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Questão social e racismo: população em situação de rua e Política de Assistência Social

 

Social issues and racism: homeless population and social assistance policy

 

Antonio Reguete Monteiro de SOUZA

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-3707-0403

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

e-mail: tonimonteiro.sesouerj@gmail.com

 

María Fernanda ESCURRA

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0003-2321-8339

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Serviço Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

e-mail: mfescurra@gmail.com

 

Resumo: A proposta deste artigo é trazer elementos sobre a questão social no Brasil, atrelada ao fenômeno do racismo estrutural, para problematizar a existência de população em situação de rua, como segmento excedente da classe trabalhadora, e as respostas dadas através da Política de Assistência Social. Para isso, em um primeiro momento, é analisada a conformação do trabalho livre no Brasil, sua relação direta com o escravismo e a maneira como foi silenciado, chave da formação social brasileira. São assinalados aspectos peculiares do desenvolvimento do capitalismo no país, com o intuito de identificar como tais características estão presentes na própria Política de Assistência Social. Por fim, tratamos especificamente da população em situação de rua e da Política de Assistência Social na cidade do Rio de Janeiro, deixando transparecer o racismo estrutural nessas dimensões.

Palavras-chave: Questão social. Racismo estrutural. População em Situação de Rua. Política de Assistência Social.

 

Abstract: The purpose of this article is to bring elements about the social issue in Brazil, linked to the phenomenon of structural racism, to problematize the existence of the homeless population, as a surplus segment of the working class, and the answers given through the Social Assistance Policy. To this end, at first, the conformation of free labor in Brazil is analyzed, its direct relationship with slavery and the way it was silenced, a key to the Brazilian social formation. Peculiar aspects of the development of capitalism in the country are pointed out, in order to identify how such characteristics are present in the Social Assistance Policy itself. Finally, we deal specifically with the homeless population and the Social Assistance Policy in the city of Rio de Janeiro, revealing structural racism in these dimensions.
Keywords: Social issues. Structural racism. Homeless Population. Social Assistance Policy.

 

 1 Introdução

 

A

proposta deste artigo é trazer elementos sobre questão social[1], atrelada ao fenômeno do racismo estrutural[2], para problematizar a existência de população em situação de rua e as respostas dadas através da Política de Assistência Social voltada para esse segmento excedente ou superpopulação relativa da classe trabalhadora[3].

 

Trata-se de um estudo exploratório descritivo efetivado junto ao Programa Articulação População em Situação de Rua, Organizações e Universidade[4]. Neste sentido, a metodologia utilizada, da qual o presente artigo é síntese de sua produção, estrutura-se em três dimensões: (1) estudo da formação histórica e social da população em situação de rua no Brasil, articulando a teoria crítica de Marx com a formação do trabalho livre no país em sua relação direta com a questão social e o racismo, em que se realizou um estudo teórico e bibliográfico exploratório sobre o tema; (2) sistematização de dados de pesquisas, censos e levantamentos sobre população em situação de rua realizados nacionalmente e em alguns municípios, no período de 2014 a 2024; e (3) atuação direta em um Centro POP, na cidade do Rio de Janeiro.

 

Nesta perspectiva, inicialmente é oportuno registrar que, à primeira vista, parece lugar-comum correlacionar população em situação de rua com questão social e racismo estrutural no Brasil, visto que, se considerados os dados sobre essa população em diversas pesquisas nacionais e municipais, cerca de 80% são de pessoas negras[5], enquanto na população geral esse percentual é de 55,9% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023).

 

Neste sentido, parte-se de dois aspectos: o primeiro diz respeito à formação do trabalho livre no Brasil e sua relação direta com o escravismo; e o segundo coloca a necessidade de pensar o escravismo como sistema econômico intrínseco à idiossincrasia da questão social no país. Analisa-se o escravismo como sistema econômico que compõe a questão social no Brasil, no contexto da internacionalização do capital, entendendo que ele “[...] só poderia sobreviver com e para [...]” (Moura, 2014, p. 66) o mercado global. Nessa perspectiva, o escravismo é um sistema econômico inerente e indissociável ao desenvolvimento do capitalismo no século XIX.

 

[...] escravidão foi um sistema econômico de primeira importância [...] forneceu o açúcar para a xícara de chá [...] produziu o algodão para servir de base ao capitalismo moderno. [...] As razões para a escravidão, escreveu Gibbom Wakefiel, ‘não são circunstâncias morais; não se relacionam com vício ou virtude, mas com a produção’ (Williams, 2012, p. 9-10).

 

Desse modo, a formação do capitalismo no Brasil[6] deve ser vislumbrada a partir das categorias da dependência[7] e expropriação[8], que podem ser aplicadas como características de longa duração, que se estendem do escravismo aos dias atuais.

 

No contexto de crise estrutural e de reorganização do capitalismo em escala internacional, processos de ultraneoliberalismo[9] e neoconservadorismo[10] alastram-se nas economias capitalistas desde o início da década de 1990. Trata-se de uma dinâmica degradante proporcional à barbarização da vida em sociedade que se reproduz em prejuízo da humanidade e ameaça a sua própria sobrevivência (Netto, 1995). Esse cenário desencadeia profundas transformações societárias determinadas pelas mutações na esfera do trabalho, pela reforma gerencial do Estado ou, nos termos de Behring (2008), contrarreforma, redefinindo sistemas de proteção social e políticas sociais que emergem nessa conjuntura, dadas as novas formas de enfrentamento da questão social, com mudanças significativas e rebatimentos nas relações público/privado (Raichelis, 2009).

 

Sobre os rebatimentos nessas relações, como exemplo ilustrativo, cabe mencionar o crescente destaque que, a partir do início do século XXI, ganha a teoria do risco social nas diretrizes que orientam as políticas sociais de países em desenvolvimento. Tal teoria apresenta enunciados que – sintetizados em propostas de iniciativa local, promoção de uma sociedade civil ativa e tantas outras – prometem renovação e transformações, embora sustentem o triunfo do capitalismo, atualizando discursos e práticas conservadoras que responsabilizam indivíduos, famílias e comunidades[11], crescendo, em contraposição, a desresponsabilização do Estado.

 

No Brasil, essa situação é agravada, visto que já a partir da década de 1990 é cenário de retrocessos no âmbito do Estado e na universalização de direitos, concomitante com o processo de democratização política, econômica e social, assim como na inclusão da Política de Assistência Social, na Constituição de 1988, e do reconhecimento como direito social integrante do tripé da Seguridade Social (Barroco, 2015; Behring, 2008).

 

Na trajetória dos sistemas de proteção social do país são observados limites estruturais articulados com a natureza peculiar do desenvolvimento do capitalismo, que possui traços de condição periférica e dependente, caracterizada pela “heteronomia” em oposição à ideia de autonomia (Fernandes, 1975). Também se observa o desenvolvimento capitalista sem transformações estruturais, como a construção do moderno através do arcaico (Oliveira, 1988). O conjunto desses traços faz com que a sociedade brasileira seja caracterizada como uma sociedade marcada pelo coronelismo, populismo, autoritarismo social, despotismo político, ideologia do favor, pelas relações de dependência pessoal, de compadrio e patrimonialismo, formas políticas de apropriação da esfera pública em função de interesses de grupos no poder (Chauí, 2000). Nesta perspectiva, é possível chamar a atenção para o fato de que, no conjunto desses traços, não ganha relevância a presença do escravismo como fenômeno estruturante da formação social brasileira.

 

2 Questão social e racismo estrutural: formação do trabalho livre e assistência social no Brasil

 

Para iniciar a discussão deste item, cabe registrar que os estudos que buscam fazer a correlação entre as Políticas de Assistência Social e o racismo estrutural são recentes e ainda escassos[12]. Entende-se que esse aspecto pode ser indício de que, no Brasil, houve um apagamento do escravismo como dimensão constitutiva da questão social e da sua influência na formação histórica, política, ideológica, cultural, econômica, assim como nas dinâmicas e práticas das próprias Políticas de Assistência Social.

 

Entre autores do Serviço Social que discutem a Política de Assistência Social, é consenso fazer referência ao clientelismo, patrimonialismo e primeiro-damismo como características intrínsecas de longa duração que só foram, em parte, rompidas com a Constituição de 1988 (Sposati et al., 2007; Couto, 2006; Mestriner; 2005; Yazbek, 1996). De fato, pode-se observar que, mesmo diante da ruptura promovida pela Constituição Cidadã no âmbito das políticas sociais no Brasil, essas características ainda se encontram em muitas práticas e em muitos governos, sendo amplamente analisadas nos estudos sobre o tema, porém a relação com o escravismo não tem o mesmo destaque. Acredita-se que este fato contribui para o ocultamento do escravismo como caraterística intrínseca da formação social brasileira e apaga a luta abolicionista do contexto da luta de classes. Diante disso, afirma-se a relevância de avançar na compreensão da Política de Assistência Social articulada com o fenômeno do escravismo intrínseco à questão social, entendida como um traço que permeia a formação social do país, e sendo, portanto, de atualidade para se pensar a história passada e presente da assistência social.

 

Para refletir sobre o escravismo como chave da formação social brasileira e o modo como foi silenciado no mais amplo espectro da sociedade, basta atentar-se para o fato de que nenhum movimento sindical, político, acadêmico, ou de práticas e políticas estatais no pós-abolição, incorporava em suas lutas e ações a inclusão das pessoas recém-libertas no projeto societário.

 

Mesmo os socialistas da virada século XIX para o XX, que apontavam como fatores para o atraso nas relações de trabalho a escravidão e o clero, desqualificavam os escravos, como nos mostra Gomes (2006, p. 67): ‘Estevam Estrela [escrevendo na Gazeta Operária em 1902] afirma que, pelo estudo psicológico que vinha fazendo dos operários modernos deste país, todos continuam a ter o mesmo respeito ao patrão que os escravos tinham aos seus senhores. Não havia diferença, mesmo os estrangeiros, com raras exceções, são tão covardes como os escravos’ (Souza, 2009 p. 10).

 

É necessário registrar, também, que a formação da classe de trabalhadores livres no Brasil se dá através de um Estado que opera conjugando liberalismo[13] e escravismo[14]. Na segunda metade do século XIX, o trabalhador livre confrontava-se com as pessoas escravizadas, para garantir o ganho pelas ruas das grandes cidades do país. Observa-se que as primeiras lutas dos trabalhadores assalariados relacionadas ao modo de produção capitalista ocorreram ao mesmo tempo em que se intensificaram as lutas abolicionistas (Coggiola, 2003).

 

Por esse motivo, Gomes (2006) argumenta que o “[...] referencial da escravidão se impõe para a construção de qualquer tipo de discurso que envolva uma ética do trabalho” (Gomes, 2006, p. 26). Do mesmo modo afirma Moura (2014) que as duas classes sociais, senhores e pessoas escravizadas, subordinariam ideológica e moralmente o restante da sociedade. A ética da escravização irá impregnar a formação social do trabalho livre no Brasil, e o próprio Estado concorreu para impedir qualquer tipo de acesso aos meios de ascensão social por parte das pessoas ex-escravizadas, empurrando-as diretamente para a pobreza extrema e criando mecanismos sociais e institucionais que as impediam de vender sua força de trabalho livre no pós-abolição[15], diferente de como agiam com os imigrantes, para os quais havia uma política governamental institucionalizada que garantia subsídios diretos ou terras para que pudessem substituir o trabalho de pessoas escravizadas[16].

 

Diante disso, é possível afirmar que a formação da classe de trabalhadores livres no Brasil é muito mais complexa e diversificada do que a formação da classe operária, sendo essa última mais um “[...] acontecimento dentro da formação da classe de trabalhadores assalariados no país” (Souza, 2015, p. 69). Nesta perspectiva, para compreender a formação social do trabalho livre no país, não se deve “[...] estabelecer um tipo específico de trabalhador como se constituísse o conjunto da classe” (Fontes, 2006, p. 202-203). É fato que, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, “[...] verifica-se a constituição de um mercado de trabalho livre que se desenvolve nesta cidade [Rio de Janeiro] em torno dos setores comercial, manufatureiro, de transporte, portuário e do funcionalismo público [...]” (Neder; Naro, 1981, p. 231), em conjunto com o escravismo tal qual um sistema de produção e forma urbana de ganho econômico.

 

A convivência e a relação direta entre pessoas escravizadas e trabalhador livre podem ainda ser verificadas em Moura (2014, 1988a e 1988b), o qual assinala a existência de pessoas escravizadas laborando como operários na mesma planta em que trabalhadores livres trabalhavam, como no caso da Imperial Associação Tipográfica Fluminense. Vale ressaltar que, segundo o recenseamento de 1849, 41,5% dos trabalhadores da capital do império (Rio de Janeiro) eram pessoas escravizadas. Esse número se altera profundamente no recenseamento de 1872, quando o percentual de trabalhadores escravizados passa para 17,8% (Mattos, 2008; Chalhub, 2006). Na mesma direção, Mattos (2004) acrescenta que a “[...] complexidade da escravidão especialmente na situação urbana e a proximidade entre trabalhadores escravizados e livres, nos espaços de trabalho urbano [...]” (Mattos, 2004, p. 233), deve ser levada em conta ao pensar a formação do trabalho livre no Brasil.

 

Dessa maneira, como adverte Fernandes (2017), é possível afirmar que “[...] classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem existente, que só podem se recompor em uma unidade mais complexa” (Fernandes, 2017, p. 85). Para o autor, ainda que a classe seja um componente determinante da questão social, a raça não deve ser vista como um dinamismo secundário. Ambas fazem parte da mesma complexidade histórica da formação social do trabalho livre no Brasil.

 

Com base nas discussões apontadas acima sobre a relação entre raça e classe na formação da questão social no Brasil, no próximo tópico abordam-se os temas população em situação de rua na atualidade e a vinculação histórica e social das políticas de assistência com o racismo estrutural.

 

3 População em situação de rua e política de assistência social

 

A assistência social no Brasil começa com as casas da Misericórdia, as quais, apesar do vínculo religioso, eram instituições geridas pela filantropia com íntimas ligações com o Estado, que, por sua vez, “[...] se articulava a uma estrutura de dominação colonial que incluía o projeto escravocrata” (Souza, 2009, p. 12). Com o advento da República, as ações de assistência social ligadas tanto à filantropia quanto à caridade e ao Estado institucionalizavam práticas com referências no positivismo e no higienismo “[...] a partir de importações de teorias europeias que, em sua totalidade, exaltam a superioridade da cultura e evolução social branca em relação às demais” (Souza, 2009, p. 10).

 

Segundo Quiroga (2011), a filantropia “[...] mantém antigos valores e justificações morais [...] ao mesmo tempo se apresenta com novos elementos” (Quiroga, 2011, p. 7). A autora demonstra a chave para pensar o modo como o racismo estrutural impregna as práticas de ajuda e apoio, e como a filantropia passou a se apresentar como “[...] racionalizadora e laicizante [...]” (Quiroga, 2011, p. 7), tratando a pobreza a partir do conhecimento técnico-científico. Ao mesmo tempo que “[...] criticava a sociedade colonial e o escravismo [...]” (Quiroga, 2011, p. 8), questionava com igual empenho as “[...] influências africanas e às manifestações da cultura e do modo de vida popular” (Quiroga, 2011, p. 8).

 

A assistência social foi construída inicialmente para os imigrantes pobres, depois passou a estar relacionada aos trabalhadores de modo geral aos fabris em particular, em sua maioria brancos. Ainda que nos arquivos históricos da assistência social seja possível vislumbrar o atendimento aos negros, ela não foi pensada ou estruturada para atender às demandas sociais surgidas no período posterior à abolição, e muito menos como qualquer tipo de apoio, ajuda ou incorporação das pessoas ex-escravizadas no projeto de nação (Quiroga, 2008, 2011; Rangel, 2010; Sanglar, 2003; e Souza, 2009 e 2015). Nesse sentido, aborda-se a precariedade das ações e projetos da Política de Assistência Social destinada à população em situação de rua como um possível processo de continuidade da não incorporação das pessoas negras no projeto de nação.

 

As primeiras iniciativas de organização da população em situação de rua aconteceram com a redemocratização do país, mostrando seu potencial e sua força de articulação. A essas iniciativas se somaram organismos multilaterais, estudiosos, movimentos de igrejas, entre outros (Machado, 2020; Sposati, 2009). Nesse contexto, é aprovada, em 1993, a Lei nº 8.742, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), modificada pela Lei nº 11.258, de dezembro de 2005, que acrescentou o serviço de atendimento a pessoas que vivem em situação de rua, atualizada pela Lei nº 12.435, de julho de 2011 (Brasil, 2011b, 2005a, 2005b e 1993).

 

Em 2006, teve início o processo de discussão e elaboração do texto da Política Nacional de População em Situação de Rua (PNPR), publicada em dezembro de 2009. Ainda nesse ano, foi realizado o II Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, contando com os resultados da Pesquisa Nacional, oportunidade em que foi estabelecida e validada a proposta intersetorial da PNPR, através do Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009[17], que, além da política, instituiu, também, o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da PNPR (CIAMP-Rua) (Brasil, 2024b, 2009, 2008). O referido decreto considera população em situação de rua

 

[...] o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (Brasil, 2009, não paginado).

 

Em que pese a heterogeneidade dessa população, representada por grupos historicamente discriminados, como idosos, adolescentes, pessoas com transtornos mentais e LGBTQIA+, verifica-se quase uma homogeneidade ao observar o recorte de cor, com predominância hegemônica da população negra[18].

 

A Política de Assistência Social (Brasil, 2005a), na qual estão previstas ações, além de serviços e projetos para a população em situação de rua, ancora-se no ordenamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)[19], mais especificamente na Proteção Social Especial, tanto de média quanto de alta complexidade. A oferta de serviço especializado para a população em situação de rua na Proteção Social Especial de Média Complexidade se dá por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e dos Serviços Especializados de Abordagem Social. Já a Proteção Social Especializada de Alta Complexidade diz respeito às diversas modalidades de acolhimento institucional temporário (Brasil, 2011a; e Brasil, 2005b).

 

Os serviços e projetos da Política de Assistência Social voltada especificamente para a população em situação de rua articulam o Serviço Especializado em Abordagem Social responsável pela busca ativa e identificação de famílias e indivíduos, bem como os circuitos de rua, identificando territórios, trajetórias, incidências e relações institucionais. Essas equipes estão vinculadas ao CREAS e/ou ao Centro POP. O Serviço Especializado em Abordagem Social deve ser o principal ponto de vinculação entre os usuários e os demais serviços socioassistenciais e de Defesa de Direitos. O Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) é destinado exclusivamente à população adulta em situação de rua, ou seja, para pessoas que usam a rua como moradia e/ou sobrevivência, orientando e encaminhando essa população para outros serviços socioassistenciais, políticas públicas e órgãos de defesa de direitos (Brasil, 2005b, 2011a).

 

Além do Centro POP, o CREAS também oferece serviços que garantem a inclusão de famílias em situação de rua na rede socioassistencial e de direitos (Brasil, 2011a). Cabe destacar que a inclusão de pessoas em situação de rua no CadÚnico[20], tendo o CREAS ou o Centro POP como endereços de referência, possibilitou avanços para a inclusão na rede, criando-se um instrumento qualificado de coleta de dados e identificação que permite, teoricamente, análises técnicas na construção de políticas públicas e previsão orçamentária.

 

A complexidade da problemática da população em situação de rua exige também respostas complexas, o que demanda uma articulação entre diversas políticas públicas e órgãos de defesa de direitos. Cabe enfatizar que a política social para a população em situação de rua ocorre, de fato, na intersetorialidade, pois deve envolver as políticas de Saúde, Habitação e Trabalho, além dos diversos órgãos de garantia de direitos. Caso contrário – como na prática acontece –, torna-se uma política limitada, uma política pobre voltada para pobres, cuja ineficácia pode ser compreendida como expressão objetiva do racismo estrutural. Esse aspecto pode ser evidenciado no fato de que a cidade do Rio de Janeiro possui apenas dois Centros POP, um no Centro da cidade, onde se concentra o maior número dessa população; e outro em Bonsucesso, bairro localizado na zona norte. A pesquisa da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura do Rio e o Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP) apontou, em 2020, o total de 7.272 pessoas nessa condição, sendo que apenas 20%, aproximadamente, têm acesso a vagas em instituições de acolhimento ou abrigo (Rio de Janeiro, 2020).

 

Trata-se da existência de população em situação de rua como expressão multifacetada da questão social, que tem no racismo estrutural um determinante fundamental. Isso fica evidenciado através de dados de diversas pesquisas, como, por exemplo, a da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, a qual identificou, nos anos de 2020 e 2022, que 79,6% e 83,7%, respectivamente, do total de pessoas em situação de rua eram negras, em comparação com o  percentual de 68% de todo o Brasil, em 2022  (Natalino, 2023; Rio de Janeiro, 2020, 2022). 

 

Ao longo deste texto foram apresentadas constatações sócio-históricas relacionadas com o escravismo na formação da classe trabalhadora, o racismo como aspecto intrínseco do capitalismo e o modo como se constituiu historicamente a assistência social no país. Também foi abordado o funcionamento dos serviços da Política de Assistência Social na atualidade voltados para a população em situação de rua. Além disso, comprovou-se que essa população é composta de pessoas negras, em sua maioria. Nas considerações a seguir, aponta-se, ainda que de forma concisa, a relação entre estes pontos, quais sejam: a questão social, o racismo estrutural, a população em situação de rua e a Política de Assistência Social.

 

 

 

 

4 Considerações finais

 

No contexto neoliberal, as expressões sobre a questão social, neste caso específico a existência de população em situação de rua, passam a ser analisadas como resultado de problemas individuais, morais, subjetivos, que culpabilizam e criminalizam os próprios indivíduos pela situação de pobreza. Dessa forma, como já observava Marx (2010) em 1844, em um pequeno texto em que analisa o pauperismo clássico inglês do século XIX e as suas formas de enfrentamento, a pobreza, longe de ser entendida como produto do modo de produção capitalista, é analisada como problema político, filantrópico, administrativo ou imputado como problema dos próprios pobres. Esse texto de Marx permite identificar uma linha de continuidade nas formas de consciência teóricas e políticas para o entendimento e tratamento da pobreza desde o século XIX até os dias atuais.

 

Da mesma forma, é possível identificar uma linha de continuidade entre o racismo estrutural e o modo como se estruturou a Política de Assistência Social no Brasil. Apesar da ruptura positiva, na perspectiva dos direitos sociais, que se deu a partir da Constituição de 1988, perpetua-se o modo de “[...] assistir aos necessitados sem apagar as desigualdades” (Quiroga, 2011, p. 9).

 

Tal matriz enraíza-se de tal forma na realidade da assistência social que sua superação permaneceu (e permanece) como um dos maiores desafios à implantação de políticas públicas norteadas por noções de direito e cidadania das camadas mais pobres no Brasil (Quiroga, 2011, p. 9).

 

Ademais, é abordada a relação direta do escravismo com a formação do trabalho livre com intuito de demonstrar que a questão social no Brasil não pode ser explicada sem incluir o racismo estrutural. Neste particular, atualmente, se considerado o conjunto da população brasileira, seria preciso identificar na população pobre a mesma correlação estatística de cor que a encontrada no conjunto da população geral. No entanto, no conjunto da população pobre, em particular da população em situação de rua, a expressiva maioria é de pessoas negras, de modo que, como anteriormente assinalado, o racismo estrutural apresenta-se como fator intrínseco à questão social, a qual não pode ser pensada sem incluir esse componente.

 

Finalmente cabe sublinhar que a escravização é um aspecto definidor do não reconhecimento de dignidade, tal como se fazia com a pessoa escravizada e agora parece se reproduzir com a população em situação de rua. Sendo assim, é possível afirmar que o problema central que impera nas Políticas de Assistência Social não é a continuidade do patrimonialismo, do clientelismo ou do primeiro-damismo, mas sim o escravismo como dimensão da questão social no Brasil. Tal esquecimento, que parece um apagamento deliberado do escravismo como característica intrínseca da formação social brasileira, assenta-se sobre a naturalização da desigualdade ao formular políticas sociais pobres para pobres.

 

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Antonio Reguete Monteiro de Souza Trabalhou na concepção, delineamento, análise, interpretação dos dados, redação e revisão crítica do artigo.

Doutor e Mestre em Serviço Social (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio), Psicólogo (Universidade Gama Filho – UGF). Consultor no desenvolvimento de projetos sociais, graduando em Serviço Social (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ). Integrante do Programa Articulação População em Situação de Rua Organizações e Universidade – ArtPOPRua (UERJ).

 

María Fernanda Escurra Trabalhou na concepção, delineamento, análise, interpretação dos dados, redação e revisão crítica do artigo.

Doutora em Serviço Social (UERJ), Mestre em Serviço Social (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), Assistente Social (Universidad Nacional de Rosario - Argentina). Professora Associada da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Integrante do Centro de Estudos Octavio Ianni – CEOI (UERJ). Coordenadora do Programa Articulação População em Situação de Rua Organizações e Universidade – ArtPOPRua (UERJ), com projetos de pesquisa na área da Teoria Social de Marx e Crítica da Economia Política e “População em Situação de Rua: política de assistência social, população excedente, trabalho e pobreza”, contando com bolsistas Prodocência, Extensão de IC FAPERJ.

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora Temática

 

 

 

 

Submetido em: 31/10/2023. Revisto em: 18/7/2024. Aceito em: 9/8/2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Creative Common - by 4.0

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[1] Nas palavras de Iamamoto (2001, p. 16-17), “[...] questão social tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho”. No entanto, a questão social diz respeito, também, ao terreno de disputas, a um processo denso de “[...] conformismos e rebeldias, expressando a consciência e a luta pelo reconhecimento de direitos de cada um e de todos os indivíduos sociais” (Iamamoto, 2008, p. 160).

[2] Conforme Almeida (2018), o racismo estrutural é aquele que “[...] transcende o âmbito da ação individual [...]” (Almeida, 2018, p. 36) e pode ser identificado em normas, leis, e instituições que são a “[...] materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização [...]” (Almeida, 2018, p. 36) como um “[...] fator estrutural, que organiza as relações políticas e econômicas” (Almeida, 2018, p. 141). Para um aprofundamento ver: Carneiro (2023).

[3] “A superpopulação relativa existe sob os mais variados matizes. Todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente empregado [...] as formas principais que se reproduzem periodicamente assumem, continuamente, as três formas seguintes: flutuante, latente e estagnada” (Marx, 1994, p. 743). A essas formas o autor acrescenta que o “[...] mais profundo sedimento da superpopulação relativa vegeta no inferno da indigência e do pauperismo” (Marx, 1994, p. 747). A lei geral da acumulação capitalista, apresentada por Marx (1994), enquanto lei tendencial característica da dinâmica deste modo de produção, contribui para problematizar e compreender a existência da pobreza.

[4] Projetos de ensino, pesquisa e extensão coordenados pela Profa. María Fernanda Escurra, Faculdade de Serviço Social da UERJ, contando com sete bolsistas UERJ e FAPERJ, além de alunas voluntárias.

[5] Essa informação está ancorada no fato de que, segundo o IPEA (Natalino, 2024), 68% das pessoas em situação de rua no Brasil são negras; enquanto o percentual na cidade é de 83,7%, segundo a prefeitura do Rio de Janeiro (2022), e de 71,5%, segundo a prefeitura de São Paulo (2021).

[6] É oportuno registrar que, no marco da formação do capitalismo no Brasil, a questão social já estava posta desde o século XIX como expressão direta do cosmopolitismo (Gramsci, 2004; 2006). Nos termos de Gramsci, cosmopolitismo significa a dimensão da internacionalização do capitalismo, o que permite compreender as especificidades da questão social no Brasil, sem perder a perspectiva da relação direta com a economia internacional.

[7] Cf. Marini (1991).

[8] Cf. Fontes (2018), que analisa os processos de expropriação contemporâneos, denominados primários e secundários, como a contraface necessária da concentração exacerbada de capitais, forma mais selvagem da expansão do capital.

[9] Procópio (2020) denomina ultraneoliberalismo “[...] as exigências que ultrapassam as privatizações e os cortes dos recursos das políticas públicas, mesmo aquelas focalizadas e compensatórias” (Procópio, 2020, p. 315-316). Segundo a autora, “[...] estão sendo minados não somente todos os graus de resistência aos novos padrões de acumulação, mas verificamos o aumento expressivo da descartabilidade de populações negras e indígenas” (Procópio, 2020, p. 316).

[10] Segundo Barroco (2015, p. 624-625), “[...] o neoconservadorismo apresenta-se como forma dominante de apologia conservadora da ordem capitalista, combatendo o Estado social e os direitos sociais, almejando uma sociedade sem restrições ao mercado, reservando ao Estado a função coercitiva”.

[11] Para um aprofundamento desta discussão, ver Escurra (2019).

[12] Entretanto, cabe enfatizar a existência dos artigos de Souza (2009), Quiroga (2009 e 2008) e Ferreira (2020).

[13] Conforme Outhwaite e Bottomore (1996), o liberalismo é um aspecto doutrinário do capitalismo que sustenta que a finalidade do estado é facilitar os projetos de indivíduos independentes sem imposições. No século XIX, incorporou ideias como livre-comércio e foi revivido com força durante os anos de 1970. É defendido, principalmente, por partidos conservadores.

[14] Cf. Ferreira (2020).

[15] Cf. Moura (1988a, 1988b e 2014) e Fernandes (1975; 2017).

[16] Souza (2015) demonstra que o ministro da Justiça Epitácio Pessoa escreveu, em 1889, que, diferente dos incentivos dados à imigração, não houve “[...] medidas necessárias para regular a transformação do trabalho, e descurar a sorte futura assim dos redimidos da escravidão” (Souza, 2015, p. 74).

[17] Tal decreto é um conjunto de princípios que não oferece subsídios quanto à tipificação de serviços. Diferente da Lei nº 14.821, de 16 de janeiro de 2024 (Brasil, 2024a), que institui a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua), operacionalizada através dos Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua).

[18] Para detalhamento dos dados que sustentam essa afirmação, ver Natalino (2023, 2024), Rio de Janeiro (2020, 2022) e São Paulo (2021).

[19] Para aprofundamento, ver Brasil (2005b).

[20] Cf. Brasil (2022).