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Raça, um delírio: racismo e sexismo na sociedade brasileira

 

Race, an delusion: racism and sexism in Brazilian Society

 

Bárbara SEPÚLVEDA*

Universidade Estadual de Montes Claros, Departamento de Política e Ciências Sociais,

Curso de Serviço Social, Montes Claros, MG, Brasil.

e-mail: barbaratsb123@gmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-5345-9021

 

Resumo: Que é raça? Como se relaciona aos processos de desenvolvimento do capitalismo, ao sexo/gênero no sentido de estruturar tal estado de coisas, em que a alguns é reservado melhores condições e oportunidades, enquanto a outros, brutalidade, subalternidade? Ao designá-la sob a lógica do delírio, esperamos decretar sua nulidade do ponto de vista biológico, ao mesmo tempo, demarcar sua natureza ideológica ou mesmo neurótica. Interessa-nos compreender como tal delírio se manifesta na realidade brasileira, tendo em vista a questão colonial e o lugar do escravismo na formação do país.  Para o problema proposto fizemos uso de uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico. Nos orientou estudos e teoria que versam sobre os processos históricos de racialização e desumanização dos negros e negras na diáspora, incluída a epistemologia feminista negra, sobretudo pela ferramenta Interseccionalidade.      

Palavras-chave: Raça. Formação Social Brasileira. Interseccionalidade. Mulher Negra.

 

Abstract: What is race, and how does it relate to the development processes of capitalism, and to sex/gender in the sense of structuring the state of things, in which better conditions and opportunities are reserved for some, while for others there is only brutality and subalternity? By designating it as a delusion we hope to declare it as null from a biological point of view, and to demarcate its ideological or even neurotic nature. Considering the issue of colonialism and the place of slavery in the formation of the country, we are interested in understanding how such a delusion manifests itself in the Brazilian reality.  Intersectionality and qualitative bibliographic research was employed. This led to studies and theory that deal with the historical processes of the racialisation and dehumanisation of Black men and women within the diaspora, and includes Black feminist epistemology.

Keywords: Race. Brazilian social formation. Intersectionality. Black woman.

 

Submetido em: 30/10/2023. Revisado em: 11/6/2024. Aceito em: 25/6/2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Introdução

 

N

ão, raça não existe enquanto fato concreto. É desprovida de entranhas (Mbembe, 2019). Ainda assim, tem sido uma maneira bastante eficaz de se distribuir poder. Artimanha através da qual se inculcou em milhões de homens “[...] o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo” (Césaire, 2020, p. 25).

 

“Sou branco, quer dizer que tenho para mim a beleza e a virtude, que nunca foram negras. Eu sou da cor do dia...” (Fanon, 2008, p. 56)! Já o preto, “[...] O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio [...] (Fanon, 2008, p. 106) – “[...] a inominável noite do mundo” (Mbembe, 2019, p. 30). Não inocentemente dizemos que estão todos, negros e brancos, no delírio!

 

Ao buscarmos apontar a nulidade da raça, sob certo ponto de vista, não nos esquecemos dos seus efeitos, esses sim, concretos e duradouros. Dizer de sua inexistência significa, antes, apontar sua natureza movediça, fantástica e fantasmagórica. O foco então passa pelo esforço em entender como se forja a diferença, no sentido de uma hierarquização, e toda a cadeia de mediações das quais se utiliza para produzir incessantemente o feio e o belo, o rico e o pobre, o civilizado e o selvagem, sociedades de abundância, sociedades de escassez, corpos dignos de amor, corpos para os quais o amor é negado, a quem a boa aparência lhe garante boas colocações no mercado de trabalho, e a quem resta o subemprego, o lugar sempre da doméstica, quando não do suspeito.

 

Por uma questão de organização didático-textual dividimos o artigo em questão em quatro seções. Na primeira, Delírio e Fabulação, buscamos problematizar e categorizar raça, enquadrá-la histórico e contemporaneamente; Já na segunda seção, A Experiência negra: aspectos constitutivos da realidade racial brasileira, o esforço é de relacionar a particularidade nacional com uma experiência negra mais geral, determinada pelos processos de expansão capitalista e pelo colonialismo; segue-se para Mulher Negra e Interseccionalidade, a fim de demonstrar o caráter relacional  do racismo tendo em vista outras estruturas de opressão. Por fim, em Mulher Negra: representação na sociedade brasileira, visamos evidenciar os discursos correntes sobre a mulher negra no Brasil, veiculados na literatura, novelas e músicas.

 

1 Delírio e Fabulação

 

Embora não haja um consenso sobre a etimologia do termo raça, é possível dizer com alguma segurança que seu significado sempre esteve de alguma forma ligado ao ato de estabelecer classificações. Num primeiro momento entre plantas e animais e, somente depois, entre seres humanos, processo que está atrelado a certas circunstâncias históricas de meados do século XVI, nomeadamente a expansão capitalista e a descoberta do novo mundo (Almeida, 2019).

 

O delírio que a acompanha nasce justamente das designações primarias, perturbadoras e desequilibradas, que surgem no contato do europeu com os habitantes desse mundo novo, de um olhar pelo qual cabia a esfera humana apenas o que fosse refletido no espelho (Mbembe, 2019).

Essa ficção, com ares de verdade biológica, alimentada por estórias fantásticas, vindas do novo mundo, foi responsável pela construção de uma tipologia, uma classificação, a partir da qual os caracteres físicos e biológicos passam a hierarquizar os grupos humanos, objetos de estudos a partir dos quais se chegavam, basicamente, as mesmas conclusões: a superioridade da raça branca, caucasiana ou ariana, e a inferioridade das demais.

 

O darwinismo social[1] passa a adquirir centralidade no debate racial, quando conceitos como a sobrevivência dos mais aptos e hereditariedade, aplicados à humanidade, circulam nos meios científicos. “Esse saber sobre as raças implicou, por sua vez, um ‘ideal político’, um diagnóstico sobre a submissão ou possível eliminação das raças inferiores” (Schwarcz, 2010, p. 20). A raça passa, então, a estar na “[...] origem de inúmeras catástrofes, [...] causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres" (Mbembe, 2019, p. 13).

 

Sem existência em si, para se manifestar no plano real, e permitir tal hierarquização e toda violência correspondente, raça dependeu, num primeiro momento, daquelas designações primárias. Uma vez bem realizado o trabalho de fabulação, o cariz científico do qual se revestiu, funciona como depósito de onde os dominadores retiram as justificativas para suas ações, que vão desde a religião, o clima, o formato de crânios, e outras tantas, para a existência de sujeitos naturalmente superiores e inferiores.

 

Mbembe (2019) explica que o delírio se organiza diferentemente tendo em vista as conjunturas econômicas e políticas. Nesse sentido, aponta ao menos três períodos marcantes: o da espoliação organizada; o da organização da resistência negra; a era pós-imperial.

 

A espoliação organizada diz respeito ao tráfico atlântico (séc. XV ao XIX), quando homens e mulheres da África foram transformados em Objeto-Mercadoria-Moeda. Sem nome, língua ou história, passaram a pertencer a outros. Período marcado por massacres, desorganização dos modos de vida e cultura de inúmeros povos. Já na organização da resistência negra, os escravizados e escravizadas articulam uma linguagem pela qual reivindicam o estatuto de sujeitos, e cujo marco seria a independência do Haiti, fechando o período com o fim do apartheid sul-africano nos últimos anos do século XX. O último período seria o do capital financeiro, do neoliberalismo, das dívidas estruturalmente insolúveis. Tempo em que, segundo Mbembe (2019), não há mais trabalhadores propriamente ditos, mas tão somente nômades do trabalho.  Diz respeito à realidade contemporânea, seu culto a imagem, ao reino do curto prazo e dos algoritmos. Tempo em se virilizam as discriminações cotidianas, com grande potencial de mobilização e denuncia (sobretudo em virtude das redes sociais), de apelo a representatividade e a diversidade, de questionamento a supremacia branca. Mas também, tempo em que crescem a xenofobia e novas formas de racismo (racismo sem raças![2]), que conferem aos Estados, maior poder coercitivo (esquadrinhamento ideológico, torturas extrajudiciais). Crescem, ainda, movimentos nazifascistas, assim como o ódio que lhes são característicos. O delírio não cessa.

 

           

2 A Experiência Negra: aspectos constitutivos da realidade racial brasileira

 

O colonialismo rendeu aos povos africanos, a falsificação de si pelo outro, sua negação enquanto sujeito histórico, um desvio existencial (Fanon, 2008). No transcurso da expansão capitalista a experiência negra ainda significará o seu sequestro, o porão de um navio fétido, sua escravização e dos seus descendentes.

 

Primeiro fabulou-se, pela repetição sistemática de todas as estórias sobre o novo mundo, trazidas por aventureiros, exploradores, escritores, o que fez “[...] surgir o negro enquanto sujeito racial e exterioridade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática” (Mbembe, 2019, p. 61). Depois veio o trabalho forçado, o tráfico negreiro, e todo um comércio bastante lucrativo que se ergueu a partir dele, e que serviu a própria acumulação primitiva do capital. Assim, como uma espécie de:

 

Produto de um maquinário social e técnico indissociável do capitalismo, de sua emergência e globalização, esse termo (negro) foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação [...] Humilhado e profundamente desonrado, o negro é na ordem da modernidade, o único de todos os humanos, cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria- a cripta viva do capital (Mbembe, 2019, p.21).

 

Em Moura (2020) vemos que sem as colônias e a escravidão negra, a própria indústria moderna não teria sido possível. Em países como o Brasil, o escravo se tornou “[...] o esqueleto que sustentava os músculos e a carne da sociedade escravista” (Moura, 2020, p. 59). Na formação da sociedade brasileira, foi o negro escravizado o elemento dinamizador de uma economia latifundiária e colonial, voltada para o mercado mundial - modelo que se repetiu em outras colônias europeias nas Américas e no Caribe.

 

Negros e negras escravizados resistiram fazendo uso de suicídios, fugas, guerrilhas e insurreições diversas, mas foi, sem dúvida, o quilombo, a unidade básica da resistência negra no Brasil. “Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região em que existisse escravidão, lá se o encontrava, como elemento de desgaste do regime servil” (Moura, 2020, p. 159). Quanto aos proprietários e mercadores, sua prática era o tratamento cruel e a exploração brutal. Nascimento (2016) lembra as deformações físicas, resultantes do excesso de trabalho pesado, aleijões decorrentes de punições e torturas, por fim, a própria morte era bastante comum. No caso das mulheres negras escravizadas, o estupro e a servidão sexual demarcavam uma experiência negra na intersecção com o gênero.

 

Se a escravidão serviu às etapas iniciais do capitalismo, a partir de um determinado momento passa a minar seu desenvolvimento, processo que se encontra profundamente imbricado à Revolução Burguesa na Inglaterra, à consolidação do capitalismo industrial e a pressão que o país passa a fazer para a extinção do tráfico negreiro, o que no Brasil ocorrerá em 1850, com a lei Eusébio de Queirós.

 

Entre os desdobramentos imediatos do fim do tráfico de africanos e africanas escravizados para terras brasileiras destacam-se dois: A realocação dos escravizados que aqui já estavam, sobretudo do Norte e Nordeste, em direção as lavouras de café do Sudeste; A realocação de capitais, que antes movimentavam o tráfico, e que passam a ser investidos em outras áreas da economia nacional, como bancos, linhas férreas, companhias de navegação a vapor, dentre outros empreendimentos. A proibição do tráfico negreiro significou ainda a impossibilidade do prolongamento da escravidão por muitas gerações, já que dificultou a substituição do estoque existente (Moura 2020).

 

Além da Lei Eusébio de Queiroz, o escravismo em decadência no Brasil assistirá a Lei do Ventre Livre de 1871 e a dos Sexagenários, de 1885. A primeira libertou os recém-nascidos a partir daquela data; a segunda, as pessoas com mais de 60 anos, lembrando que essa libertação era feita sem que lhes concedessem qualquer recurso, o que se completou com a Lei áurea de 1888, onde o gesto aparentemente libertador serviu para expulsar os agora ex-escravos, da sociedade, exonerando senhores, Estado e Igreja, de qualquer responsabilidade... “[...] que sobrevivessem como pudessem” (Nascimento, 2016, p. 79).

 

O movimento abolicionista merece uma parte, uma vez que, juntamente com os movimentos de resistência negra à escravidão e a pressão econômica e política da Inglaterra, tencionou o regime, favorecendo seu ocaso e consolidando nosso capitalismo dependente. Embora marcada por certa romantização, a campanha abolicionista não escapou às teorias racistas que aqui chegavam. Dessa forma, tal qual afirma Moura (2019), não se tratava simplesmente de acabar com a escravidão, mas de enfatizar a incapacidade dos negros em promover o desenvolvimento do país, o que não se alterou no13 de maio. O que se viu ganhar força então foram os estudos e teorias que colocavam em xeque a pluralidade racial brasileira, que passa a ser percebida como um entrave no caminho de uma nação que se pensava branca (Munanga, 2020).

 

O racismo científico[3] europeu era a fonte da qual bebiam, o qual defendia a superioridade da raça branca e inferioridade das demais, sobretudo dos negros, assim como a degenerescência do mestiço.

 

Em Moura (2019) vemos como a decomposição do sistema escravista significou a marginalização dos ex-escravizados. Por um processo de peneiramento intencionalmente elaborado, essa mão de obra passa a ser considerada não aproveitável. Ganha força a defesa do imigrante europeu, que ao fim e ao cabo, assumiria os postos de trabalho no país. O bônus viria através da expectativa de que os que aqui chegassem se misturassem com a população local, e provocasse seu gradual embranquecimento. O mestiço serviria para algo afinal. Um passaporte, um atalho, a forma pela qual reorganizamos as teorias racistas ao nosso favor. Ao negro restava o velho e falso dilema, já exposto por Fanon (2008), branquear ou desaparecer, já que o mundo branco, o único legítimo, estava fechado para ele. A questão estrutural, que o autor considera o problema verdadeiro, seguiria escamoteada.

 

O branqueamento prescrito por estudiosos e eugenistas brasileiros acabou por dificultar a construção de uma identidade negra positiva, alienando, dividindo e elegendo tipos superiores e inferiores no próprio grupo negro, a depender da quantidade e intensidade das marcas. É importante dizer, não se limitou ao esforço de clareamento da população. Implicava também certos comportamentos, religião, local de moradia, classe social, casamentos.

 

A mestiçagem ainda serviria de base para o mito da democracia racial brasileira, ideologia que ganha corpo a partir de 1930, e que celebra a ideia de uma convivência harmônica e horizontal entre as raças no Brasil, permitindo às elites dominantes dissimularem as desigualdades e anular eventuais conflitos e reivindicações de parcela expressiva da população, sob a falsa premissa de sermos todos brasileiros, um único e homogêneo povo, onde não caberia preconceito.

Almeida (2019) faz um paralelo interessante entre a meritocracia e o racismo nas sociedades modernas, e ao fazê-lo oferece uma chave para a compreensão de nossa pretensa democracia racial. Entende-se que tanto quanto a ideologia do mérito, essa funcionaria como um mecanismo de estabilização política, afinal, se não se integram, se em empregos e posições subalternas, isso se deve aos próprios negros, já que aqui não existe preconceito. Há só uma raça humana. Somos todos iguais, etc. Assim, pela ideia da democracia racial, contrabalanceamos “[...] parâmetros culturais baseados em ideologias universalistas, cosmopolitas e, portanto, politicamente impessoais, neutras e pautadas pela igualdade formal” (Almeida, 2019, p. 51) com a marginalização de todo um contingente racial. Completa o autor:

 

 No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade racial (Almeida, 2019, p. 51).

 

Uma vez que a superioridade econômica e racial foi estabelecida pela desumanização (a negação do outro, a fabulação, o empobrecimento ontológico), procede-se seu enquadramento e seu controle. Ao invés de destruir a cultura dos africanos e descendentes, deram-lhe um valor e um significado menor. Nesse mesmo caminho, todo um imaginário social, repleto de estereótipos associados à raça, segue sendo alimentado. O resultado é uma sociedade que se torna indiferente ao modo como determinados grupos raciais detêm privilégios (Almeida, 2019).           

 

O negro não existe de fato. O branco também não. Estamos à vontade para assim afirmarmos, tendo já discutido a inexistência da raça em momento anterior nesse artigo. Trata-se no primeiro caso de um mecanismo de atribuição. Já no segundo, algo mais próximo de uma auto ficção. Delírios a parte, temos ciência da reapropriação política que a luta antirracista fez do termo negro, e a consideramos essencial, do ponto de vista existencial. Isto porque através dela ousou driblar justamente sua desumanização, devolver aos povos de origem africana sua história, proporcionar-lhes unidade e uma linguagem. Sem esse aspecto, o próprio questionamento de seu status econômico e político não teria sido possível. Esse movimento engloba desde o Black is Beautiful norte-americano, o Black Rio, sob a ditadura civil- militar brasileira, os panafricanismos diversos, o recente Black lives Matter e vários movimentos em prol da construção de uma consciência negra ao longo da história até aqui.

 

No Brasil esse espírito já está presente nos primeiros anos do século XX, tendo o país abolido a escravidão a pouco. Um movimento negro, ainda disperso, buscava, através da sua ação, reconstruir a identidade negra, fazer frente aos discursos racistas e politizar a realidade da população negra no país, produzindo o que Gomes (2017) chama de saberes emancipatórios. O destaque vem para a Imprensa Negra paulista, com seu papel educativo, que buscava informar e politizar os negros brasileiros, rumo à integração, sobretudo pela educação. E o Teatro Experimental do Negro, com o resgate da herança africana, e luta pela visibilidade de artistas negros.

 

Uma mudança de chave vem mesmo a partir dos anos de 1970, quando presenciamos seu amadurecimento. Alia-se a partir de então, o resgate dos vínculos históricos, culturais e políticos dos negros brasileiros com a diáspora africana, as questões de ancestralidade, consciência e identidade, com uma postura propositiva e questionadora quanto às formas e possibilidades de enfrentamento ao racismo no presente, pelo entendimento de sua imbricação com as desigualdades sociais.

 

Assim, que em 18 de junho de 1978 é criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Étnico-Racial (MUCDR). Depois rebatizado como Movimento Negro Unificado (MNU) - uma organização de caráter nacional, que elege a Educação e o trabalho como pautas fundamentais na luta contra o racismo (Gomes, 2017).

 

Muitos intelectuais negros, militantes dos movimentos negros, são a partir de então formados. Nomes como Lélia González, Luiza Bairros, Abdias Nascimento, Carlos Hasenbalg, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, dentre outros, que passam a atuar em prol da tomada de consciência das realidades econômicas e sociais vivenciadas pela população negra brasileira.

 

Alguns marcos nessa luta merecem ser citados, ainda que rapidamente: A Marcha Nacional Zumbi dos palmares, em 1995, contra o racismo, pela cidadania e a vida; A participação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatadas de intolerância, promovida pelas Organizações das Nações unidas (ONU), em Durban, África do Sul, em 2001 (quando o Brasil assumi o compromisso de pensar ações afirmativas; A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003; A Lei 10.639 é sancionada em 2003, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas; O Estatuto da Igualdade racial em 2010; as Cotas raciais nas Universidades e instituições federais em 2012, que foi antecedida por iniciativas estaduais; a reserva de 20% de negros em concursos públicos no âmbito da administração pública federal (Gomes, 2017).

 

A luta não para por aí, uma vez que a exploração e a discriminação também se repõem. Não nos escapa os mecanismos de manutenção do status quo implementados na fase contemporânea do capitalismo, sob o neoliberalismo e a reestruturação produtiva, bem como suas particularidades na periferia do sistema: o apelo ao empreendedorismo, a precariedade dos trabalhadores de aplicativos, as novas formas de controle sobre o trabalho, entendendo que raça e racismo continuam a atuar de forma que do corpo negro e não-branco, em sua medida, retire-se a mais polpuda mais-valia.

 

Esse sujeito moeda-mercadoria da aurora do capitalismo, hoje é também o sujeito da dívida, como lembra Mbembe (2019), essa que captura os Estados Nacionais e força medidas de ajuste fiscal, em favor do grande capital, mas que implica mais insegurança, menor autodeterminação, a contingentes cada vez maiores de trabalhadores.

 

O Estado do presente, a política e a economia do presente, precisam preencher nossas análises. É preciso saber a direção que o navio está nos levando, tendo em mente que o nosso norte é o universalismo verdadeiro, quando enfim o negro, como conjunto de complexos e dramas existenciais e materiais, haverá de ser superado, assim como o branco, na condição de referência humana primordial, também (Fanon, 2008).

 

No que diz respeito à realidade brasileira, há muitas taras e sequelas a se discutir, bem como movimentos e vozes da resistência negra a apontar. Interessa-nos, sobretudo o lugar da mulher negra nessa luta.

 

3 Mulher Negra e Interseccionalidade

 

No artigo Nossos Feminismos Revisitados, um clássico, Luiza Bairros aponta a fragilidade das análises feministas que insistem em interpretar a opressão sexista sob um viés universalista e questiona: “Numa sociedade racista, sexista, mareada por profundas desigualdades sociais, o que poderia existir de comum entre mulheres de diferentes grupos raciais e classes sociais”? (Bairros, 1995, p. 458).

 

Sem oferecer exatamente uma resposta, mas instigando a compreensão dos limites colocados pela realidade concreta, a autora propõe um caminho, inspirada na obra de Judith Grant (1991) pelo qual apresenta as três correntes mais conhecidas do feminismo: radical, liberal e socialista; que, ao partir dos conceitos de Mulher, Experiência e Política Pessoal, lograram definir uma comunidade, e estabelecer sua base política, porém lhes escapou, na organização de sua teoria, captar o que de fato nos une enquanto mulheres, e o que nos diferencia. Isso não parecia algo essencial, em nome do quê facilmente as experiências demarcadas, pertencentes a um tipo particular (a mulher branca de classe média ou alta), puderam ser assumidas como que de todas.

 

No que se refere ao conceito Mulher, uma dimensão sexual e/ou de gênero nos levaria para o questionamento de uma pretensa natureza feminina, contraposta e subalterna à masculina, uma espécie de eterno outro em relação ao homem, a quem cabe o lugar de referência. Essa natureza estaria associada a ideia de delicadeza, à fragilidade, à emoção. Mas até que ponto esse discurso alcança todas as mulheres? Sojourner Truth, uma ex- escravizada norte-americana, já apontava suas falhas em 1851: Ela, forte como um homem, acostumada a lida pesada no campo, a quem nunca coube proteção, não era então uma mulher?

           

O conceito de Experiência, por outro lado, definiria como opressiva qualquer situação que a mulher defina como tal. Mas uma vez que as condições de politização dessas experiências não são iguais (o acesso aos meios de propagação de ideias), o que ocorre é algumas experiências serem tomadas como parâmetro para as mulheres em geral, o que é irreal. A título de exemplo, Bairros (1995) recupera a maternidade e a sexualidade, tomadas de forma universal, não alcançam toda pluralidade com que podem ser percebidas e experimentadas pelas mais diversas mulheres[4].

Uma ênfase na experiência levou a afirmação de que o pessoal é político, lema abraçado pelo chamado feminismo de segunda onda, em fins década de 1960, e que acabava por insinuar que os problemas enfrentados pelas mulheres, no geral, seriam basicamente de ordem pessoal. Mas políticas são as relações de poder que estruturam a sociedade, onde a diferença sexual, em conjunto com outras opressões, manifesta-se.

 

Embora a autora assuma que algumas expressões do feminismo apresentem algum avanço nessa direção, dando margem a fórmulas conhecidas (os termos dupla ou tripla opressão; aquele velho: no caso da mulher negra, é pior), o que evidenciaria a aceitação mais ou menos superficial de que existiriam grupos mais discriminados que outros, tal constatação estaria relacionada mais a uma incapacidade desse movimento de oferecer ferramentas que evidenciassem as diversas formas através das quais o sexismo nos impacta, o que exige abandonar uma visão única da mulher.

 

hooks (2019), ao afirmar justamente como o foco em um sujeito abstrato, Mulher, apaga as diferenças entre as mulheres com contextos sócio-históricos específicos, questiona até que ponto seria razoável aceitar que feministas que escrevem apenas sobre a realidade das mulheres brancas, mas que as abordam sob um viés generalizante, não enxergam a brancura da imagem.

 

A questão que se abre sob essa crítica é, sobretudo, sobre uma não observância da realidade vivenciada por outros grupos de mulheres, como as mulheres indígenas e as mulheres negras, por exemplo, cujas “[...] demandas específicas [...] não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero” (Carneiro, 2003, p. 119).      

 

Critica similar também pode ser direcionada aos movimentos antirracistas, caso desconsiderem as particularidades inscritas nas vidas das pessoas negras. Uma vez que entendamos a natureza plasmática da raça, nos movemos com maior propriedade pelas dimensões de branquitude, identidade negra, mestiçagem, que não se manifestam da mesma forma, nos diferentes países, regiões ou mesmo no espaço de uma cidade.  Vidas negras ainda são atravessadas pela condição social, cultural, e pelo gênero. O racismo nos atravessa a todos, mas não da mesma forma.

           

A reunião de um feminismo branco e um movimento antirracista, descompromissado com as análises de cunho sexual e/ou de gênero, fez com que González (2020) denunciasse um não lugar para a mulher negra no movimento social brasileiro: nos movimentos de mulheres, sua experiência racial era desconsiderada. Se nos movimentos negros, era sua condição de gênero que era inobservada. Essa consciência de que a identidade de gênero não se desdobra natural e imediatamente em solidariedade racial intragênero levou as mulheres negras a confrontar o movimento feminista, e forçar um olhar para as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres. O mesmo se aplica “[...] à solidariedade de gênero intragrupo racial, que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais [...]” (Carneiro, 2003, p. 120) passando a compor a luta dos movimentos negros brasileiros.

 

Sem o entendimento de como gênero inscreve o corpo racializado, ou de como raça imprime uma experiência de gênero com outros significados, não se alcança a lógica salarial do mercado de trabalho, em que mulheres negras seguem na base da pirâmide, recebendo menos que a mulher branca e o homem negro. Igualmente não se compreende as desigualdades no que se refere ao acesso à aposentadoria, quando mulheres negras apresentam maior dificuldade em acessar um trabalho formal (lembremos de toda resistência envolvida na regularização do trabalho doméstico no Brasil, onde são maioria). Ou porque são as maiores vítimas de violência obstétrica. Ou ainda, como padrões de beleza e feminilidade associado à brancura, e sua publicização pelas várias mídias, repercutem na autoestima e na forma como as mulheres negras acessam (ou não acessam) um relacionamento amoroso.

           

Mulheres negras têm suas experiências de vida marcadas pelo racismo, pela ficção da raça, que repercute estruturas e subjetividades. O ser mulher, nessa condição, lhes rendeu o lugar de outro do outro, tal qual afirma Kilomba (2019), ou mesmo outsider within, forasteira de dentro, quando nos lugares não designados para elas, como apresentado por Collins (2016). Nesse sentido, suas experiências nunca são consideradas de fato. Não pertencem. E esse não pertencimento ou estranhamento lhes rendem análises bem particulares.

 

Essas e outras questões demarcam a necessidade de pensar ferramentas teóricas que deem conta de evidenciar a complexidade que envolve a vivência de opressões simultâneas, terreno de onde surge a Interseccionalidade, construída no interior do Feminismo Negro, a que Akotirene (2020) celebra como ferramenta ancestral. Reflete, para a autora, a sensibilidade analítica das feministas negras, por perceberem que suas experiências e reivindicações eram inobservadas tanto por um feminismo branco quanto por um movimento antirracista. Permite, sobretudo, a tomada de consciência quanto aos efeitos da “[...] colisão das estruturas, a interação simultânea das avenidas identitárias [...]” (Akotirene, 2020, p. 19), a partir da compreensão da inseparabilidade entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado[5].

 

O uso político da ideia da Interseccionalidade pelo Feminismo Negro merece uma parte. Isso porque trouxe à tona as implicações do racismo e do sexismo para a vida das mulheres negras, seu déficit social, a precariedade e desvantagem em relação a outros grupos. Conforme afirma Carneiro (2003), no que diz respeito à realidade brasileira, essa compreensão engendrou formas de resistência e superação igualmente contundentes, com as mulheres negras organizando- se em torno de pautas específicas. Destacam-se, dentre outras elencadas pela autora: a busca pelo reconhecimento da necessidade de políticas específicas para a equalização das oportunidades sociais; o reconhecimento da dimensão racial da pobreza no Brasil, e corte racial na problemática da feminização da pobreza; o reconhecimento da violência simbólica e a opressão advindos de um padrão estético branco sobre as mulheres negras, e, nesse caminho, o esforço em torno da afirmação de uma identidade positiva[6].

4 Mulher Negra: representação na sociedade brasileira

 

Atentemo-nos aos versos...

 

Não vi em minha vida a formosura,

                                               Ouvia falar nela a cada dia,

  E ouvida me incitava, e me movia

  A querer ver tão bela arquitetura.

                                       Ontem a vi por minha desventura

  Na cara, no bom ar, na galhardia

                                               De uma mulher, que em anjo se mentia,

                                               De um sol que se trajava em criatura”.

 

E do mesmo poeta, esses outros...

 

“Achei Anica na fonte

 Lavando sobre uma pedra[...]

 Depois de ter feito conchavo

 Passei o dia com ela,

 Eu deitado a uma sombra,

 Ela batendo na pedra

 Tanto deu, tanto bateu

 Co’a barriga, e co’as cadeiras

 Que me deu a anca fendida

 Mil tentações de fodê-la”.

 

Ambos pertencem ao poeta baiano Gregório de Mattos (1633-1696), a famosa boca do inferno[7]. No primeiro poema volta-se para uma mulher branca, no segundo, uma mulher negra. Inicialmente, sua poesia é comovente, respeitosa, elogiosa, para então se tornar libidinosa e escrachada. A figura número um é inacessível, idealizada (um anjo!). Aquela dos versos seguintes é justamente o oposto (uma tentação!). Representam formas de ver.  Especificamente ao falarmos de mulher negra, essa imagem sustenta e naturaliza uma dominação e exploração, que articula em um mesmo olhar, racismo e sexismo, que no espaço e tempo histórico brasileiro têm se traduzido em uma sucessão de personagens hipersexualizadas. Embora a nossa escolha tenha sido por Gregório de Mattos, outros poetas (barrocos, românticos e mais), além dos textos escritos em prosa[8], no decorrer dos séculos que se passaram, poderiam facilmente ocupar o seu lugar.

 

Conforme afirma Souza (2021) a hipersexualização de corpos negros é parte do mito negro, cuja mensagem ideológica é a existência de uma natureza negra, que teria como características o irracional, o superpotente, o exótico, ao mesmo tempo em que nega a contradição, a política e a história, dimensões humanas complexas (o tal empobrecimento ontológico). O preto, destaca Fanon (2008), é fixado no genital, por um fenômeno de projeção do branco, civilizado demais para dar conta das próprias taras, deposita-as então no outro.  Já em hooks (2019) vemos como tal processo implicou em uma sexualidade negra desviante, que marca profundamente a forma como somos vistos e como nos vemos.

Essa hipersexualização para ser eficaz precisa ser constantemente repetida, parte da fabulação inerente a fabricação dos sujeitos raciais. Contribui para isso, a literatura (como na poesia que abre esse tópico), a música, o cinema, e no caso do Brasil, as novelas, consumidas massivamente, de onde erigem- se estereótipos, que “[...] como ficções, são criados para servir como substitutos, postos no lugar da realidade" (hooks, 2019, p. 303).

 

Em Xica da Silva, novela exibida em 1996, pela extinta TV Manchete, a protagonista, vivida por Taís Araújo, é uma negra escravizada do século XVIII, que vive no antigo Arraial do Tijuco, hoje a cidade mineira de Diamantina. Ela torna-se amante do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, deixa a escravidão e passa a viver uma vida luxuosa, o que lhe rende o título de Cinderela Negra. A irreverência e altivez eram marcas da personagem, que se somavam a uma sensualidade e erotismo igualmente marcantes. O sexo para ela “[...] algo insaciável e animalesco” (Nwabasili, 2017, p.50). Em outra novela, cuja protagonista também é uma mulher escravizada, mas branca, as características que definem a personagem passam longe disso. A Escrava Isaura, exibia em 1976 pela rede Globo, veste-se como as senhoras da época. Tem um português impecável. Não assume ares sensuais. Toca piano. Fala várias línguas.

 

Isauras contribuem para a manutenção de um imaginário que cotidianamente reproduz a ideia de uma branquitude carregada de um valor intrínseco e mágico. Mulheres brancas representariam pureza, beleza, poder ao homem que se relaciona com elas. Xicas da Silva, por outro lado, reforçam estereótipos que conferem a mulher negra o lugar do corpo acessível, a quem não cabe beleza, que é branca, mas que pode ser exótica e quente. Essa forma de ver, como outras a que fomos submetidas, servem para escamotear a realidade da qual emergem.

 

González (2020) nos ajuda a entender esse processo ao relembrar o papel desempenhado pela mucama durante o Brasil colônia, que envolvia os afazeres domésticos da casa grande, mas que também passava pela cama do senhor, que detinha poder sobre seu corpo. A manipulação e a violência sexual eram parte do cotidiano da mulher negra escravizada, de onde teria surgido o mito da mulata, nas palavras da autora: “[...] de que ela é mulher fácil, de que é boa de cama, etc. e tal” (González, 2020, p. 202). Embora algumas produções na mídia nacional demarquem esse olhar de forma mais acentuada, como no caso da Xica, outras conseguirão ser um pouco mais sutis.

 

É o caso da novela exibida pela rede Globo em 2004, protagonizada novamente pela Taís Araújo (o número pequeno de atrizes e atores negros é algo que também devemos considerar), cuja hipersexualização parece restringir-se ao título, mais do que sugestivo: Da Cor do Pecado. Isso porque sua protagonista, a Preta, é a mocinha da trama, bastante humanizada. Contudo, não deixa de ser uma tentação para o homem branco, que ao se relacionar com ela, foge do seu destino natural.

 

Em produção mais recente, mesmo o título conseguiu ser mais escrachado. Em Sexo e as Nega, série de 2014, vê-se o reforço de uma série de estereótipos raciais, ligados a pobreza e a submissão, além de cenas repletas de racismo e sexismo pouco problematizadas. A estética negra é frequentemente ridicularizada (sobretudo o cabelo de uma das protagonistas). Há, ainda, inúmeras passagens de assédio envolvendo homens brancos em posição de poder e as mulheres negras da série, seja quando no papel de empregada doméstica, ou sambando profissionalmente em um evento. As quatro protagonistas não escapam do mito da mulata, que a série reproduz ao colocá-las no lugar do carnal, eternas prisioneiras da natureza (González, 2020).

 

Pessoas negras ao consumirem mídia de massa no Brasil tiveram que lidar historicamente com a negação da negritude. Em um primeiro momento pela baixa participação geral, de literalmente não nos enxergarmos nas telas, em seguida por uma representação estereotipada. Araújo (2004) lembra os poucos trabalhos em que atores e atrizes negros estiveram em papéis principais, de protagonistas ou antagonistas. Lembra ainda que se o personagem criado pelo autor não for escrito explicitamente como negro, é o ator branco que tenderá a ser escolhido. Só têm uma oportunidade se existirem evidências da necessidade de um ator ou atriz negros, se há nesses papeis arquétipos da subalternidade na sociedade brasileira: se pobres, se favelados, se presidiários, se empregadas, etc.

 

Além da literatura, novelas, séries e filmes, é preciso que citemos também as músicas que reforçam a hipersexualização da mulher negra. O destaque fica para aquelas consumidas no carnaval, com letras como Nega do cabelo duro, de Luiz Caldas, que como poucas, articula racismo e sexismo, indo da ridicularização do nosso cabelo, à referência da cor de nossas partes íntimas.

 

Do carnaval ainda temos a figura icônica da globeleza, que por mais de uma década, entrou na casa de milhões brasileiros, anunciando a festa, com toda sua mulatisse.

 

A hipersexualização representa uma forma, entre outras, de desumanização de corpos negros. E a figura sobre a qual discutimos aqui é a mulher negra, mais especificamente sobre como sua imagem hipersexualizada é reproduzida. Mas é importante delimitar alguns limites. Nem todas as mulheres negras podem ser mulatas. A mulata não é retinta, nem gorda, nem velha. Seguem-se outros estereótipos, que embora não remetam ao sexo, também exploram uma imagem de mulher negra subalterna. Exemplos, nesse caminho, são a empregada cômica ou amiga da patroa, e a mãe preta, uma figura inspirada na Mammy norte-americana, que dedica a vida a uma família branca, e que é uma cozinheira de mão cheia (Davis, 2016). Por aqui essa imagem nos remete facilmente a tia Nastácia, personagem do sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato.

 

Conclusão

 

O delírio racial não pode ser compreendido sem que mergulhemos em toda a ordem de necessidades impostas pelo desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, colonialismo e escravidão negra compõem mediações necessárias a acumulação primitiva, em nome do que o negro foi criado, o que implicou a criação do branco também. Para a invenção do primeiro incorreram na negação de sua humanidade - sem o que sua transformação em moeda, em burro de carga, não teria sido possível; no que se refere ao segundo, uma superioridade autoproclamada sustentaria - se no escamoteamento de processos históricos, trocas comerciais e culturais, assumindo a brancura um valor em si mesma.

 

Ao pensarmos na formação social brasileira, lembramos que negros e negras (esses inventados) construíram, com sua força de trabalho, esse país. Contudo, foram acusados de problema nacional, num contexto permeado pelo racismo científico, e consequente decretação da inviabilidade de um país em que compunham grande parte da população. O esforço, no sentido de minimizar sua presença e relevância, passou pelo incentivo a imigração europeia, a miscigenação e branqueamento, até a constituição do mito de uma democracia racial no país. Do lado de cá organizamos a resistência: fugas, rebeliões, quilombos. Mais tarde, uma imprensa, teatro, Movimento Negro Unificado, a partir do qual a denúncia do racismo, a conformação de uma identidade negra positiva, viria acompanhada da defesa de políticas públicas, que fizessem frente as desigualdades estruturais entre negros e brancos no Brasil. 

 

As experiências vivenciadas pelas mulheres negras nessa realidade assumem particularidades inscritas no cruzamento das opressões raciais e de gênero, imputando a elas piores condições de vida, no trabalho, nas relações amorosas.

 

Há um antigo ditado retomado por González (2020) que diz: preta para cozinhar, mulata para fornicar e branca para casar. A mídia brasileira vem reforçando e alimentando essa forma de ver, o que por outro lado nos forçou também a treinar o nosso olhar. Entidades do movimento negro e feministas negras, especialmente, têm buscado denunciar e politizar essas imagens, construindo aquilo que hooks (2019) chama de olhar opositor. Ao mesmo tempo artistas e diretores/as brasileiros também se veem desafiados a repensar a forma como somos representados, no esforço de contar outras histórias, sendo que já se pode apontar em produções mais recentes, maior participação negra, e, o que é mais importante: personagens complexos, melhor construídos, e que escapam das figuras repetidas. Representar a realidade já é um passo imenso, mas descobriu- se que não é necessário nos prendermos a ela. Cabe licença poética também no que se refere a negros e negras.

 

Referências

 

Akotirene, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra, 2020.

 

Almeida, S. L. de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

 

Araújo, J. Z. A negação do Brasil. O negro na telenovela brasileira. 2.ed. São Paulo: Senac, 2004.

 

Bairros, L. Nossos Feminismos Revisitados. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, 1995.

 

Carneiro, S. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, 2003.

 

Césaire, A. Discurso sobre o Colonialismo. Tradução: Claudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020.

 

Collins, P. H. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamile Pinheiro Dias. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

 

Collins, P. H. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, Brasília (DF), v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016.

 

Davis, Â. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

 

González, L. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs: Flavia Rios, Márcia Lima. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

 

Gomes, N. L. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

 

hooks, b. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

 

Kilomba, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

 

Mbembe, A. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2019.

 

Moura, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 2019.

 

Moura, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e Guerrilhas. 6. ed. São Paulo: Anirta Garibaldi, 2020.

 

Munanga, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

 

Nascimento, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

 

Nwabasili, M. Q. As Xicas da Silva de Cacá Diegues e João Felício dos Santos: traduções e leituras da imagem da mulher negra brasileira. 2017. Dissertação (Mestrado em Meios e Processos audivisuais)- Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

 

Schwarcz, L. K. M. Raça como negociação. In: Fonseca, M. N. S. (Org.). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: autêntica Editora, 2010.

 

Souza, N. S. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

 

 

 

 

 

 

 

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Bárbara SEPÚLVEDA

Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES/MG). Mestra em Desenvolvimento Social pela UNIMONTES. Doutora pelo programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora das temáticas que se relacionam com as políticas sociais e relações étnico-raciais e de gênero no Brasil. Professora no curso de Serviço Social da UNIMONTES.

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*© A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto. Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] Refere-se à importação da teoria evolucionista de Darwin, do mundo natural para o das sociedades humanas; usado para legitimar cientificamente a superioridade racial dos brancos perante os demais grupos.

[2] A islamofobia talvez seja o melhor exemplo nesse sentido.

[3] Conjunto de teses pseudocientíficas popularizadas no século XIX, que predizia da existência de uma hierarquia racial, com brancos tidos como superiores, atrás de quem seguiriam os demais, com negros africanos e aborígenes australianos na base.

[4] Há mulheres que lutaram e lutam pelo direito à contracepção ou mesmo o direito ao aborto, sendo que há outras para as quais se dirige o discurso da esterilização forçada, para quem a maternidade é negada.

[5] Diz respeito a interação dos elementos “Cis”, referente à identidade de gênero coincidente com o sexo; “Hetero”, orientação sexual voltada para o sexo oposto e “Patriarcado”, como sistema de dominação masculina, a fim de demarcar uma configuração estrutural e identitária, que denota vantagens e privilégios para aqueles que dela compartilham, em termos sociais, culturais e políticos.

[6] Com Collins (2019) entendemos o lugar da autodefinição para as mulheres negras, como algo essencial a sua própria sobrevivência, tendo em vista contextos marcados pelo racismo, histórias e estereótipos que preenchem o imaginário social, e que repercutem perda de oportunidades reais. A autodefinição implica no conhecimento e negação dos papeis históricos atribuídos a nós, e a construção de outras possibilidades enquanto sujeitas de nossa própria história.

[7] Para ver mais, acessar https://mafua.ufsc.br/2003/o-preconceito-racial-na-obra-de-gregorio-de-matos/. Acesso em: 10 jul. 2024.

[8] Um bom exemplo nessa direção vem através de obras como as do pré-modernista Monteiro Lobato ou ainda as do naturalista Aluísio Azevedo.