Considerações preliminares acerca da gênese da “questão social” no Brasil
Preliminary
considerations on the genesis of the “social issue” in Brazil
Ana Luíza Tavares BRUINJÉ*
Universidade
Federal de Juiz de Fora, Faculdade
de Serviço Social,
Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social, Juiz de Fora, MG, Brasil.
e-mail: analuizabruinje@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2122-165X
Resumo: O artigo apresentado tem como objeto central de análise as
contribuições de Jacob Gorender e Clóvis Moura para compreender a gênese da “questão
social” na particularidade brasileira. Para isto, indicamos as categorias
Trabalho, Estado e Luta de Classes como imprescindíveis para a investigação da “questão
social”; e ainda, Raça e Classe como categorias irredutíveis da realidade
brasileira atual. A partir da pesquisa bibliográfica e análise desse
referencial teórico, buscamos demonstrar que os determinantes fundamentais para
o estabelecimento das condições gerais para gênese da “questão social” no país
se constituem no processo histórico de transição do regime de trabalho
escravo ao assalariado, entre 1850 e 1930.
Palavras-chave: “Questão Social”. Escravismo Colonial. Capitalismo Dependente.
Abstract: The article analyses the contributions of
Jacob Gorender and Clóvis Moura to the understanding
the genesis of the “social issue” in the specific circumstances of Brazil. It highlights
work, State, and class struggle as essential categories for investigating the “social
issue”; and, race and class as irreducible categories
of the Brazilian reality. From this analysis, we demonstrate that the
fundamental determinants that established the general conditions of the “social
issue” in Brazil were formed during the historical process of transition from
slave labour to salaried labour between 1850 and 1930.
Keywords: “Social Issue”. Colonial slavery. Dependent capitalism.
Submetido em: 14/10/2023. Aceito em:
25/6/2024.
Introdução
E |
ste artigo tem como intenção apresentar
as contribuições de Jacob Gorender e Clóvis Moura para compreender a
particularidade da gênese da “questão social”[1]
no Brasil. Foi realizada análise preliminar das obras Escravismo Colonial
[1985], do primeiro autor, e de Rebeliões da Senzala [1959], Sociologia
do Negro Brasileiro [1988] e Dialética Radical do Negro no Brasil
[1994], do último, rastreando, a partir de pesquisa exploratória acerca do
conceito e gênese de “questão social”, as categorias: Trabalho, Estado e Luta
de Classes. Ainda, tendo em vista que a temática proposta está assentada,
necessariamente, na particularidade da formação sócio-histórica brasileira, e
que esta se constitui a partir da desagregação do
regime de trabalho escravo associado ao trabalhador negro para a formação de um
capitalismo dependente, as categorias Raça e Classe são, portanto,
incontornáveis na análise da realidade. Este caminho metodológico proposto,
direcionado pelo movimento de abstração inicial do objeto e pelas categorias
razoáveis, permitiu a identificação de algumas mediações relevantes para
compreender a particularidade da gênese da “questão social” no Brasil, que
serão aqui apresentadas.
Inicialmente, será tratada a discussão
realizada por parte da tradição marxista de pesquisadores do Serviço Social[2]
acerca do conceito e gênese da “questão social” e, posterior, sobre a
particularidade da constituição do capitalismo dependente brasileiro a partir
de Marini (1973). Na sequência, apresentaremos os debates centrais e o
movimento das categorias destacadas na análise das obras dos autores para,
enfim, sinalizar síntese de elementos centrais para compreender a gênese da “questão
social” no Brasil. Contudo, este artigo não encerra a necessidade do
avanço das pesquisas coletivas em torno do objeto proposto. É, na verdade,
parte do movimento ampliado da categoria do Serviço Social que vem buscando
desvendar as mediações postas na transição do escravismo ao capitalismo no
país, sinalizando lacunas interpretativas e metodológicas, as quais precisam
estar postas enquanto centrais para a escolha dos objetos de pesquisa,
principalmente nos Programas de Pós-graduação da área, para aprofundar a
compreensão da própria realidade brasileira e as mediações para pensar o
trabalho e a formação em Serviço Social[3].
Conceito e gênese da “questão social”
É um consenso na tradição marxista que
aborda a temática no Serviço Social, a conceituação da “questão social”
enquanto a articulação de condições materiais próprias da sociabilidade
burguesa, que da contradição fundamental entre a produção social e a
apropriação privada da riqueza derivam expressões negativas nas condições de
vida, trabalho e sobrevivência da classe trabalhadora, sendo essas o objeto de
trabalho de assistentes sociais[4].
E ainda, sua gênese originária está datada historicamente no processo de
desenvolvimento do capitalismo clássico na Inglaterra após a Revolução
Industrial, quando a pauperização da classe operária passa a tomar proporções
massivas e estruturais conforme se amplia a acumulação de capital, a partir da
necessidade de continuidade da pressão exercida pelo exército industrial de
reserva à diminuição do valor do tempo de trabalho socialmente necessário. Tem
ainda, como elemento central, a partir da luta entre as classes fundamentais
antagonizadas no processo produtivo, a mobilização e organização da classe
trabalhadora, seja no sentido de pressionar o Estado à responsabilização pelas
expressões produzidas pela contradição entre o capital e o trabalho, assim como
voltadas a transformar o próprio modo de produção que permite a reprodução
dessas condições estruturais.
A questão social diz respeito ao conjunto das expressões
das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura,
impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter
coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade
humana – o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim
como de seus frutos. É indissociável da emergência do ‘trabalhador livre’,
que depende da venda de sua força de trabalho como meio de satisfação de suas
necessidades vitais (Iamamoto, 2001, p. 16, grifos meus).
Essa é uma síntese importante acerca da
compreensão das condições gerais para o desenvolvimento da chamada “questão
social” e aponta a determinação dos processos sócio-históricos necessários à
sua reprodução. São, entretanto, discussões abstratas – e importantes – para
desvelar as diferentes particularidades da sua constituição. Percebemos que na
produção teórica dos referenciais da área acima citados, apesar da precisão da
análise da gênese “questão social” originária e as reflexões abstratas sobre as
condições gerais acerca da sua existência, faltam elementos para tratar,
rigorosamente, da constituição desta no Brasil, o que implica uma análise da
formação do próprio capitalismo dependente e a centralidade da dialética
singular/particular/universal[5].
Dessa forma, sobre a temática, Iamamoto e Carvalho
(2014, p. 133) sinalizam que se “[...] saltará o longo processo de transição
por intermédio do qual se forma um mercado de trabalho em moldes capitalistas
[...]”, tendo em vista que seu interesse, naquele momento [1982], era tratar da
sociedade burguesa madura. Entretanto, os fundamentos históricos da
constituição deste capitalismo estão presentes nesse processo, logo, a noção de
transição[6]
precisa estar explicita quando se pensa a particularidade da formação
sócio-histórica brasileira no processo de consolidação do capitalismo e, mais
ainda, para precisar o movimento histórico que permite o surgimento da “questão
social” no Brasil.
A particularidade do capitalismo dependente brasileiro
Percebe-se, a partir de Marini (1973),
que a dependência se estabelece por meio da relação de subordinação entre
nações independentes na esfera da divisão internacional do trabalho, onde as
forças produtivas e as relações de produção subordinadas se desenvolvem de
maneira a atender às necessidades de acumulação de capital das economias
centrais. Logo, o próprio desenvolvimento do comércio mundial, neste sentido,
gera e reproduz a ampliação dessa relação desigual. Ou seja, apesar do
rompimento formal entre Metrópole/Colônia, tem-se a continuidade das relações
coloniais subordinadas, dependentes e desiguais, entretanto, não mais sob
monopólio exclusivo da Metrópole, mas também dos países como Inglaterra, França
e Holanda, que competiam no mercado mundial a partir das manufaturas e
industrialização própria.
As nações dependentes produzem
matéria-prima e gêneros alimentícios para atender à produção industrial externa
e alimentar a classe operária dessas nações; enquanto estas produzem
manufaturas e ascendem no mercado mundial a partir do intercâmbio desigual
(Marini, 1973, p. 6). Logo, a produção majoritariamente escravista na América
Latina, voltada essencialmente à exportação aos países industriais,
possibilitou nestes a diminuição real do valor da força de trabalho pela
redução dos gastos sociais para reprodução da classe operária. Com isso, é
possível o aumento do valor do tempo de trabalho excedente apropriado pelo
empregador na mesma jornada de trabalho, mudando qualitativamente a acumulação
nesses países (Marini, 1973). Diante da troca desigual estabelecida na
totalidade do comércio mundial, as nações desfavorecidas precisam criar
mecanismos de compensação da perda de valor decorrente dela[7].
Tendem a combinar, dessa forma, a intensidade da exploração da força de
trabalho com o aumento da jornada, ampliando também a exploração da mais valia
relativa no regime de trabalho assalariado (Marini, 1973, p. 10). E ainda,
constitui-se de forma intensificada devido às relações raciais hierarquizadas
na constituição do capitalismo no Brasil que forçam, a partir do racismo, a
diminuição do valor da força de trabalho da classe trabalhadora em sua
totalidade.
A dimensão do tratamento dado aos negros no imaginário
social da população e a ação coordenada da imprensa e do Estado brasileiro
[...] reflete-se no que é normal e no que não é. Tal sorte se reproduz em uma
sociedade que possui uma massa de trabalhadores composta majoritariamente por
negros. Logo, o que é tido como normal pela burguesia brasileira e introjetado
no tecido social, como condições laborais supostamente adequadas para a classe
trabalhadora, é influenciado pelo racismo (Fagundes, 2022, p. 179).
As contribuições de Gorender e Moura
Tendo em vista esta breve síntese sobre
a relação entre a particularidade da produção escravista e o desenvolvimento do
modo de produção capitalista em sua totalidade, a seguir, vejamos o movimento
das categorias razoáveis indicadas na análise das obras de Gorender (1985) e Moura (2019, 2020a, 2020b), respectivamente. No primeiro, destacamos,
principalmente, as discussões que aprofundam a compreensão da desagregação do
regime de trabalho escravo a partir da elaboração de leis específicas do modo
de produção escravista colonial[8],
das quais serão aqui tratadas a lei da inversão inicial de aquisição do
escravizado; a lei da exploração produtiva do escravizado resultando em
trabalho excedente criador de renda monetária; e a lei da rigidez da
força de trabalho escravizada. Em Moura, indicamos a centralidade e
originalidade da discussão apresentada pelo autor para compreender o movimento
de consolidação do Estado e, principalmente, da particularidade da luta de
classes no Brasil.
Com relação à primeira lei supracitada,
dado o movimento dinâmico e contraditório do comércio triangular (Williams, 1975), traficantes de escravizados[9]
desembarcam os tumbeiros nos portos brasileiros apresentando a oferta da
força de trabalho escravizada a ser comprada pelos plantadores[10].
Essa aquisição – e aqui nos referimos unicamente à compra e venda –, requer um
investimento inicial, um adiantamento de valor-dinheiro na compra do plantel
que se expressa enquanto capital esterilizado (Gorender, 1985, p.
182-183); ou seja, embora a compra do escravizado pressuponha uma função
econômica definida e necessária à reprodução da produtividade, não expressa,
nessas condições, uma função produtiva por si só. O valor dispendido na
inversão inicial da aquisição do escravizado só será revertida em renda
monetária a partir de novo investimento no processo produtivo escravista e da
realização de sobretrabalho do escravizado.
O plantador adianta a soma de dinheiro (valor-dinheiro) com
que compra o escravo e espera recuperá-la com um acréscimo. Acontece, no
entanto, que o plantador não opera na esfera da circulação: o acréscimo do
valor adiantado deverá resultar agora do emprego produtivo do escravo
(Gorender, 1985, p. 167).
A lei da inversão inicial da
aquisição do escravizado pressupõe, dessa forma, um gasto permanente e
improdutivo, tendo em vista a vida útil do escravizado[11]
e a necessidade de renovação do plantel; e ainda, dadas as conjunturas
favoráveis à produção escravista, como os picos da demanda da produção de
cana-de-açúcar, do algodão e do café, quando além da intensificação do
trabalho, necessita-se da ampliação do plantel e, portanto, de gasto
improdutivo. A partir da aplicação produtiva deste, do ponto de vista econômico
e racional na produção escravista, tendo em vista que, no início do século XIX,
o valor-dinheiro representado pelo plantel correspondia a cerca de 30% do valor
da unidade da plantagem[12]
(Gorender, 1985, p. 194), era necessário a preservação do escravizado sem,
contudo, desafrouxar as condições da exploração de sobretrabalho.
A lei da exploração produtiva do
escravizado resulta em trabalho excedente criador de renda monetária. Ou
seja, através da exploração do plantel pelo plantador no âmbito produtivo,
tem-se: a necessidade do retorno do valor-dinheiro da aquisição inicial; o
necessário à alimentação e vestuário dos escravizados; e a renda monetária – em
forma de lucro – do sobretrabalho. Entretanto, o
sustento diário é realizado à medida que o trabalhador já está inserido no
processo produtivo, ou seja, ele mesmo produz o valor-dinheiro que será
aplicado em sua manutenção. Aquilo que o escravizado produz, para além do
necessário à sua sobrevivência e da amortização da inversão inicial (tempo de
trabalho necessário), é renda monetária em forma de dinheiro do plantador (sobretrabalho) que, entretanto, parte deve ser novamente
esterilizada na compra de novos escravizados.
Todo regime de exploração do produtor direto se rege por uma
lei específica de apropriação do sobretrabalho pelo
explorador, isto é, de apropriação daquela parte do trabalho da qual resulta o sobreproduto ou excedente criado pelo trabalhador acima do
produto necessário ao seu sustento e reprodução. No escravismo colonial, a lei
de apropriação do sobretrabalho formula-se da
seguinte maneira: a exploração produtiva do escravo resulta no trabalho
excedente convertido em renda monetária (Gorender, 1985, p. 155).
A rigidez da força de trabalho
escravizada se refere ao caráter não-variável, conforme aumento ou
diminuição da demanda pela produção escravista, do número de escravizados no
plantel. Seja em conjunturas de alta, quando é aplicado massivamente o volume
do plantel na produção mercantil, ou em conjunturas de baixa, quando o trabalho
se amplia no setor natural da produção, o plantel permanece o mesmo, diferente
do modo de produção especificamente capitalista no qual, a depender das
necessidades produtivas, aumenta-se ou se diminui a contratação de assalariados[13].
Essa rigidez implica que o plantador calcule a necessidade do volume do plantel
a partir das conjunturas de alta ou, anualmente, conforme as necessidades
periódicas de aumento do trabalho na produção mercantil para a colheita e
beneficiamento da produção.
As relações estabelecidas pelo Pacto
Colonial pressupunham o monopólio dos preços das mercadorias, garantindo assim,
embora influenciado pelas conjunturas de alta e baixa das demandas comerciais,
a venda da produção escravista agroexportadora. A abertura dos portos amplia a
concorrência e esfacela parcialmente o monopólio de mercado garantido pelas
relações coloniais, implicando à produção escravista a necessidade do aumento
da produtividade. Nesse cenário, a adoção majoritária, pelas pequenas e grandes
Antilhas, por exemplo, assim como nas antigas colônias americanas da
Inglaterra, de força de trabalho assalariada, forçava a produção escravista a
aumentar o volume do plantel para ampliar a produtividade, ao passo que a alta
da demanda fazia crescer o valor da força de trabalho escravizada[14].
A possibilidade de falência das unidades da plantagem no âmbito da concorrência
mundial forçam os plantadores a optar pelo aluguel e/ou venda de seu avolumado
e rígido plantel e buscar alternativas que possibilitassem contornar o
dispêndio improdutivo da inversão inicial e ampliar os investimentos no fundo
fixo[15]
e inovações tecnológicas. Assim como implica reorganizar a própria divisão
social do trabalho escravista nas plantagens para o aumento da produtividade.
Logo, podemos concluir que,
particularmente, a abertura dos portos é expressão da entrada da produção
escravista na concorrência; e, se por um lado, força o desenvolvimento das
forças produtivas internas, a incompatibilidade destas com as relações de produção
escravistas determina o processo de desagregação do modo de produção que
precede a formação do capitalismo dependente no Brasil, embora sem uma ruptura
radical com a organização de classes anterior. Ou seja, as frações de classe
que detinham os meios de produção e a propriedade da terra permanecem os
mesmos, com a entrada também dos proprietários industriais e de capital
bancário. Assim como os ex-escravizados passam a ser
detentores unicamente de sua força de trabalho. No mesmo sentido, não houve
reformas de distribuição de terras, ou mesmo um plano político de inserção da
força de trabalho, principalmente negra, no mercado de trabalho formal
assalariado em crescimento. Pelo contrário, constituem-se mecanismos de
barragem que, a partir das contradições no plano econômico e produtivo,
espraiam-se à formulação de teorias racistas e de uma ideologia de barragem
centrada no branqueamento (Moura, 2019).[16]
A partir do debate acima apresentado,
destacamos, neste momento, as contribuições de Moura (2019, 2020a, 2020b) acerca da análise
dos processos históricos que marcam as mudanças qualitativas nas relações
sociais entre 1850 e as primeiras décadas do século XX. Sendo assim,
trabalhamos aqui, essencialmente, com o conceito de Escravismo Tardio e seus
rasgos fundamentais (Moura, 2019; 2020a), acompanhando as transformações do regime de trabalho, da
combinação entre repressão e consenso na intervenção do Estado e das
mobilizações da classe trabalhadora escravizada, livre, liberta e assalariada
que se articulam na transição.
Uma das características mais importantes dessa segunda parte
do escravismo brasileiro, que denominamos de tardio, é o cruzamento
rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista. Com
a particularidade de que essas relações capitalistas emergentes são
dinamizadas, na sua esmagadora maioria, por um vetor externo: capitais vindos
de fora e instalados aqui como seus promotores dinamizadores e dirigentes. Em
face desse fenômeno quase todos os espaços econômicos, que poderiam ser ocupados
por uma burguesia autóctone em formação, foram ocupados pelo capital
alienígena, na sua esmagadora maioria inglês (Moura, 2020a, p. 83).
Dessa forma, a nascente burguesia
nacional vai atuar, majoritariamente, de maneira subordinada e subserviente à
incorporação de investimentos ingleses em bancos, implementação de sistema
elétrico, ferroviário, marítimo, transporte, sistema de gás e comunicação
(Moura, 2020a, p. 84)[17].
Portanto, o capital inglês busca, por um lado, acelerar sua própria acumulação
através da exploração do trabalho escravizado e, por outro, contraditoriamente,
impulsiona o desenvolvimento subalterno das forças produtivas à implementação
do trabalho assalariado no Brasil, a fim de ampliar a realização de mercadorias
industriais e manufaturadas.
Há, portanto, uma mudança radical na
posição do trabalhador escravizado nesse período, retirada a centralidade deste
enquanto produtor principal de mercadorias e, a partir da ausência de
mecanismos político-econômicos de inserção no mercado de trabalho e a
construção política e ideológica de mecanismos de barragem do trabalhador negro
(Moura, 2019, p. 281), investe-se na entrada de imigrantes brancos europeus no
trabalho assalariado em ascensão. Dessa forma, há mudança implicada na própria
acumulação – interna e externa – a partir da possibilidade de apropriação da
mais valia relativa que o assalariamento viabiliza; e ainda, retirando o ônus
da manutenção do trabalhador escravizado que, embora precária, era dispendida
pelo senhor de escravos.
A Lei de Terras[18]
(1850) é expressão jurídico-formal da compreensão do aparelho burocrático
estatal em relação à estrutura das classes sociais na sociedade escravista,
assim como da necessidade de regular a compra e venda da propriedade da terra
de maneira a conservar o controle econômico dos plantadores. Por outro lado,
embora no mesmo sentido, a Lei Eusébio de Queiroz[19]
(1850), que proíbe o tráfico internacional de escravizados aos portos
brasileiros, expressa o interesse da burguesia internacional e parte da
emergente burguesia nacional pela implementação do trabalho assalariado a
partir da entrada do imigrante europeu; assim como sinaliza a iminente Abolição
enquanto um processo manipulado e controlado pela classe dominante. A
articulação dessas medidas permite, por um lado, a manutenção dos proprietários
dos meios de produção na transição ao capitalismo e, por outro lado, ao ampliar
o valor do sujeito escravizado pela diminuição da oferta, legitima o argumento
a favor da entrada massiva de imigrantes brancos europeus na divisão social do
trabalho assalariado que se visava constituir e consolidar[20].
Esses mecanismos concentram a expressão da necessidade do consenso social em
relação ao desenvolvimento do capitalismo sobre bases racistas, ao passo que,
aliado à disseminação do pensamento eugenista e da ideologia do branqueamento
(Moura, 2019, p. 109), criam as bases para a reprodução de uma lógica liberal racializada que naturaliza o ingresso massivo do
trabalhador negro aos postos do exército industrial de reserva e do trabalho
precarizado e flexível.
Com relação à Luta de Classes, partimos
da análise de Moura (2020a)
acerca da existência de classes antagônicas desde o Escravismo Pleno[21], fundadas na contradição
e forma de exploração do processo produtivo[22]. Neste sentido, a
rebeldia da classe trabalhadora não se inicia com a entrada do operariado
branco imigrante ou descendente no campo de disputa política a partir,
principalmente, do início do século XX, mas remonta às insubordinações da
classe trabalhadora escravizada, livre, liberta desde o Escravismo Pleno e que,
a partir de 1850, demonstram uma mudança qualitativa nas formas de organização
(Moura, 2020a; 2020b), observáveis também após a abolição formal e o
estabelecimento da República (1889). Essa mudança se refere à passagem de ações
ativas de escravizados, como motins de senhores e feitores e formação de
quilombos para, a partir de 1850, o fortalecimento da luta abolicionista – seja
com a ala moderada/conservadora ou radical – e o ingresso de trabalhadores
negros assalariados e escravizados nas lutas políticas no campo e na cidade[23] (Moura, 2020b, p. 89).
Moura (2020a), Mattos (2008), Ferreira
(2020) e Reis (2019) demonstram a luta aberta entre escravizados, livres
e libertos africanos e brasileiros e trabalhadores assalariados brancos contra
os proprietários da terra, de pequenas indústrias, contra o Estado e as ações
fiscais, assim como contra a própria estruturação da sociedade escravista.
Portanto, os pilares centrais do capitalismo, como o trabalhador assalariado
portador de força de trabalho a ser vendida e a possibilidade de realização da
mercadoria e da propriedade pela compra e venda no âmbito do consumo social
nacional, no processo da transição, passam cada vez mais a combinar-se, embora
ainda não rompam com a estrutura escravista até 1888. Com isso, não queremos
colocar a chamada Lei Áurea como alguma forma de revolução social, mas como
marco relevante na organização das relações de produção e de estratégias
político-econômicas da classe dominante para forjar, de maneira controlada, a
passagem do escravismo ao capitalismo dependente.
Considerações finais
Com a Abolição jurídico-formal do
trabalho escravo (1888) e o estabelecimento da República (1889) sobre as bases
estruturais da superexploração da força de trabalho para a formação do
capitalismo dependente no Brasil, tem-se: a) a preservação da estrutura de
classes com a liberação do plantel, de livres e libertos à condição de
trabalhadores aptos a vender sua única propriedade, a força de trabalho e a
manutenção da propriedade dos meios de produção por parte dos antigos senhores,
agora capitalistas agroexportadores, industriais e detentores do capital
bancário; b) a consolidação de um Estado que parte de uma estrutura
jurídico-administrativa assentada no escravismo, e reproduz a manutenção de uma
“[...] sólida carapaça [...]”
(Moura, 2020a, p. 217) e mecanismos de barragem políticos e ideológicos
(Moura, 2019, p. 46) à ampliação da participação política democrática,
principalmente dos trabalhadores negros; c) a liberação estrutural e
superestrutural da venda da força de trabalho, tendo em vista o fim da propriedade
total do escravizado, inserindo-o, marginalmente, enquanto trabalhadores
assalariados portadores de uma força de trabalho com “[...] marca étnica” (Moura,
2019, p. 151). E ainda, a partir
da posição subalterna – embora central –, da forma de exploração do
trabalhador negro no escravismo, vão ser empurrados aos trabalhos mais
desqualificados, de baixa remuneração, de alto índice de exploração e
degradação econômica, política e social; d) logo, tem-se a formação de um
capitalismo dependente que, na sua particularidade brasileira, já nasce com um
volumoso exército industrial de reserva a partir do processo de marginalização
do trabalhador negro da divisão social do trabalho assalariado e formal; e) por
fim, desde o início do Escravismo tardio, a ampliação do movimento político na
campanha Abolicionista que, embora sua ala majoritária não fosse radical e não
tivesse como protagonista o próprio escravizado, pautam no centro das
discussões parlamentares o fim do escravismo, orientados por discurso liberal conservador.
Ainda, ao final desse período, a mescla da organização de trabalhadores
assalariados e escravizados na construção de greves, revoltas, quilombos e
guerrilhas, em uma miscelânea de reivindicações contra o trabalho escravo e,
contraditoriamente, de melhores salários e condições do trabalho assalariado[24].
Com isso, não queremos concluir que
havia, a priori, uma questão social – e não uma “questão social” –
durante o escravismo, embora este debate esteja no horizonte das reflexões.
Queremos, contudo, afirmar que a análise da transição indica mediações que são
centrais na constituição do Estado, do Trabalho – agora
assalariado – e particulariza a Luta de Classes no Brasil; revela ainda
a possibilidade de análise do movimento dinâmico dessas categorias na
realidade, como as formas de intervenção repressiva do Estado e o caráter de
concessão das medidas legislativas de cunho social, associadas, mormente, a uma
política econômica voltada a desonerar a classe dominante – senhorial ou
capitalista. Demonstra, portanto, os fundamentos históricos da gênese da “questão
social” no Brasil.
Referências
Alves, L. D. A divisão racial do trabalho como
um ordenamento do racismo estrutural. Revista Katálysis,
[S.L.], v. 25, n. 2, p. 212-221, ago. 2022. FapUNIFESP
(SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-0259.2022.e84641. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/84641. Acesso em:
29 jul. 2024.
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social. Diretrizes Gerais para o curso de Serviço Social. (Com base no
currículo mínimo aprovado em Assembleia Geral Extraordinária de 8 de novembro
de 1994). Formação profissional: trajetória e desafios. Caderno ABESS,
n. 7, São Paulo, 1996.
Em Pauta, Rio de Janeiro: Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, v. 18, n. 46, 27 jul. 2020: Questão Étnico-Racial
e Antirracismo. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaempauta/issue/view/2364. Acesso em:
29 jul. 2024.
Eurico,
M. C. Da Escravidão ao Trabalho Livre: contribuições para o trabalho do
assistente social. SER Social, Brasília, v. 19, n. 41, p. 414–427,
2018. DOI: 10.26512/ser_social.v19i41.14947.
Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14947. Acesso em:
29 jul. 2024.
Fagundes, G. G. Superexploração e racismo no
Brasil: diálogos e questões. 1. ed. Curitiba: Appris,
2022.
Ferreira, G. C. Raça e nação na origem da
política social brasileira: união e resistência dos trabalhadores negros.
2020. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
Goldmacher, M. A "greve
geral" de 1903: o Rio de Janeiro nas décadas de 1890 a 1910. 2009.
Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
Gorender, J. O escravismo Colonial (ensaios 29). 4.
ed. São Paulo: Editora Ática, 1985.
Iamamoto, M. V. Serviço Social em
tempos de capital fetiche: capital
financeiro, trabalho e questão social. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
Iamamoto, M. V. A Questão Social no Capitalismo. Temporalis,
Brasília (DF), ano. 2, n. 3, p.
9-33, 2001.
Iamamoto, M. V.; Carvalho, R. de. Relações
Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação
histórico-metodológica. 41. ed. São Paulo: Cortez, 2014.
Katálysis, Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, v. 25, n. 2 (2022). Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/issue/view/3352. Acesso em:
29 jul. 2024
Marini, R. M. Dialética da dependência. [Ciudad de México: Era], 1973. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6539551/mod_resource/content/2/7.%20Dial%C3%A9tica%20da%20Depend%C3%AAncia%20-%20Ruy%20Mauro%20Marini%20-%20exp.%20popular%20-%20At%C3%A9%20p.28.pdf. Acesso
em: 20 fev. 2024.
Martins, T. C. S.
Determinações do racismo no mercado de trabalho: implicações na “questão
social” brasileira. Temporalis, [S.
l.], v. 14, n. 28, p. 113–132, 2014. DOI:
10.22422/2238-1856.2014v14n28p113-132. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/7077. Acesso em: 29 jul.
2024.
Marx, K. Grundrisse:
manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política.
São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.
Mattos, M. B. Escravizados e livres: experiências
comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto,
2008.
Moura, C. O Negro, de
bom escravo a mau cidadão? 2. ed. São Paulo: Editora Dandara, 2021.
Moura, C. Dialética Radical do Negro no Brasil. 3.
ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020a.
Moura, C. Rebeliões da
Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 6. ed. São Paulo: Anita
Garibaldi, 2020b.
Moura, C. Sociologia
do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. (Palavras
Negras).
Netto, J. P. Capitalismo
monopolista e Serviço Social. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
Netto, J. P. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis, Brasília (DF), ano 2, n. 3, p. 41-50, 2001.
Praia Vermelha, Rio de Janeiro:
Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, v. 30, n. 1, jul./dez. 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/praiavermelha/issue/view/1231. Acesso em:
29 jul. 2024.
Reis, J. J. Ganhadores: A greve negra de
1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Ser Social, Brasília (DF): UnB, v. 19
n. 41, 2017: Questão Étnico-Racial, Estado e Classes Sociais. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/issue/view/1206. Acesso em:
29 jul. 2024.
Serviço Social & Sociedade, São Paulo:
Cortez, n. 133, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/i/2018.n133/. Acesso em 29 jul. 2024.
Souza, C. L. S. de. Racismo e luta de classes
na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. 1. ed. São
Paulo: Hucitec, 2020. (Diálogos da Diáspora).
Williams, E. Capitalismo e escravidão.
Rio de Janeiro: Editora Americana, 1975.
_______________________________________________________________________________________________
Ana Luíza Tavares BRUINJÉ
Mestra
em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e atualmente
doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da mesma Universidade
(PPGSS/UFJF). Desenvolve pesquisa acerca da transição do Escravismo Colonial ao
Capitalismo Dependente no Brasil e da gênese da chamada “questão social” no
país.
_______________________________________________________________________________________________
* © A(s)
Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os
termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0
Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite
copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como
adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo
que comercial. O licenciante não pode
revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.
[1]
Aparece em destaque por se tratar de um conceito que, embora inicialmente parta
de diferentes círculos de pensadores, associada essencialmente à nova
pobreza engendrada pelo capitalismo industrial, é apropriada por tradição
teórica conservadora laica e confessional a fim de justificar uma suposta
naturalidade da pobreza em face do desenvolvimento da sociedade moderna, logo,
insuperável (Netto, 2011, p. 152-155). Tendo em vista que não é este o conceito
de “questão social” que buscamos apresentar, justifica-se o destaque
gráfico.
[2]
Principalmente a partir de Iamamoto (2001; 2015), Iamamoto e Carvalho (2014) e Netto (2001; 2011, 2015).
[3] Ver
Cristiane Luiza Sabino de Souza (2020), Racismo e Luta de Classes na América
Latina; Gustavo Fagundes (2022) Superexploração e racismo no Brasil;
Márcia Campos Eurico (2018), Da escravidão ao trabalho livre: contribuições
para o trabalho do assistente social; Leonardo Dias Alves (2022), A
divisão racial do trabalho como um ordenamento do racismo estrutural;
Tereza Cristina Santos Martins (2014), Determinações do racismo no mercado
de trabalho: implicações na “questão social” brasileira. Assim como as
revistas Serviço Social e Sociedade, n. 133 (2018), Em Pauta, n.
45 e 46 (2020), Ser Social v. 19, n. 41 (2017), Praia Vermelha,
v. 30, n. 1 (2020) e Katálysis, v. 25,
n. 2 (2022).
[4] “1-
O Serviço Social se particulariza nas relações sociais de produção e reprodução
da vida social como uma profissão interventiva no âmbito da questão social,
expressa pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo monopolista. 2 -
A relação do Serviço Social com a questão social - fundamento básico de
sua existência - é mediatizada por um conjunto de processos sócio-históricos e
teórico-metodológicos constitutivos de seu processo de trabalho. 3 - O
agravamento da questão social em face das particularidades do processo
de reestruturação produtiva no Brasil, nos marcos da ideologia neoliberal,
determina uma inflexão no campo profissional do Serviço Social. Esta inflexão é
resultante de novas requisições postas pelo reordenamento do capital e do trabalho,
pela reforma do Estado e pelo movimento de organização das classes
trabalhadoras, com amplas repercussões no mercado profissional de trabalho. 4 -
O processo de trabalho do Serviço Social é determinado pelas configurações
estruturais e conjunturais da questão social e pelas formas históricas
de seu enfrentamento, permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do
Estado, através das políticas e lutas sociais” (Associação Brasileira de Ensino
e Pesquisa em Serviço Social, 1996, p. 5, grifos nosso).
[5]
O pensamento e a
abstração permitem identificar elementos comuns e universais a respeito de
determinado objeto. Marx utiliza este método para compreender os elementos
comuns da produção em geral a partir de sua representação no pensamento,
entretanto, a totalidade de uma produção só pode ser compreendida a partir da
relação dialética que se estabelece entre esses elementos universais e as
particularidades próprias da produção social e historicamente determinada
(Marx, 2011, p. 61).
[6] “[...]
a categoria transição adquire um lócus privilegiado, se no apropriamos
dela para apreender a dinâmica histórica da formação social latino-americana
por meio de distintos modos de produção que instituem a história posterior à
invasão colonial” (Souza, 2020, p. 29-30). Logo, o que tratamos aqui enquanto
transição (1850 – 1930), faz parte de um processo histórico de
desagregação do regime de trabalho escravo para o assalariado enquanto condição
objetiva e fundamental para o desenvolvimento da sociedade burguesa, a qual
pressupõe a liberação da força de trabalho, esta enquanto a única
propriedade da classe trabalhadora, possível apenas pelo fim da condição
objetiva e subjetiva de propriedade de outrem.
[7] “O que aparece
claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não
buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas
mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a
capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda
gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração
do trabalhador” (Marini, 1973, p. 11).
[8]
“Meu ponto de partida reside na convicção de que o tipo de utilização da força
de trabalho não pode constituir fator contingente ou acidental em qualquer modo
de produção. Pelo contrário, do tipo de trabalho decorrem relações necessárias,
absolutamente essenciais, que definem as leis específicas do modo de produção.
Do ponto de vista mais abstrato, não há diferença entre o escravo, o servo e o
operário assalariado. Todos eles têm sua jornada dividida em trabalho
necessário e sobretrabalho. No entanto,
cada um deles caracteriza modos de produção diferentes pela simples razão de
que são diferentes modos de exploração do seu trabalho e de sua apropriação do
trabalho excedente ou sobretrabalho pelo explorador”
(Gorender, 1985, p. 147).
[9]
Utilizaremos, diferentemente de Gorender, o termo escravizado para se
referir ao sujeito coletivo inserido compulsoriamente no regime de trabalho
escravo, tendo em vista os esforços em não naturalizar a condição de escravos
à população negra africana traficada e buscar um conceito que melhor
expresse as condições objetivas dos sujeitos inseridos, a partir da violência e
vigilância, em um regime de trabalho compulsório. O termo escravo será
utilizado apenas quando se referir ao
processo de trabalho que dá razão de ser à produção escravista.
[10]
Utilizaremos, a partir de Gorender (1985), a denominação de plantadores aos
proprietários das plantagens, forma primordial da produção escravista que
relaciona o latifúndio, monocultura, trabalho escravo, economia mercantil e
natural na mesma unidade produtiva. São os plantadores, portanto, proprietários
da terra, do plantel de escravizados, dos instrumentos de produção e da riqueza
produzida no escravismo, assim como do controle do processo produtivo.
[11]
Apontada, em média, de dez a doze anos, podendo ser encurtada nas conjunturas
de alta produtividade e, portanto, de intensificação da exploração de sobretrabalho e agravamento das condições de vida dos
escravizados (Gorender, 1985, p. 200).
[12]
Chegando, após a proibição do tráfico internacional de escravizados (1850) a
60% e até 70% do valor da unidade da plantagem (Gorender, 1985, p. 194).
[13] O
volume do plantel é afetado também pelas fugas, suicídios, revoltas,
guerrilhas, formação de quilombos (Moura, 2020b; Moura, 2019, p. 271), onerando o plantador
através de um desgaste econômico permanente, impossibilitado de reaver o gasto
improdutivo da inversão inicial.
[14]
Sobre o tema, indicamos o caso exposto por Gorender (1985) acerca da
concorrência entre as charqueadas do Rio Grande do Sul e os saladeros
do Uruguai e Argentina: “Com 100 operários livres, um saladeirista rio-platense
abateria em média 500 bois, ao passo que os 100 escravos do charqueador
brasileiro só abateriam a metade. Enquanto o saladeirista não precisava
adiantar nenhuma inversão de capital-dinheiro a fim de obter a mão-de-obra, o
charqueador era obrigado a reduzir a formação do fundo fixo a fim de inverter
na compra de escravos. Se quisesse industrializar a mesma quantidade de animais
que o seu concorrente rio-platense, o charqueador precisaria dispor do dobro de
braços, o que significaria uma esterilização duas vezes maior do
capital-dinheiro empregado na aquisição de escravos” (Gorender, 1985, p. 227).
Expressão deste processo é a Abolição do trabalho escravizado no Rio Grande do
Sul (em 1884, assim como o Ceará, no mesmo ano), antes da Abolição formalizada
nacionalmente pela Lei Áurea (1888).
[15] “[...] conjunto de plantações perenes,
edificações, equipamentos, instrumentos de produção e animais de tração [...]”
(Gorender, 1985, p. 196).
[16]
“Como vemos, se de um lado os negros egressos das senzalas não eram
incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a
sua franja marginal, de outro, do ponto de vista ideológico, surgia, já
como componente do comportamento da própria classe operária, os elementos
ideológicos da barragem social apoiados no preconceito de cor. E esse racismo
larvar passou a exercer um papel selecionador dentro do próprio proletariado. O negro e outras camadas não brancas não foram, assim,
incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja
de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que
substituiu o escravismo” (Moura, 2019, p. 94, grifos nosso).
[17]
“O processo de industrialização foi também estrangulado, pois os ingleses
faziam empréstimos em condições escorchantes às poucas iniciativas nacionais e,
posteriormente, partiram para investir diretamente nesse setor. Em todas as
áreas favoráveis de investimento esse fato se verificará. Estradas de ferro,
portos, agroindústrias nordestinas (açúcar), companhias de gás e iluminação,
moinhos, cabos submarinos, companhias de seguro, navegação fluvial, transportes
coletivos e outras formas de investimento econômico ou de modernização
tecnológica eram controladas pelo capital britânico” (Moura, 2020a, p. 84).
[18]
“Em face desta problemática, surge, em 1850 a chamada Lei de Terras, ou seja a lei nº 601, pela qual o Estado abria mão do seu
direito de doar e colocava as terras no mercado para a venda a quem dispusesse
de dinheiro para adquiri-las. Com esta reviravolta, o Estado passa a ser mero
vendedor, e não distribuidor de terras de acordo com o interesse público”
(Moura, 2020a, p. 105).
[19]
“O desdobramento dessa legislação impunha duas questões fundamentais: a) fim da
escravidão em um período não tão longo; b) fim da grande fonte de suprimento de
mão de obra da grande lavoura. É com base nesses elementos que se explica o
Escravismo Tardio. Esse estancamento no tráfico acaba por promover o
esvaziamento da dinâmica demográfica que funcionava como sustentáculo da
escravidão” (Fagundes, 2022, p. 83).
[20] É
importante sinalizar que, se por um lado, a imigração de trabalhadores brancos
europeus atendia internamente à recusa racista da inserção do trabalhador negro
no mercado de trabalho assalariado, por outro, é expressão das medidas dos
Estados europeus ao lidar com a “questão social” que já era alvo de
intervenção. Ou seja, a superpopulação relativa que se avolumava, dada a Lei
Geral de Acumulação Capitalista nestes países, é resolvida também com o
incentivo à imigração destes trabalhadores.
[21]
Escravismo Pleno é um conceito elaborado por Moura (2019; 2020a) para se referir ao período entre
aproximadamente 1550 e 1850, quando as forças produtivas do modo de produção
escravista se encontravam em processo de expansão, com alta demanda por
trabalhadores escravizados, intensidade na exploração da força de trabalho
destes e livre tráfico internacional.
[22] “Na primeira fase (e devemos considerar
aqui, também, a contribuição demográfica e econômica do escravismo indígena tão
importante no início da colonização), estrutura-se em toda a sua plenitude a
escravidão (modo de produção escravista), a qual irá configurar praticamente o
comportamento das classes fundamentais dessa sociedade: senhores e escravos.
Isto levará a que as demais camadas, segmentos ou grupos, direta ou
indiretamente, também tenham a sua conduta e seleção de valores sociais
subordinadas a essa dicotomia básica” (Moura, 2020a, p. 31-32).
[23] Para mais, ver também Ferreira (2020),
acerca da mobilização de escravizados e assalariados nos
setores ferroviário e marítimo e Goldmacher (2009).
[24]
Sobre esta contradição, ressaltamos a importância da análise da chamada Revolta
da Chibata e a organização de trabalhadores negros marítimos assalariados pelo
fim do uso da punição física nos cais e navios da Marinha Brasileira. Ver mais
em Moura (2021, p. 246 - 256).