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Considerações preliminares acerca da gênese da “questão social” no Brasil

 

Preliminary considerations on the genesis of the “social issue” in Brazil

 

Ana Luíza Tavares BRUINJÉ*

Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Serviço Social,

Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Juiz de Fora, MG, Brasil.

e-mail: analuizabruinje@gmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-2122-165X

 

Resumo: O artigo apresentado tem como objeto central de análise as contribuições de Jacob Gorender e Clóvis Moura para compreender a gênese da “questão social” na particularidade brasileira. Para isto, indicamos as categorias Trabalho, Estado e Luta de Classes como imprescindíveis para a investigação da “questão social”; e ainda, Raça e Classe como categorias irredutíveis da realidade brasileira atual. A partir da pesquisa bibliográfica e análise desse referencial teórico, buscamos demonstrar que os determinantes fundamentais para o estabelecimento das condições gerais para gênese da “questão social” no país se constituem no processo histórico de transição do regime de trabalho escravo ao assalariado, entre 1850 e 1930.

Palavras-chave: “Questão Social”. Escravismo Colonial. Capitalismo Dependente.

 

Abstract: The article analyses the contributions of Jacob Gorender and Clóvis Moura to the understanding the genesis of the “social issue” in the specific circumstances of Brazil. It highlights work, State, and class struggle as essential categories for investigating the “social issue”; and, race and class as irreducible categories of the Brazilian reality. From this analysis, we demonstrate that the fundamental determinants that established the general conditions of the “social issue” in Brazil were formed during the historical process of transition from slave labour to salaried labour between 1850 and 1930.

Keywords: “Social Issue”. Colonial slavery. Dependent capitalism.

 

Submetido em: 14/10/2023. Aceito em: 25/6/2024.

 

Introdução

 

E

ste artigo tem como intenção apresentar as contribuições de Jacob Gorender e Clóvis Moura para compreender a particularidade da gênese da “questão social”[1] no Brasil. Foi realizada análise preliminar das obras Escravismo Colonial [1985], do primeiro autor, e de Rebeliões da Senzala [1959], Sociologia do Negro Brasileiro [1988] e Dialética Radical do Negro no Brasil [1994], do último, rastreando, a partir de pesquisa exploratória acerca do conceito e gênese de “questão social”, as categorias: Trabalho, Estado e Luta de Classes. Ainda, tendo em vista que a temática proposta está assentada, necessariamente, na particularidade da formação sócio-histórica brasileira, e que esta se constitui a partir da desagregação do regime de trabalho escravo associado ao trabalhador negro para a formação de um capitalismo dependente, as categorias Raça e Classe são, portanto, incontornáveis na análise da realidade. Este caminho metodológico proposto, direcionado pelo movimento de abstração inicial do objeto e pelas categorias razoáveis, permitiu a identificação de algumas mediações relevantes para compreender a particularidade da gênese da “questão social” no Brasil, que serão aqui apresentadas.

 

Inicialmente, será tratada a discussão realizada por parte da tradição marxista de pesquisadores do Serviço Social[2] acerca do conceito e gênese da “questão social” e, posterior, sobre a particularidade da constituição do capitalismo dependente brasileiro a partir de Marini (1973). Na sequência, apresentaremos os debates centrais e o movimento das categorias destacadas na análise das obras dos autores para, enfim, sinalizar síntese de elementos centrais para compreender a gênese da “questão social” no Brasil. Contudo, este artigo não encerra a necessidade do avanço das pesquisas coletivas em torno do objeto proposto. É, na verdade, parte do movimento ampliado da categoria do Serviço Social que vem buscando desvendar as mediações postas na transição do escravismo ao capitalismo no país, sinalizando lacunas interpretativas e metodológicas, as quais precisam estar postas enquanto centrais para a escolha dos objetos de pesquisa, principalmente nos Programas de Pós-graduação da área, para aprofundar a compreensão da própria realidade brasileira e as mediações para pensar o trabalho e a formação em Serviço Social[3].

 

Conceito e gênese da “questão social”

 

É um consenso na tradição marxista que aborda a temática no Serviço Social, a conceituação da “questão social” enquanto a articulação de condições materiais próprias da sociabilidade burguesa, que da contradição fundamental entre a produção social e a apropriação privada da riqueza derivam expressões negativas nas condições de vida, trabalho e sobrevivência da classe trabalhadora, sendo essas o objeto de trabalho de assistentes sociais[4]. E ainda, sua gênese originária está datada historicamente no processo de desenvolvimento do capitalismo clássico na Inglaterra após a Revolução Industrial, quando a pauperização da classe operária passa a tomar proporções massivas e estruturais conforme se amplia a acumulação de capital, a partir da necessidade de continuidade da pressão exercida pelo exército industrial de reserva à diminuição do valor do tempo de trabalho socialmente necessário. Tem ainda, como elemento central, a partir da luta entre as classes fundamentais antagonizadas no processo produtivo, a mobilização e organização da classe trabalhadora, seja no sentido de pressionar o Estado à responsabilização pelas expressões produzidas pela contradição entre o capital e o trabalho, assim como voltadas a transformar o próprio modo de produção que permite a reprodução dessas condições estruturais.

 

A questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emergência do ‘trabalhador livre’, que depende da venda de sua força de trabalho como meio de satisfação de suas necessidades vitais (Iamamoto, 2001, p. 16, grifos meus).

 

Essa é uma síntese importante acerca da compreensão das condições gerais para o desenvolvimento da chamada “questão social” e aponta a determinação dos processos sócio-históricos necessários à sua reprodução. São, entretanto, discussões abstratas – e importantes – para desvelar as diferentes particularidades da sua constituição. Percebemos que na produção teórica dos referenciais da área acima citados, apesar da precisão da análise da gênese “questão social” originária e as reflexões abstratas sobre as condições gerais acerca da sua existência, faltam elementos para tratar, rigorosamente, da constituição desta no Brasil, o que implica uma análise da formação do próprio capitalismo dependente e a centralidade da dialética singular/particular/universal[5]. Dessa forma, sobre a temática, Iamamoto e Carvalho (2014, p. 133) sinalizam que se “[...] saltará o longo processo de transição por intermédio do qual se forma um mercado de trabalho em moldes capitalistas [...]”, tendo em vista que seu interesse, naquele momento [1982], era tratar da sociedade burguesa madura. Entretanto, os fundamentos históricos da constituição deste capitalismo estão presentes nesse processo, logo, a noção de transição[6] precisa estar explicita quando se pensa a particularidade da formação sócio-histórica brasileira no processo de consolidação do capitalismo e, mais ainda, para precisar o movimento histórico que permite o surgimento da “questão social” no Brasil.

 

A particularidade do capitalismo dependente brasileiro

 

Percebe-se, a partir de Marini (1973), que a dependência se estabelece por meio da relação de subordinação entre nações independentes na esfera da divisão internacional do trabalho, onde as forças produtivas e as relações de produção subordinadas se desenvolvem de maneira a atender às necessidades de acumulação de capital das economias centrais. Logo, o próprio desenvolvimento do comércio mundial, neste sentido, gera e reproduz a ampliação dessa relação desigual. Ou seja, apesar do rompimento formal entre Metrópole/Colônia, tem-se a continuidade das relações coloniais subordinadas, dependentes e desiguais, entretanto, não mais sob monopólio exclusivo da Metrópole, mas também dos países como Inglaterra, França e Holanda, que competiam no mercado mundial a partir das manufaturas e industrialização própria.

 

As nações dependentes produzem matéria-prima e gêneros alimentícios para atender à produção industrial externa e alimentar a classe operária dessas nações; enquanto estas produzem manufaturas e ascendem no mercado mundial a partir do intercâmbio desigual (Marini, 1973, p. 6). Logo, a produção majoritariamente escravista na América Latina, voltada essencialmente à exportação aos países industriais, possibilitou nestes a diminuição real do valor da força de trabalho pela redução dos gastos sociais para reprodução da classe operária. Com isso, é possível o aumento do valor do tempo de trabalho excedente apropriado pelo empregador na mesma jornada de trabalho, mudando qualitativamente a acumulação nesses países (Marini, 1973). Diante da troca desigual estabelecida na totalidade do comércio mundial, as nações desfavorecidas precisam criar mecanismos de compensação da perda de valor decorrente dela[7]. Tendem a combinar, dessa forma, a intensidade da exploração da força de trabalho com o aumento da jornada, ampliando também a exploração da mais valia relativa no regime de trabalho assalariado (Marini, 1973, p. 10). E ainda, constitui-se de forma intensificada devido às relações raciais hierarquizadas na constituição do capitalismo no Brasil que forçam, a partir do racismo, a diminuição do valor da força de trabalho da classe trabalhadora em sua totalidade.

 

A dimensão do tratamento dado aos negros no imaginário social da população e a ação coordenada da imprensa e do Estado brasileiro [...] reflete-se no que é normal e no que não é. Tal sorte se reproduz em uma sociedade que possui uma massa de trabalhadores composta majoritariamente por negros. Logo, o que é tido como normal pela burguesia brasileira e introjetado no tecido social, como condições laborais supostamente adequadas para a classe trabalhadora, é influenciado pelo racismo (Fagundes, 2022, p. 179).

 

As contribuições de Gorender e Moura

 

Tendo em vista esta breve síntese sobre a relação entre a particularidade da produção escravista e o desenvolvimento do modo de produção capitalista em sua totalidade, a seguir, vejamos o movimento das categorias razoáveis indicadas na análise das obras de Gorender (1985) e Moura (2019, 2020a, 2020b), respectivamente. No primeiro, destacamos, principalmente, as discussões que aprofundam a compreensão da desagregação do regime de trabalho escravo a partir da elaboração de leis específicas do modo de produção escravista colonial[8], das quais serão aqui tratadas a lei da inversão inicial de aquisição do escravizado; a lei da exploração produtiva do escravizado resultando em trabalho excedente criador de renda monetária; e a lei da rigidez da força de trabalho escravizada. Em Moura, indicamos a centralidade e originalidade da discussão apresentada pelo autor para compreender o movimento de consolidação do Estado e, principalmente, da particularidade da luta de classes no Brasil. 

 

Com relação à primeira lei supracitada, dado o movimento dinâmico e contraditório do comércio triangular (Williams, 1975), traficantes de escravizados[9] desembarcam os tumbeiros nos portos brasileiros apresentando a oferta da força de trabalho escravizada a ser comprada pelos plantadores[10]. Essa aquisição – e aqui nos referimos unicamente à compra e venda –, requer um investimento inicial, um adiantamento de valor-dinheiro na compra do plantel que se expressa enquanto capital esterilizado (Gorender, 1985, p. 182-183); ou seja, embora a compra do escravizado pressuponha uma função econômica definida e necessária à reprodução da produtividade, não expressa, nessas condições, uma função produtiva por si só. O valor dispendido na inversão inicial da aquisição do escravizado só será revertida em renda monetária a partir de novo investimento no processo produtivo escravista e da realização de sobretrabalho do escravizado.

 

O plantador adianta a soma de dinheiro (valor-dinheiro) com que compra o escravo e espera recuperá-la com um acréscimo. Acontece, no entanto, que o plantador não opera na esfera da circulação: o acréscimo do valor adiantado deverá resultar agora do emprego produtivo do escravo (Gorender, 1985, p. 167).

 

A lei da inversão inicial da aquisição do escravizado pressupõe, dessa forma, um gasto permanente e improdutivo, tendo em vista a vida útil do escravizado[11] e a necessidade de renovação do plantel; e ainda, dadas as conjunturas favoráveis à produção escravista, como os picos da demanda da produção de cana-de-açúcar, do algodão e do café, quando além da intensificação do trabalho, necessita-se da ampliação do plantel e, portanto, de gasto improdutivo. A partir da aplicação produtiva deste, do ponto de vista econômico e racional na produção escravista, tendo em vista que, no início do século XIX, o valor-dinheiro representado pelo plantel correspondia a cerca de 30% do valor da unidade da plantagem[12] (Gorender, 1985, p. 194), era necessário a preservação do escravizado sem, contudo, desafrouxar as condições da exploração de sobretrabalho.

 

A lei da exploração produtiva do escravizado resulta em trabalho excedente criador de renda monetária. Ou seja, através da exploração do plantel pelo plantador no âmbito produtivo, tem-se: a necessidade do retorno do valor-dinheiro da aquisição inicial; o necessário à alimentação e vestuário dos escravizados; e a renda monetária – em forma de lucro – do sobretrabalho. Entretanto, o sustento diário é realizado à medida que o trabalhador já está inserido no processo produtivo, ou seja, ele mesmo produz o valor-dinheiro que será aplicado em sua manutenção. Aquilo que o escravizado produz, para além do necessário à sua sobrevivência e da amortização da inversão inicial (tempo de trabalho necessário), é renda monetária em forma de dinheiro do plantador (sobretrabalho) que, entretanto, parte deve ser novamente esterilizada na compra de novos escravizados.

 

Todo regime de exploração do produtor direto se rege por uma lei específica de apropriação do sobretrabalho pelo explorador, isto é, de apropriação daquela parte do trabalho da qual resulta o sobreproduto ou excedente criado pelo trabalhador acima do produto necessário ao seu sustento e reprodução. No escravismo colonial, a lei de apropriação do sobretrabalho formula-se da seguinte maneira: a exploração produtiva do escravo resulta no trabalho excedente convertido em renda monetária (Gorender, 1985, p. 155).

 

A rigidez da força de trabalho escravizada se refere ao caráter não-variável, conforme aumento ou diminuição da demanda pela produção escravista, do número de escravizados no plantel. Seja em conjunturas de alta, quando é aplicado massivamente o volume do plantel na produção mercantil, ou em conjunturas de baixa, quando o trabalho se amplia no setor natural da produção, o plantel permanece o mesmo, diferente do modo de produção especificamente capitalista no qual, a depender das necessidades produtivas, aumenta-se ou se diminui a contratação de assalariados[13]. Essa rigidez implica que o plantador calcule a necessidade do volume do plantel a partir das conjunturas de alta ou, anualmente, conforme as necessidades periódicas de aumento do trabalho na produção mercantil para a colheita e beneficiamento da produção.

 

As relações estabelecidas pelo Pacto Colonial pressupunham o monopólio dos preços das mercadorias, garantindo assim, embora influenciado pelas conjunturas de alta e baixa das demandas comerciais, a venda da produção escravista agroexportadora. A abertura dos portos amplia a concorrência e esfacela parcialmente o monopólio de mercado garantido pelas relações coloniais, implicando à produção escravista a necessidade do aumento da produtividade. Nesse cenário, a adoção majoritária, pelas pequenas e grandes Antilhas, por exemplo, assim como nas antigas colônias americanas da Inglaterra, de força de trabalho assalariada, forçava a produção escravista a aumentar o volume do plantel para ampliar a produtividade, ao passo que a alta da demanda fazia crescer o valor da força de trabalho escravizada[14]. A possibilidade de falência das unidades da plantagem no âmbito da concorrência mundial forçam os plantadores a optar pelo aluguel e/ou venda de seu avolumado e rígido plantel e buscar alternativas que possibilitassem contornar o dispêndio improdutivo da inversão inicial e ampliar os investimentos no fundo fixo[15] e inovações tecnológicas. Assim como implica reorganizar a própria divisão social do trabalho escravista nas plantagens para o aumento da produtividade.

 

Logo, podemos concluir que, particularmente, a abertura dos portos é expressão da entrada da produção escravista na concorrência; e, se por um lado, força o desenvolvimento das forças produtivas internas, a incompatibilidade destas com as relações de produção escravistas determina o processo de desagregação do modo de produção que precede a formação do capitalismo dependente no Brasil, embora sem uma ruptura radical com a organização de classes anterior. Ou seja, as frações de classe que detinham os meios de produção e a propriedade da terra permanecem os mesmos, com a entrada também dos proprietários industriais e de capital bancário. Assim como os ex-escravizados passam a ser detentores unicamente de sua força de trabalho. No mesmo sentido, não houve reformas de distribuição de terras, ou mesmo um plano político de inserção da força de trabalho, principalmente negra, no mercado de trabalho formal assalariado em crescimento. Pelo contrário, constituem-se mecanismos de barragem que, a partir das contradições no plano econômico e produtivo, espraiam-se à formulação de teorias racistas e de uma ideologia de barragem centrada no branqueamento (Moura, 2019).[16]

 

A partir do debate acima apresentado, destacamos, neste momento, as contribuições de Moura (2019, 2020a, 2020b) acerca da análise dos processos históricos que marcam as mudanças qualitativas nas relações sociais entre 1850 e as primeiras décadas do século XX. Sendo assim, trabalhamos aqui, essencialmente, com o conceito de Escravismo Tardio e seus rasgos fundamentais (Moura, 2019; 2020a), acompanhando as transformações do regime de trabalho, da combinação entre repressão e consenso na intervenção do Estado e das mobilizações da classe trabalhadora escravizada, livre, liberta e assalariada que se articulam na transição.

 

Uma das características mais importantes dessa segunda parte do escravismo brasileiro, que denominamos de tardio, é o cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista. Com a particularidade de que essas relações capitalistas emergentes são dinamizadas, na sua esmagadora maioria, por um vetor externo: capitais vindos de fora e instalados aqui como seus promotores dinamizadores e dirigentes. Em face desse fenômeno quase todos os espaços econômicos, que poderiam ser ocupados por uma burguesia autóctone em formação, foram ocupados pelo capital alienígena, na sua esmagadora maioria inglês (Moura, 2020a, p. 83).

 

Dessa forma, a nascente burguesia nacional vai atuar, majoritariamente, de maneira subordinada e subserviente à incorporação de investimentos ingleses em bancos, implementação de sistema elétrico, ferroviário, marítimo, transporte, sistema de gás e comunicação (Moura, 2020a, p. 84)[17]. Portanto, o capital inglês busca, por um lado, acelerar sua própria acumulação através da exploração do trabalho escravizado e, por outro, contraditoriamente, impulsiona o desenvolvimento subalterno das forças produtivas à implementação do trabalho assalariado no Brasil, a fim de ampliar a realização de mercadorias industriais e manufaturadas.

 

Há, portanto, uma mudança radical na posição do trabalhador escravizado nesse período, retirada a centralidade deste enquanto produtor principal de mercadorias e, a partir da ausência de mecanismos político-econômicos de inserção no mercado de trabalho e a construção política e ideológica de mecanismos de barragem do trabalhador negro (Moura, 2019, p. 281), investe-se na entrada de imigrantes brancos europeus no trabalho assalariado em ascensão. Dessa forma, há mudança implicada na própria acumulação – interna e externa – a partir da possibilidade de apropriação da mais valia relativa que o assalariamento viabiliza; e ainda, retirando o ônus da manutenção do trabalhador escravizado que, embora precária, era dispendida pelo senhor de escravos.

 

A Lei de Terras[18] (1850) é expressão jurídico-formal da compreensão do aparelho burocrático estatal em relação à estrutura das classes sociais na sociedade escravista, assim como da necessidade de regular a compra e venda da propriedade da terra de maneira a conservar o controle econômico dos plantadores. Por outro lado, embora no mesmo sentido, a Lei Eusébio de Queiroz[19] (1850), que proíbe o tráfico internacional de escravizados aos portos brasileiros, expressa o interesse da burguesia internacional e parte da emergente burguesia nacional pela implementação do trabalho assalariado a partir da entrada do imigrante europeu; assim como sinaliza a iminente Abolição enquanto um processo manipulado e controlado pela classe dominante. A articulação dessas medidas permite, por um lado, a manutenção dos proprietários dos meios de produção na transição ao capitalismo e, por outro lado, ao ampliar o valor do sujeito escravizado pela diminuição da oferta, legitima o argumento a favor da entrada massiva de imigrantes brancos europeus na divisão social do trabalho assalariado que se visava constituir e consolidar[20]. Esses mecanismos concentram a expressão da necessidade do consenso social em relação ao desenvolvimento do capitalismo sobre bases racistas, ao passo que, aliado à disseminação do pensamento eugenista e da ideologia do branqueamento (Moura, 2019, p. 109), criam as bases para a reprodução de uma lógica liberal racializada que naturaliza o ingresso massivo do trabalhador negro aos postos do exército industrial de reserva e do trabalho precarizado e flexível.

 

Com relação à Luta de Classes, partimos da análise de Moura (2020a) acerca da existência de classes antagônicas desde o Escravismo Pleno[21], fundadas na contradição e forma de exploração do processo produtivo[22]. Neste sentido, a rebeldia da classe trabalhadora não se inicia com a entrada do operariado branco imigrante ou descendente no campo de disputa política a partir, principalmente, do início do século XX, mas remonta às insubordinações da classe trabalhadora escravizada, livre, liberta desde o Escravismo Pleno e que, a partir de 1850, demonstram uma mudança qualitativa nas formas de organização (Moura, 2020a; 2020b), observáveis também após a abolição formal e o estabelecimento da República (1889). Essa mudança se refere à passagem de ações ativas de escravizados, como motins de senhores e feitores e formação de quilombos para, a partir de 1850, o fortalecimento da luta abolicionista – seja com a ala moderada/conservadora ou radical – e o ingresso de trabalhadores negros assalariados e escravizados nas lutas políticas no campo e na cidade[23] (Moura, 2020b, p. 89).

 

Moura (2020a), Mattos (2008), Ferreira (2020) e Reis (2019) demonstram a luta aberta entre escravizados, livres e libertos africanos e brasileiros e trabalhadores assalariados brancos contra os proprietários da terra, de pequenas indústrias, contra o Estado e as ações fiscais, assim como contra a própria estruturação da sociedade escravista. Portanto, os pilares centrais do capitalismo, como o trabalhador assalariado portador de força de trabalho a ser vendida e a possibilidade de realização da mercadoria e da propriedade pela compra e venda no âmbito do consumo social nacional, no processo da transição, passam cada vez mais a combinar-se, embora ainda não rompam com a estrutura escravista até 1888. Com isso, não queremos colocar a chamada Lei Áurea como alguma forma de revolução social, mas como marco relevante na organização das relações de produção e de estratégias político-econômicas da classe dominante para forjar, de maneira controlada, a passagem do escravismo ao capitalismo dependente.

 

Considerações finais

 

Com a Abolição jurídico-formal do trabalho escravo (1888) e o estabelecimento da República (1889) sobre as bases estruturais da superexploração da força de trabalho para a formação do capitalismo dependente no Brasil, tem-se: a) a preservação da estrutura de classes com a liberação do plantel, de livres e libertos à condição de trabalhadores aptos a vender sua única propriedade, a força de trabalho e a manutenção da propriedade dos meios de produção por parte dos antigos senhores, agora capitalistas agroexportadores, industriais e detentores do capital bancário; b) a consolidação de um Estado que parte de uma estrutura jurídico-administrativa assentada no escravismo, e reproduz a manutenção de uma “[...] sólida carapaça [...]” (Moura, 2020a, p. 217) e mecanismos de barragem políticos e ideológicos (Moura, 2019, p. 46) à ampliação da participação política democrática, principalmente dos trabalhadores negros; c) a liberação estrutural e superestrutural da venda da força de trabalho, tendo em vista o fim da propriedade total do escravizado, inserindo-o, marginalmente, enquanto trabalhadores assalariados portadores de uma força de trabalho com “[...] marca étnica” (Moura, 2019, p. 151). E ainda, a partir da posição subalterna – embora central –, da forma de exploração do trabalhador negro no escravismo, vão ser empurrados aos trabalhos mais desqualificados, de baixa remuneração, de alto índice de exploração e degradação econômica, política e social; d) logo, tem-se a formação de um capitalismo dependente que, na sua particularidade brasileira, já nasce com um volumoso exército industrial de reserva a partir do processo de marginalização do trabalhador negro da divisão social do trabalho assalariado e formal; e) por fim, desde o início do Escravismo tardio, a ampliação do movimento político na campanha Abolicionista que, embora sua ala majoritária não fosse radical e não tivesse como protagonista o próprio escravizado, pautam no centro das discussões parlamentares o fim do escravismo, orientados por discurso liberal conservador. Ainda, ao final desse período, a mescla da organização de trabalhadores assalariados e escravizados na construção de greves, revoltas, quilombos e guerrilhas, em uma miscelânea de reivindicações contra o trabalho escravo e, contraditoriamente, de melhores salários e condições do trabalho assalariado[24].

 

Com isso, não queremos concluir que havia, a priori, uma questão social – e não uma “questão social” – durante o escravismo, embora este debate esteja no horizonte das reflexões. Queremos, contudo, afirmar que a análise da transição indica mediações que são centrais na constituição do Estado, do Trabalho – agora assalariado – e particulariza a Luta de Classes no Brasil; revela ainda a possibilidade de análise do movimento dinâmico dessas categorias na realidade, como as formas de intervenção repressiva do Estado e o caráter de concessão das medidas legislativas de cunho social, associadas, mormente, a uma política econômica voltada a desonerar a classe dominante – senhorial ou capitalista. Demonstra, portanto, os fundamentos históricos da gênese da “questão social” no Brasil.

 

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Netto, J. P. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis, Brasília (DF), ano 2, n. 3, p. 41-50, 2001.

 

Praia Vermelha, Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, jul./dez. 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/praiavermelha/issue/view/1231. Acesso em: 29 jul. 2024.

 

Reis, J. J. Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

Ser Social, Brasília (DF): UnB, v. 19 n. 41, 2017: Questão Étnico-Racial, Estado e Classes Sociais. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/issue/view/1206. Acesso em: 29 jul. 2024.

Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 133, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/i/2018.n133/. Acesso em 29 jul. 2024.

 

Souza, C. L. S. de. Racismo e luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2020. (Diálogos da Diáspora).

 

Williams, E. Capitalismo e escravidão. Rio de Janeiro: Editora Americana, 1975.

 

 

 

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Ana Luíza Tavares BRUINJÉ

Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da mesma Universidade (PPGSS/UFJF). Desenvolve pesquisa acerca da transição do Escravismo Colonial ao Capitalismo Dependente no Brasil e da gênese da chamada “questão social” no país.

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*  © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

 

[1] Aparece em destaque por se tratar de um conceito que, embora inicialmente parta de diferentes círculos de pensadores, associada essencialmente à nova pobreza engendrada pelo capitalismo industrial, é apropriada por tradição teórica conservadora laica e confessional a fim de justificar uma suposta naturalidade da pobreza em face do desenvolvimento da sociedade moderna, logo, insuperável (Netto, 2011, p. 152-155). Tendo em vista que não é este o conceito de “questão social” que buscamos apresentar, justifica-se o destaque gráfico.

[2] Principalmente a partir de Iamamoto (2001; 2015), Iamamoto e Carvalho (2014) e Netto (2001; 2011, 2015).

[3] Ver Cristiane Luiza Sabino de Souza (2020), Racismo e Luta de Classes na América Latina; Gustavo Fagundes (2022) Superexploração e racismo no Brasil; Márcia Campos Eurico (2018), Da escravidão ao trabalho livre: contribuições para o trabalho do assistente social; Leonardo Dias Alves (2022), A divisão racial do trabalho como um ordenamento do racismo estrutural; Tereza Cristina Santos Martins (2014), Determinações do racismo no mercado de trabalho: implicações na “questão social” brasileira. Assim como as revistas Serviço Social e Sociedade, n. 133 (2018), Em Pauta, n. 45 e 46 (2020), Ser Social v. 19, n. 41 (2017), Praia Vermelha, v. 30, n. 1 (2020) e Katálysis, v. 25, n. 2 (2022).   

[4] “1- O Serviço Social se particulariza nas relações sociais de produção e reprodução da vida social como uma profissão interventiva no âmbito da questão social, expressa pelas contradições do desenvolvimento do capitalismo monopolista. 2 - A relação do Serviço Social com a questão social - fundamento básico de sua existência - é mediatizada por um conjunto de processos sócio-históricos e teórico-metodológicos constitutivos de seu processo de trabalho. 3 - O agravamento da questão social em face das particularidades do processo de reestruturação produtiva no Brasil, nos marcos da ideologia neoliberal, determina uma inflexão no campo profissional do Serviço Social. Esta inflexão é resultante de novas requisições postas pelo reordenamento do capital e do trabalho, pela reforma do Estado e pelo movimento de organização das classes trabalhadoras, com amplas repercussões no mercado profissional de trabalho. 4 - O processo de trabalho do Serviço Social é determinado pelas configurações estruturais e conjunturais da questão social e pelas formas históricas de seu enfrentamento, permeadas pela ação dos trabalhadores, do capital e do Estado, através das políticas e lutas sociais” (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social, 1996, p. 5, grifos nosso).

[5] O pensamento e a abstração permitem identificar elementos comuns e universais a respeito de determinado objeto. Marx utiliza este método para compreender os elementos comuns da produção em geral a partir de sua representação no pensamento, entretanto, a totalidade de uma produção só pode ser compreendida a partir da relação dialética que se estabelece entre esses elementos universais e as particularidades próprias da produção social e historicamente determinada (Marx, 2011, p. 61).

[6] “[...] a categoria transição adquire um lócus privilegiado, se no apropriamos dela para apreender a dinâmica histórica da formação social latino-americana por meio de distintos modos de produção que instituem a história posterior à invasão colonial” (Souza, 2020, p. 29-30). Logo, o que tratamos aqui enquanto transição (1850 – 1930), faz parte de um processo histórico de desagregação do regime de trabalho escravo para o assalariado enquanto condição objetiva e fundamental para o desenvolvimento da sociedade burguesa, a qual pressupõe a liberação da força de trabalho, esta enquanto a única propriedade da classe trabalhadora, possível apenas pelo fim da condição objetiva e subjetiva de propriedade de outrem.

[7] “O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador” (Marini, 1973, p. 11).

[8] “Meu ponto de partida reside na convicção de que o tipo de utilização da força de trabalho não pode constituir fator contingente ou acidental em qualquer modo de produção. Pelo contrário, do tipo de trabalho decorrem relações necessárias, absolutamente essenciais, que definem as leis específicas do modo de produção. Do ponto de vista mais abstrato, não há diferença entre o escravo, o servo e o operário assalariado. Todos eles têm sua jornada dividida em trabalho necessário e sobretrabalho. No entanto, cada um deles caracteriza modos de produção diferentes pela simples razão de que são diferentes modos de exploração do seu trabalho e de sua apropriação do trabalho excedente ou sobretrabalho pelo explorador” (Gorender, 1985, p. 147).

[9] Utilizaremos, diferentemente de Gorender, o termo escravizado para se referir ao sujeito coletivo inserido compulsoriamente no regime de trabalho escravo, tendo em vista os esforços em não naturalizar a condição de escravos à população negra africana traficada e buscar um conceito que melhor expresse as condições objetivas dos sujeitos inseridos, a partir da violência e vigilância, em um regime de trabalho compulsório. O termo escravo será utilizado apenas quando se referir ao processo de trabalho que dá razão de ser à produção escravista.

[10] Utilizaremos, a partir de Gorender (1985), a denominação de plantadores aos proprietários das plantagens, forma primordial da produção escravista que relaciona o latifúndio, monocultura, trabalho escravo, economia mercantil e natural na mesma unidade produtiva. São os plantadores, portanto, proprietários da terra, do plantel de escravizados, dos instrumentos de produção e da riqueza produzida no escravismo, assim como do controle do processo produtivo.

[11] Apontada, em média, de dez a doze anos, podendo ser encurtada nas conjunturas de alta produtividade e, portanto, de intensificação da exploração de sobretrabalho e agravamento das condições de vida dos escravizados (Gorender, 1985, p. 200).

[12] Chegando, após a proibição do tráfico internacional de escravizados (1850) a 60% e até 70% do valor da unidade da plantagem (Gorender, 1985, p. 194).

[13] O volume do plantel é afetado também pelas fugas, suicídios, revoltas, guerrilhas, formação de quilombos (Moura, 2020b; Moura, 2019, p. 271), onerando o plantador através de um desgaste econômico permanente, impossibilitado de reaver o gasto improdutivo da inversão inicial.

[14] Sobre o tema, indicamos o caso exposto por Gorender (1985) acerca da concorrência entre as charqueadas do Rio Grande do Sul e os saladeros do Uruguai e Argentina: “Com 100 operários livres, um saladeirista rio-platense abateria em média 500 bois, ao passo que os 100 escravos do charqueador brasileiro só abateriam a metade. Enquanto o saladeirista não precisava adiantar nenhuma inversão de capital-dinheiro a fim de obter a mão-de-obra, o charqueador era obrigado a reduzir a formação do fundo fixo a fim de inverter na compra de escravos. Se quisesse industrializar a mesma quantidade de animais que o seu concorrente rio-platense, o charqueador precisaria dispor do dobro de braços, o que significaria uma esterilização duas vezes maior do capital-dinheiro empregado na aquisição de escravos” (Gorender, 1985, p. 227). Expressão deste processo é a Abolição do trabalho escravizado no Rio Grande do Sul (em 1884, assim como o Ceará, no mesmo ano), antes da Abolição formalizada nacionalmente pela Lei Áurea (1888).

[15] “[...] conjunto de plantações perenes, edificações, equipamentos, instrumentos de produção e animais de tração [...]” (Gorender, 1985, p. 196).

[16] “Como vemos, se de um lado os negros egressos das senzalas não eram incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a sua franja marginal, de outro, do ponto de vista ideológico, surgia, já como componente do comportamento da própria classe operária, os elementos ideológicos da barragem social apoiados no preconceito de cor. E esse racismo larvar passou a exercer um papel selecionador dentro do próprio proletariado. O negro e outras camadas não brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo” (Moura, 2019, p. 94, grifos nosso).

[17] “O processo de industrialização foi também estrangulado, pois os ingleses faziam empréstimos em condições escorchantes às poucas iniciativas nacionais e, posteriormente, partiram para investir diretamente nesse setor. Em todas as áreas favoráveis de investimento esse fato se verificará. Estradas de ferro, portos, agroindústrias nordestinas (açúcar), companhias de gás e iluminação, moinhos, cabos submarinos, companhias de seguro, navegação fluvial, transportes coletivos e outras formas de investimento econômico ou de modernização tecnológica eram controladas pelo capital britânico” (Moura, 2020a, p. 84).

[18] “Em face desta problemática, surge, em 1850 a chamada Lei de Terras, ou seja a lei nº 601, pela qual o Estado abria mão do seu direito de doar e colocava as terras no mercado para a venda a quem dispusesse de dinheiro para adquiri-las. Com esta reviravolta, o Estado passa a ser mero vendedor, e não distribuidor de terras de acordo com o interesse público” (Moura, 2020a, p. 105).

[19] “O desdobramento dessa legislação impunha duas questões fundamentais: a) fim da escravidão em um período não tão longo; b) fim da grande fonte de suprimento de mão de obra da grande lavoura. É com base nesses elementos que se explica o Escravismo Tardio. Esse estancamento no tráfico acaba por promover o esvaziamento da dinâmica demográfica que funcionava como sustentáculo da escravidão” (Fagundes, 2022, p. 83).

[20] É importante sinalizar que, se por um lado, a imigração de trabalhadores brancos europeus atendia internamente à recusa racista da inserção do trabalhador negro no mercado de trabalho assalariado, por outro, é expressão das medidas dos Estados europeus ao lidar com a “questão social” que já era alvo de intervenção. Ou seja, a superpopulação relativa que se avolumava, dada a Lei Geral de Acumulação Capitalista nestes países, é resolvida também com o incentivo à imigração destes trabalhadores.

[21] Escravismo Pleno é um conceito elaborado por Moura (2019; 2020a) para se referir ao período entre aproximadamente 1550 e 1850, quando as forças produtivas do modo de produção escravista se encontravam em processo de expansão, com alta demanda por trabalhadores escravizados, intensidade na exploração da força de trabalho destes e livre tráfico internacional.

[22] “Na primeira fase (e devemos considerar aqui, também, a contribuição demográfica e econômica do escravismo indígena tão importante no início da colonização), estrutura-se em toda a sua plenitude a escravidão (modo de produção escravista), a qual irá configurar praticamente o comportamento das classes fundamentais dessa sociedade: senhores e escravos. Isto levará a que as demais camadas, segmentos ou grupos, direta ou indiretamente, também tenham a sua conduta e seleção de valores sociais subordinadas a essa dicotomia básica” (Moura, 2020a, p. 31-32).

[23] Para mais, ver também Ferreira (2020), acerca da mobilização de escravizados e assalariados nos setores ferroviário e marítimo e Goldmacher (2009).

[24] Sobre esta contradição, ressaltamos a importância da análise da chamada Revolta da Chibata e a organização de trabalhadores negros marítimos assalariados pelo fim do uso da punição física nos cais e navios da Marinha Brasileira. Ver mais em Moura (2021, p. 246 - 256).