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Confluências quilombolas: o caso da comunidade de Croatá (MG)

 

Quilombola confluences: the case of the community of Croatá (MG)

 

Agda Marina F. MOREIRA*

Instituto René Rachou, Fiocruz Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil.

e-mail: agda.quilombos@gmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-0175-1256

 

Léo HELLER

Instituto René Rachou, Fiocruz Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil.

e-mail: leo.heller@fiocruz.br

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0003-0175-0180

 

Priscila Neves da SILVA

Instituto René Rachou, Fiocruz Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil.

E-mail: prineves@gmail.com

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0001-8909-4477

 

Resumo: O presente artigo é fruto de interlocuções junto à comunidade quilombola, pesqueira e vazanteira de Croatá (MG), localizada no município de Januária, região norte mineira. A comunidade vem passando por um processo de reterritorialização desde 2013, tendo o Rio São Francisco como protagonista. Por meio de uma pesquisa colaborativa, apresentamos aspectos oriundos de nossa observação participante e entrevistas realizadas no segundo semestre de 2023, permeados pelo marco da relação entre saúde e território. Apresentamos as percepções dos sujeitos pesquisados sobre o território, tendo por eixo norteador o conceito de ‘confluência’, cunhado pelo pensador quilombola Nego Bispo. Sob essa base, analisamos as relações de lutas e afetos construídas pela comunidade na defesa de seu território e as imbricações desse processo com a saúde dos sujeitos quilombolas. Como resultado, temos por premissa que a saúde quilombola deve considerar suas especificidades e as referências de seus sujeitos, tendo nos modos de saber e fazer aspectos relevantes. Portanto, pensar em saúde somente é possível se associado ao território. Nesse processo em que a memória e a oralidade ganham destaque, os sujeitos quilombolas devem ser ouvidos e considerados na proposição de uma modalidade de saúde que os contemple.

Palavras-chave: Confluências. Modos de viver. Quilombo. Reterritorialização. Saúde.

 

Abstract: This article results from dialogues with the quilombola, fishing, and floodplain (vazanteira) community of Croatá (MG), located in the municipality of Januária, in the northern region of Minas Gerais, Brazil. Since 2013, this community has been undertaking a process of reterritorialization, with the São Francisco River at its centre. Through collaborative research, we present aspects derived from participant observation and interviews conducted in the second half of 2023, interwoven with the relationship between health and territory. We present the perceptions of the research subjects regarding the territory, using the concept of “confluence”, coined by quilombola thinker Nego Bispo, as a guiding axis. Based on this, we analysed the relationships of struggles and affections formed by the community in defence of their territory, and the implications of this process for the health of quilombola subjects. As a result, we assert that quilombola health must take into consideration the specificities and the references of its subjects, and highlight the relevant aspects of their ways of knowing and doing. Therefore, thinking about health is only possible when associated with the territory. In this process, where memory and orality stand out, quilombola subjects must be heard and considered in any proposal for a health modality that includes them.

Keywords: Confluences. Ways of Living. Quilombo. Reterritorialization. Health.

 

Submetido em: 13/2/2024. Aceito em: 15/5/2024.

 

1                     Introdução

 

[...] Acredito que seja essa estreita relação dos povos de lógica cosmovisiva politeísta com os elementos da natureza, é dizer, a sua relação respeitosa, orgânica e biointerativa com todos os elementos vitais, uma das principais chaves para compreensão de questões que interessam a todas e todos. Pois sem a terra, a água, o ar e o fogo não haverá condições sequer para pensarmos em outros meios (Santos, 2015, p. 90).

 

É a partir da síntese das relações confluentes trazida pelo quilombola e mestre dos saberes tradicionais, Antônio Bispo dos Santos (2015), mais conhecido como Nego Bispo, que iniciamos nossa discussão para pensar o território quilombola em toda sua amplitude, diversidade e centralidade na vida desses povos. A ideia de confluência é o ponto de partida para compreendermos os processos de reterritorialização vivenciados pela comunidade quilombola, pesqueira e vazanteira de Croatá.

 

Tal confluência já se manifesta na forma como a comunidade se autodeclara, apresentando uma pluralidade de identidades, todas diretamente relacionadas às vivências e experiências construídas em torno do Rio São Francisco, elemento chave na dinâmica territorial. São quilombolas por sua ancestralidade, vinculada à resistência e à escravização. Pesqueira, porque a pesca artesanal é a sua principal fonte de renda, de sustento e de lazer. E vazanteira, porque plantam suas roças às margens do Rio São Francisco, sendo este a principal fonte de reprodução da vida da comunidade.

 

Situada às margens do Rio São Francisco, a comunidade de Croatá está localizada em Januária, região norte de Minas Gerais, sendo este o município com a maior incidência de comunidades quilombolas do estado, conforme levantamento do IBGE em 2023 (Gomes, 2023). Com o processo de retomada territorial iniciado em 2013, a comunidade vem reivindicando a área atualmente ocupada em disputa com fazendeiros locais, após a expulsão de seus antepassados em 1979, processo marcado pela violência e pelo racismo.

 

Somado a este processo, a comunidade sofreu duramente com a cheia histórica do Rio São Francisco em 2022, o que acirrou ainda mais os conflitos, uma vez que retomaram as partes altas do território, as quais um fazendeiro reivindica como proprietário.

 

Este é o ponto de partida das discussões que faremos ao longo deste artigo, sendo parte de pesquisa construída junto com os membros da comunidade, visando correlacionar saúde e território e suas interfaces no processo de reterritorialização vivenciado pela comunidade.

 

A partir da observação participante e das entrevistas realizadas com membros da comunidade, pretendemos apresentar parte das reflexões advindas desse processo, tendo por recorte teórico o racismo ambiental, as lutas por justiça ambiental e as relações entre saúde e território, a partir das vivências e das memórias compartilhadas pelos comunitários.

 

2                    Refletindo sobre o conceito de território e implicações para Croatá

 

Compreender o conceito de território e como ele se configura nas vivências e na luta das comunidades quilombolas é um ponto central para toda e qualquer discussão relacionada a esses povos. Isto porque o território vai além de sua concepção material, indispensável à reprodução sociocultural e econômica das comunidades, também assumindo uma dimensão simbólica, subjetiva, daquilo que não se identifica concretamente, mas que se apreende no dia a dia.

 

O conceito de território vem sendo adotado no campo da saúde coletiva como um locus de observação na identificação de doenças, iniquidades e práticas de saúde em cada contexto. A vigilância popular em saúde também considera o recorte territorial como forma de propor ações e de delimitar a atuação das equipes de saúde. A territorialidade também é um recorte na discussão sobre os Determinantes Sociais em Saúde, uma vez que o recorte geográfico incide diretamente nos serviços e no acesso à saúde de determinada população, com ênfase nas áreas rurais e periféricas.

 

Aqui, nos remetemos a três recortes epistemológicos para dialogarmos com nossa pesquisa: a) a noção de espaço, b) a territorialidade a partir de uma noção antropológica e c) o território a partir do marco legal[1]. Posteriormente, correlacionaremos território e saúde, dando ênfase às noções dos sujeitos quilombolas pesquisados.

 

Para Milton Santos (2021), o território pode ser entendido como resultado das ações humanas sobre os objetos naturais e artificiais dispostos em dado espaço, compostos por fixos e fluxos. Resultado de um sistema composto por sistemas de objetos e sistemas de ações, o espaço interliga físicos e subjetivos, tendo na ação humana o ponto central para sua composição, uma vez que:

 

O espaço seria um conjunto de objetos e de relações que se realizam sobre estes objetos; não entre eles especificamente, mas para as quais eles servem de intermediários. Os objetos ajudam a concretizar uma série de relações. O espaço é resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos, naturais e artificiais (Santos, 2021, p. 78).

 

A definição de Milton Santos é o ponto de partida para entendermos as distintas percepções construídas sob o território quilombola, dotado de ancestralidade, indispensável à vida socioeconômica e mantenedor do simbólico, daquilo que os interligam à ocupação tradicional. Por outro lado, temos a figura de fazendeiros como proprietários de terras, que utilizam aquele espaço com finalidade exclusivamente econômica, sem nenhum aspecto subjetivo que os vincule àquele território. Vale ressaltar que este tipo de relação com a terra, vai na contramão das relações confluentes que os quilombolas constroem com o território, sendo uma atividade predatória baseada no lucro e no extratisvismo, não havendo respeito aos povos que ali residem e nem ao meio ambiente, sendo essas relações pautadas em diversos tipos de violência.

 

Os antagonismos já se apresentam em seu aspecto conceitual, o que é reforçado tanto na abordagem antropológica quanto no marco legal, partindo-se da prerrogativa de que a territorialidade, ou seja, os processos de ocupação e de construção de dado espaço, são anteriores ao próprio conceito de território.

 

De uma perspectiva antropológica, a territorialidade pode ser definida como “[...] o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território ou ‘homeland’’’ (Little, 2002, p. 3). Tal compreensão está diretamente relacionada à concepção de um território compartilhado por um grupo, sob o preceito de ‘sentimento de pertencimento’, no qual reproduz suas práticas socioculturais voltadas à subsistência e à resistência.

 

No nosso caso, um território constitui-se imbricado de relações subjetivas, ancoradas em memórias, sentimentos e num tempo não linear, sendo o vínculo com o passado elemento constitutivo e mantenedor de um sentimento de pertencimento como quilombolas. Este aspecto se torna bastante relevante, uma vez que Croatá é composta por sujeitos oriundos de lugares e tempos distintos, mas que estão interligados por um fio condutor de vivências e memórias, representado aqui pelo Rio São Francisco. Nesse sentido, Marcos Saquet (2015) nos auxilia no exercício de compreendermos a territorialidade da comunidade em questão, ao definir que:

 

A territorialidade é um fenômeno social, que envolve indivíduos que fazem parte de grupos interagidos entre si, mediados pelo território; mediações que mudam no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, a territorialidade não depende somente do sistema territorial local, mas também das relações intersubjetivas; existem redes locais de sujeitos que interligam o local com outros lugares do mundo e estão em relação com a natureza (Saquet, 2015, p. 115).

 

Essa definição é central para analisarmos o processo de reterritorialização da comunidade de Croatá, uma vez que, indivíduos de categorias diversas ­– barranqueiros, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores, vazanteiros ­– encontram uma unicidade na luta e retomada de dado território. Aqui, compreendemos o processo de reterritorialização como o de formação de um novo território, tendo por elemento norteador a noção de uma identidade e de origem comum a todos os seus sujeitos.

 

No caso da comunidade de Croatá, tal aspecto se dá pelo vínculo histórico de parte de seus ancestrais, uma vez que parte da comunidade não cresceu naquele território, resultado da expulsão pelas enchentes e pelos fazendeiros que ali ocuparam. Um aspecto muito próprio desta comunidade é o de agregar quilombolas de outras regiões, sobretudo da Bahia, o que nos apresenta uma forma específica de territorialidade, tendo na relação destes com o rio, o aspecto vinculador, o que Haesbaert nos ajuda a compreender:

 

Diante da massa de despossuídos do planeta, em índices de desigualdade social e de exclusão cada vez mais violentos, o ‘apegar-se à terra’, a reterritorialização é um processo que vem ganhando força. Ele se torna imprescindível não somente como fonte de recursos para a sobrevivência física cotidiana mas também para a recriação de seus mitos, de suas divindades ou mesmo para manter viva a memória de seus mortos (Haesbaert, 1999, p. 185).

A noção ampla de interligação com outros povos pautados no Rio São Francisco também merece destaque, sendo um valor e um agente que abarca povos irmãos para além dos limites da comunidade. A noção de território pela comunidade também merece destaque, o que apresentaremos em tópico posterior.

 

Por fim, a noção de território categorizada pelo marco legal, que garante a regularização fundiária como um direito, norteia as discussões, uma vez que as comunidades se orientam por esse aspecto para reivindicarem seu direito à titulação territorial.

 

O marco da regularização fundiária como direito garantido às comunidades quilombolas encontra-se no artigo 68 do ADCT[2] da Constituição Federal (Brasil, 1988), que dispõe: ‘Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos’. Já a definição do que seriam esses agrupamentos, sob o olhar da legislação brasileira, foi descrito no Decreto 4.887/2003:

 

Art. 2º: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Brasil, 2003, não paginado).

 

Os aspectos apontados no artigo acima são centrais na definição de um território quilombola, uma vez que apontam aspectos presentes nas narrativas e nos modos de vida desses grupos, o que pudemos identificar nas entrevistas realizadas com membros da comunidade de Croatá.

 

Toda essa dinâmica, que congrega subjetividades e materialidades, memórias e trajetórias de lutas, permite perscrutar a realidade de comunidades como as quilombolas, uma vez que seus sujeitos não o seriam assim, se desvinculados de toda essa dinâmica.

 

2.1               Território, justiça ambiental e o contexto de Croatá

 

Compreender o território quilombola como um direito, negado e violado, muitas vezes, pelo próprio estado, pressupõe o reconhecimento deste como espaço mediado por relações de poder, historicamente consolidadas. Os aspectos coloniais ainda permeiam as vivências de comunidades quilombolas, destituídas de acesso a direitos básicos, mediante apagamento, invisibilização e desumanização dos corpos, saberes e tradições quilombolas, frutos de um racismo estrutural e estruturante, ainda em vigência:

 

A desigualdade de raça é estruturante da desigualdade social brasileira. Inúmeras são as evidências que apontam as barreiras à participação igualitária dos negros em diversos campos da vida social e para as consequências que estas desigualdades e discriminações produzem não apenas para os negros, mas para a sociedade como um todo. O racismo e o racismo institucional são práticas que colocam pessoas de grupos raciais ou étnicos em situação de desvantagem no acesso aos benefícios gerados pela ação das instituições e organizações, como, por exemplo, na morosidade da implementação de políticas públicas (Brasil, 2017, p. 24).

 

Nesse contexto, as lutas por justiça ambiental emergem em contraposição às exclusões e desigualdades aprofundadas pelo racismo, o que se torna significativo no caso da saúde quilombola. Isto porque, partindo do território como elemento fundante para a reprodução social, econômica e cultural das comunidades ­– sem seu aspecto físico e subjetivos ­ em o acesso a este enquanto direito, todos os demais estarão comprometidos ou inexequíveis. Tomando por referência o grupo em que nossa pesquisa se insere, o acesso à água e ao saneamento são fatores indispensáveis à promoção da vida e da dignidade humana, o que não se consolidam enquanto um direito na comunidade de Croatá.

 

Em suma, sem discutir o acesso ao território e a todos os bens que dele provêm, nenhuma política de saúde será viável e bem-sucedida. Nas palavras de uma de nossas interlocutoras, é perceptível a centralidade que o território assume para os comunitários:

 

Território, pra mim, significa tudo. Significa terra, significa preservar a natureza, preservar os animais, preservar a fauna, a flora. Porque assim, a partir do momento que você fala o Território, o território ele é além, ele é pra todos os Indígenas, os Quilombolas, os Povos Tradicionais. E quando você fala... porque a gente não usa a expressão lote. Lote, pra mim, eu já coloquei na minha mente, que lotes são terras urbanas (Enedina Souza Dos Santos[3]).

 

A justiça ambiental manifesta-se na pauta quilombola na luta pelo território, uma vez que as comunidades dependem deste para produzir alimentos, pescar, para a coleta de plantas voltadas à produção de remédios tradicionais e para ter acesso à água, dentre tantos outros aspectos. Ao negar o acesso ao território, esses direitos básicos também são negados, o que aumenta as vulnerabilidades e desigualdades que esses grupos enfrentam há séculos, tendo no racismo um dos mecanismos de diferenciação.

 

Por outro lado, o racismo ambiental aprofunda essas desigualdades, ao expulsar grupos negros de seus territórios, negando o acesso a direitos básicos e ao não garantir que ações reparatórias garantam ou melhorem seu acesso a bens naturais, indispensáveis à sua reprodução. Portanto, ao adotarem a pauta da justiça ambiental em suas pautas de luta, as comunidades quilombolas reforçam o recorte étnico-racial como fator distintivo na promoção de diferenças e exclusões, o que reforça a necessidade de se articular a questão ecológica com o racismo ambiental vivenciado por eles (Porto; Rocha; Fasanello, 2021, p. 74).

 

2.2 As relações entre saúde e território

 

Ao propormos uma pesquisa cuja centralidade está no olhar sobre a saúde de dada comunidade quilombola, independentemente do recorte que norteie nossas questões de pesquisa, quer seja o acesso a serviços, às práticas de saúde e cuidado, acesso à água, segurança alimentar, dentre outros, o território deverá ser elemento de análise. Ora, se partirmos do pressuposto de que o território afeta, direta ou indiretamente, as pessoas que ali residem, não podemos pensar em saúde quilombola dissociada do princípio organizativo e constitutivo dessas comunidades.

 

A afetação do ambiente rural, marcada pela expulsão de centenas de posseiros e pequenos agricultores e pelo desmatamento do cerrado para a implantação do eucalipto, sobretudo nas cabeceiras, contribuiu para uma modificação radical do ambiente e do contexto social das famílias rurais da região norte mineira. No caso da comunidade pesquisada, o não reconhecimento do direito ao território, que se encontra em disputa, afeta a vida de seus sujeitos de diversas formas, causando implicações na saúde.

 

As cheias do Rio São Francisco e a consequente migração temporária nos tempos de cheia afetam as famílias quilombolas das mais diversas formas, tais como a saída de suas casas, a perda de criações e plantações, o contato direto com a água contaminada do rio, a dificuldade de acessar água de qualidade para o consumo e a contaminação do solo. Vale ressaltar que esse período é parte do modo de vida das comunidades vazanteiras, o que não é compreendido pelos comunitários como um aspecto negativo, sendo este um valor cultural, descrito pelo entrevistado João Batista como ‘felicidade e tristeza ao mesmo tempo’.

 

Contudo, as relações da comunidade com o Rio São Francisco nos apontam para a necessidade de um olhar diferenciado no que diz respeito à promoção da saúde, uma vez que modos de viver diferenciados exigem práticas de saúde também diferenciadas.

 

Tantas dimensões nos remetem à diversidade que cada território apresenta, não podendo uma estratégia universalista e homogeneizante da saúde ser ideal para todo um grupo, ainda que definidos por uma determinada categoria, no caso, a quilombola. A análise social do território deve ser construída, entre os que estão dentro (comunitários) e os que estão fora (profissionais da saúde e gestores) de dado território, para que haja uma efetividade no acesso:

 

Nesta abordagem, a reprodução social está relacionada diretamente com a reprodução material da vida cotidiana, traduzida pelas condições concretas de existência da população. Essa reprodução material produz contextos diversos onde a situação de saúde da população está relacionada às condições de vida. Estes contextos são constituídos por uma diversidade de usos, como reflexo de uma rede de interações diversas nos âmbitos sócio-político-econômico-cultural-territorial implicados no processo social como um todo (Monken, 2008, p. 145).

 

Em artigo de revisão elaborado por um dos autores ­– intitulado Saúde e território quilombola enquanto campo de pesquisa: uma revisão narrativa[4]é possível verificar que os estudos sobre a saúde da população quilombola ainda carecem de mais pesquisas, já que identificamos, em sua maioria, estudos de caso e estudos epidemiológicos, não sendo possível se ter um parâmetro sobre a situação de saúde da população quilombola em geral (Moreira et al., 2023). No que diz respeito aos dados, o Brasil ainda necessita de informações mais concisas sobre saúde da população quilombola, uma vez que o CENSO de 2023 foi o primeiro a especificar essa população, sendo necessários seus resultados para termos mais informações a respeito.

 

Para além das relações socioambientais, ao relacionarmos saúde e território, partimos do pressuposto de que a saúde de dada população, tanto física quanto mental, depende do acesso que ela tem ao território em que está inserida. Isso diz da livre convivência, da gestão territorial, das práticas extrativistas, do acesso às áreas de cultivo, de água potável, dentre tantos outros, indispensáveis ao bem viver de comunidades que coexistem com aquele território. E, mais do que isso, compreender o território e seus acessos implica diretamente na proposição dos serviços de saúde—e na forma como devem ser prestados—para determinada comunidade, considerando questões relacionadas a conflitos, impactos ambientais, incidência de doenças, dentre tantos outros fatores associados.

 

2.3 O território como forma de resistência

 

Ao longo do artigo, buscamos definições que pudessem nos orientar para uma melhor compreensão sobre o território quilombola, partindo do pressuposto de que este é indispensável para a manutenção sociocultural, econômica e reprodutiva de comunidades que se autodeclaram como quilombolas. No caso da comunidade de Croatá, os processos de reterritorialização revelam o vínculo afetivo que esta tem com dado território, uma vez que as relações são construídas na vivência com o Rio São Francisco.

 

Portanto, ao utilizarmos o conceito de território, nos referimos a seu sentido amplo, uma vez que suas dimensões e implicações na vida de seus comunitários é diversificada e se encontra fragmentada nos mais diversos aspectos da vida cotidiana. Mais do que isso, a dimensão territorial deve ser considerada não somente para os comunitários, mas também em sua dimensão extracomunitária, sendo este o símbolo da luta das comunidades quilombolas do entorno, do estado e de todo o país. Aqui, encontramos o significado de confluência, definido por Nego Bispo como aspecto comum dentre comunidades quilombolas, uma vez que:

 

[...] discutir a regularização das terras pela escrita não significa concordar com isto, mas significa que adotamos uma arma do inimigo para transformá-la em defesa. Porque quem vai dizer se somos quilombolas não é o documento da terra, é a forma como vamos nos relacionar com ela. E nesse quesito nós e os indígenas confluímos. Confluímos nos territórios, porque nosso território não é apenas a terra, são todos os elementos (Santos, 2018, p. 7). 

 

O pensamento de Nego Bispo traz um elemento importante: a de um movimento endogâmico, no qual as comunidades ressignificam a luta pelo território a partir de sua legitimidade como um direito. Tomando as estratégias adotadas pelos negros trazidas por Frantz Fanon (1952/2008), os quilombolas ampliam seus significados do ‘nós’ para dialogarem com o modelo da jurisprudência e dos ‘outros’, o que pode ser considerada uma importante estratégia de resistência e de acessar direitos, por tanto tempo, violados.

 

Mais do que o acesso ao direito mais elementar para sua reprodução sociocultural, o território é compreendido para além de seu aspecto—e relevância—geográficos e pode ser entendido como aspecto comum, confluente entre todas as comunidades quilombolas na atualidade. Nesse sentido, a luta pelo território perpassa a afetividade, o vínculo com os ancestrais e a luta daqueles que resistiram à escravização e que ali iniciaram a escrita de sua história. Esse vínculo com o passado, que se refaz no presente, é o fio condutor que move a luta atual pelo direito ao território, não de qualquer propriedade, mas daquele lugar onde seus ancestrais iniciaram sua luta:

 

O Quilombola é por causa que o meu pessoal da parte do meu pai já veio lá da Bahia, né? Já tem origem com o pessoal que veio da África, porque sempre a Bahia tem mais é o pessoal só os negros, então, foi lá que o pessoal se... mais um refúgio, entendeu? Aí veio pro estado de Minas, e aí, quando fala Quilombo, Quilombo é quando o leito refugiava do Senhor, eles abriam aquela... como fazia o osso... ia fazendo os ‘quilombo’, igual aqui (João Batista Alves da Silva).

 

Aqui, a memória torna-se fio condutor entre passado e presente, quando os quilombolas encontram uma justificativa que lhes dão legitimidade por reivindicar dado território e por se reconhecerem como ‘aqueles que chegaram primeiro’ e que, portanto, têm direito a ele. Nesse sentido, é por meio da memória que a ocupação se vincula a um sentimento de pertencimento coletivo, sendo também indispensável à reprodução material e social, para além de seus aspectos simbólicos e afetivos.

 

As noções de comunidade e de coletividade somam-se à compreensão do território, uma vez que este espaço se torna importante para todos, um espaço agregador, que acolhe pessoas que compreendem ter uma origem comum. Na comunidade de Croatá, a migração é um aspecto comum, uma vez que estes acolhem ‘irmãos quilombolas’ de outras regiões, não sendo o vínculo de nascimento um aspecto fundante e indispensável para a manutenção de quilombolas em seu território. Aqui, o sentimento de pertencimento pode ser entendido como algo amplo, que supera as fronteiras territoriais e se vincula à origem de seus indivíduos, autodeclarados quilombolas.

 

Tomando por referência a fala do senhor Arnaldo da Silva Vieira, liderança e principal articulador do processo de retomada territorial, o vínculo do passado recriado no presente é como um importante motivador da luta pela terra:

 

E com essas histórias que nós colocamos, nós ‘conseguimo’ fazer, ‘entendemo’, todas as ‘organização’ da documentação e, hoje, a gente tá com aquela esperança viva e com aquela fé transformada que cada dia a gente tá dando um passo. A gente não tá olhando o que ficou tudo acabou. Não é isso. ‘Tamo’ revoltando as nossas histórias. A maioria morreu, né, os avós, os tios, muitas tias ‘minha’ morreu, mas como a gente tá com idade mais avançada, a gente tá com aquela esperança que aquela convivência que foi vivida, dentro da tradição... nós ‘tinha’ lá aquela comunhão nos dias que a gente coloca… nós ‘tinha’ campanha de oração, ‘tinha’ novena, nós ‘tinha’ assim aquela reverência. Tinha a nossa mãe de pregação, que era a mãe... e essa mãe... deixou ‘mutio’ filho… nós ‘tinha’ a nossa mãe, mas a mãe de pregação nós ‘tinha’ consideração. Então, essa mãe... ela deixou essas comunidades, esse pessoal que era ‘ribeirinha’, que na época de retiro ia tudo pra lá, pra lá... ela acatava. Que lá, ela tinha carro, tinha muitas casas e tinha muitas áreas que nós ‘fazia’ barraco, ‘fazia’ moradia pra passar aquele período [...] (Arnaldo da Silva Vieira).

 

Outro aspecto interessante na comunidade pesquisada é o de não fronteira territorial. Em nossas conversas durante as observações participantes, os comunitários ampliam a noção de território para outras comunidades do entorno, afirmando que ‘é tudo uma comunidade só’ (Maria das Dores). Essa compreensão vai além da estrutura normativa para se pensar a titulação dos territórios, que tem por prerrogativa a delimitação do território tradicional como parte do processo de regularização fundiária estipulado pelo INCRA[5].

 

Por fim, a relação com o rio manifesta-se como aspecto de resistência, uma vez que os quilombolas têm compreensão de seu papel como indispensável à sobrevivência, mas, mais do que isso, reconhecem seu aspecto político, visto que também é disputado por fazendeiros. Aqui, o papel dos comunitários como guardiões do Rio São Francisco se entrelaça na defesa pelo território, já que o compreendem para além de um meio de subsistência. O papel subjetivo do rio às vezes assume uma característica até mesmo sagrada, como um ser encantado que afeta a vida da comunidade, havendo um profundo respeito na relação com ele, o que supera seu aspecto físico:

 

O Rio São Francisco, pra mim, ele é tudo: ele é pai, ele é filho, ele é marido, ele é namorado, ele é amigo, e mata a fome. Porque se não fosse o Rio São Francisco, aqui não tinha mais ninguém, e ninguém mesmo às margens do Rio. Porque, se um dia, o Rio São Francisco vier a acabar, a nação também de pescadores acaba (Maria das Dores).

 

A partir da fala de uma importante liderança e pescadora, é possível ter uma dimensão da relevância do Rio São Francisco para as comunidades que vivem às suas margens, sendo imprescindível considerá-lo também nas questões relacionadas à saúde dessas populações e à integralidade do território.

 

3                    Conclusão

 

Para pensar o território quilombola e suas formas de legitimidade sob o aspecto do direito ao território, no referencial não quilombola, jamais se atribuirão significantes que façam sentido para os sujeitos que o reivindicam. De outro lado, considerar as formas de convivência, os olhares e percepções dos próprios quilombolas sobre seu território é indispensável para a proposição de qualquer política pública, inclusive aquelas relacionadas ao acesso à saúde. Descolonizar nossos referenciais e definições sobre saúde e território para atender as especificidades do povo quilombola é possível mediante pesquisa coparticipativa e inclusiva, como a aqui desenvolvida.

 

A proposição de políticas públicas de forma verticalizada não dialoga e nem respeita os modos de viver e as particularidades de cada comunidade, que podem assumir mais de uma categoria, como é o caso de Croatá, que se autodeclara quilombola, pesqueira e vazanteira, sendo todos estes aspectos igualmente fundantes e relevantes para sua construção e afirmação identitária.

 

Além disso, nossa pesquisa mostra a necessidade de romper com sistemas e conceitos generalizantes, uma vez que, apesar de seus aspectos comuns, cada comunidade é única, em suas demandas, especificidades e atribuições, o que deve ser considerado ao pensarmos saúde e território, respeitando seus referenciais, que não são os mesmos do ‘mundo branco’. Ao reconhecer tais referenciais, reconhecemos a formulação dos saberes e suas contribuições para a emancipação das comunidades, sobretudo na luta pela Justiça ambiental e promoção de direitos básicos.

 

Para além dos marcos legal e conceitual, nós, pesquisadores, devemos desenvolver permanente exercício de reformulação, a partir de uma escuta atenta e despojada dos valores hegemônicos, que garanta o lugar de fala dos sujeitos pesquisados, a fim de nos aproximarmos, ainda que não em sua totalidade, dos referenciais daqueles com quem construímos nossa pesquisa. Aqui, as dimensões de justiça, território, acesso a direitos e comunidades tradicionais devem ser reiteradamente (re)formuladas, uma vez que esses grupos não são estáticos e homogêneos, mas se perfazem na luta, o que Maria das Dores, também conhecida como Dora, sintetiza muito bem em sua fala, ao relatar que:

 

Então, assim, em memória da minha avó, memória do meu pai e memória dos meus antepassados e memória da minha sogra, eu vou voltar. Eles não estão mais aqui, mas eu vou voltar. Enquanto Deus me der vida, aí esse sangue aqui ó, eu não vou desistir de Croatá. E onde eu vou, eu levo o nome de Croatá com muito orgulho, porque Croatá, hoje, é resistência. Croatá é luta. Se a gente não tiver resistência, não tem Quilombo, porque o que os latifundiários querem é isso, que você desista, que você não resista. Porque a gente tá vendo aí, eles mandam matar, eles mandam colocar fogo nas casas, mas, hoje, tem aí a justiça, tem os Direitos Humanos que não brincam em serviço.

 

Legitimar e garantir o lugar de fala desses sujeitos é de suma relevância para o campo da pesquisa, contribuindo para a descolonização de referências e para a amplitude de referenciais não brancos, construídos pelos sujeitos historicamente subalternizados, promovendo uma ‘justiça cognitiva’. Este reconhecimento, com vistas a contrapor o epistemicídio, é indispensável para enfrentar as crises contemporâneas, sobretudo a climática (Porto; Rocha; Fasanello, 2021, p. 31).

 

Reconhecer as especificidades em saúde da população quilombola, atreladas às relações territoriais, também é ponto de extrema relevância ao se proporem ações e políticas voltadas à promoção da saúde, uma vez que o atendimento universalizado não necessariamente contempla seus sujeitos. Nesse processo, o campo da pesquisa tem papel fundamental, pois é a partir de nossos achados que muitas comunidades têm início a seu processo de desinvibilização, dada a legitimidade conferida ao lugar que ocupamos. Seus desdobramentos podem contribuir de forma significativa para a constituição daquilo que compreendemos por saúde quilombola e, portanto, dotada de especificidades, as quais indicamos algumas.

 

Os modos de viver dessas comunidades são ponto central na compreensão das especificidades dos grupos quilombolas, uma vez que suas relações, saberes e práticas se distinguem, em certa medida, de comunidades rurais não negras, sobretudo por suas trajetórias de formação e pelas relações territoriais. Seus modos de viver vão orientar todas as relações inter e intracomunitárias, tendo nas relações de solidariedade e de coletividade um aspecto bastante presente em suas vivências.

 

Somado a isso, a relação com o bioma em que estão inseridas e os saberes sobre o uso de plantas medicinais também são algo próprio e que perpassam as compreensões que cada comunidade tem sobre saúde. Na comunidade de Croatá, os saberes sobre usos de plantas para feitura de chás, garrafadas e outros medicamentos são bastante presentes, tendo nas plantas do cerrado um amplo repertório de usos com determinadas finalidades.

 

Não menos relevante, os aspectos simbólicos, que vinculam os quilombolas à sua ancestralidade e ao sagrado, também merecem destaque quando pensamos em saúde. Ao longo de nossas entrevistas e diálogos com pessoas da comunidade, sobretudo pescadores, esses aspectos se fazem presentes em diversos aspectos da vida cotidiana, sobretudo na relação com o São Francisco. Os seres ‘mágicos’ perpassam a relação dos pescadores com o rio, havendo um profundo respeito a tudo o que vive debaixo d’água, afinal, ‘o rio tem muitos olhos. Tudo o que tem aqui, tem debaixo d’água, sem tirar nem pôr’, conforme nos relata o pescador João Batista Alves da Silva.

 

O segundo aspecto é o da territorialidade e seu papel na construção identitária da comunidade. A ocupação desse território remonta aos antigos, avós e bisavós das lideranças que hoje reivindicam o território como seu direito, sendo este processo bastante presente nas narrativas dos entrevistados, que colocam a luta pelo território quase como uma missão, o ‘bastião’ que lhes foi dado, como relata o senhor Arnaldo. Mesmo que muitos deles não tenham crescido naquele lugar, a territorialidade, iniciada por seus antepassados, ressignifica a luta das gerações atuais, que não querem nada além do que lhes é de direito, como reiteram em diversos momentos.

 

É nesse processo, que vincula passado e presente, que a identidade quilombola, pesqueira e vazanteira se manifesta entre seus sujeitos, tendo na luta pelo território a afetividade que justifica todas as dificuldades que vêm enfrentando ao longo do processo de reterritorialização.

 

Vinculado ao território, o sentimento de pertencimento, presente na memória coletiva da comunidade, também merece destaque, uma vez que atua como fio condutor que justifica a luta dos quilombolas no presente. Ao longo de nossas observações e durante as entrevistas, este fator é predominante, havendo um certo saudosismo dos tempos em que as gerações anteriores ali viviam, somado às dificuldades e injustiças que eles já enfrentavam com os fazendeiros da época. A narrativa das diversas violências se faz presente na memória dos entrevistados. A voz da liderança Dora bem sintetiza esse sentimento de pertencimento:

 

Eu achei importante essa retomada porque … a nossa resistência, porque eu vi, no ano de 1979, o povo não tinha aquela maturidade de não resistir. Então, assim, o pessoal eles não tinham aquele jogo de cintura, de falar: gente, resistência, resistência, resistência, resistência eles não tinham. O fazendeiro batia o pé e eles, né? A única pessoa que eu vi, que falou, que não ia sair com cinco filhos e que ela preferia morrer ali, foi minha sogra. Meu marido, na época, tinha cinco anos. Ela foi chicoteada. E ele botou fogo na casa dela. A casa dela era de pau a pique e capim. E ela foi chicoteada, e meu marido jurou que, quando ele crescesse, ele ia matar o homem. Então, assim, em memória da minha avó, memória do meu pai e memória dos meus antepassados e memória da minha sogra, eu vou voltar. Eles não estão mais aqui, mas eu vou voltar. Enquanto Deus me der vida, aí esse sangue aqui ó, eu não vou desistir de Croatá (Maria das Dores).

 

Aqui, a afetividade manifestada no sentimento de justiça daqueles que lutaram antes é o que parece motivar suas lutas na atualidade. A memória tem papel de destaque na luta quilombola, e o registro dessas memórias é de suma importância para manter a história da comunidade e de sua trajetória de formação, aspectos indispensáveis ao reconhecimento e, posteriormente, à titulação territorial.

 

Por último, gostaríamos de reiterar as relações com o Rio São Francisco e seu papel relevante na vida da comunidade, sendo este parte do território quilombola. O rio é o principal responsável pela renda da comunidade, baseada na pesca e no plantio de roças durante o período das vazantes. Por outro lado, as cheias do rio e a contaminação de suas águas trazem prejuízos à saúde de seus sujeitos, uma vez que uma das principais fontes de água advém do Rio São Francisco. Aqui, para além dos aspectos mais subjetivos, o rio afeta diretamente, ora positivamente, ora negativamente, a vida dos membros da comunidade de Croatá.

 

Tal relação, apesar de antagônica, merece destaque e poucas vezes é considerada pelos serviços de saúde que atendem a comunidade. A qualidade da água, seus índices de contaminação e os impactos das cheias na segurança alimentar[6] e na saúde mental das comunidades são aspectos diretamente relacionados à saúde da comunidade, e nessa análise, o rio deve ser considerado um importante agente promotor de saúde ou de adoecimento.

 

Em suma, falar em saúde voltada para a população quilombola pressupõe compreender suas relações e dinâmicas territoriais, as quais julgamos ser indissociáveis, conforme resultados de nossa pesquisa. Contudo, o território não tem recebido centralidade nas discussões sobre saúde quilombola, sobretudo no que diz respeito aos serviços ofertados.

 

Reconhecer a importância do território e suas implicações na saúde dessa comunidade é o ponto de partida para o campo da saúde, o que também reforça seus aspectos de resistências e confluências ao longo de séculos de luta. Tal reconhecimento é fundamental para trazer os sujeitos quilombolas ao centro do debate, superando perspectivas subalternizadas de meros expectadores, para serem agentes na construção e na transformação de seus territórios na promoção do direito à saúde.

 

 

Agradecimentos

 

Agradecemos a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) por financiar a presente pesquisa, bem como os moradores e lideranças da comunidade pesquisada, que consentiram e nos auxiliaram ao longo do nosso processo de pesquisa.

 

 

Referências

 

Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília (DF): Presidência da República, 1988.Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 maio 2024.

 

Brasil. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 13 fev. 2024.

 

Brasil. Instrução Normativa INCRA nº 57, de 20 de outubro de 2009. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Norma Federal. Diário Oficial. 21, de outubro de 2009. Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/in_57_2009.pdf. Acesso em: 16 abr. 2024.

 

Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 3. ed. Brasília (DF): Editora do Ministério da Saúde, 2017. 44p.

 

Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, [1952] 2008.

 

Gomes, I. Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios.  Agência de Notícias IBGE, Brasília (DF), 27 jul. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios . Acesso em:  30 maio 2024  

 

Little, P. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil. Por uma antropologia da territorialidade. Brasília (DF): Departamento de Antropologia, 2002. (Série Antropologia, n. 322). 

 

Haesbaert, R. Identidades territoriais. In: Rosendahl, Z.; Corrêa, R. L. (Org.) Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999. p. 169-190.

 

Monken, M. Contexto, território e o processo de territorialização de informações: desenvolvendo estratégias pedagógicas para a educação profissional em vigilância em saúde. [S.l.], 2008. p. 141-164. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4933911/mod_resource/content/2/TEXTO%20TERRITORIALIZA%C3%87%C3%83O%20ESCOLA%20JOAQUIM%20VENANCIO.pdf.  Acesso em: 20 jun. 2024.

 

Moreira, A. M. F; Gonçalves, F. R.; Schall, B.; Pimenta, D. N. Saúde e território enquanto campo de pesquisa: uma revisão narrativa. Revista Saúde.com. 2023, 19 (3): 3411-3422. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/rsc . Acesso em: 20 mai. 2024.

 

Porto, M. F.; Rocha, D. F. da; Fasanello, M. T. Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise. São Paulo: Hucitec, 2021.

 

Santos, A. B. dos. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 44-51, 2018.

 

Santos, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília (DF), 2015.

 

Santos, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

 

Saquet, M. A. Abordagens e concepções de território. 4. ed. São Paulo: Outras Expressões, 2015.

 

 

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Agda Marina F. MOREIRA Trabalhou na concepção, delineamento e redação do texto.

Pós-doutoranda em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento e doutora em Saúde coletiva pelo Instituto René Rachou – Fiocruz Minas (2024) mestre em Educação pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2016) e graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010).  Possui atuação junto ao movimento quilombola do estado de Minas Gerais desde 2010, sendo especialista em projetos sociais de gestão territorial em comunidades quilombolas.

 

Léo HELLER Trabalhou na revisão crítica do texto.

Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (1977), mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (1989) e doutorado em Epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995). Realizou pós-doutorado na University of Oxford, no período 2005-2006. É Doutor Honoris Causa pela University of Newcastle. Foi Professor Titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual atua como professor voluntário. É pesquisador do Instituto René Rachou, Fiocruz, desde 2014. Na UFMG, dentre outras funções administrativas, foi chefe de Departamento (1995), Pró-Reitor adjunto de Pós-Graduação (1995-98), Diretor da Escola de Engenharia (1998-2002) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos (2006-2008). Foi Relator Especial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, das Nações Unidas (2014-2020). É autor do livro "The Human Rights to Water and Sanitation", pela Cambridge University Press. Tem experiência na área de saneamento básico, atuando principalmente nos temas dos direitos humanos, da saúde ambiental e das políticas públicas.

 

Priscila Neves da SILVA Trabalhou na revisão crítica do texto.

Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pelo Centro de pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, atualmente faz Pós-Doutorado junto ao grupo de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas em Saúde e Saneamento da mesma instituição. É mestre em Epidemiologia e Saúde Pública pela Universidad Rey Juan Carlos (Espanha) e graduada em Fisioterapia pela PUC-MG. Foi professora da Universidade Metodista Izabela Hendrix e da PUC-MG. Trabalhou no Ministério de Sanidad y Política Social da Espanha e coordenou programas de cooperação internacional na África pela Handicap International (Cabo Verde). Foi consultora técnica para a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) no Ministério da Saúde/Brasil, consultora do Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva (CEPESC/UERJ) e do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR/ONU). Tem experiência na área de saúde coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, políticas públicas, promoção da saúde e vulnerabilidade social.

Atualmente é coordenadora junto à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

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*  © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] Vale destacar o artigo 68 do ADCT e a Instrução normativa nº 57 do INCRA, que passam a reconhecer o direito ao território às comunidades remanescentes de quilombos.

[2] Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

[3] Os entrevistados consentiram em participar da pesquisa, mediante aprovação do instrumento de pesquisa junto ao Comitê de Ética do Centro de Pesquisas René Rachou – Fundação Oswaldo Cruz ­– CPqRR/FIOCRUZ, submetido junto à Plataforma Brasil, com Certificado de Apresentação de Apreciação Ética nº 67346523.8.0000.5091. Revelar a identidade dos entrevistados foi de comum acordo com os interlocutores, que querem ter suas narrativas nomeadas e legitimadas pela pesquisa.

[4] Artigo intitulado Saúde e território quilombola enquanto campo de pesquisa: uma revisão narrativa, publicado na Revista Saúde.com. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/rsc/article/view/10625.

[5] Processo previsto pela Instrução Normativa n° 57 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) (Brasil, 2009).

[6] Lei 11.346/2006, que em seu Art. 1º estabelece as definições, princípios, diretrizes, objetivos e composição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), por meio do qual o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, formulará e implementará políticas, planos, programas e ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada.