O fetiche sobre a
equipe profissional no trabalho na assistência social
The fetish regarding the professional team in social care work
Waldez
Cavalcante BEZERRA*
Universidade
Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas,
Curso de Terapia Ocupacional, Maceió, AL, Brasil.
https://orcid.org/0000-0001-7178-4074
Rosa
Lúcia Prédes TRINDADE
Universidade
Federal de Alagoas, Faculdade de Serviço Social, Maceió, AL, Brasil.
e-mail:
rosapredes@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4699-1105
Resumo: Os serviços da
assistência social são espaços do trabalho de diferentes profissionais, os
quais nem sempre possuem clareza sobre suas especificidades no trabalho em
equipe. Esta pesquisa buscou analisar a indiferenciação das atribuições e
competências no trabalho profissional na assistência social. Realizaram-se
pesquisas documental e de campo, sendo entrevistadas 15 trabalhadoras de 4
unidades socioassistenciais, além das 4 coordenações desses locais, totalizando
19 participantes. Concluiu-se que a
indiferenciação das atribuições se dá mediada por vetores externos às
profissões e não só retroalimenta um fetiche sobre o trabalho em equipe,
apoiado nas formulações da interdisciplinaridade, como também estabelece formas
de organização do trabalho que se tornam funcionais à lógica precarizada de
serviços sociais que operam com equipes reduzidas.
Palavras-chave: Assistência social. Trabalho em equipe. Atribuições
privativas. Competências profissionais.
Abstract: Social care services are spaces for the work of distinct professionals
who are not always clear about their specificities within team
work. This research analyses the lack of differentiation of attributes
and competencies in professional work in social care. Documentary and field
research was carried out, fifteen workers from four social care facilities were
interviewed, plus the four facility coordinators, giving nineteen participants
in total. It concludes that the lack of differentiation of attributes is
mediated by vectors external to the professions. This not only feeds a fetish regarding
teamwork, supported by the expressions of interdisciplinarity, but also
establishes forms of work organisation that become functional to the precarious
logic of social services operating with reduced teams.
Keywords: Social care. Team work. Personal attributes. Professional competencies.
Submetido em: 4/10/2023. Revisado em: 8/5/2024.
Aceito em: 6/6/2024.
1.
Introdução
trabalho profissional em serviços sociais
vinculados às políticas sociais brasileiras tem sido caracterizado pela sua
execução em equipes de trabalho, tal como acontece na assistência social.
Dentre as diferentes tendências para discutir o trabalho em equipe, uma tem se
destacado e sido incorporada nas normativas e diretrizes de diferentes
políticas sociais nas últimas décadas: a perspectiva da interdisciplinaridade,
que toma a mediação do conhecimento, do compartilhamento de saberes, como o
ponto de partida para discutir o trabalho.
Segundo
Mangini e Mioto (2009), as discussões sobre interdisciplinaridade emergiram no
fim dos anos 1960 e se intensificaram a partir da década de 1970, colocando-se
como um problema da esfera do conhecimento, mas que se afina com as mudanças no
âmbito da produção econômica no contexto de surgimento e expansão do toyotismo e das propostas de flexibilização do trabalho em
resposta à crise estrutural do capitalismo.
Assim,
ela se combina
[...] com um conjunto
de valores, práticas e discursos em desenvolvimento no mundo do trabalho. O seu
status de categoria do conhecimento
confere legitimidade às transformações em curso. Dada a sua abrangência de
significados, o seu caráter instrumental e a sua concepção de panaceia, [...] tanto
no mundo do trabalho, quanto no mundo do conhecimento, a interdisciplinaridade
é invocada de maneira indiscriminada para a concretização de fins puramente
instrumentais (Mangini; Mioto, 2009, p. 212).
Desse
modo, no mundo do trabalho, com a difusão do conceito de interdisciplinaridade
e de trabalho interdisciplinar, as exigências de trabalho em equipe,
competência, polivalência, multifuncionalidade e desespecialização
ganharam respaldo acadêmico-científico, colocando-se a ênfase do sucesso das
propostas interdisciplinares na individualidade e envolvimento do próprio
trabalhador.
Nas
políticas sociais, o trabalho em equipe, orientado pela interdisciplinaridade,
tem sido apresentado como qualificador dos serviços sociais (Rezende, 2016).
Contudo, muitas vezes, esse apelo às práticas interdisciplinares tem ocorrido
sem explicitar distinção das atribuições de cada profissão ou mesmo sem
considerar as condições objetivas necessárias à sua efetivação, tornando o
trabalho em equipe um objeto de fetiche.
Acionamos a ideia de fetiche para fazer
menção à concessão de um poder supostamente benéfico, reverenciado sem muito
discernimento, a um determinado objeto, sobre o qual se coloca uma crença
acerca de suas qualidades mágicas, poderosas por si sós, inerentes à sua
natureza. Assim, o trabalho em equipe se torna objeto de fetiche quando a
discussão envereda para uma essencialização de suas características positivas,
dotando-o de um poder maior do que de fato possui, e desconsideram-se os
limites objetivos e as determinações externas que definem as possibilidades de
alcance dessa forma de trabalho.
Sabemos
que a reforma gerencialista do Estado, inserida na
crise estrutural do capital, tem intensificado a precarização dos espaços e das
condições de trabalho nos serviços das políticas sociais (Barros, 2020). Nesse
sentido, o fenômeno do trabalho em equipe, se apreendido fora dessas determinações
macrossociais, pode tornar-se útil a essa lógica de precarização e fundamentar
justificativas políticas para a contratação de menos profissionais e categorias
para compor as equipes de trabalho. Seria possível, por meio de uma
fetichização sobre o trabalho em equipe, não só compartilhar as atribuições e
competências profissionais, mas também escamotear o fenômeno da intensificação
da precarização do trabalho e das políticas sociais.
Considerando
que a lógica do trabalho em equipe e da interdisciplinaridade também está
presente na política de assistência social, este artigo tem o objetivo de
analisar a indiferenciação[1]
das atribuições e competências no trabalho profissional na assistência social.
A
fundamentação teórico-metodológica da pesquisa assenta-se no materialismo
histórico e dialético. Partimos das manifestações aparentes do trabalho em
equipe nos serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para
apreendê-lo em suas
múltiplas determinações. Buscamos na relação dele com a formação socioeconômica
mais ampla identificar as contradições e as mediações necessárias para analisar
criticamente a indiferenciação das atribuições e competências dos
profissionais no SUAS.
Os dados foram
produzidos através de pesquisa de campo, o que possibilitou uma aproximação com
a realidade e o cotidiano de trabalho das equipes de referência atuantes em um
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e três Centros de Referência
Especializados de Assistência Social (CREAS). A seleção das unidades ocorreu de
acordo com a indicação das Secretarias Municipais de Assistência Social dos
municípios onde o estudo foi conduzido, Maceió (AL) e Vitória (ES).
Entrevistamos 15 profissionais (sete assistentes
sociais, cinco psicólogas e três terapeutas ocupacionais) de quatro equipes,
além das coordenações das quatro unidades, totalizando 19 participantes. As
entrevistas, realizadas no período de 26 de agosto a 10 de novembro de 2021,
foram orientadas por um roteiro semiestruturado e gravadas para posterior
transcrição. O tratamento do
corpus de pesquisa deu-se adotando os
seguintes procedimentos: leitura exaustiva das transcrições das
entrevistas para identificação das ideias centrais; interpretação dos sentidos
de tais ideias e agrupamento delas em categorias; comparação entre as
diferentes categorias encontradas; organização dessas categorias em outras mais
abrangentes em torno das quais giraram as discussões e a redação das sínteses
interpretativas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com
CAAE nº. 49925821.2.0000.5011.
2.
O caráter genérico do
trabalho profissional em equipe no SUAS
As
profissões, de um modo geral, são ocupações não manuais que requerem para seu
exercício um alto nível de educação formal (terceiro grau realizado em
instituições de ensino superior), usualmente testado em exames e confirmado por
algum tipo de credencial (diploma). A condição de profissional é conquistada
por meio de um processo de profissionalização, caracterizado pela aquisição de
uma série de elementos que conduz uma ocupação ao status de profissão, tais como um corpo de conhecimento abstrato e
complexo que requer longo aprendizado formal, uma cultura profissional
sustentada por associações profissionais, autonomia profissional e um código de
ética (Rodrigues, 2002; Diniz, 2001).
Para
Raichelis (2018), a legitimidade social das
profissões é extraída da relação delas com a prestação de serviços sociais,
associando trabalho e profissão como dimensões que se determinam reciprocamente
à luz da historicidade que caracteriza a totalidade social. Nesse sentido, a
autora afirma que essas especificidades das profissões conformam um tipo
particular de atividade, que pode ser denominada de trabalho profissional, que
resguarda certos privilégios protegidos pelos conselhos profissionais, mas que
não isenta os seus membros das relações de alienação e constrangimento próprias
ao trabalho assalariado no capitalismo.
Dois
aspectos apresentam-se, então, como centrais e definidores do trabalho
profissional: a autonomia, no nosso entender, sempre relativa, devido às
relações de assalariamento; e a existência do monopólio profissional[2]
sobre um saber e sobre um mercado de serviços específico.
A
discussão empreendida nesta pesquisa pressupõe que a origem e expansão de um
conjunto de profissões, especialmente as que denominamos de profissões do
social, apresentam íntima relação com as necessidades econômicas, políticas e
sociais do estágio do capitalismo monopolista, iniciado no fim do século XIX.
Neste, o desenvolvimento das forças produtivas impôs necessidades sociais que
demandaram respostas para além da produção material, requerendo serviços,
inclusive os serviços sociais prestados pelo Estado através de políticas
sociais. Esse processo impulsionou a origem e expansão de trabalhadores
especializados, os quais muitas vezes precisam de formação universitária, como
é o caso das profissões, que encontraram as condições e um mercado de trabalho
para sua expansão e reprodução na sociedade capitalista.
Adotamos
o entendimento de Iamamoto e Carvalho (2007) de que
as profissões do social referem-se ao conjunto das profissões que participam da
produção e viabilização de serviços e direitos sociais como resposta às
necessidades colocadas socialmente por indivíduos, grupos e classes sociais em
seu processo de reprodução social. Para Trindade (1999), trata-se de profissões
que desenvolvem ações no enfrentamento das expressões da questão social e, ao
ocuparem um lugar na divisão sociotécnica do trabalho, cumprem um importante
papel no processo de regulação das relações sociais e na própria manutenção da
sociabilidade burguesa. Evidentemente, muitas profissões inseridas em
diferentes políticas sociais caberiam nessa concepção e, por isso, destacamos
que nosso foco diz respeito àquelas cujos profissionais
atuam em serviços do SUAS.
As
discussões sobre o trabalho em equipe na assistência social intensificaram-se
após a revisão da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH SUAS),
através da Resolução CNAS nº. 17 de 2011, que definiu as categorias
profissionais aptas a comporem as equipes de referência e a gestão dos serviços
do SUAS. Diversos estudos (Nery, 2009; Motta, 2015; Sales, 2017) evidenciam que
há uma indiferenciação entre as atribuições e competências profissionais no
trabalho no SUAS, justificada pelo necessário trabalho em equipe sob o
princípio da interdisciplinaridade previsto na Política Nacional de Educação
Permanente do SUAS (Brasil, 2011a).
Contudo,
a perspectiva da interdisciplinaridade não nos pareceu suficiente como única
explicação teórica para esse fenômeno. Assim, amparados pelos dados da
pesquisa, identificamos que três vetores[3]
externos às profissões apresentam relação com as dificuldades relativas à
diferenciação das atribuições e competências profissionais no cotidiano de
trabalho no SUAS, sendo eles: definições institucionais e características da
política de assistência social; intensificação da precarização do trabalho e
dos serviços sociais na atual conjuntura; e formas de organização do trabalho
em equipe.
Vetor 1: Definições institucionais e
características da PNAS
Neste
vetor, dois aspectos destacaram-se nas falas das entrevistadas: a amplitude das
demandas incorporadas pela política de assistência social como de sua
responsabilidade e o caráter inespecífico delas; e a forma como os documentos
institucionais da política nomeiam os cargos técnicos com uma denominação
genérica, o técnico de referência, sem estabelecer as atribuições específicas
ao profissional de cada categoria. Vejamos algumas falas:
[...] a assistência
social é uma política muito transversal às outras políticas, então você não
trabalha alguma coisa específica. Você tem que saber um pouco da saúde, um
pouco da educação, da previdência. [...] Quando eu cheguei aqui no CRAS tive um
choque muito grande com isso, não encontrar essas especificidades, [...] aí eu
entendi que a assistência está na transdisciplinaridade, porque é desse jeito
por conta da política (AS 1 EQP 1).
Fico tentando
entender o porquê que a assistência social assumiu um universo tão grande, além
da questão da sobrevivência, da materialidade da vida, ela se propõe até
atender questões subjetivas dos contextos, sabe? Eu acredito que como demanda,
como está colocado nos documentos do SUAS, isso não fica claro [as atribuições
de cada profissional], porque é a equipe de referência, são os técnicos de
referência (AS 3 EQP 2).
[...] esse conceito
que se colocou a partir do SUAS, do técnico de referência, ele nos trouxe o
desafio. [...] nos trouxe um risco de a gente realmente misturar muito a nossa
prática, ela diluir as nossas especificidades (COORD EQP 2).
A
problemática da indiferenciação das atribuições profissionais já se apresenta
em documentos da política de assistência social (Brasil, 2009; 2011b), que ao
abordarem o trabalho das equipes de referência deixam em aberto as
especificidades dos seus diferentes membros. Neles, há um apelo ao discurso
interdisciplinar, deixando para cada categoria a definição de seus parâmetros
de atuação, enfatizando, ainda, que o trabalho em equipe não deveria diluir as
atribuições específicas de cada área. Entretanto, nossos dados demonstram que a
definição dessas atribuições específicas se mostra um desafio para as
profissionais, as quais se apoiam nos documentos da política para definirem o
seu trabalho.
A
multidimensionalidade trazida pela assistência social, que na prática parece
dificultar a identificação de especificidades não só da política, mas também do
trabalho profissional, tem a ver, no nosso entendimento, com a amplitude e a
natureza difusa assumida pela questão social no capitalismo. Ela só pode ser
enfrentada nas suas expressões, pois atacá-la em sua raiz seria pôr em xeque a
própria reprodução desse modelo de sociabilidade. Desse modo, Netto (2013)
afirma que a questão social se coloca como um objeto polimórfico para uma
variedade de intervenções profissionais, sendo um dos fundamentos da prática
indiferenciada das profissões do social.
Conforme
Trindade (1999), na divisão sociotécnica do trabalho, essas profissões possuem
características particulares, o que não significa a existência de objetos
específicos para cada uma delas. A cada profissional é atribuído um conjunto de
situações sociais que constituem a questão social, frente às quais são
desenvolvidas práticas voltadas ao seu enfrentamento. Nesse trabalho coletivo,
as profissões contribuem com suas particularidades, não significando a
definição de nichos exclusivos, o que contraria a concepção de atribuições
profissionais de caráter privativo.
Desse
modo, tendo as suas expressões isoladas como problemas sociais autônomos que
possuiriam relações entre si, que na esfera institucional são convertidos em
demandas institucionais e em requisições profissionais, a questão social
apresenta-se aos profissionais também de maneira ampla. Essas demandas precisam
ser respondidas e o seu atendimento extrapola a ação de uma única política
setorial, o que gera em algumas entrevistadas a sensação de que a política de
assistência social assumiu responsabilidades para além do que ela consegue dar
conta. Ressaltamos que o atendimento a tais demandas é limitado não só pelo
contorno posto pela natureza paliativa[4]
das políticas sociais e seus serviços, mas também pelas configurações que estes
últimos assumem em conjunturas políticas e econômicas específicas, o que nos
leva à discussão do próximo vetor.
Vetor 2: Intensificação da precarização
do trabalho e dos serviços sociais na atual conjuntura
Apesar
dos avanços decorrentes do seu processo de institucionalização no campo da
seguridade social e dos direitos sociais reconhecidos pelo Estado, a
assistência social vem sofrendo com as consequências do ajuste neoliberal[5]
que atinge as políticas sociais em geral. Esse processo, mais amplo que as
profissões e que a própria política de assistência social, interfere
diretamente no trabalho profissional no âmbito dos serviços sociais e tem
provocado mudanças no mundo do trabalho e nas próprias profissões.
Nesse
contexto, nem mesmo o trabalho no setor público está isento dos processos de
precarização. Profissionais que atuam nos serviços sociais públicos se veem
diante de uma série de desafios impostos pelas suas condições e relações de
trabalho. Além de contratos temporários como vínculo de algumas das
participantes da pesquisa, ao falarem sobre seu cotidiano de trabalho no SUAS e
sobre as suas dificuldades, elas trouxeram variadas questões que evidenciam a
intensificação da precarização do trabalho na assistência social, tais como o
reduzido número de profissionais nas equipes, a falta de equipamentos e
condições adequadas ao trabalho e a forma como essa precarização interfere na
atuação das equipes técnicas.
Então, isso foi se
dando inclusive diante da captura do cotidiano, que as demandas e a rotina nos
engolem, e aí os nossos instrumentos foram ficando cada vez mais comuns, o
nosso processo de atendimento, de escuta, as próprias circunstâncias. [...]
quer dizer, então não tem mais psicólogo nem assistente social, nem tem o
domínio mais sobre o processo de seu trabalho. [...] acho que vai diluindo
muito as especificidades um do outro (COORD EQP 2).
Demanda muito alta e
equipe técnica reduzida. [...] que não é um problema desse CREAS, é da política
de assistência social (PSICO 4 EQP 2).
As questões trazidas pelas participantes
revelam um recorte da realidade do cotidiano de trabalho no SUAS, cujos
elementos de precarização contradizem as orientações e princípios constantes em
diferentes documentos da política de assistência social, que afirmam que a proteção social e a
qualidade dos serviços prestados à população perpassam, essencialmente, pelo
reconhecimento e valorização dos trabalhadores (Brasil, 2004; 2012). Os dados
apontam que a intensificação da precarização do trabalho interfere, inclusive,
nas possibilidades de diferenciar as atribuições profissionais, pois a dinâmica
dos serviços e o estabelecimento de prazos para as tarefas impõem uma rotina de
trabalho na qual a demanda institucional se sobrepõe às demandas profissionais.
Assim, a indiferenciação das atribuições
passa a responder funcionalmente às necessidades dos serviços precarizados e
com equipes reduzidas, uma vez que facilita e acelera as respostas que precisam
ser dadas às demandas institucionais ao não depender especificamente do
profissional de uma ou outra categoria durante todo o horário de funcionamento
das unidades. Esses processos levam a duas consequências importantes: a
transformação automática dos objetivos da Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) nos objetivos profissionais; e a redução das demandas
profissionais ao cumprimento das demandas institucionais que a política coloca
para os serviços, contribuindo para o caráter genérico do trabalho profissional
no SUAS.
A gente não tem
problema nenhum do técnico não vir hoje e a gente precisar entrar em contato
com uma família e que o outro colega faça isso. [...] se a gente tivesse cada
um com sua pastinha com as suas famílias, tudo bem dividido, [...] como a gente
não tem os profissionais todos os dias, a gente ia ter uma quebra (COORD EQP
1).
Nem
todas as profissionais conseguem perceber que há uma distinção entre aquilo que
se apresenta para a política e para o serviço como demanda e o que deveria se
construir, por cada profissional, como sua demanda específica, pois as demandas
profissionais deveriam expressar majoritariamente os interesses dos usuários.
Com isso, anulam-se os processos que envolvem a institucionalização das
necessidades sociais no capitalismo e a transformação destas, mediatizadas
pelos interesses institucionais, em demandas e requisições profissionais
(Amorim, 2010).
Entendemos que a demanda profissional vai
além da demanda institucional e daquilo que é requisitado pela PNAS aos
profissionais das equipes. Logo, quando as profissionais generalizam e reduzem
seus objetivos somente aos da PNAS ou deixam de lado as suas especificidades
devido às inúmeras demandas institucionais, que geram uma sobrecarga de
trabalho diante de serviços operados com equipes mínimas, há um reforço à
indiferenciação das atribuições.
Se por um lado esse trabalho genérico
facilitaria a construção de uma identidade única entre os trabalhadores do
SUAS, importante para unificar as lutas políticas contra os processos de
precarização, para facilitar a comunicação entre eles em torno da compreensão
de temas centrais ao trabalho no setor e para contribuir para definição de um
projeto ético-político comum, por outro lado afeta o núcleo das profissões.
Do ponto de vista da gestão das unidades,
essa questão favorece o andamento da oferta dos serviços, pois a demanda
institucional é ter o técnico de referência, não importando a sua profissão.
Assim, a demanda institucional tende a ser respondida, o que nem sempre ocorre
com a demanda profissional, que muitas vezes nem é considerada como distinta
pelas profissionais.
Nesse cenário, a indiferenciação das
atribuições permite que as instituições coloquem as requisições e estabeleçam
as funções profissionais no cotidiano dos serviços, condicionando o conteúdo do
trabalho e, implicitamente, impondo limites e possibilidades à realização de
objetivos profissionais, o que impacta diretamente na materialização de
projetos profissionais críticos.
Vetor
3: As formas de organização do trabalho em
equipe no SUAS
Observamos
que as equipes estabelecem
rotinas e organizam o trabalho com vistas a contornar as dificuldades advindas
dos processos de precarização e para responder às demandas institucionais. As
profissionais tendem a realizar uma divisão técnica do trabalho apenas
operacional para o encaminhamento das demandas, não estando essa divisão
relacionada às profissões.
Não, essas
solicitações geralmente chegam para a equipe. Mas, dependendo das nossas
demandas [...] a gente divide, “você faz para um, eu faço para outro”, [...] a
gente combina entre nós duas mesmo a melhor estratégia para não se
sobrecarregar (AS 5 EQP 3).
A divisão é a partir do território. [...] E aí essa
demanda vai ser atendida por esse técnico de referência, independente da
profissão. Se tiver alguma demanda que seja assim mais específica para algum
outro profissional, dependendo dessa demanda ele precisar do assistente social,
do terapeuta ocupacional ou do psicólogo, eles serão acionados (COORD EQP 4).
Sob a lógica do cargo genérico de técnico
de referência, as profissionais entrevistadas de todas as equipes organizam a
distribuição das demandas baseadas na divisão do território onde atuam, em
parte pela lógica de territorialização presente na PNAS, mas também para
contornar algumas dificuldades como, por exemplo, a baixa disponibilidade de
transporte para circular pelo território.
Ainda como parte da organização do
trabalho em equipe e para garantir o exercício da interdisciplinaridade, as
equipes realizam frequentemente reuniões, estudos de casos, planejamento e
elaboração de relatórios conjuntamente. Na elaboração dos relatórios, o caráter
genérico do trabalho se expressa mais fortemente, pois o modo como essa tarefa
é realizada pela maioria invisibiliza as profissões em suas particularidades.
[...] nossos
instrumentos são de uma forma coletiva, eu sempre vou bater na tecla que a
gente está trabalhando numa equipe interdisciplinar, e aí a gente tem o RATI,
que é tipo um relatoriozinho (AS 2 EQP 1).
Se for de atendimento, por exemplo, que a gente faz um
relatório único, se eu sou técnico de referência eu registro o atendimento,
mesmo que tenha participado todo mundo [...], uma questão nossa de logística,
não dá para todo mundo registrar todos os atendimentos ou ter uma participação
de todos (TO 3 EQP 4).
A
multiplicidade de questões que tangenciam o trabalho profissional no SUAS
leva-nos a refletir sobre os impactos das transformações do capitalismo
contemporâneo na condição profissional em si, pois entendemos que nossos
achados apresentam relações com as novas configurações que o trabalho
profissional tem assumido.
Na
sociologia das profissões, teóricos interrogam o sentido de evolução das
profissões e se, diante das recentes mudanças socioeconômicas que atingem o
mundo do trabalho e o Estado, elas mantêm os seus poderes e privilégios,
abrindo-se um debate a respeito da dominação e do declínio do poder
profissional (Rodrigues, 2002). Com base na discussão referente às profissões,
nossos dados do trabalho em equipe no SUAS apontam para uma reflexão sobre os
dois pilares do profissionalismo: a autonomia e a existência do monopólio
profissional sobre um saber e sobre um mercado de serviços específicos.
Assentada
numa noção de autonomia tomada quase como absoluta, há no debate em torno das
profissões a tese de que estas, por estarem sofrendo uma redução da sua
autonomia devido às transformações socioeconômicas contemporâneas, estariam
passando por um suposto processo de desprofissionalização.
Tome-se, por exemplo,
a inovação tecnológica e a especialização; [...] estas são fatores de
desprofissionalização que debilitam a autonomia e a autoridade profissionais,
pois tendem a tornar o conhecimento profissional mais racional, preciso e
específico; quanto mais racional, específico e preciso este conhecimento, mais
susceptível ele se torna de redução a procedimentos padronizados e rotinas
técnicas; ora, a padronização e a rotinização dos procedimentos tendem a minar
as pretensões dos profissionais à autonomia e ao monopólio da prestação de
serviços, visto que ambas as pretensões assentam-se na natureza supostamente
complexa da base de conhecimento e no caráter não-rotineiro das soluções
(Diniz, 2001, p. 41).
Contudo,
para Diniz (2001), ambas as teses parecem exageradas, apesar de o trabalho
profissional estar se modificando, pois a maioria das profissões já nasceu
assalariada e inserida nas estruturas organizacionais. Além disso, os processos
de avaliação e controle geralmente são conduzidos por outros profissionais da
mesma área; sendo, ainda, contraditório falar em perda dos prestígios e
privilégios profissionais numa época em que várias ocupações almejam tornar-se
profissões como meio de evitar a condição proletária (Diniz, 2001).
A
realidade nos indica que as profissões estão sendo afetadas pelas mudanças
contemporâneas do mundo do trabalho capitalista, em especial por aquelas
implementadas pelo Estado na gestão das políticas e serviços sociais, tal como
estamos sinalizando ao longo deste texto. Considerando as contradições que
envolvem a condição de profissional na sociedade capitalista, parece-nos útil o
conceito de autonomia relativa, em contraposição à noção de autonomia (isenta
de influências externas) que sustenta as teses da desprofissionalização e da
proletarização.
A
autonomia relativa permite que muitas profissões incorporem certas
características de profissões ditas liberais – a singularidade na relação com
seus usuários, a capacidade de apresentar propostas interventivas desde o seu
conhecimento técnico, um código de ética, regulamentações sobre o exercício e
fóruns para discipliná-lo e defendê-lo –, ainda que o trabalho profissional
encontre limites para além do controle do profissional (Raichelis,
2018). Ou seja, é relativa porque é determinada por condições objetivas que
escapam à vontade individual dos profissionais. Tais limites estão postos pela
condição de assalariamento e pela natureza das próprias políticas sociais do
Estado.
Embasados
nessa concepção de autonomia relativa, compreendemos que os limites postos aos
profissionais não implicam a perda do status
de profissão, uma vez que na sociedade capitalista essa autonomia nunca pode
ser plena. Inferimos que o que está ocorrendo com as profissões na
contemporaneidade não é a perda do status
profissional, mas sim a intensificação dos processos de precarização do
trabalho profissional. Precarização que vem atingindo, de diferentes modos,
todos aqueles que estão inseridos no mundo do trabalho, mesmo que não estejam
no mesmo patamar, visto que os profissionais ainda guardam certos privilégios
éticos e técnicos decorrentes da sua condição.
No
entanto, é fato que a expansão da tecnologia e da racionalidade formal-abstrata
no gerenciamento do trabalho nos serviços sociais têm acarretado a rotinização
e desqualificação do trabalho profissional, minimizando a importância de sua
dimensão criativa e crítica pelo uso de instrumentos, previamente elaborados e
padronizados, que devem ser incorporados na prática profissional. Em nosso
estudo, frequentemente as profissionais se referiram a instrumentos
padronizados advindos das determinações dos serviços onde atuam, a exemplo do
Plano Individual de Atendimento, Registro de Atendimento Técnico
Individualizado, fichas de avaliação, prontuários etc., todos eles de uso
compartilhado pelos diferentes membros das equipes.
Quando
falamos do trabalho das profissões do social aludimos a um trabalho em que as
necessidades dos usuários precisam ser reconhecidas, interpretadas e negociadas
entre eles e os profissionais, de forma ampliada e contextualizada, derivando
daí a impossibilidade de uma total padronização/rotinização das ações e a
necessidade de respeitar a liberdade profissional na tomada de decisão técnica.
Contudo,
de acordo com Guerra (2016), é próprio do capitalismo racionalizar cada vez
mais a divisão técnica do trabalho, reduzindo as diferenças entre as profissões
e retirando delas “[...] seus conteúdos concretos [...], fazendo tábula rasa da
formação, do universo cultural de cada profissão, dos projetos profissionais e
do projeto de sociedade de cada uma” (Guerra, 2016, p. 105). Essa abordagem
tende a levar o “[...] profissional a circunscrever sua prática à da vida e dos
limites institucionais” (Guerra, 2007, p. 12).
Em
meio a esses processos, que vêm afetando diretamente as profissões do social
atuantes no SUAS, mas não só elas, reforçamos, assim como Guerra (2007), a
importância de projetos profissionais históricos e críticos que, ao elucidarem
para os profissionais seus compromissos éticos e políticos, dão a eles a
possibilidade de escolher suas estratégias e táticas, sabendo que o que fazem
se encontra dentro dos limites da sua condição de trabalhador assalariado.
3.
Considerações finais
Amparados
pelos dados apresentados e pelo aporte teórico-analítico abraçado na construção
desta pesquisa, defendemos a tese de que uma das chaves explicativas para a
indiferenciação das atribuições profissionais no trabalho em equipe no SUAS
reside em processos exteriores às profissões, relacionando-se a três vetores
sociais mais amplos: as definições institucionais e características da política
de assistência social; a intensificação da precarização do trabalho e dos
serviços sociais públicos na atual conjuntura; e as formas de organização do
trabalho em equipe no SUAS. No primeiro vetor, enfatizamos, além do traço
difuso das demandas, o fato de que a política, ao recorrer à denominação
genérica de técnico de referência, deixa em aberto a especificação das
atribuições particulares das categorias reconhecidas pela Resolução CNAS nº. 17
de 2011.
Essa
indiferenciação das atribuições profissionais no cotidiano das unidades
socioassistenciais não só retroalimenta um discurso fetichizado sobre o
trabalho em equipe, apoiado nas formulações da interdisciplinaridade, como
também estabelece formas de organização do trabalho que se tornam funcionais à
lógica precarizada de serviços que operam com equipes reduzidas. A confluência
desses três vetores contribui, portanto, para um caráter genérico assumido pelo
trabalho profissional no SUAS.
Esse
trabalho profissional de cunho genérico no SUAS, ainda que não abandone o
profissionalismo, revela uma concepção indiferenciada de atribuições
profissionais. Observamos que há uma supervalorização do trabalho em equipe, o
que abordamos a partir da ideia de fetiche. Essa visão fetichizada sobre a
equipe se revelou quando as entrevistadas depositaram nessa forma de trabalho a
solução para inúmeras questões vivenciadas, inclusive para justificar a
indiferenciação das atribuições e competências e para contornar expressões da
precarização do trabalho.
Reforçamos
que a nossa crítica não é ao trabalho em equipe e nem à interdisciplinaridade
em si. Embora sejam incontestes os impactos do neoliberalismo na precarização
vivenciada pelas trabalhadoras, gerando vínculos frágeis e atribuições
indistintas, reconhecemos que o trabalho em equipe e a estrutura atual da
política de assistência social inovaram na profissionalização do trabalho no
SUAS, podendo qualificá-lo na perspectiva da ampliação e diversificação das
ações socioassistenciais e da concepção da assistência social pretendida e
construída nas três últimas décadas no Brasil.
Nossa
intenção é problematizar o que identificamos como fetichização do trabalho em
equipe, que tem invisibilizado e, por vezes, negado a possibilidade de discutir
atribuições específicas das profissões. Se levarmos adiante a proposta de
defender essa indiferenciação no SUAS sob o argumento da interdisciplinaridade,
questionamos: seria necessário a NOB-RH distinguir as categorias profissionais
entre obrigatórias na composição das equipes de referência, já que todas
poderiam executar o mesmo trabalho? Essa obrigatoriedade seria, então, mais uma
expressão da organização política de determinadas profissões em torno da
conquista e defesa de monopólios profissionais do que de fato a sua
especificidade nas respostas às demandas da assistência social?
Por
fim, esperamos que este artigo contribua para avançarmos no debate sobre o
trabalho profissional no SUAS e reposicionar a discussão sobre o trabalho em
equipe à luz do pensamento crítico, reconhecendo as contradições que o envolve
e a sua inserção na totalidade social. Esse posicionamento permite romper com
perspectivas subjetivistas que depositam nos profissionais a responsabilidade
exclusiva pelo sucesso das propostas interdisciplinares, assim como descortinar
o fetiche sobre a figura da equipe.
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Waldez Cavalcante BEZERRA Trabalhou na concepção e redação do artigo.
Terapeuta
ocupacional graduado pela Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas
(UNCISAL). Mestre e doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de
Alagoas (UFAL). Professor adjunto da UNCISAL. Líder do Grupo de Pesquisa Mediações:
Terapia Ocupacional, Fundamentos e Atuação Social, vinculado ao Laboratório
Metuia UNCISAL.
Rosa Lúcia Prédes
TRINDADE Trabalhou na revisão crítica do texto.
Ambos aprovaram a versão a ser publicada.
Assistente Social graduada pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fez estágio pós-doutoral no
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. Atualmente é professora
titular aposentada da UFAL e docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social (PPGSS-UFAL). Bolsista produtividade PQ-CNPQ.
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* © A(s)
Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os
termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0
Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que
permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem
como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode
revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1] Utilizamos esse termo derivado da ideia de
indiferenciado, sem distinção, indefinido.
[2] As profissões são atores coletivos do
mundo econômico que obtiveram sucesso no fechamento do seu mercado,
estabelecendo um monopólio sobre as suas próprias atividades de trabalho, o que
conduz a elevação do status social e aumento do seu poder (Diniz, 2001).
[3] Vetores enquanto forças ou veículos que
incidem sobre um determinado objeto.
[4] No sentido de que, ao não atacarem
diretamente a raiz da questão social, apenas mitigam as consequências das
desigualdades estruturais do capitalismo.
[5] Conjunto de medidas econômicas e políticas
que provocaram mudanças na organização do Estado e do mundo do trabalho,
implementadas em diversos países após a crise capitalista da década de 1970.