Raça,
um delírio: racismo e sexismo na sociedade brasileira
Race, an delusion:
racism and sexism in Brazilian Society
Bárbara SEPÚLVEDA*
Universidade Estadual de Montes Claros,
Departamento
de Política e Ciências Sociais,
Curso de Serviço Social, Montes Claros,
MG, Brasil.
e-mail: barbaratsb123@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5345-9021
Resumo: Que é raça? Como se
relaciona aos processos de desenvolvimento do capitalismo, ao sexo/gênero no
sentido de estruturar tal estado de coisas, em que a alguns é reservado
melhores condições e oportunidades, enquanto a outros, brutalidade,
subalternidade? Ao designá-la sob a lógica do delírio, esperamos decretar sua
nulidade do ponto de vista biológico, ao mesmo tempo, demarcar sua natureza
ideológica ou mesmo neurótica. Interessa-nos compreender como tal delírio se
manifesta na realidade brasileira, tendo em vista a questão colonial e o lugar
do escravismo na formação do país. Para
o problema proposto fizemos uso de uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico.
Nos orientou estudos e teoria que versam sobre os processos históricos de
racialização e desumanização dos negros e negras na diáspora, incluída a
epistemologia feminista negra, sobretudo pela ferramenta Interseccionalidade.
Palavras-chave: Raça. Formação
Social Brasileira. Interseccionalidade. Mulher Negra.
Abstract: What is race, and how does it
relate to the development processes of capitalism, and to sex/gender in the
sense of structuring the state of things, in which better conditions and
opportunities are reserved for some, while for others there is only brutality
and subalternity? By designating it as a delusion we hope to declare it as null
from a biological point of view, and to demarcate its ideological or even
neurotic nature. Considering the issue of colonialism and the place of slavery
in the formation of the country, we are interested in understanding how such a
delusion manifests itself in the Brazilian reality. Intersectionality and qualitative
bibliographic research was employed. This led to
studies and theory that deal with the historical processes of the racialisation
and dehumanisation of Black men and women within the diaspora,
and includes Black feminist epistemology.
Keywords: Race. Brazilian social formation. Intersectionality.
Black woman.
Submetido em: 30/10/2023. Revisado
em: 11/6/2024. Aceito em: 25/6/2024.
Introdução
N |
ão,
raça não existe enquanto fato concreto. É desprovida de entranhas (Mbembe, 2019). Ainda assim,
tem sido uma maneira bastante eficaz de se distribuir poder. Artimanha através
da qual se inculcou em milhões de homens “[...] o medo, o complexo de
inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo” (Césaire,
2020, p. 25).
“Sou
branco, quer dizer que tenho para mim a beleza e a virtude, que nunca foram
negras. Eu sou da cor do dia...” (Fanon, 2008, p. 56)!
Já o preto, “[...] O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o
preto é feio [...] (Fanon, 2008, p. 106) – “[...] a inominável noite do mundo” (Mbembe,
2019, p. 30). Não inocentemente dizemos que estão todos, negros e brancos, no
delírio!
Ao
buscarmos apontar a nulidade da raça, sob certo ponto de vista, não nos
esquecemos dos seus efeitos, esses sim, concretos e duradouros. Dizer de sua inexistência
significa, antes, apontar sua natureza movediça, fantástica e fantasmagórica. O
foco então passa pelo esforço
Por
uma questão de organização
1
Delírio e Fabulação
Embora
não haja um consenso sobre a etimologia do termo raça, é possível dizer com
alguma segurança que seu significado sempre esteve de alguma forma ligado ao
ato de estabelecer classificações. Num primeiro momento entre plantas e animais
e, somente depois, entre seres humanos, processo que está atrelado a certas
circunstâncias históricas de meados do século XVI, nomeadamente a expansão
capitalista e a descoberta do novo mundo (Almeida, 2019).
O
delírio que a acompanha nasce justamente das designações primarias,
perturbadoras e desequilibradas, que surgem no contato do europeu com os
habitantes desse mundo novo, de um olhar pelo qual cabia a esfera
Essa
ficção, com ares de verdade biológica, alimentada por estórias fantásticas,
vindas do novo mundo, foi responsável pela construção de uma tipologia,
uma classificação, a partir da qual os caracteres físicos e biológicos passam a
hierarquizar os grupos humanos, objetos de estudos a partir dos quais se
chegavam, basicamente, as mesmas conclusões: a superioridade da raça branca,
caucasiana ou ariana, e a inferioridade das demais.
O
darwinismo social[1]
passa a adquirir centralidade no debate racial, quando conceitos como a
sobrevivência dos mais aptos e hereditariedade, aplicados à humanidade,
Sem
existência
Mbembe (2019) explica que o
delírio se organiza diferentemente tendo em vista as conjunturas econômicas e
políticas. Nesse
A
espoliação organizada diz respeito ao tráfico atlântico (séc. XV ao XIX),
quando homens e mulheres da África foram transformados em
Objeto-Mercadoria-Moeda. Sem nome, língua ou história, passaram a pertencer a
outros. Período marcado por massacres, desorganização dos modos de vida e
cultura de inúmeros povos. Já na organização da resistência negra, os
escravizados e escravizadas articulam uma linguagem pela qual
2
A Experiência Negra: aspectos constitutivos da realidade racial brasileira
O
colonialismo rendeu aos povos africanos, a falsificação de si pelo outro, sua
negação enquanto sujeito histórico, um desvio existencial (Fanon,
2008). No transcurso da expansão capitalista a experiência negra ainda
significará o seu sequestro, o porão de um navio fétido, sua escravização e dos
seus descendentes.
Primeiro
fabulou-se, pela repetição sistemática de todas as estórias sobre o novo
mundo, trazidas por aventureiros, exploradores, escritores, o que fez “[...]
surgir o negro enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, passível de
desqualificação moral e de instrumentalização prática” (Mbembe,
2019, p. 61). Depois veio o trabalho forçado, o tráfico negreiro, e todo um
comércio bastante lucrativo que se ergueu a partir dele, e que serviu a própria
acumulação primitiva do capital. Assim, como uma espécie de:
Produto de um
maquinário social e técnico indissociável do capitalismo, de sua emergência e
globalização, esse termo (negro) foi inventado para significar exclusão,
embrutecimento e degradação [...] Humilhado e profundamente desonrado, o negro
é na ordem da modernidade, o único de todos os humanos, cuja carne foi
transformada em coisa e o espírito em mercadoria- a cripta viva do capital (Mbembe, 2019, p.21).
Em
Moura (2020) vemos que sem as colônias e a escravidão negra, a própria
indústria moderna não teria sido possível. Em países como o Brasil, o escravo
se tornou “[...] o esqueleto que sustentava os
músculos e a carne da sociedade escravista” (Moura, 2020, p. 59). Na formação
da sociedade brasileira, foi o negro escravizado o elemento dinamizador de uma
economia latifundiária e colonial, voltada para o mercado mundial - modelo que
se repetiu em outras colônias europeias nas Américas e no Caribe.
Negros
e negras escravizados resistiram fazendo uso de suicídios, fugas, guerrilhas e
insurreições diversas, mas foi, sem dúvida, o quilombo, a unidade básica da
resistência negra no Brasil. “Pequeno ou grande, estável ou de vida precária,
em qualquer região em que existisse
Se
a escravidão serviu às etapas iniciais do capitalismo, a partir de um
determinado momento passa a minar seu desenvolvimento, processo que se encontra
profundamente imbricado à Revolução Burguesa na Inglaterra, à consolidação do
capitalismo industrial e a pressão que o país passa a fazer para a extinção do
tráfico negreiro, o que no Brasil ocorrerá em 1850, com a lei Eusébio de
Queirós.
Entre
os desdobramentos imediatos do fim do tráfico de africanos e africanas
escravizados para terras brasileiras destacam-se dois: A realocação dos
escravizados que aqui já estavam, sobretudo do Norte e
Além
da Lei Eusébio de Queiroz, o escravismo em decadência no Brasil assistirá a Lei
do Ventre Livre de 1871 e a dos Sexagenários, de 1885. A primeira libertou os
recém-nascidos a partir daquela data; a segunda, as pessoas com mais de 60
anos, lembrando que essa libertação
era feita sem que lhes concedessem qualquer recurso, o que se completou com a
Lei áurea de 1888, onde o gesto aparentemente libertador serviu para expulsar
os agora ex-escravos, da sociedade, exonerando
senhores, Estado e Igreja, de qualquer responsabilidade... “[...] que
sobrevivessem como pudessem” (Nascimento, 2016, p. 79).
O
movimento abolicionista merece uma parte, uma vez que, juntamente com os
movimentos de resistência negra à escravidão e a pressão econômica e política
da Inglaterra, tencionou o regime, favorecendo seu ocaso e consolidando nosso
capitalismo dependente. Embora marcada por certa romantização, a campanha
abolicionista não escapou às teorias racistas que aqui chegavam. Dessa forma,
tal qual afirma Moura (2019), não se tratava simplesmente de acabar com a
escravidão, mas de enfatizar a incapacidade dos negros em promover o
desenvolvimento do país, o que não se alterou no13 de maio. O que se viu ganhar
força então foram os estudos e teorias que colocavam em xeque a pluralidade
racial brasileira, que passa a ser percebida como um entrave no caminho de uma
nação que se pensava branca (Munanga, 2020).
O
racismo científico[3]
europeu era a fonte da qual bebiam, o qual defendia a superioridade da raça
branca e inferioridade das demais, sobretudo dos negros, assim como a
degenerescência do mestiço.
Em
Moura (2019) vemos como a decomposição do sistema escravista significou a
marginalização dos ex-escravizados. Por um processo
de peneiramento intencionalmente elaborado, essa mão de obra passa a ser
considerada não aproveitável. Ganha força a defesa do imigrante europeu, que ao
fim e ao cabo, assumiria os postos de trabalho no país. O bônus viria
O
branqueamento prescrito por estudiosos e eugenistas brasileiros acabou por
dificultar a construção de uma identidade negra positiva, alienando, dividindo
e elegendo tipos superiores e inferiores
A
mestiçagem ainda serviria de base
Almeida (2019) faz um
paralelo interessante entre a meritocracia e o racismo nas sociedades modernas,
e ao fazê-lo oferece uma chave para a compreensão de nossa pretensa democracia
racial. Entende-se que tanto quanto a ideologia do mérito, essa funcionaria
como um mecanismo de estabilização política, afinal, se não se integram, se em
empregos e posições subalternas, isso se deve aos próprios negros, já que aqui
não existe preconceito. Há só uma raça humana. Somos todos iguais,
etc. Assim, pela ideia da democracia racial, contrabalanceamos “[...] parâmetros
culturais baseados em ideologias universalistas, cosmopolitas e, portanto,
politicamente impessoais, neutras e pautadas pela igualdade formal” (Almeida, 2019,
p. 51) com a marginalização de todo um contingente racial. Completa o autor:
No Brasil, a negação do racismo e a
ideologia da democracia racial sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se
não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que,
eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance. Em um país desigual
como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência,
pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação
racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto brasileiro, o
discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação
ideológica dos indivíduos à desigualdade racial (Almeida, 2019, p. 51).
Uma
vez que a superioridade econômica e racial foi estabelecida pela desumanização
(a negação do outro, a fabulação, o empobrecimento ontológico), procede-se seu
enquadramento e seu controle. Ao invés de destruir a cultura dos africanos e
descendentes, deram-lhe um valor e um significado menor. Nesse mesmo caminho,
todo um imaginário social, repleto de estereótipos associados à raça, segue
sendo alimentado. O resultado é uma sociedade que se torna indiferente ao modo
como determinados grupos raciais detêm privilégios (Almeida, 2019).
O
negro não existe de fato. O branco também não. Estamos à vontade para assim
afirmarmos, tendo já discutido a inexistência da raça em momento anterior nesse
artigo. Trata-se no primeiro caso de um mecanismo de atribuição. Já no segundo,
algo mais próximo de uma auto ficção. Delírios a parte, temos ciência da
reapropriação política que a luta antirracista fez do termo negro, e a
consideramos essencial, do ponto de vista existencial. Isto porque através dela
ousou driblar justamente sua desumanização, devolver aos povos de origem
africana sua história, proporcionar-lhes unidade e uma linguagem. Sem esse
aspecto, o próprio questionamento de seu status econômico e político não teria
sido possível. Esse movimento engloba desde o Black is
Beautiful
No
Brasil esse espírito já está presente nos primeiros anos do século XX, tendo o
país abolido a escravidão a pouco. Um movimento negro, ainda disperso,
Uma
mudança de chave vem mesmo a partir dos anos de 1970, quando presenciamos seu
amadurecimento. Alia-se a partir de então, o resgate dos vínculos históricos,
culturais e políticos dos negros brasileiros com a diáspora africana, as
questões de ancestralidade, consciência e identidade, com uma postura
propositiva e questionadora quanto às formas e possibilidades de enfrentamento
ao racismo no presente, pelo entendimento de sua imbricação com as
desigualdades sociais.
Assim,
que em 18 de junho de 1978 é criado o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Étnico-Racial (MUCDR). Depois rebatizado como Movimento Negro
Unificado (MNU) - uma organização de caráter nacional, que elege a Educação e o
trabalho como pautas fundamentais na luta contra o racismo (Gomes, 2017).
Muitos
intelectuais negros, militantes dos movimentos negros, são a partir de então
formados. Nomes como Lélia González, Luiza Bairros, Abdias Nascimento, Carlos Hasenbalg, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, dentre
outros, que passam a atuar em prol da tomada de consciência das realidades
econômicas e sociais vivenciadas pela população negra brasileira.
Alguns
marcos nessa luta merecem ser citados, ainda que rapidamente: A Marcha Nacional
Zumbi dos palmares, em 1995, contra o racismo, pela cidadania e a vida; A
participação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatadas de intolerância,
promovida pelas Organizações das Nações unidas (ONU), em Durban, África do Sul,
em 2001 (quando o Brasil assumi o compromisso de pensar ações afirmativas; A
criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em
2003; A Lei 10.639 é sancionada em 2003, tornando obrigatório o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas; O Estatuto da
Igualdade racial em 2010
A
luta não para por aí, uma vez que a exploração e a discriminação também se
repõem. Não nos escapa os mecanismos de manutenção do status quo implementados
na fase contemporânea do capitalismo, sob o neoliberalismo e a reestruturação
produtiva, bem como suas particularidades na periferia do sistema: o apelo ao
empreendedorismo, a precariedade dos trabalhadores de aplicativos, as novas
formas de controle sobre o trabalho, entendendo que raça e racismo continuam a
atuar de forma que do corpo negro e não-branco, em sua medida, retire-se a mais
polpuda mais-valia.
Esse
sujeito moeda-mercadoria da aurora do
capitalismo, hoje é também o sujeito da
dívida, como lembra Mbembe (2019), essa que
captura os Estados Nacionais e força medidas de ajuste fiscal, em favor do
grande capital, mas que implica mais insegurança, menor autodeterminação, a
contingentes cada vez maiores de trabalhadores.
O
Estado do presente, a política e a economia do presente, precisam preencher
nossas análises. É preciso saber a direção que o navio está nos levando, tendo
em mente que o nosso norte é o universalismo
verdadeiro, quando enfim o negro, como conjunto de complexos e dramas
existenciais e materiais, haverá de ser superado, assim como o branco, na
condição de referência humana primordial, também (Fanon,
2008).
No
que diz respeito à realidade brasileira, há muitas taras e sequelas a se discutir, bem como movimentos e vozes da
resistência negra a apontar. Interessa-nos, sobretudo o lugar da mulher negra
nessa luta.
3
Mulher Negra e Interseccionalidade
No
artigo Nossos Feminismos Revisitados,
um clássico, Luiza Bairros aponta a fragilidade das análises feministas que
insistem em interpretar a opressão sexista sob um viés universalista e
questiona: “Numa sociedade racista, sexista, mareada por profundas
desigualdades sociais, o que poderia existir de comum entre mulheres de
diferentes grupos raciais e classes sociais”? (Bairros, 1995, p. 458).
Sem
oferecer exatamente uma resposta, mas instigando a compreensão dos limites
colocados pela realidade concreta, a autora propõe um caminho, inspirada na
obra de Judith Grant (1991) pelo qual apresenta as três correntes mais
conhecidas do feminismo: radical, liberal e socialista; que, ao partir dos
conceitos de Mulher, Experiência e Política Pessoal, lograram definir uma
comunidade, e estabelecer sua base política, porém lhes escapou, na organização
de sua teoria, captar o que de fato nos une enquanto mulheres, e o que nos
diferencia. Isso não parecia algo essencial, em nome do quê facilmente as
experiências demarcadas, pertencentes a um tipo particular (a mulher branca de
classe média ou alta), puderam ser assumidas como que de todas.
No
que se refere ao conceito Mulher, uma dimensão sexual e/ou de gênero nos
levaria para o questionamento de uma pretensa natureza feminina, contraposta e
subalterna à masculina, uma espécie de eterno outro em relação ao homem, a quem
cabe o lugar de referência. Essa natureza estaria associada a ideia de
delicadeza, à fragilidade, à emoção. Mas até que ponto esse discurso alcança
todas as mulheres? Sojourner Truth,
uma ex- escravizada norte-americana, já apontava suas
falhas em 1851: Ela, forte como um homem, acostumada a lida pesada no campo, a
quem nunca coube proteção, não era então uma mulher?
O conceito de
Experiência, por outro lado, definiria como opressiva qualquer situação que a
mulher defina como tal. Mas uma vez que as condições de politização dessas
experiências não são iguais (o acesso aos meios de propagação de ideias), o que
ocorre
Uma
ênfase na experiência levou a afirmação de que o pessoal é político, lema
abraçado pelo chamado feminismo de segunda onda, em fins década de 1960, e que
acabava por insinuar que os problemas enfrentados pelas mulheres, no geral,
seriam basicamente de ordem pessoal. Mas políticas são as relações de poder que
estruturam a sociedade, onde a diferença sexual, em conjunto com outras
opressões, manifesta-se.
Embora
a autora assuma que algumas expressões do feminismo
apresentem algum avanço nessa direção, dando margem a fórmulas conhecidas (os termos dupla ou tripla opressão;
aquele velho: no caso da mulher
hooks (2019), ao afirmar
justamente como o foco em um sujeito abstrato, Mulher, apaga as diferenças
entre as mulheres com contextos sócio-históricos específicos, questiona até que
ponto seria razoável aceitar que feministas que escrevem apenas sobre a realidade
das mulheres brancas, mas que as abordam sob um viés generalizante, não
enxergam a brancura da imagem.
A
questão que se abre sob essa crítica é, sobretudo, sobre uma não observância da
realidade vivenciada por outros grupos de mulheres, como as mulheres indígenas
e as mulheres negras, por exemplo, cujas “[...] demandas
específicas [...] não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da
questão de gênero” (Carneiro, 2003, p. 119).
Critica
similar também pode ser direcionada aos movimentos antirracistas, caso
desconsiderem as particularidades inscritas nas vidas das pessoas negras. Uma
vez que entendamos a natureza plasmática da raça, nos movemos com maior
propriedade pelas dimensões de branquitude, identidade negra, mestiçagem, que
não se manifestam da mesma forma, nos diferentes países, regiões ou mesmo no
espaço de uma cidade. Vidas negras ainda
são atravessadas pela condição social, cultural, e pelo gênero. O racismo nos
atravessa a todos, mas não da mesma forma.
A
reunião de um feminismo branco e um movimento antirracista, descompromissado
com as análises de cunho sexual e/ou de gênero, fez com que González (2020)
denunciasse um não lugar para a mulher negra no movimento social brasileiro
Sem
o entendimento de como gênero inscreve o corpo racializado,
ou de como raça imprime uma experiência de gênero com outros significados, não
se alcança a lógica salarial do mercado de trabalho, em que mulheres negras
seguem na base da pirâmide, recebendo menos que a mulher branca e o homem
negro. Igualmente não se compreende as desigualdades no que se refere ao acesso
à aposentadoria, quando mulheres negras apresentam maior dificuldade em acessar
um trabalho formal (lembremos de toda resistência envolvida na regularização do
trabalho doméstico no Brasil, onde são maioria). Ou porque são as maiores
vítimas de violência obstétrica. Ou ainda, como
padrões de beleza e feminilidade associado à brancura, e sua publicização pelas
várias mídias, repercutem na
Mulheres
negras têm suas experiências de vida marcadas pelo racismo, pela ficção da
raça, que repercute estruturas e subjetividades. O ser mulher, nessa condição,
lhes rendeu o lugar de outro do outro, tal qual afirma Kilomba (2019), ou mesmo outsider within, forasteira de dentro, quando nos lugares não designados para
elas, como apresentado por Collins (2016). Nesse sentido, suas experiências
nunca são consideradas de fato. Não pertencem. E esse não pertencimento ou
estranhamento lhes rendem análises bem particulares.
Essas
e outras questões demarcam a necessidade de pensar ferramentas teóricas que
deem conta de evidenciar a complexidade que envolve a vivência de opressões
simultâneas, terreno de onde surge a Interseccionalidade, construída no
interior do Feminismo Negro, a que Akotirene (2020)
celebra como ferramenta ancestral. Reflete, para a autora, a sensibilidade
analítica das feministas negras, por perceberem que suas experiências e
reivindicações eram inobservadas tanto por um feminismo branco quanto por um
movimento antirracista. Permite, sobretudo, a tomada de consciência quanto aos
efeitos da “[...] colisão das estruturas, a interação simultânea das avenidas
identitárias [...]” (Akotirene, 2020, p. 19), a
partir da compreensão da inseparabilidade entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado[5].
O
uso político da ideia da Interseccionalidade pelo Feminismo Negro merece uma
parte. Isso porque trouxe à tona as implicações do racismo e do sexismo para a
vida das mulheres negras, seu déficit social, a precariedade e desvantagem em
relação a outros grupos. Conforme afirma Carneiro (2003), no que diz respeito à
realidade brasileira, essa compreensão engendrou formas de resistência e
superação igualmente contundentes, com as mulheres negras organizando- se em
torno de pautas específicas. Destacam-se, dentre outras elencadas pela autora:
a busca pelo reconhecimento da necessidade de políticas específicas para a
equalização das oportunidades sociais; o reconhecimento da dimensão racial da
pobreza no Brasil, e corte racial na problemática da feminização da pobreza; o
reconhecimento da violência simbólica e a opressão advindos de um padrão
estético branco sobre as mulheres negras, e, nesse caminho, o esforço em torno
da afirmação de uma identidade positiva[6].
4
Mulher Negra: representação na sociedade brasileira
Atentemo-nos
aos versos...
“Não
vi em minha vida a formosura,
Ouvia falar nela a cada dia,
E ouvida me
incitava, e me movia
A querer ver tão
bela arquitetura.
Ontem a vi por minha
desventura
Na cara, no bom ar,
na galhardia
De
uma mulher, que em anjo se mentia,
De
um sol que se trajava em criatura”.
E
do mesmo poeta, esses outros...
“Achei Anica na fonte
Lavando sobre uma
pedra[...]
Depois de ter feito
conchavo
Passei o dia com ela,
Eu deitado a uma
sombra,
Ela batendo na pedra
Tanto deu, tanto
bateu
Co’a
barriga, e co’as cadeiras
Que me deu a anca
fendida
Mil tentações de
fodê-la”.
Ambos
pertencem ao poeta baiano Gregório de Mattos (1633-1696), a famosa boca do inferno[7].
No primeiro poema volta-se para uma mulher branca, no segundo, uma mulher
negra. Inicialmente, sua poesia é comovente, respeitosa, elogiosa, para então
se tornar libidinosa e escrachada. A
figura número um é inacessível, idealizada (um anjo!). Aquela dos versos
seguintes é justamente o oposto (uma tentação!). Representam formas de
ver. Especificamente ao falarmos de
mulher negra, essa imagem sustenta e naturaliza uma dominação e exploração, que
articula em um mesmo olhar, racismo e sexismo, que no espaço e tempo histórico
brasileiro têm se traduzido em uma sucessão de personagens hipersexualizadas.
Embora a nossa escolha tenha sido por Gregório de Mattos, outros poetas
(barrocos, românticos e mais), além dos textos escritos em prosa[8],
no decorrer dos séculos que se passaram, poderiam facilmente ocupar o seu
lugar.
Conforme
afirma Souza (2021) a hipersexualização de corpos negros é parte do mito negro,
cuja mensagem ideológica é a existência de uma natureza negra, que teria como
características o irracional, o superpotente, o exótico, ao mesmo tempo em que
nega a contradição, a política e a história, dimensões humanas complexas (o tal
empobrecimento ontológico). O preto, destaca Fanon
(2008), é fixado no genital, por um fenômeno de projeção do branco,
civilizado demais para dar conta das próprias taras, deposita-as então no
outro. Já em hooks
(2019) vemos como tal processo implicou em uma sexualidade negra desviante, que
marca profundamente a forma como somos vistos e como nos vemos.
Essa
hipersexualização para ser eficaz precisa ser constantemente repetida, parte da
fabulação inerente a fabricação dos sujeitos raciais. Contribui para isso, a
literatura (como na poesia que abre esse tópico), a música, o cinema, e no caso
do Brasil, as novelas, consumidas massivamente, de onde erigem- se
estereótipos, que “[...] como ficções, são criados para servir como
substitutos, postos no lugar da realidade" (hooks,
2019, p. 303).
Em
Xica da Silva, novela exibida em 1996, pela extinta TV Manchete, a
protagonista, vivida por Taís Araújo, é uma negra escravizada do século XVIII,
que vive no antigo Arraial do Tijuco, hoje a cidade mineira de Diamantina. Ela
torna-se amante do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, deixa a
escravidão e passa a viver uma vida luxuosa, o que lhe rende o título de
Isauras contribuem para a
manutenção de um imaginário que cotidianamente reproduz a ideia de uma
branquitude carregada de um valor intrínseco e mágico. Mulheres brancas
representariam pureza, beleza, poder ao homem que se relaciona com elas. Xicas da Silva, por outro lado, reforçam estereótipos que
conferem a mulher negra o lugar do corpo acessível, a quem não cabe beleza, que
é branca, mas que pode ser exótica e quente. Essa forma de ver, como outras a
que fomos submetidas, servem para escamotear a realidade da qual emergem.
González
(2020) nos ajuda a entender esse processo ao relembrar o papel desempenhado
pela mucama durante o Brasil colônia, que envolvia os afazeres domésticos da
casa grande, mas que também passava pela cama do senhor, que detinha poder
sobre seu corpo. A manipulação e a violência sexual eram parte do cotidiano da
mulher negra escravizada, de onde teria surgido o mito da mulata, nas palavras da autora: “[...] de que ela é mulher
fácil, de que é boa de cama, etc. e tal” (González, 2020, p. 202). Embora algumas
produções na mídia nacional demarquem esse olhar de forma mais acentuada, como
no caso da Xica, outras conseguirão ser um pouco mais sutis.
É
o caso da novela exibida pela rede Globo em 2004, protagonizada novamente pela
Taís Araújo (o número pequeno de atrizes e atores negros é algo que também
devemos considerar), cuja hipersexualização parece restringir-se ao título,
mais do que sugestivo: Da Cor do Pecado. Isso porque sua protagonista, a Preta,
é a mocinha da trama, bastante humanizada. Contudo, não deixa de ser uma
tentação para o homem branco, que ao se relacionar com ela, foge do seu destino
natural.
Em
produção mais recente, mesmo o título conseguiu ser mais escrachado. Em Sexo e
as Nega, série de 2014, vê-se o reforço de uma série de estereótipos raciais,
ligados a pobreza e a submissão, além de cenas repletas de racismo e sexismo
pouco problematizadas. A estética negra é frequentemente ridicularizada
(sobretudo o cabelo de uma das protagonistas). Há, ainda, inúmeras passagens de
assédio envolvendo homens brancos em posição de poder e as mulheres negras da
série, seja quando no papel de empregada doméstica, ou sambando
profissionalmente em um evento. As quatro protagonistas não escapam do mito da mulata, que
Pessoas
negras ao consumirem mídia de massa no Brasil tiveram que lidar historicamente
com a negação da negritude. Em um primeiro momento pela baixa participação
geral, de literalmente não nos enxergarmos nas telas, em seguida por uma
representação estereotipada. Araújo (2004) lembra os poucos trabalhos em que
atores e atrizes negros estiveram em papéis principais, de protagonistas ou
antagonistas. Lembra ainda que se o personagem criado pelo autor não for
escrito explicitamente como negro, é o ator branco que tenderá a ser escolhido.
Só têm uma oportunidade se existirem evidências da necessidade de um ator ou
atriz negros, se há
Além
da literatura, novelas, séries e filmes, é preciso que citemos também as
músicas que reforçam a hipersexualização da mulher negra. O destaque fica para
aquelas consumidas no carnaval, com letras como Nega do cabelo duro, de
Luiz Caldas, que como poucas, articula racismo e sexismo, indo da
ridicularização do nosso cabelo, à referência da cor de nossas partes
Do
carnaval ainda temos a figura icônica da globeleza, que por mais de uma década,
entrou na casa de milhões brasileiros, anunciando a festa, com toda sua mulatisse.
A
hipersexualização representa uma forma, entre outras, de desumanização de
corpos negros. E a figura sobre a qual discutimos aqui é a mulher negra, mais
especificamente sobre como sua imagem hipersexualizada
é reproduzida. Mas é importante delimitar alguns limites. Nem
Conclusão
O
delírio racial não pode ser compreendido sem que mergulhemos em toda a ordem de
necessidades impostas pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido,
colonialismo e escravidão negra compõem mediações necessárias a acumulação
primitiva, em nome do que o negro foi criado, o que implicou a criação do
branco também. Para a invenção do primeiro incorreram na negação de sua
humanidade - sem o que sua transformação em moeda, em burro de carga,
não teria sido possível; no que se refere ao segundo, uma superioridade autoproclamada
sustentaria - se no escamoteamento de processos
históricos, trocas comerciais e culturais, assumindo a brancura um valor em si
mesma.
Ao
pensarmos na formação social brasileira, lembramos que negros e negras (esses
inventados) construíram, com sua força de trabalho, esse país. Contudo, foram
acusados de problema nacional, num contexto permeado pelo racismo científico, e
consequente decretação da inviabilidade de um país em que compunham grande
parte da população. O esforço, no sentido de minimizar sua presença e
relevância, passou pelo incentivo a imigração europeia, a miscigenação e
branqueamento, até a constituição do mito de uma democracia racial no país. Do
lado de cá organizamos a resistência: fugas, rebeliões, quilombos. Mais tarde,
uma imprensa, teatro, Movimento Negro Unificado, a partir do qual a denúncia do
racismo, a conformação de uma identidade negra positiva, viria acompanhada da
defesa de políticas públicas, que fizessem frente as desigualdades estruturais
entre negros e brancos no Brasil.
As
experiências vivenciadas pelas mulheres negras nessa realidade assumem
particularidades inscritas no cruzamento das opressões raciais e de gênero,
imputando a elas piores condições de vida, no trabalho, nas relações amorosas.
Há
um antigo ditado retomado por González (2020) que diz: preta para cozinhar,
mulata para fornicar e branca para casar. A mídia
brasileira vem reforçando e alimentando essa forma de ver, o que por outro lado
nos forçou também a treinar o nosso olhar. Entidades do movimento negro e
feministas negras, especialmente, têm buscado denunciar e politizar essas
imagens, construindo aquilo que hooks (2019) chama de
olhar opositor. Ao mesmo tempo artistas e diretores/as brasileiros também se
veem desafiados a repensar a forma como somos representados, no esforço de
contar outras histórias, sendo que já se pode apontar em produções mais
recentes, maior participação negra, e, o que é mais importante: personagens
complexos, melhor construídos, e que escapam das
figuras repetidas. Representar a realidade já é um passo imenso, mas descobriu-
se que não é necessário nos prendermos a ela. Cabe licença poética também no
que se refere a negros e negras.
Referências
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Editora Cobogó, 2019.
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Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2019.
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da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1. ed. Rio de
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Bárbara SEPÚLVEDA
Graduada
em Serviço Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES/MG).
Mestra em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES. Doutora pelo programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Pesquisadora das temáticas que se relacionam com as políticas sociais e
relações étnico-raciais e de gênero no Brasil. Professora no curso de Serviço
Social da UNIMONTES.
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*© A(s)
Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto. Esta obra está licenciada sob os
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que comercial. O licenciante não pode
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[1]
Refere-se à importação da teoria evolucionista de Darwin, do mundo natural para
o das sociedades humanas; usado para legitimar cientificamente a superioridade
racial dos brancos perante os demais grupos.
[2] A
islamofobia talvez seja o melhor exemplo nesse sentido.
[3] Conjunto de teses
pseudocientíficas popularizadas no século XIX, que predizia da existência de
uma hierarquia racial, com brancos tidos como superiores, atrás de quem
seguiriam os demais, com negros africanos e aborígenes australianos na base.
[4] Há
mulheres que lutaram e lutam pelo direito à contracepção ou mesmo o direito ao
aborto, sendo que há outras para as quais se dirige o discurso da esterilização
forçada, para quem a maternidade é negada.
[5] Diz
respeito a interação dos elementos “Cis”, referente à identidade de gênero
coincidente com o sexo; “Hetero”, orientação sexual voltada para o sexo oposto
e “Patriarcado”, como sistema de dominação masculina, a fim de demarcar uma
configuração estrutural e identitária, que denota vantagens e privilégios para
aqueles que dela compartilham, em termos sociais, culturais e políticos.
[6] Com Collins (2019) entendemos o lugar
da autodefinição para as mulheres negras, como algo essencial a sua própria
sobrevivência, tendo em vista contextos marcados pelo racismo, histórias e
estereótipos que preenchem o imaginário social, e que repercutem perda de
oportunidades reais. A autodefinição implica no conhecimento e negação dos
papeis históricos atribuídos a nós, e a construção de outras possibilidades
enquanto sujeitas de nossa própria história.
[7] Para ver mais, acessar https://mafua.ufsc.br/2003/o-preconceito-racial-na-obra-de-gregorio-de-matos/. Acesso em: 10 jul. 2024.
[8] Um
bom exemplo nessa direção vem através de obras como as do pré-modernista
Monteiro Lobato ou ainda as do naturalista Aluísio Azevedo.