Sexualidade, direitos sexuais e reprodutivos em tempos de avanço conservador

                                                                                                                                                                                                                                                             

Leila Marchezi Tavares MENANDRO*

  https://orcid.org/0000-0002-9256-7535

 

O 15° volume da Argumentum, o primeiro número de 2023, traz o desafio de ampliarmos a discussão sobre um tema que gera longos debates no campo da esquerda. Por vezes compreendido como discussão secundária, o debate em torno da sexualidade e dos direitos sexuais e reprodutivos tem sido historicamente tratado como assunto moral, capitaneado principalmente pela religião cristã, perdendo-se de vista as dimensões políticas e sociais implicadas diretamente na questão.

 

Debater sobre os direitos sexuais e reprodutivos e a sexualidade é debater sobre o direito de viver de mulheres e meninas e de todas as pessoas que fogem do padrão cis-heteronormativo e binário (homem/mulher), uma vez que o discurso moralizante coloca essas pessoas em situação de morte. Esta não se trata de uma discussão abstrata: no Brasil, os dados oficiais do Ministério da Saúde demonstram que as mulheres/pessoas que gestam que mais morrem por complicações decorrentes de abortos inseguros são negras e pobres; também são as negras e pobres as mais suscetíveis à esterilização. Da mesma forma, o Brasil é um país violento para as pessoas que fogem do padrão cis-heteronormativo, com grande risco de morte para as pessoas transexuais/travestis/transgênero, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

 

Esses dados estão longe de descortinar fatos novos: eles são antigos conhecidos das populações que convivem com a violência diária – fomentada por discursos e práticas conservadoras – que traz lucros e mantém sob controle os corpos que resistem na invisibilidade e no silenciamento impostos pelo sistema patriarcal-racista-capitalista.

 

Embora o conservadorismo brasileiro – que une classismo, racismo e sexismo – não seja recente, ele se adensou nas primeiras décadas dos anos 2000, com características também reacionárias. A questão é que o conservadorismo contemporâneo não tem apresentado avanço apenas no Brasil, mas também ao redor do mundo como mostra a ascensão ao poder de líderes orgulhosos com a chancela conservador. A década de 2010 ficará marcada como o período em que tais líderes políticos saíram do lugar de relativa passividade ou da dimensão discursiva para o lugar da ação e do ataque a qualquer pequeno avanço conquistado pela classe trabalhadora na arena dos direitos sociais. Em tempos de pandemia de coronavírus (COVID-19) e de aprofundamento da crise capitalista, os efeitos da perversa estratégia conservadora foram largamente sentidos na vida de milhares de trabalhadoras e trabalhadores pelo mundo, seja pela

 

diminuição da renda das famílias, pela falta de proteção ao emprego e pelo desemprego, ou pelas ações de retrocesso dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

No caso específico do Brasil, a política de desfinanciamento das políticas sociais imposta pela Emenda Constitucional 95 (EC 95) combinada ao descaso com a vida da população e às ações negacionistas do Governo Bolsonaro, propiciaram a morte de mais de 700 mil pessoas por Covid-19. Na área dos direitos sexuais e reprodutivos, o baixo financiamento da política de saúde, as ações conservadoras presentes em portarias e resoluções do Ministério da Saúde e o coronavírus resultaram em um aumento significativo de mortalidade materna no período de 2020 a 2022.

 

No Congresso Nacional, amontoam-se projetos de lei (a maior parte propostos por apoiadores de Bolsonaro) que buscam criminalizar o aborto em qualquer circunstância, mesmo em casos previstos no art. 128 do Código Penal de 1940, que dispõe sobre a legalidade do procedimento em casos de estupro e de risco de vida da gestante. Mesmo sendo previsto em lei, os serviços de saúde têm penalizado meninas e mulheres que apelam por seu direito, recusando-se a realizar a interrupção da gravidez. Este foi o caso da menina capixaba que precisou viajar quilômetros para ter acesso ao direito de continuar criança.

 

A recusa dos serviços de saúde em proceder com o aborto previsto em lei leva as pessoas gestantes a apelarem para ações no judiciário. No entanto, o poder judiciário é também conservador e tem atuado discricionariamente em relação às legislações que tratam dos direitos sexuais e reprodutivos, vide o caso da menina que foi aconselhada por uma juíza a “aguentar mais um pouquinho” a gestação para que o bebê pudesse nascer; ou o caso da criança que, em sua segunda gestação, teve o direito do feto colocado como prioridade; ou ainda, o caso da gestante de gêmeos siameses – sem possibilidade de sobrevivência e com risco à vida da mulher – que teve seu pedido negado mesmo em última instância. Estes são apenas três exemplos dos tantos que têm sido noticiados na mídia e é impossível não suspeitar de que há muitos outros casos que se manterão invisíveis e desconhecidos.

 

Entretanto, os direitos reprodutivos – tão atacados pelos conservadores – não tratam apenas do direito à interrupção da gravidez. Eles abarcam uma série de elementos relativos à esfera reprodutiva, entre eles: o direito a optar se e quando quer ter filhos/as; o direito a decidir o tamanho da prole; o direito ao acesso a serviços de saúde para acompanhar a gestação e o parto; bem como o direito a ter informações sobre os benefícios/malefícios/efeitos colaterais, a escolher e a acessar métodos contraceptivos reversíveis (sejam eles naturais, de barreira ou hormonais) e irreversíveis (esterilização por meio de laqueadura tubária e vasectomia). Junto a esses direitos caminham os direitos sexuais, que tratam sobre o direito de exercer a sexualidade de forma plena, livre de violência, coerção e julgamentos morais.

 

Neste ínterim, esta edição da Argumentum apresenta textos de pesquisadoras e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, propiciando uma discussão ampla e, ao mesmo tempo, profunda sobre os direitos sexuais e reprodutivos nos tempos atuais.

 

A Seção Debate conta com o ensaio de Debora Diniz, intitulado A casa de uma menina: estupro, aborto e a pandemia de COVID-19 no Brasil. Debatendo com este texto temos os textos de Luciana Boiteux e de Nathália Lima. Diniz nos toca ao contar o trajeto doloroso percorrido pela menina capixaba em busca do seu direito de realizar um aborto. Ela nos provoca a pensar a casa como espaço contraditório e o corpo (que resiste) como uma habitação possível. Após toda a tortura vivida pela criança que envolveu estupro, peregrinação aos serviços de saúde e violência por parte de religiosos fanáticos, Diniz chama a nossa atenção para a situação de desterro da criança e da avó, imposta pela negação do direito ao anonimato. No diálogo com Diniz, Luciana Boiteux chama a atenção para os elementos previstos na legislação brasileira, constantemente desobedecida no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, marcando uma questão que envolve gênero, raça e classe. Boiteux conclui que tanto as ações no âmbito do judiciário, quanto as ações nos serviços de saúde – que negam o direito e o acesso ao aborto nos casos já previstos em leis – fazem parte de uma disputa ideológica que subjuga os corpos das meninas. Nathália Lima dialoga com Diniz na perspectiva de quem vivenciou e combateu, junto com os movimentos sociais e coletivos feministas, a cena grotesca promovida pelos religiosos que tentaram impedir o direito da menina. Lima traz dados que demonstram que, no Brasil, o racismo está na raiz das violências sofridas por meninas e mulheres negras ao longo da vida. Assim, a ilegalidade e as dificuldades de acesso ao aborto legal também se configuram como violência às mulheres negras, uma vez que elas são lançadas, em maior número, a buscarem o procedimento na clandestinidade.   

 

Na Seção Temática, os artigos estão organizados por foco de discussão. Iniciamos com o texto de Peixoto, Salvador e Bianchetti que demonstram o descaso operado pelos governos Temer e Bolsonaro na área dos direitos sexuais e reprodutivos a partir da análise das políticas e dos orçamentos praticados de 2016 a 2019. A discussão sobre a descriminalização do aborto não poderia faltar nesta edição e é aprofundada nos textos de Abreu; Damião e Carloto; Matos, Santos e Araújo; e de Esquenazi Borrego. Pereira e Lisbôa analisam a saúde sexual e reprodutiva das mulheres quilombolas. Almeida e Lole refletem sobre o corpo no mundo capitalista. Rosa e Souza analisam os discursos moralizadores sobre gênero e sexualidade propagados em grupos conservadores e apoiadores de Bolsonaro no WhatsApp. Os textos de Fernandes e Martins; Penante e Souza; Vilar e Mendonça; e Paiva e Brandão discutem sobre os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes.

 

Na seção de temas livres, esta edição traz artigos de indispensável leitura para compreendermos o momento atual do capitalismo no cenário nacional e internacional.

 

Longe de esgotar qualquer discussão, esta publicação certamente contribuirá para expandir o olhar de leitoras e leitores que têm interesse em compreender o mundo por meio de lentes teóricas que não simplificam os problemas provocados pelo sistema exploratório e predatório patriarcal-racista-capitalista.

 

Agradeço, em nome da Argumentum, a todas e a todos as/os pareceristas que partilharam conosco o seu tempo e participaram da construção desta edição: sem a contribuição de vocês, a divulgação e o compartilhamento de conhecimento não seria possível.

 

Boa leitura!



* Assistente social. Doutora em Política Social. Pós-doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista PROFIX/FAPES. E-mail: leilamtm@gmail.com.

 

 © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2023 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.