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Quarto de despejo e Olhos d’água: o despertar de um sono injusto[1]

 

Quarto de despejo and Olhos d’água: awakening from an unjust sleep

 

Bruna Everlyn Bitencourt de LIMA*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social,

Departamento de Política Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

e-mail: brunaevelynbitencourt@gmail.com

 Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0009-0000-6147-1517

 

Thyago Martins de FARIAS

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social,

Departamento de Política Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

e-mail: thyg805@gmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0009-0003-6663-0259

 

Márcia Pereira da Silva CASSIN

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social,

Departamento de Política Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

e-mail: marcia.cassin@hotmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-7585-3345

 

Resumo: O artigo objetiva lançar luz sobre o papel da literatura na interpretação da formação social brasileira, com maior ênfase na questão racial. Elaborado a partir de uma pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico, busca, inicialmente, abordar a relação entre literatura e sociedade. Na sequência, desenvolve uma reflexão sobre as implicações do racismo e do mito da democracia racial sobre o genocídio da população negra, e demonstra como a escrita de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo denuncia tal realidade e aponta caminhos de resistência. Os resultados indicam o potencial da literatura e das obras analisadas como instrumentos de crítica social e de análise da realidade brasileira.

Palavras-chave: Literatura. Formação social brasileira. Questão racial. Escrevivência.

 

Abstract: The article aims to shed light on the role of literature in the interpretation of Brazilian social formation, with greater emphasis on the racial issue. Prepared from qualitative bibliographic research, it initially seeks to address the relationship between literature and society. Next, it develops a reflection on the implications of racism and the myth of racial democracy on the genocide of the black population and demonstrates how the writing of Carolina Maria de Jesus and Conceição Evaristo denounces this reality and points out paths of resistance. The results indicate the potential of literature and the literary works analyzed as instruments of social criticism and analysis of Brazilian reality.

Keywords: Literature. Brazilian social formation. Racial issue. Writing.

 

Submetido em: 31/10/2023. Revisto em: 17/6/2024. Aceito em: 9/7/2024.

Introdução

 

A

forma de sociabilidade que se desdobra em nosso tempo parece confirmar a sentença do escritor e desenhista Millôr Fernandes, segundo a qual o Brasil tem um enorme passado pela frente. De fato, nosso presente é impregnado de cicatrizes, talhadas desde o período colonial. Marcas que denunciam um país fundado sobre a violência, a escravização, a espoliação, o autoritarismo e a miséria. Uma análise das determinações que constituem a sociedade brasileira não pode desconsiderar os mais de três séculos em que a produção de gêneros agrícolas e a obtenção de matérias-primas foram movidas pela violenta escravização dos povos originários da terra e, posteriormente, dos africanos vendidos como mercadoria e embarcados à força para a colônia de Portugal. Mais do que o legado de uma brutal concentração de renda e riqueza, a exploração do trabalho escravizado deixou-nos como herança o racismo estrutural.

 

A libertação do negro da condição de escravizado não representou sua integração na ordem social, mas apenas uma mudança abstrata na forma jurídica. Conforme Fernandes (2008, p. 35-36), “[...] a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre”. Jogada à própria sorte, a população negra, ex-escravizada, foi preterida em um mercado de trabalho eivado pela ideologia do branqueamento, convertendo-se nas ditas classes perigosas, principal alvo das políticas de repressão do Estado.

 

Considerando o potencial do conhecimento artístico no desvelamento do real, o texto a seguir busca resgatar o papel da literatura na interpretação da formação social brasileira, com maior ênfase na questão racial, a partir das obras literárias Quarto de despejo (Jesus, 2020), Olhos d’água (Evaristo, 2016) e a escrevivência[2]. Para isso, os procedimentos metodológicos adotados foram a revisão bibliográfica e a história de vida das escritoras.

 

A escrevivência tem como condição a história de vida das autoras: mulheres negras e pobres. Além disso, podemos inscrever a prática literária das autoras na categoria de amefricanidade (Gonzalez, 2020). Ser amefricana, como é o caso de Carolina e Conceição, contempla uma vivência, na qual o ato de falar carrega elementos da africanidade, perpassada pela ancestralidade e pela diáspora, bem como por lutas em um contexto de racismo por omissão[3]. Abordar a amefricanidade das autoras e, consequentemente, das obras, é dar luz à escrevivência. Assim, a literatura se torna instrumento potente nas mãos dessas escritoras.  Ainda que a voz não tenha pertencido às mulheres escravizadas, hoje, a letra, a escrita e o falar pretuguês pertencem às mulheres negras.

 

Sendo assim, este artigo se divide em três momentos: o primeiro apresenta a literatura como instrumento de crítica social e de interpretação da formação social brasileira; o segundo desenvolve uma reflexão sobre o racismo, o mito da democracia racial e a formação social brasileira; o terceiro, por fim, revela como a escrevivência de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo é uma ferramenta de denúncia do processo histórico de genocídio da população negra.

 

A literatura como instrumento de crítica social e de interpretação da formação social brasileira

 

Se a arte imita a vida, ou a vida imita a arte, este é um dilema que perpassa gerações e debates. Pensar a arte como um elemento essencial na denúncia da vida nos remete a uma literatura que, interpretando a realidade brasileira, escancara aspectos particulares da nossa formação social. Vista por esse ângulo, a literatura é uma forma de resistência, cultural e política, e sua compreensão passa pelo exame da problemática da cultura brasileira e de algumas características da nossa intelectualidade, ligadas ao modo específico do desenvolvimento do nosso país (Coutinho, 2011).

 

A literatura forjada pelos clássicos reflete os traços estruturantes da nossa sociedade: do período colonial ao capitalismo neoliberal. O que essas obras nos mostram é que a configuração da vida atual é um retrato da nossa formação social. No Brasil, a abordagem da “questão social” pelas obras literárias “[...] ganhou força real a partir dos anos 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre” (Candido, 2011, p. 187). Isso se deve, em grande medida, às transformações econômicas, políticas e sociais que marcaram o período de transição de uma economia agrário-exportadora para uma economia de base urbano-industrial (Oliveira, 2013)[4], processo que se refletiu com vigor na produção literária.

 

Coutinho (2011) nos apresenta que, no campo do romantismo, havia uma tendência de ocultamento das contradições essenciais da realidade, ao passo que o naturalismo se orientava pela noção de que os fenômenos sociais continham uma natureza eterna e imutável. Era comum, no segundo a abordagem de aspectos mais superficiais ao cotidiano. A despeito de tais tendências, foi possível verificar, ainda no século XIX, o surgimento de algumas criações que representaram o que o autor denomina vitórias do realismo[5], a exemplo da obra abolicionista de Castro Alves e do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida, a qual rompia com o imobilismo e indicava as alternativas democráticas do povo brasileiro.

Candido (2000) descreve um breve panorama das questões que os clássicos denunciam em nossa sociedade, por meio de obras vastas e diversificadas:

 

A prosa, liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no conto, que vivem uma de suas quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de Neo-naturalismo e de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país: decadência da aristocracia rural e formação do proletariado (José Lins do Rego); poesia e luta do trabalhador (Jorge Amado, Amando Fontes); êxodo rural, cangaço (José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, Graciliano Ramos); vida difícil das cidades em rápida transformação (Érico Veríssimo). Nesse tipo de romance, o mais característico do período e frequentemente de tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza. Raramente, como em um ou outro livro de José Lins do Rego (Banguê) e sobretudo Graciliano Ramos (S. Bernardo), a humanidade singular dos protagonistas domina os fatores do enredo:  meio social, paisagem, problema político (Candido,2000, p. 128).

 

É no âmago das transformações pelo alto processadas com a Revolução de 1930 que emergirá o romance nordestino, considerado por Coutinho o “[...] movimento literário mais profundamente realista da história de nossa literatura [...]” (Coutinho, 2011, p. 144), cuja figura mais alta e representativa foi Graciliano Ramos. Rompendo com o naturalismo e as ilusões românticas na narrativa do destino de homens e mulheres concretos, “[...] a obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro processo de formação da sociedade brasileira contemporânea, em suas íntimas e essenciais determinações” (Coutinho, 2011, p. 143).

 

Por ser uma formalização estética do movimento do real, a literatura consegue, entre todas as suas possibilidades, refletir a multiplicidade de expressões sociais, políticas, econômicas e culturais do Brasil. Um país cuja história, escrita com sangue retinto e pisado[6], guarda as marcas indeléveis de nosso passado que se recriam no presente. A arte literária consegue mostrar no modernismo, por exemplo, as nossas deficiências, supostas ou reais, interpretando-as como um traço de superioridade (Candido, 2000). Nesse sentido, ocorre uma adesão franca aos elementos recalcados da nossa civilização, como a abordagem do negro, do mestiço, do filho de imigrantes, bem como a exaltação de características como a ingenuidade, a malandrice, enquanto retratos do que, de fato, nossa sociedade teria de identidade.

 

Segundo Candido (2000), finalmente, não se pode ignorar o papel que a arte primitiva, o folclore e a etnografia tiveram na definição das estéticas modernas, muito atentas aos elementos arcaicos e populares comprimidos pelo academicismo. O mestiço e o negro são, definitivamente, incorporados como temas de estudo, inspiração e exemplo. O primitivismo torna-se fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura, seja na literatura, na pintura, na música ou nas ciências do homem (Candido, 2000). Assim sendo, a literatura cria suas manifestações em cada período histórico e funciona como instrumento de crítica social, ao mesmo tempo em que revela o potencial transformador contido na materialidade do real.

 

Conforme o mesmo autor, a literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A arte como fonte de conhecimentos colabora socialmente com a vida humana, ainda mais quando consegue denunciar aspectos sociais e históricos, que fazem parte da nossa formação social e que, em nenhum momento, foram erradicados, como a desigualdade de classe e de gênero, o racismo, a violência urbana e a questão ambiental, entre outros. Os clássicos da literatura são exemplos ricos de como a arte pode contribuir para a interpretação da sociedade, além de mostrar um passado que insiste em se recriar no presente.

 

Os processos de transformação social no Brasil são repletos de modernização conservadora e de revoluções pelo alto, elementos típicos das vias não clássicas de desenvolvimento do capitalismo[7]. Não houve uma ruptura definitiva com o estatuto colonial para a instauração do modo capitalista de produção – requisito primordial em outras formações de capitalismo central –, mas as estruturas agrárias foram conservadas e adaptadas à dinâmica industrial, que delas se abasteceu em seu desenvolvimento[8]. A formação social brasileira, nesse sentido, encerra linhas de força que reproduziram, no decorrer de nossa história, as marcas da dependência, da concentração de riqueza, da miséria, da violência, do racismo estrutural, do patriarcado e do autoritarismo.

 

Para Candido (2000), a literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas refletidos nas obras. Deve-se levar em conta, ademais, o papel humanizador da literatura e da cultura em geral, na medida em que contribuem para ampliar a capacidade de interpretação e enriquecem as visões de mundo dos leitores. O acesso à cultura em sociedades como o Brasil, no entanto, tem sido fortemente obstado pela brutal desigualdade social. Nesse sentido:

 

A tarefa primordial dessa batalha ideológica, no Brasil de hoje, é precisamente a de contribuir para a superação do elitismo cultural e para uma transformação em sentido nacional-popular da cultura e da intelectualidade brasileira. Estimulando as obras que se encaminham no sentido do nacional-popular e revelando ao mesmo tempo o beco sem saída (ideológico e estético) da visão do mundo elitista ou ‘intimista’, a crítica - se feita no quadro do respeito ao pluralismo e à diversidade, que são traços inelimináveis de toda cultura autêntica - poderá contribuir para expansão hegemônica de uma nova cultura brasileira efetivamente democrática, efetivamente nacional-popular (Coutinho, 2011, p. 70).

 

Ainda segundo o autor, a nossa literatura se adequou a moldes antidemocráticos e antipopulares, fazendo com que as camadas mais empobrecidas ficassem afastadas de qualquer protagonismo no universo de suas figurações estéticas. Em contrapartida, afirma Candido (2011):

 

É revoltante o preconceito segundo o qual as minorias que podem participar das formas requintadas de cultura são sempre capazes de apreciá-las, o que não é verdade. As classes dominantes são frequentemente desprovidas de percepções e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda, porque dá prestígio gostar deste ou daquele pintor (Candido, 2011, p. 193).

 

Torna-se fundamental a luta pela democratização da arte, da cultura e da literatura, bem como por uma renovação popular da vida nacional em seu conjunto, de modo a assegurar condições mais favoráveis à expansão e ao florescimento da práxis cultural das camadas menos favorecidas. Concebida coletivamente, a literatura se torna uma poderosa arma de desenvolvimento de nossa quota de humanidade, na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante. A cultura é um direito e o acesso a ela é necessário em uma sociedade na qual as revoluções foram feitas pelo alto e as mazelas sociais nunca foram reparadas. Em um país onde não há acesso à cultura, a violência vira um espetáculo. Uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos. Ademais, a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável (Candido, 2011).

 

Se a formação social brasileira se ergue sobre o mito da democracia racial – aquele em que o racismo se mascara de diversas formas, sendo até mesmo negado por alguns sujeitos – a literatura e a arte, no geral, têm papel essencial na denúncia de tais mitos. Obras como Úrsula de Maria Firmina dos Reis (1859) e Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto, respectivamente, abordam muito da denúncia do racismo nessa sociedade em que nunca houve reparação. É essencial que a literatura, a escrita e as vozes de pessoas negras se expandam e sirvam de base para uma interpretação da formação social brasileira, incomodando aqueles que sempre estiveram em uma posição social confortável.

 

Racismo, o mito da democracia racial e a formação social brasileira

           

No Brasil, o racismo se reproduz negando a sua própria existência. Tal reprodução ocorre por meio de um ocultamento das diversas formas em que esse se expressa: individual, institucional e estrutural. Embora reconheçamos as distintas formas pelas quais o racismo se exprime, recusamos, a partir de Almeida (2019), concepções individualistas que buscam apreendê-lo de modo individualizante e, portanto, a solucioná-lo apenas com mudanças comportamentais.

 

A defesa teórico-metodológica do racismo a partir de uma perspectiva econômico-estrutural implica em compreender que, para além de condições objetivas, o modo de produção capitalista implica a necessidade de condições subjetivas: "[...] os indivíduos precisam ser formados, subjetivamente constituídos, para reproduzir em seus atos concretos as relações sociais, cuja forma é a troca mercantil" (Almeida, 2019, p. 135). Nesse processo, os sujeitos assimilam determinações como gênero, classe, raça e etnia, além dos preconceitos correspondentes a cada uma delas. Dessa maneira, entendemos o racismo enquanto expressão ideopolítica, estrutural e estruturante das relações sociais (Silva, 2019; Corato, 2020). Além disso, compreendemos que se trata de um fenômeno sócio-historicamente determinado, que rompe com naturalizações (Munanga, 2019).

 

Consoante Gonzalez (2020), utilizando uma categoria freudiana, no Brasil, “[...]o racismo opera por denegação [...]” (Gonzalez, 2020, p. 127), que consiste em negar o seu pertencimento à nossa sociedade. Como expressão disso, construiu-se uma narrativa, em especial, institucionalizada no âmbito do Estado, na qual se defende que "[...] as três raças constitutivas do Brasil [...]” (Gonzalez, 2020, p. 127) (sejam estas: brancos, negros e indígenas) convivem em harmonia: “O efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso país graças ao processo de miscigenação” (Gonzalez, 2020, p. 50).

 

A coexistência é tão pacífica e harmoniosa que nos tornamos um país, cuja principal marca é a miscigenação, sem que pese a violação dos corpos das mulheres indígenas e negras nesse processo (Munanga, 2019; Gonzalez, 2020; Nascimento, 2016). Ainda nessa lógica, o que constantemente ameaçaria a segurança nacional seria o movimento negro, uma vez que desestabilizaria a unidade e a coesão nacional ao dividir o país entre brancos e negros (Gonzalez, 2020; Nascimento, 2016).

 

Para além disso, tendo como arcabouço teórico e ideológico o mito da democracia racial e o racismo, não é contraditória a defesa de que três séculos do modo de produção escravista (Moura, 2020), fundamentado na diferença e na hierarquização entre as raças, não guarda estreita relação com o fato de que ser negro, no Brasil, praticamente, corresponde a ser pobre. Somos todos brasileiros, vivemos em um país sem racismo; assim, temos condições iguais de competirmos e sobrevivermos.

 

Os defensores dessa tese acreditam que todos teriam plena condição de competir igualmente e, consequentemente, ascender socialmente no Brasil moderno[9], sendo apenas uma questão de esforço e força de vontade. Como resultado, ocorre a culpabilização da população negra pela sua condição de pobreza. Para além disso, consoante Souza (2021), os que conseguem ascender socialmente passam por um processo de “[...] assimilação aos padrões brancos de relações sociais [...]” (Souza, 2021, p. 53), ou seja, significa embranquecer, renunciar à própria identidade.

 

Por isso, é importante rompermos com interpretações que, ao pensarem a formação social brasileira, ignoram séculos de colonialismo e escravismo, uma vez que o período de 1500 a 1888 “[...] nos permite evidenciar as consequências desse passado que excluiu a população negra na participação da riqueza socialmente produzida, fazendo com que essa parcela componha o maior número de pobres no Brasil” (Corato, 2020, p. 39).

 

O compromisso com o “[...] ato de falar com todas as implicações [...]”[10] (Gonzalez, 2020, p. 78), assumido por alguns/algumas intelectuais negros(as), para, de fato, desvelar o racismo, aponta para uma combinação danosa, especialmente para as mulheres negras, entre o racismo, o mito da democracia racial e a meritocracia.

 

No jogo entre esconder e revelar, de um lado temos mecanismos ideopolíticos garantidores, estruturantes e estruturais do modo de produção capitalista (antes escravista). De outro, há o movimento negro na busca pelo resgate, pela preservação e pela valorização da história da população negra, bem como na proposta e elaboração de políticas públicas (Silva, 2019). São formas, carregadas de ancestralidade, para garantir a continuidade da vida em face de uma política de morte institucionalizada.

 

De acordo com Gomes (2017), o movimento negro comporta todas as organizações e articulações das pessoas negras que se posicionam politicamente contra o racismo, e que objetivam explicitamente a superação desse e de suas barreiras, tanto durante o escravismo, como também no capitalismo. Ademais, ressignifica a raça, colocando-a enquanto uma potência de emancipação, como construção social, além de ser um fator de mobilização e mediação das reivindicações políticas. Em consequência, esse movimento acaba por ressignificar a história do Brasil, construindo novas formas para explicar como o racismo opera na sociedade.

 

Na arte, a resistência e a denúncia em face ao racismo se deram de maneiras distintas ao longo da história brasileira, a partir de autores/as, inseridos/as ou não no movimento negro: Maria Firmino dos Reis, Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo, constroem obras que convocam os brasileiros a refletirem sobre as condições da população negra durante o escravismo e após a abolição.

 

Entendemos que Quarto de Despejo: diário de uma favelada (Jesus, 2020) e Olhos d’água (Evaristo, 2016), a partir da escrevivência, se inserem nesse contexto: a arte como instrumento importante de desvelamento das relações sociais, expondo o processo histórico no qual o Estado relegou a população negra a uma política de morte e de deixar morrer[11]. Essas obras, em especial, apresentam como característica um traço bastante importante: o relato das estratégias criadas e utilizadas em face ao genocídio e à necessidade da mudança desse estado de coisas.

 

Escrevivência: ferramenta de denúncia do processo histórico de genocídio da população negra

 

Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo guardam bastantes aproximações em relação às suas trajetórias de vida: ambas são mulheres, negras, mineiras e, em algum momento, trabalharam como empregadas domésticas (Jesus, 2020; Evaristo, 2016). Além disso, precisaram enfrentar o racismo para que suas produções artísticas fossem publicadas, a despeito do sucesso de vendas e da boa recepção delas junto aos leitores.

 

Conceição Evaristo (2017), em Falando em Ponciá Vicêncio, relata a trajetória difícil e as barreiras, impostas pelo racismo, que teve de transpor para fazer com que o seu primeiro romance fosse publicado: “Não só a condição de gênero vai interferir nas oportunidades de publicação e na invisibilidade da autoria dessas mulheres, mas também a condição étnica e social” (Evaristo, 2017, p. 9).

 

Décadas antes, em 1976, em entrevista aos jornalistas Hamilton Trevisan e Astolfo Araújo, Carolina Maria de Jesus demonstrou seu descontentamento com o mercado editorial, chegando a dizer, inclusive, que desistiria de escrever: “Ao perguntarmos por que razão desistiu de escrever, ajoelha-se, ergue as mãos para o alto e diz que no Brasil o escritor tem que implorar para ser publicado” (Araújo; Trevisan, 1976)[12].

 

As obras literárias Quarto de Despejo: diário de uma favelada (Jesus, 2020) e Olhos d’água (Evaristo, 2016) também guardam semelhanças: as histórias retratadas reconstroem os processos de genocídio, historicamente, perpetrados pelo Estado brasileiro em face à população negra, a partir da experiência de mulheres negras. De acordo com Nascimento (2016), bem como Almeida (2014), está posto que o genocídio dos negros perpassa o escravismo e o capitalismo. É a adoção de políticas e leis, pelo Estado, que resultam no assassinato, no apagamento, no branqueamento, na dificuldade de sobreviver, na marginalização, na criminalização da população negra, da cultura, das práticas, dos costumes e dos valores dessa parcela da sociedade.

 

Tais determinações estão presentes nos textos literários das escritoras devido à escrevivência. Conceição Evaristo, em um artigo da publicação Escrevivência: a escrita de nós, a define como:

 

[...] um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças (Evaristo, 2020a, p. 30).

 

Dessa forma, a escrevivência traz a experiência, a vivência, a oralidade e a escrita das mulheres negras para o centro das histórias criadas e contadas.

 

A figura da mãe preta é essencial para compreendermos a origem da escrevivência, uma vez que ela era a responsável pela contação das histórias que adormeciam os filhos da casa grande. Conforme Gonzalez (2020), precisamos superar interpretações que apontam essa figura como a traidora de raça, bem como aquelas que a compreendem apenas como dócil, fonte de amor e dedicação total. Na realidade, é a proximidade com os senhores, as sinhás e os filhos e filhas desses, que vai fazer com que ela seja "[...] quem vai dar a rasteira na raça dominante" (Gonzalez, 2020, p. 87).

 

Ao exercer a maternidade, ainda que forçada e coagida, durante a contação de história para adormecer os filhos da casa grande, transmitiam os valores e as experiências de um corpo em diáspora. Não é coincidência, portanto, que a língua portuguesa e a cultura brasileira carreguem tantos elementos da africanidade: "[...] quando a gente fala em função materna, a gente dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito pra criança brasileira [...]. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês" (Gonzalez, 2020, p. 88, grifo da autora).

 

A escrevivência, então, se constituiu como uma prática literária de mulheres negras e pobres. Apesar de partir de uma experiência, uma vivência ou um relato individual, é transversalizada pela coletividade (Evaristo, 2020a). Por isso, vai ter um caráter universal, vinculado à ancestralidade e à diáspora:

 

Nossa escrevivência traz a experiência, a vivência de nossa condição de pessoa brasileira de origem africana, uma nacionalidade hifenizada, na qual me coloco e me pronuncio para afirmar a minha origem de povos africanos e celebrar a minha ancestralidade e me conectar tanto com os povos africanos, como com a diáspora africana (Evaristo, 202a0, p. 30).

 

Agora, em posse da própria voz e da própria escrita, o objetivo não é fazer adormecer a casa grande, mas acordá-los de/em seus sonhos injustos (Evaristo, 2020a)[13]. Sendo assim, a escrita das autoras nos aproxima da realidade vivida pelas mulheres negras no Brasil; vivências que são atravessadas pela violência, pelo racismo, pelo adoecimento mental e físico, pela solidão e pelo abandono. Nessa prática literária, concomitantemente, acaba-se por desvelar um processo mais amplo, a saber: a política de genocídio perpetrada pelo Estado brasileiro em face à população negra.

 

Nos relatos do diário de Carolina Maria de Jesus, a fome é constante[14]. Praticamente todos os dias, pairava sobre a vida de Carolina e seus filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice, a incerteza de que teriam algo para comer. A insegurança alimentar causa ódio, nervosismo, tontura, insônia e tristeza na autora e nas crianças: “Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiencia de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome” (Jesus, 2020, p. 93).

 

Nas confidências, a escritora demarca a ausência de políticas públicas do Estado e, inclusive, a dificuldade de acessá-las. Está exposto no diário de Carolina a forma como, historicamente, as expressões da questão social foram tratadas no âmbito estatal, ou seja, criminalizando[15] e/ou ofertando políticas fragmentadas, focalizadas, excludentes e limitadas:

 

[...] Mas já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço Social, no palacio do governo. Foi lá que eu vi ranger de dentes. Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos representam em relação ao povo (Jesus, 2020, p.54).

 

Já os contos presentes na obra de Conceição Evaristo trazem como marca a iminência da morte para os personagens negros: “A corda bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se romper a qualquer hora. Era preciso, pois, um constante estado de alerta [...]” (Evaristo, 2016, p. 68), visto que os limites entre morte e vida não estão bem definidos para os corpos negros. Os motivos passam pela fome, pela violência, pelo abandono, pelo confronto com a polícia e pelo sofrimento.

 

Nesse contexto de violações, não é poupada a vida de ninguém, nem de mulheres, nem de homens, nem de crianças: “O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!” (Evaristo, 2016, p. 86).

 

Para avançarmos nas reflexões sobre as obras, iremos realizar mediações com a categoria de amefricanidade (Gonzalez, 2020), a qual resgata uma unidade, uma experiência histórica comum, vinculada à diáspora, à reivindicação de uma herança africana. Essas últimas não se restringem somente ao processo de colonização e à escravização, perpetradas especialmente por países luso-espanhóis, que fundam os países da Améfrica Ladina, mas contemplam, inclusive, as lutas em face ao racismo e, consequentemente, ao genocídio.

 

Encontramos o mesmo movimento nas histórias ora analisadas[16]; estão presentes as estratégias utilizadas pela população negra, em especial, a parcela que mora nas favelas[17], para sobreviver em face ao genocídio: “[...] Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo” (Jesus, 2020, p. 55).

 

São construídos laços, afetos e pactos coletivos: “A gente combinamos de não morrer!” (Evaristo, 2016, p. 99). A favela se aproxima daquela acepção construída por Maria Beatriz Nascimento (2022), na qual essa manteria a experiência quilombola viva uma vez que “[...] representa a resistência dos negros e dos brancos oprimidos. É uma possibilidade de vida mesmo quando a situação for adversa” (Nascimento, 2022, p. 130). Logo, a favela constitui-se como um espaço de resistência em face ao racismo expresso nas políticas de genocídio.

 

Pelo exposto, torna-se evidente que Olhos d'água (Evaristo, 2016) e Quarto de despejo: diário de uma favelada (Jesus, 2020) convocam o Brasil a despertar do seu longo sono injusto, e enxergar como vive a maior parte da população do país a partir da experiência da mulher negra; essa que é vítima de um processo de discriminação de raça, classe e gênero (Gonzalez, 2020). Para isso, as obras não naturalizam o sofrimento, o encurtamento e as condições precárias de vida da população negra. Determinações que incidem sobre os corpos negros que, sabe-se bem, não são por acaso e, sim, parte de um projeto histórico de genocídio negro.

 

As obras nos sensibilizam, humanizam os corpos negros narrados e, consequentemente, nos humanizam a partir das histórias perpassadas pela violência e pela violação de direitos. Entretanto, os sujeitos da história não se mantêm apenas na condição de vítimas; constroem estratégias, relações e afetos que os ajudam a resistir ao racismo e ao genocídio. Assim, Carolina, apesar de não mudar a condição de sua vida e, no dia seguinte, continuar levantando cedo para pegar água, segue esperançando.

 

Já Conceição Evaristo, no último conto do livro, Ayoluwa, a alegria do nosso povo, narra a história de um povo em que há escassez da vontade de viver e que, por isso, pouco a pouco, os membros da comunidade acabam morrendo. Entretanto, em meio ao luto, quando Bamidele, a esperança, dá luz à Ayoluwa, vê renascer o prazer e alegria na vida: "Ayoluwa, alegria de nosso povo, e sua mãe, Bamidele, a esperança, continuam fermentando o pão nosso de cada dia. E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando solução” (Evaristo, 2016, p. 114).

 

Portanto, ecoa na escrita as vozes das mulheres, negras e pobres que vieram antes, daquelas que viveram e vivem a violência, a fome, o assassinato e o racismo. Carolina e Conceição mantêm viva a lembrança, a luta e a resistência dos que se foram, ao mesmo tempo em que denunciam os mecanismos que perpetuam as desigualdades de classe, gênero, raça e/ou etnia. Entretanto, jamais perdem a esperança, ou seja, esperam que as próximas gerações vivam em uma sociedade que não seja estruturada e estruturante do racismo, sexismo, LGBTQIAP+fobia e, claro, sem exploração de uma classe sobre a outra: “A voz de minha filha / recolhe em si / a fala e o ato. / O ontem – o hoje – o agora. / Na voz de minha filha / se fará ouvir a ressonância / O eco da vida-liberdade” (Evaristo, 2021, p. 24-25).

 

Conclusão

 

A literatura tem desempenhado um papel fundamental na denúncia e na reflexão sobre o racismo em nossa formação social, oferecendo narrativas poderosas que expõem as estruturas discriminatórias enraizadas na sociedade, mesmo que num passado recente. Através de expressões artísticas diversas, desde a literatura até as manifestações visuais e performáticas, artistas e escritoras têm desafiado as normas estabelecidas, revelando as injustiças e os efeitos do racismo em suas camadas. Suas obras não apenas iluminam a rica herança cultural, mas também confrontam as questões sociais, incitando diálogos cruciais para fortalecer o processo de consciência e de mudança em direção a uma sociedade mais equitativa e inclusiva. Através dessas manifestações, a arte e a literatura continuam a ser uma força vital na luta contra a discriminação racial, contribuindo para a evolução e para a transformação do panorama social brasileiro.

 

Desse modo, a literatura, enquanto possibilidade de crítica social, bem como fator de compreensão da realidade e, em consequência, da formação social brasileira, tem em Quarto de despejo: diário de uma favelada (Jesus, 2020) e Olhos d’água (Evaristo, 2016) obras imprescindíveis para a compreensão do passado e do presente do país, em especial, no que concerne à mais da metade da população brasileira, ou seja, negra. Enquanto histórias construídas a partir de uma prática literária de mulheres negras e pobres (escrevivência), o potencial de crítica, sobre a formação social brasileira e, consequentemente, sobre a abolição inconclusa, é maximizado. Tal fato se dá exatamente porque as autoras também têm suas vidas perpassadas pela experiência de serem mulheres negras em um país que, após o fim da escravatura, não medirá esforços em continuar o processo histórico de genocídio negro.

 

Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, com uma escrita carregada de amefricanidade, despertam o Brasil do seu sono injusto e o obriga a acordar para a realidade de morte, violência, fome, pobreza e miséria, na qual a maior parte da população vive. No sonho, somos o país da democracia racial, em que todos competem igualmente, sem distinção de raça e/ou etnia; enquanto uma minoria dorme, e tem o direito de sonhar, o corpo negro está em constante vigília para garantir a própria sobrevivência e a dos seus semelhantes. Entretanto, é ainda no período em que se está desperto que são construídas relações, afetos, projeções de um futuro sem opressões e explorações, mecanismos milenares de resistência e luta em face ao racismo: “A noite não adormece / nos olhos das mulheres / vaginas abertas / retêm e expulsam a vida / donde Ainás, Nzingas, Ngambeles / e outras meninas luas / afastam delas e de nós / os nossos cálices de lágrimas”[18].

 

Referências

 

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Bruna Everlyn Bitencourt de LIMA Trabalhou na concepção, delineamento e na redação do artigo.

Graduanda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Bolsista de iniciação científica (PIBIC/CNPQ) pelo Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS) e membro do Projeto Prodocência “O país que não está no retrato: a formação social brasileira narrada pelos clássicos da literatura”.

 

Thyago Martins de FARIAS Trabalhou na concepção, delineamento e na redação do artigo.

Graduando em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Bolsista do Projeto Prodocência “O país que não está no retrato: a formação social brasileira narrada pelos clássicos da literatura” e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS).

 

Márcia Pereira da Silva CASSIN Trabalhou na concepção, delineamento, redação do artigo e na sua revisão crítica.

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Coordenadora do projeto Prodocência “O país que não está no retrato: a formação social brasileira narrada pelos clássicos da literatura”. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS) e do Centro de Estudos Octávio Ianni (CEOI).

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[1] Este artigo é resultado das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Prodocência O país que não está no retrato: a formação social brasileira narrada pelos clássicos da literatura, financiado com bolsas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

*  © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[2] Consideramos que o artigo se inscreve em um movimento de reflexões sobre as obras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, que busca valorizar as autoras, destacar a imprescindibilidade de sua escrita para compreendermos o Brasil sem mistificações, bem como pensar alternativas para a construção de uma outra realidade. Somamos voz às de Maria de Fatima Lima e Larissa de Paula Couto, incluindo o esforço coletivo de autoras e autores (e da própria Conceição) que produziram “Escrevivência: a escrita de nós - Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo” (Duarte et. al., 2020).

[3] Uma das dimensões que conformam a Améfrica Ladina é o racismo por omissão. Esse último articula duas categorias do pensamento lacaniano: infans e sujeito suposto saber. A primeira trabalharemos posteriormente no artigo, já a última “[...] se refere a identificações imaginárias com determinadas figuras, às quais é atribuído um conhecimento que elas não possuem” (Gonzalez, 2020, p. 142). Assim, o conceito ajuda a compreender a dominação na qual o alienado atribui e reconhece a superioridade do dominador.

[4] Embora a agricultura ainda tenha predominado em termos de renda interna até 1956. Cabe considerar que, apesar dos esforços de industrialização processados no período desenvolvimentista, o caráter dependente e a inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho conservaram a especialização produtiva e a organização das terras na forma de grandes latifúndios monocultores, enquanto economia voltada para a exportação de produtos primários.

[5] Segundo a definição de Konder (2005, p. 67); “[...] o realismo consiste em construir o conhecimento numa direção que permita a superação da autocontemplação narcísica e do autoembevecimento provinciano”. Para Lukács, o método realista se contrapõe à decadência ideológica da burguesia, permitindo a superação dos preconceitos no exame da realidade. Nas palavras do autor: “A capacidade de atingir um tal conhecimento íntimo do homem é o triunfo do realismo na literatura. É evidente que um escritor pode se abrir para uma tal concepção do homem somente quando houver superado, em si mesmo, os preconceitos equivocados que a burguesia divulga sob as mais variadas formas a respeito do homem e do mundo, do indivíduo e da sociedade, da vida interior e exterior da pessoa humana” (Lukács ,2010, p. 81).

[6] Trecho do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval de 2019.

[7] Sobre estes conceitos, ver Moore Jr. (1983) e Coutinho (2008).

[8] Cabe lembrar que tal integração dialética entre agricultura e indústria é uma das particularidades do capitalismo dependente brasileiro, em consequência do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo enquanto sistema mundial que, ao vincular todas as partes do globo, reproduz continuamente uma relação hierárquica entre centro e periferia, definida a partir de diferentes níveis de produtividade do trabalho. A esse respeito, conferir, entre outras referências: Marini (2011).

[9]Adentrar a modernidade (que é capitalista) implica, no caso brasileiro, a reflexão em torno de qual projeto de país estava sendo construído. Concomitantemente, implica, inclusive, em refletir sobre a construção de uma identidade nacional e sobre o problema negro (Munanga, 2019). Nesse contexto, o mito da democracia é alçado como discurso oficial e o branqueamento da população é adotado como política pública: é o meio de negar a existência do racismo e, ao mesmo tempo, expurgar a mancha negra da sociedade. Representa, também, a solução para não lidar com as expressões da questão social, no capitalismo, que afetam a população negra, uma vez que não existiria racismo e, portanto, todos teriam condições iguais de sobreviver.

[10] “Falar com todas as implicações [...]” é pressuposto dos grupos oprimidos que, historicamente, tenham sido “[...] falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se faça na terceira pessoa, porque falada pelos adultos)” (Gonzalez, 2020, p. 77-78).

[11] Em Mbembe (2020), o controle, a punição e o deixar morrer ou matar de determinados grupos, a partir de um critério hierarquizante no campo biológico (racismo), é definido como necropolítica.

[12] Embora não tenha explicitado, nesse trecho da entrevista, que a dificuldade imposta pelas editoras se dê devido ao fato de ela ser negra, no seu diário, em 16 de julho de 1958, escreve que, embora escrevesse peças para os circos, elas eram recusadas apenas pelo fato dela ser preta (Jesus, 2020, p. 64). É desse episódio que nasce a memorável frase: “Esquecendo eles que adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. [...] Se é que existe [sic] reencarnações, eu quero voltar sempre preta” (Jesus, 2020, p. 64).

[13] É significativo que o argumento utilizado por estudantes e responsáveis para a recusa da leitura de Olhos d'água em uma escola em Salvador, na Bahia, no mês do Dia da Consciência Negra e Zumbi dos Palmares, está diretamente ligado ao fato de eles não desejarem lidar com uma dor que não é deles (Rocha, 2023). Isso se dá exatamente porque o modo como o livro é escrito, a partir da escrevivência, nos aproxima da realidade da população negra, realidade essa que é atravessada constantemente pela violação de direitos e a morte.

[14] Faz parte da cotidianidade de Carolina, também, a necessidade de levantar-se cedo para buscar água para as atividades do dia, uma vez que a favela do Canindé, em São Paulo, não tinha acesso ao saneamento básico. Na realidade, contava apenas com uma torneira na qual todos os moradores buscavam água. Posteriormente, a escritora relata, no seu diário, que a favela do Canindé recebeu a visita da Secretaria da Saúde para um trabalho de conscientização e realização de exames, uma vez que registrou o maior número de infectados por esquistossomose. Entretanto, Carolina não realizou o teste, porque não teria dinheiro para pagar o tratamento, novamente, ela alerta para a falta de políticas públicas para evitar a doença: "Vieram nos revelar o que ignorávamos. Mas não soluciona a deficiência da água" (Jesus, 2020, p. 77).

[15] No relato do dia 22 de maio de 1958, Carolina nos conta que, em 1957, quando adoeceu e ficou com medo dos filhos não terem o que comer, precisou "[...] pedir auxílio ao propalado Serviço Social" (Jesus, 2020, p. 45). Entretanto, foi encaminhada a locais diferentes que, no fim, não resultaram em nada, apenas no dispêndio de dinheiro com passagens. Por fim, quando questionou a situação, foi ordenado que a prendessem: "Não me deixaram sair. E um soldado pois a baioneta no meu peito" (Jesus, 2020, p. 45).

[16] O próprio ato da escrevivência poderia ser entendido como uma expressão da amefricanidade uma vez que é perpassada pela ancestralidade, pela coletividade, pelo ato da fala, que é pretuguês, e pela negação do mito da democracia racial.

[17] Embora fique claro durante os relatos do diário que, em diversos momentos, Carolina mostrava descontentamento e brigasse com os seus vizinhos, ela reconhecia que a favela não era apenas lugar de desavença e tristeza.

[18]A noite não adormece nos olhos das mulheres é um poema de Conceição Evaristo (2020b).