número, a buscarem o procedimento na clandestinidade.
Na Seção Temática, os artigos
estão organizados por foco de discussão. Iniciamos com o texto de Peixoto,
Salvador e Bianchetti que demonstram o descaso operado pelos governos Temer e
Bolsonaro na área dos direitos sexuais e reprodutivos a partir da análise das
políticas e dos orçamentos praticados de 2016 a 2019. A discussão sobre a
descriminalização do aborto não poderia faltar nesta edição e é aprofundada nos
textos de Abreu; Damião e Carloto; Matos, Santos e
Araújo; e de Esquenazi Borrego. Pereira e Lisbôa
analisam a saúde sexual e reprodutiva das mulheres quilombolas. Almeida e Lole refletem sobre o corpo no mundo capitalista. Rosa e
Souza analisam os discursos moralizadores sobre gênero e sexualidade propagados
em grupos conservadores e apoiadores de Bolsonaro no WhatsApp. Os textos de Fernandes
e Martins; Penante e Souza; Vilar e Mendonça; e Paiva e Brandão discutem sobre
os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes.
Na seção de temas livres, esta
edição traz artigos de indispensável leitura para compreendermos o momento
atual do capitalismo no cenário nacional e internacional.
Longe de esgotar qualquer
discussão, esta publicação certamente contribuirá para expandir o olhar de
leitoras e leitores que têm interesse em compreender o mundo por meio de lentes
teóricas que não simplificam os problemas provocados pelo sistema exploratório
e predatório patriarcal-racista-capitalista.
Agradeço, em nome da Argumentum, a todas e a todos as/os pareceristas que
partilharam conosco o seu tempo e participaram da construção desta edição: sem
a contribuição de vocês, a divulgação e o compartilhamento de conhecimento não
seria possível.
Boa leitura!
*
Assistente social. Doutora em
Política Social. Pós-doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em
Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista
PROFIX/FAPES. E-mail: leilamtm@gmail.com.