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Representação chárgica dos conflitos sobre a demarcação das terras indígenas no Brasil

 

Satirical cartoon representation of conflicts over the demarcation of indigenous lands in Brazil

 

Rozinaldo Antonio MIANI

 https://orcid.org/0000-0003-0014-316X

Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social, Londrina, PR, Brasil

e-mail: rmiani@uel.br

 

Bruna Miyuki Enomoto AKAMATSU

 https://orcid.org/0000-0002-9490-9535

Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Comunicação,

Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Londrina, PR, Brasil

e-mail: akamatsu.bruna@uel.br

 

Resumo: A questão da demarcação das terras indígenas tem se constituído como um dos principais campos de conflitos sociais e políticos no Brasil desde o início do século XXI - dentre eles, os desdobramentos do processo de demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol e o debate em torno da PEC 215, bem como as controvérsias do projeto de lei sobre o marco temporal. Nesse sentido, constitui objetivo deste artigo apresentar e refletir sobre os principais impasses e conflitos que conformaram a problemática da demarcação de terras indígenas no Brasil nas últimas décadas a partir da análise da produção chárgica de Carlos Latuff, seguindo a metodologia da análise do discurso chárgico. As análises apontaram para uma realidade permeada pela violência contra os povos indígenas e em favor dos interesses capitalistas do agronegócio, principalmente, a partir da intensificação da expropriação territorial.

Palavras-chave: Demarcação de terras. Povos indígenas. Expropriação territorial. Charge. Carlos Latuff.

 

Abstract: The issue of demarcation of indigenous lands has been a principal area of social and political conflicts in Brazil since the beginning of the 21st century - among these has been the unfolding of the demarcation process of the Raposa-Serra do Sol Indigenous Land and the debate around PEC 215 (Proposed Constitutional Amendment) 215, and this bill's controversies regarding the time frame. This article presents and reflects on the main impasses and conflicts that have shaped the issue of the demarcation of indigenous lands in Brazil over recent decades based on an analysis of Carlos Latuff's satirical cartoons and employing the methodology of analysing the satirical cartoon discourse. The analyses points to a reality permeated by violence against indigenous peoples and in favour of capitalist agribusiness interests, due mainly to the intensification of territorial expropriation.

Keywords: Land demarcation. Indigenous peoples. Territorial expropriation. Satirical cartoon. Carlos Latuff.

 

Introdução

 

A

 demarcação das terras indígenas se constituiu ao longo das últimas décadas em um dos principais campos de conflitos sociais e políticos no Brasil. Neste sentido, este artigo tem como objetivo apresentar e refletir sobre os principais conflitos conjunturais que conformaram a problemática da demarcação de terras indígenas no Brasil nas últimas décadas a partir da análise da produção chárgica disseminada pela imprensa popular e alternativa.

Submetidos a discriminações, opressão, exploração e extermínio durante séculos, os povos indígenas no Brasil obtiveram importantes garantias na Constituição Federal de 1988; ao menos, era o que se supunha considerando o que estava previsto nos preceitos constitucionais estabelecidos, em especial, no caput do artigo 231 ao estabelecer que “[...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Brasil, 1988, p. 143).

 

Especificamente, a respeito da demarcação das terras, a referida Constituição previa, no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que a União deveria concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (Brasil, 1988, p. 166). No entanto, além de esta determinação constitucional não ter sido cumprida, essa questão tem se arrastado por décadas e gerado impasses e conflitos, muitos deles envoltos por intensa e extrema violência, que reforçam a premissa de que os povos indígenas continuam sendo, peremptoriamente, discriminados, massacrados e exterminados pelos interesses capitalistas, em especial, das frações de classe burguesas ligadas ao latifúndio e à agricultura empresarial.

 

Após a promulgação da Constituição Federal em 1988, a questão indígena retornou à cena pública nacional em 1993 por ocasião dos debates envolvendo a revisão constitucional. Naquele contexto, as bancadas parlamentares ligadas ao agronegócio e ao latifúndio intensificaram seus argumentos contra a demarcação das terras indígenas, afirmando que os povos indígenas detinham parcelas exageradas de terras que poderiam ser utilizadas para a produção agrícola ou mesmo para a exploração de riquezas naturais; atente-se para o fato de que, naquele momento, a esmagadora maioria das terras indígenas ainda não havia sido demarcada, em flagrante descumprimento às deliberações constitucionais.

 

O fato é que a revisão constitucional foi um absoluto fracasso, tendo resultado em apenas seis emendas aprovadas no primeiro semestre de 1994 - dentre elas, a redução do mandato do presidente da República de cinco para quatro anos e a criação do Fundo Social de Emergência, condição necessária para viabilizar o programa econômico do governo Itamar Franco. Além de a revisão constitucional, de modo geral, ter sido prejudicada por uma conjuntura política desfavorável[1] e pelo desinteresse do governo e dos próprios parlamentares, o debate sobre a questão indígena não emplacou no seio da sociedade e a temática caiu novamente na procrastinação.

 

Passados mais alguns anos, a problemática da demarcação das terras indígenas foi recolocada na pauta e nos debates políticos nacionais, em razão dos desdobramentos da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, situada no estado de Roraima, que garantiria o direito de aproximadamente 20 mil pessoas indígenas, pertencentes a diversas etnias, dentre elas, macuxi, uapixanas, ingaricós, taurepangues e patamonas. Identificada em 1993 pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o referido território foi demarcado durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso[2] e sua homologação ocorreu em abril de 2005 por ato do então presidente Lula.

 

No entanto, durante os 12 anos de tramitação do processo administrativo da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, entre 1993 e 2005 - ou seja, desde a publicação no Diário Oficial da União (DOU) do memorial descritivo apresentado pela Funai definindo as coordenadas geográficas do território destinado à respectiva demarcação até a sua efetiva homologação - houve importantes acontecimentos, principalmente, a invasão parcial da área demarcada por parte de arrozeiros e a criação de um novo município no interior daquele território, que resultaram em implicações ainda mais complexas naquela que já se apresentava como uma situação tensa.

 

Em relação à homologação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, o que poderia ter significado um marco e um passo decisivo no cumprimento do preceito constitucional da demarcação das terras indígenas no Brasil acabou se tornando o estopim de uma avalanche de conflitos e de um tsunami de violências contra os povos indígenas e seus direitos que só foram se intensificando desde então. Dentre os episódios - e respectivos desdobramentos mais conflituosos -, destacamos o embate em torno da Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 2000 (PEC 215/2000) (Brasil, 2000) e, evidentemente, as controvérsias relacionadas ao recente processo de discussão da tese do marco temporal e de votação da PL 490/2007 (Brasil, 2007) (que tramitou no Senado Federal como PL 2903/2023 (Brasil, 2023).

 

Como se trata de um tema de grande impacto político e de profunda sensibilidade social, a questão indígena recebeu importante destaque por parte da imprensa popular e alternativa[3]. Dentre as estratégias comunicativas utilizadas neste contexto, enfatizamos a presença da charge que, por sua natureza lúdica e icônica, expressou de modo explícito e contundente os múltiplos impasses, tensões e contradições que envolveram a referida problemática sociopolítica, bem como revelaram os meandros da perversa atuação política dos diversos setores da burguesia interessados na questão, em especial, da bancada ruralista e das frações de classe burguesas ligadas ao latifúndio, ao agronegócio e à agricultura empresarial.

 

Considerando o objetivo estabelecido para este artigo, iremos analisar algumas produções chárgicas de Carlos Latuff, particularmente, publicadas ao longo da década de 2010 que retrataram situações ou contextos de conflitos, bem como explicitaram iconograficamente as atitudes de alguns dos principais atores sociais ou sujeitos políticos envolvidos. Carlos Latuff é considerado um dos principais chargistas da atualidade no campo político progressista; nossa escolha pelo referido chargista se deve ao fato de ele ter se manifestado publicamente defensor da causa indígena (Conselho Indigenista Missionário, 2012) e também por trabalhar, predominantemente, para a imprensa popular e alternativa.

 

Para a realização das análises utilizaremos a metodologia da análise do discurso chárgico (Miani, 2023) que exige um aprofundamento interpretativo da contextualização sócio-histórica que envolve a respectiva temática, combinado com a aplicação de uma análise discursiva e imagética de cada uma das charges selecionadas. Nesse sentido, a análise histórico-conjuntural que se segue já se constitui como elemento essencial de aplicação da referida metodologia na medida em que esta análise “[...] só faz sentido porque a charge - concebida como fenômeno comunicacional inerente de um processo social - é, precisamente, o principal elemento que nos interessa estudar e compreender, em sua condição dialética” (Miani, 2023, p. 65).

 

O conflito do marco temporal com a Constituição Federal de 1988

 

No contexto referente à demarcação de terras indígenas no Brasil, as articulações políticas em torno do marco temporal representam um ponto crítico de análise para a compreensão do papel dos dispositivos sociojurídicos que mediam os direitos territoriais indígenas, assegurados pela Constituição Federal de 1988, na dinâmica de uma sociedade de classes. Para possibilitar uma interpretação das charges produzidas por Carlos Latuff e compreender os tensionamentos político-ideológicos expressos no respectivo discurso chárgico, entendemos ser necessário apontar e aprofundar a complexidade dos conflitos que circundam o marco temporal a partir de duas frentes de análise.

 

No primeiro ponto de investigação examinaremos o debate do marco temporal em seu ordenamento jurídico, sob o viés do materialismo histórico e dialético; nesse sentido, iremos contrastar a tese jurídica do marco temporal em oposição à tese do indigenato, prevalente na Constituição Federal de 1988 (Cavalcante, 2016). Já na segunda frente de análise, iremos examinar os desdobramentos políticos do marco temporal no contexto legislativo, em especial, a partir da PEC 215/2000. Por meio de revisão bibliográfica orientada pela teoria crítica dialética sintetizaremos os argumentos centrais que apontam o caráter classista do debate sobre o marco temporal e sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil, perspectiva discursiva notória nas charges de Carlos Latuff a serem analisadas neste artigo.

 

O exame das teses jurídicas do marco temporal e do indigenato, assim como de seus desdobramentos sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil, se revela categórico diante da compreensão de que o Estado burguês é dotado de prerrogativas institucionais que lhe outorgam caráter coercitivo sobre os conflitos individuais e sociais (Fávero, 2018). Essa dimensão ideológica, de poder e controle, instrumentaliza o Direito (em uma sociedade capitalista) como um catalisador da subsunção ou adesão individual ao projeto societário de determinada classe social (Medici, 2007).

 

Assim, a importância do debate acerca do marco temporal decorre das implicações sócio-históricas suscitadas pela centralidade dessa tese jurídica em defender que as terras indígenas só podem ser reconhecidas pelo Estado caso seja comprovada a efetiva ocupação tradicional pelos povos indígenas na data de vigência da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988. Liana Amin Lima da Silva (2015) aponta a dissonância do marco temporal em relação à Constituição de 1988, na medida em que o argumento basilar da tese do marco temporal nega a legitimidade dos direitos dos povos indígenas como direitos originários - perspectiva embasada nas normativas constitucionais pela tese jurídica do indigenato.

 

Há mais de um século, João Mendes Júnior (1912) já afirmava o indigenato como um título congênito, ou seja, trata-se de um direito antecedente à própria origem de um Estado nacional e que não depende de comprovação. Essa perspectiva, jurídica e antropológica, se sobressaiu na Assembleia Nacional Constituinte, na medida em que a formulação das normativas constitucionais brasileiras responsabilizava o Estado pela compensação da expropriação sistemática e das violências brutais cometidas contra os povos indígenas, historicizando o debate sobre seus direitos territoriais (Cavalcante, 2016). Ainda a esse respeito, e proferindo uma crítica à tese do marco temporal, Thiago Leandro Vieira Cavalcante (2016) afirma:

 

O estabelecimento do marco temporal é a-histórico porque ignora, apesar da ressalva, os processos históricos ocorridos ao longo de cinco séculos de colonização por meio dos quais vários grupos indígenas foram expulsos de suas terras de ocupação tradicional. Além disso, também ignora processos históricos que culminaram na constituição de novas comunidades indígenas em datas mais recentes (Cavalcante, 2016, p. 16).

 

Em contraste ao indigenato, a tese do marco temporal compreende os direitos territoriais indígenas (apenas) como direitos adquiridos, passando a exigir comprovações - por meio de atos, fatos ou situações jurídicas prévias - da ocupação territorial pelos povos indígenas na data da promulgação da Constituição. Essa exigência restringe a demarcação de terras indígenas no país, visto que adota uma análise ignorante das violências históricas de coerção, remoção forçada e genocídio dos povos indígenas e intenciona também apagar o papel desempenhado pelo Estado brasileiro nessas ações e a sua respectiva responsabilidade na garantia e proteção dos direitos indígenas (Yamada; Villares, 2010).

 

Segundo Gersem Baniwa (2012), a compreensão jurídica da Constituição de 1988 caracteriza os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais como originários e imprescindíveis, de modo que o papel do Estado ante a esse caráter é apenas o reconhecimento oficial dos territórios em forma da posse permanente. Por isso, em oposição à tese do marco temporal, a tese do indigenato prevê a demarcação de terras indígenas não como concessão de um direito condicionado a critérios de comprovação, mas, fundamentalmente, como reconhecimento oficial, pelo Estado, de um direito preexistente.

 

Esse caráter originário decorre dos laços históricos, culturais e espirituais dos povos indígenas com seus territórios, os quais transcendem marcos temporais jurídicos e exigem a apreensão dos processos históricos de expropriação e violência, que impediram a ocupação tradicional contínua dos seus territórios pelos povos indígenas no Brasil. Todavia, as contradições entre a tese jurídica do marco temporal e os princípios constitucionais não foram impedimento para a aplicação desse critério em decisões judiciais referentes à demarcação de terras indígenas (Cavalcante, 2016; Pegorari, 2017).

 

Dentre os exemplos elucidativos se encontra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular o decreto de homologação da terra indígena Limão Verde, Mato Grosso do Sul (MS), ocupada pelo povo Terena. A decisão foi apresentada em 2014 e aplicou o critério do marco temporal um ano após o próprio STF reconhecer que a condicionante temporal, apresentada no processo de demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, não teria caráter vinculante, ou seja, não estabelecia parâmetro obrigatório para processos similares ou outras instâncias jurídicas. Nesse caso, a incorporação do marco temporal provocaria a perda de mais da metade do território de 5 mil hectares homologado em 2003 (Alvim, 2023).

 

Cavalcante (2016) afirma que o marco temporal se tornou uma referência pragmática para as decisões jurídicas e ampliou o espaço para interposições de recursos de contestação em processos de demarcação de terras indígenas, fator que agrava o cenário já existente de atrasos nos procedimentos administrativos. Para dimensionar a extensão e gravidade da problemática, a Funai (2023) contabilizou 1.226 terras indígenas no Brasil, das quais cerca de 40% ainda estão em análise e aguardando encaminhamentos para o início dos processos necessários à demarcação. Nessa conjuntura, o argumento do marco temporal se apresenta como uma ameaça à integridade dos territórios indígenas.

 

Em relatório, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) (2022) identificou 1.334 casos de violência patrimonial contra indígenas no Brasil. A maioria das ocorrências registradas abrangeu invasões territoriais e atividades ilegais de extrativismo, como a retirada de madeira e o garimpo, bem como a caça e a pesca predatórias, além de ocupações ilegais relacionadas à grilagem de terras. Esse quadro compromete a segurança física e as condições necessárias para o bem-estar das populações indígenas ao intensificar os crimes de violência e dificultar o atendimento de políticas de assistência a essas populações, devido à desagregação e deslocamentos forçados.

 

Diante desses fatores, os desdobramentos políticos e os impactos do marco temporal sobre a realidade dos povos indígenas revelam uma disputa pelo alinhamento do discurso jurídico ao objetivo de salvaguarda dos interesses econômicos da burguesia agrária sobre as terras indígenas e o consequente comprometimento da efetivação dos direitos territoriais originários.

 

Em 2023, a discussão sobre os limites impostos pelo marco temporal aos processos de demarcação de terras indígenas ganhou novos contornos com o julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário (RE) 1017365. O referido RE analisou o pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) referente à reintegração de posse de parte do território reconhecido pela Funai como tradicionalmente ocupado pelo povo Xokleng e, portanto, incorporado à Terra Indígena Ibirama Laklãnõ. O argumento central mobilizado pelo IMA era de que não havia evidências jurídicas suficientes para comprovar a ocupação tradicional efetiva por parte dos Xokleng, a partir de 5 de outubro de 1988, do trecho superposto a um parque estadual de Santa Catarina. No entanto, o STF discordou do parecer e concluiu que o critério do marco temporal não deve ser aplicado como parâmetro obrigatório para definir a ocupação tradicional nos processos de demarcação de terras indígenas.

 

Junto a essa decisão, o STF fixou uma nova tese que se apresentou como parâmetro de resolução para outros 226 casos similares, que aguardam análise jurídica, assim como para casos futuros. A nova tese se alinha às disposições constitucionais, balizadas pelo indigenato, ao reconhecer o caráter originário dos direitos territoriais indígenas e defender a consulta às comunidades indígenas nos processos que impactam seus contextos, bem como reafirmar o caráter de usufruto exclusivo dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas. O STF também enfatizou que o critério de tradicionalidade da ocupação territorial deve ser determinado nos processos de demarcação de terras indígenas pelo laudo antropológico e não por comprovações jurídicas relativas a condicionantes temporais.

 

Embora a decisão do STF de 2023 tenha reafirmado os direitos territoriais indígenas como originários e independentes de comprovação, as disputas em torno do marco temporal continuam em curso e avançam no âmbito parlamentar por meio de diversos projetos legislativos e propostas que objetivam introduzir a tese do marco temporal na Constituição Federal e fragilizar os processos de demarcação e proteção de terras indígenas (Silva, 2017). Diante disso, a seguir, serão apresentadas e aprofundadas as repercussões políticas do marco temporal no âmbito legislativo por meio da análise da PEC 215/2000 e de seus desdobramentos.

 

PEC 215/2000: A disputa do agronegócio sobre a demarcação de terras indígenas

 

Embora a PEC 215/2000 tenha sido arquivada em 31 de janeiro de 2023, toda a discussão gerada em torno dos fundamentos de sua proposição e, principalmente, os conflitos decorrentes de seus desdobramentos exigem o reconhecimento de que se tratou de um fato de extrema relevância política para a questão da demarcação das terras indígenas. A PEC 215 pautou o debate do marco temporal no âmbito legislativo e, de modo mais amplo, impulsionou no Congresso Nacional a materialização de diversas pautas da burguesia agrária em torno da exploração das terras indígenas (Silva, 2015). Para situar os argumentos que serão apresentados, será necessário compreender o termo burguesia agrária, bem como a forma como essa fração de classe se institucionaliza no Poder Legislativo brasileiro por meio da bancada ruralista.

 

Inicialmente, indicamos as contribuições de Ilena Felipe Barros (2018) que destaca os impactos da financeirização do capital sobre a luta de classes no campo, expressos no Brasil, especialmente, pelo projeto político-econômico do agronegócio. Diante desse contexto financista, o conceito de burguesia agrária se refere a frações de classe heterogêneas que se unificam em torno de um projeto político, ideológico e econômico de defesa dos interesses econômicos ligados ao agronegócio, bem como às atividades extrativistas, no âmbito da representação política - uma vez que as possibilidades de geração de valor para o capital financeiro no agronegócio não se baseiam atualmente apenas em atividades produtivas, mas também na lógica especulativa das bolsas de mercadorias agrícolas, de minérios e na propriedade privada e especulação valorativa da terra (Stédile, 2013).

 

O fortalecimento do projeto político-econômico do agronegócio nas últimas décadas reverberou na organização da burguesia agrária no espaço institucional em “[...] frentes parlamentares suprapartidárias voltadas prioritariamente para a defesa de interesses corporativos e para o fortalecimento político dos setores por elas representados” (Bruno, 2017, p. 155). A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) traduz a institucionalização da chamada bancada ruralista, a qual concentra a elite latifundiária agroindustrial e se articula com políticos aliados - defensores de pautas conservadoras comuns, normalmente de origem moral - para a consolidação dos interesses da burguesia agrária e do capital financeiro no âmbito legislativo (Barros, 2018).

 

Por sua vez, Elizângela Cardoso de Araújo Silva (2017) evidencia que uma das principais pautas de articulação política da burguesia agrária no Congresso Nacional é a investida contra os direitos indígenas no Brasil, intencionando facilitar a exploração de recursos naturais nas terras indígenas e reestruturar as normativas jurídicas e o funcionamento da política de demarcação de terras. Esse cenário decorre da concepção da burguesia agrária de que o Poder Legislativo é um espaço de proposição e debate de políticas que ultrapassam um projeto de lei específico e que incorporam temas mais abrangentes, como a propriedade privada da terra e a exploração de recursos naturais (Bruno, 2017).

 

A PEC 215 demonstrou esse entendimento acerca do Poder Legislativo, na medida em que propôs a incorporação da tese jurídica do marco temporal à Constituição e se debruçou sobre o objetivo de transferência da autoridade, do Poder Executivo para o Poder Legislativo (Congresso Nacional), da prerrogativa de estabelecer e deliberar sobre a demarcação das terras indígenas e dos territórios quilombolas. Atualmente, a competência da demarcação e titulação de terras indígenas é atribuída à Funai, principal órgão executivo da política indigenista no Brasil. Essa configuração de funções institucionais advém do entendimento legal de que o procedimento de demarcação de terras tem caráter técnico, sendo necessário um corpo de especialistas para realizar estudos de identificação, declaração, demarcação física, homologação e registro das terras na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

 

Diante disso, a transferência de competências institucionais, proposta pela PEC 215, reduziria a autonomia e incidência de decisões de ordem técnica nos campos antropológico, histórico, social e jurídico (concernentes ao Poder Executivo) e diminuiria a participação dos povos indígenas no processo de reconhecimento dos seus próprios territórios, coadunando com uma perspectiva de tutela do Estado sobre o sujeito indígena - oposta à ênfase estabelecida pela Constituição de 1988 na autodeterminação dos povos indígenas (Silva, 2018).

 

A centralização do poder decisório sobre a demarcação de terras indígenas conferida ao Congresso Nacional situaria e submeteria os direitos assegurados pela Constituição ao âmbito político e representaria grave ameaça aos povos indígenas, principalmente, pelo avanço da bancada ruralista nessa arena e pela diminuta presença indígena no legislativo devido às barreiras históricas.

 

Além de intencionar essa ampliação do poder parlamentar sobre as decisões em torno das terras indígenas, a PEC 215 também havia proposto a flexibilização do acesso, apropriação e exploração dos recursos naturais presentes nos territórios indígenas; a proposta buscava favorecer atividades de alto impacto ambiental (como a extração de madeira e o garimpo), empreendimentos do agronegócio e obras de infraestrutura. Junto a essas proposições, encontrava-se também a imposição da possibilidade de arrendamento de territórios indígenas e de impedimento da ampliação geográfica de terras já demarcadas.

 

Portanto, a PEC 215 se enquadrava no projeto político defendido pela bancada ruralista no Congresso Nacional e procurava situar a terra indígena como mercadoria e não como direito (Silva, 2017; Bruno, 2017). Essa proposição contraria não apenas os princípios da Constituição Federal de 1988 no que tange ao reconhecimento e proteção dos territórios originários, como também sublinha um conflito mais amplo entre a lógica de acumulação capitalista e a preservação dos direitos e modos de vida indígenas.

 

As normativas jurídicas e o debate político guardam limites significativos na garantia dos direitos dos povos indígenas em uma sociedade capitalista; no entanto, ainda representam dispositivos necessários para a disputa de um projeto de classe que priorize a proteção da vida dos povos indígenas em contraponto ao amparo dos interesses econômicos da burguesia agrária no país (Silva, 2018). No caso da PEC 215/2000, apesar de ter sido arquivada, ela foi impulsionadora de intensos debates políticos sobre as problemáticas que envolvem a questão indígena por aproximadamente duas décadas e, de certa forma, suas prerrogativas foram assimiladas no contexto do debate da tese do marco temporal e dos respectivos projetos de lei (PL 490/2007 (Brasil, 2007), na Câmara dos Deputados, e PL 2903/2023 (Brasil, 2023), no Senado Federal) que trataram da questão da demarcação das terras indígenas no Brasil.

 

Representação chárgica das investidas capitalistas contra a demarcação das terras indígenas

 

Cumprida a etapa metodológica de contextualização e ancoragem histórico-conjuntural (Miani, 2023) que corresponde ao “[...] trabalho de pesquisa bibliográfica, com vistas à realização de uma análise histórica e historiográfica para subsidiar a contextualização sócio-histórica [...]” (Miani, 2023, p. 65), faz-se necessário demarcar brevemente as condições de produção que envolveram a produção chárgica a ser analisada. Essa tarefa é, particularmente, fundamental porque definimos como corpus para a análise empírica uma seleção de charges produzidas por um único chargista, Carlos Latuff. Vale registrar que a seleção de charges levou em consideração os limites estabelecidos para este artigo e o imperativo de garantir que a pluralidade de questões relacionadas à questão indígena abordadas na produção chárgica de Latuff estivesse bem representada; ficaram de fora apenas aquelas charges que replicam alguma questão retratada que será analisada nas charges selecionadas.

 

Em relação a Carlos Latuff, trata-se de um chargista que se autodefine como “cronista visual da barbárie” (Sperb, 2019) porque ele argumenta tratar em suas charges de “temas relacionados à barbárie”, produzidas pelo sistema capitalista. A questão indígena e os conflitos no campo - bem como, a causa Palestina, a violência policial, a defesa dos direitos dos trabalhadores, etc. - são algumas das temáticas retratadas por Latuff, principalmente, veiculadas por jornais, revistas ou portais da imprensa popular e alternativa, ou ainda disponibilizadas em modo copyleft em suas redes sociais.

 

Apesar de a maioria das charges referentes à questão indígena aqui analisadas terem sido publicadas, originalmente, em órgãos de imprensa popular e alternativa, principalmente, nos portais do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Brasil de Fato ou do Brasil 247 (como é possível constatar na assinatura da maioria das charges, uma vez que Latuff instituiu a dinâmica de também dar crédito à organização que solicitou ou que publicou sua produção chárgica), optamos por caracterizar como fonte as redes sociais onde Latuff republicou todas as referidas charges. Isso confere outra ordem de intertextualidade para a análise das charges, pois não será aprofundado o contexto intertextual original de cada uma das charges, mas, tão somente, a discursividade inerente à imagem, bem como alguns dos elementos de natureza imagética em seus aspectos semióticos e estéticos (Miani, 2023).

 

A primeira charge a ser analisada tem como foco uma retratação da burguesia agrária ligada ao agronegócio em deliberada ação contra os povos indígenas e seus direitos, apontando para a perspectiva da terra indígena como uma mercadoria, além de explicitar o antagonismo entre o projeto político e a sociabilidade da ordem capitalista que privilegia a propriedade privada, por um lado, e os modos de vida e de apropriação e uso social da terra pelos povos indígenas, por outro lado. A referida charge (figura 1) explora simbolicamente a perversa e predatória acumulação capitalista do agronegócio como propósito central para promover a redução dos territórios indígenas, algo que se relaciona com o debate sobre a demarcação de terras indígenas, tanto no reconhecimento inicial dos limites geográficos, quanto na pauta para impedir a ampliação das terras indígenas já demarcadas. A perspectiva ideológica implicada na charge se materializa pelo discurso imagético representado pelo apetite voraz do agronegócio sobre as terras indígenas.

 

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Figura 1: Charge Apetite voraz do agronegócio sobre as terras indígenas de Latuff (2012).

 

Conforme já abordado, uma das frentes de atuação da burguesia agrária para garantir seus interesses políticos e econômicos se materializa por meio da reconfiguração do ordenamento jurídico. Importantes aspectos do debate em torno da tese do marco temporal e da proposição e desdobramentos da PEC 2015/2000 se constituíram como argumentos para a produção de algumas charges de Carlos Latuff; nesse sentido, esse é o universo discursivo encampado pelo conjunto de charges selecionadas e analisadas a seguir.

 

Na figura 2, a charge faz referência à PEC 215/2000 que tinha como proposição transferir a competência sobre o reconhecimento, demarcação e titulação das terras indígenas do Poder Executivo para o Poder Legislativo, atribuindo ao Congresso Nacional a autoridade de tomar as decisões finais sobre a demarcação das terras indígenas no país. Em sua charge, Latuff ressalta a ameaça que a referida proposta representava às vidas indígenas, uma vez que seria concedido maior poder de decisão à bancada ruralista. Desse modo, a imagem de um homem branco vestindo terno e chapéu (estereótipo icônico da burguesia agrária) e cavando covas num terreno com o formato do mapa do Brasil explicita a ameaça que o projeto político e econômico da bancada ruralista representava aos povos indígenas brasileiros, ou seja, no limite, o seu próprio extermínio. Tratava-se de uma denúncia derrisória do chargista em relação ao que caberia aos povos indígenas caso a PEC 215 viesse a ser aprovada.

 

https://latuffcartoons.files.wordpress.com/2013/10/pec-215-demarcacao-de-terras-indigenas.gif?w=640

Figura 2: Charge A PEC 215/2000 e o extermínio dos povos indígenas de Latuff (2013a).

Ainda em relação ao embate em torno de um eventual reordenamento jurídico a incidir sobre a questão da demarcação das terras indígenas, Latuff produziu uma charge cujo foco era oferecer uma representação sintética dos propósitos e dos tensionamentos derivados do PL 490/2007 (figura 3). O PL 490 dispunha sobre o reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas. A referida lei pretendia estabelecer a incorporação do marco temporal à Constituição Federal e também a flexibilização das normas de proteção às terras indígenas e ao usufruto exclusivo dessas terras pelos povos indígenas, além de interpor novas dificuldades ao processo demarcatório e abrir mais espaço para recursos de contestação de terras já demarcadas. Havia também no escopo do projeto a intenção de reduzir a autonomia dos povos indígenas em relação aos seus territórios quando se tratasse de ocupação militar para propósitos de defesa. Apesar de todas as controvérsias, a lei foi aprovada e, posteriormente, sancionada pelo presidente Lula no final de 2023, com vetos relacionados ao marco temporal, vetos estes que foram derrubados pelos parlamentares[4]. Na charge, vemos uma representação da contraposição/antagonismo entre os interesses da bancada ruralista e os direitos dos povos indígenas, mediados, mais uma vez, pelo uso de violência contra os indígenas.

 

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Figura 3: Charge O PL 490/2007 e o antagonismo de interesses de Latuff (2018).

 

Em relação ao marco temporal propriamente dito, selecionamos uma charge que expressa de maneira bastante representativa a dinâmica da luta de classes e como se constituem as articulações em torno do debate da demarcação das terras indígenas (figura 4). O discurso chárgico aponta em um de seus desvelamentos que havia um alinhamento e uma combinação de interesses entre os setores que se articulavam em torno da defesa do marco temporal - bancada ruralista (representação estereotipada de um latifundiário), governo (figura de Michel Temer) e Poder Judiciário (figura de Gilmar Mendes). Naquele contexto, durante o governo Michel Temer (2016-2018), a Segunda Turma do STF havia anulado três processos de demarcação de terras indígenas com base no critério do marco temporal, comprovando o alinhamento político do Poder Executivo e, ao menos, de alguns representantes do Poder Judiciário, com o projeto político e econômico defendido pela bancada ruralista. Por outro lado, a charge também expressou a existência de um movimento de resistência dos povos indígenas contra o marco temporal, explicitando o fato de a questão indígena se constituir como uma das arenas mais vivas dos processos de luta de classes no Brasil.

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Figura 4: Charge Resistência e luta contra o marco temporal de Latuff (2017a).

 

As duas charges apresentadas e analisadas a seguir expressam, em alguma medida, os embates entre os Poderes do Estado e a luta pelo direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras. Explorando vigorosamente toda a potencialidade de recursos imagéticos e de elementos estético-simbólicos para explicitar que a questão da demarcação das terras indígenas se constitui como um lugar de conflitos e de violências, Latuff apresenta, na primeira charge (figura 5) as ferramentas de demarcação de terras que corresponde, respectivamente, ao instrumento representativo de cada um dos segmentos sociais diretamente envolvidos nos embates da respectiva questão indígena. O encadeamento entre o arco e a flecha no primeiro quadro (referência aos indígenas), a caneta no quadro central (referência ao governo) e a arma de fogo no quadro final (referência aos ruralistas) indicam que o processo de demarcação de terras se estabelece como um campo de disputas desigual, remetendo a um cenário de constantes conflitos entre os direitos dos povos indígenas e os interesses econômicos do setor ruralista, e que nessa batalha cada segmento utiliza as armas que tem para fazer a sua luta e defender os seus interesses.

 

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Figura 5: Charge Ferramentas de demarcação de terras de Latuff (2013b).

 

Por sua vez, a próxima charge (figura 6) remete às consequências concretas da imposição dos interesses das frações de classe burguesas ligadas ao latifúndio e ao agronegócio - em pleno alinhamento com os Poderes do Estado - em detrimento dos direitos e dos interesses dos povos indígenas, que não poderia resultar em outra coisa a não ser a intensificação da extrema violência.

 

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Figura 6: Charge Massacre e violência contra os povos indígenas de Latuff (2017b).

 

O que vemos na referida charge é a imagem de uma pessoa indígena assassinada colocada sobre a imagem do mapa do Brasil, este recoberto pelo sangue escorrido de seu peito perfurado por objetos pontiagudos representativos de cada um dos três Poderes do Estado - quais sejam, uma caneta tinteiro com a inscrição Legislativo, um malhete com a palavra Judiciário e uma espada marcada com a palavra Executivo -, retratando a violência contra os povos indígenas. Nessa charge, Latuff se refere ao cenário de violência no campo que vitima os povos indígenas e faz uma denúncia ao papel que o Estado vem desempenhando na perpetuação da conjuntura de ataques, violências e massacres cometidos contra os povos indígenas, principalmente, em razão do atraso nas demarcações das terras indígenas e na conivência em relação à manutenção da precariedade das condições de funcionamento dos órgãos de execução das políticas indigenistas, que acabam por contribuir com a intensificação da violência no campo e com a ocorrência de assassinatos de indígenas.

 

Por fim, as duas últimas charges selecionadas para análise trazem como elemento central a retratação da forma como o governo Michel Temer (2016-2018) e o governo Bolsonaro (2019-2022), respectivamente, concebiam a questão da demarcação das terras indígenas. Como poderemos perceber, o destaque à violência contra os povos indígenas foi um elemento comum explorado na construção do discurso chárgico de Latuff sobre a forma como ambos os governos trataram a referida questão.

 

Na primeira imagem (figura 7), Michel Temer aparece tracejando uma linha ao redor do pescoço de um indígena enquanto é observado maquiavelicamente por alguém que supostamente representa a burguesia agrária e que aguarda entusiasmadamente o momento da realização da demarcação (aqui, com sentido irônico de eliminação). Atente-se para o machado com corte afiado (indicado pelos traços emanados de sua ponta) que, possivelmente, será usado para cortar o pescoço tracejado do indígena numa explícita referência às práticas de violência cometidas pelo governo Temer contra os povos indígenas e, em especial, contra o seu direito relativo à demarcação de terras.

 

Na última imagem (figura 8), vemos Jair Bolsonaro afirmando “pode demarcar!” em explícita e contundente manifestação de autorização concedida à bancada ruralista para impor sua violência (indicada pela presença de uma espingarda) contra os povos indígenas. Deve-se observar, ainda, que Bolsonaro se escora numa pá que teria sido usada para enterrar a Funai (palavra inscrita no jazigo), numa explícita referência à política do referido governo de tentar destruir o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro e de apoiar o projeto do marco temporal, conferindo todo o poder de demarcação das terras indígenas à burguesia agrária e sua base legislativa representada pela bancada ruralista.

 

Tela de computador com desenho de personagens

Descrição gerada automaticamente

Figura 7: Charge A questão da demarcação das terras indígenas no governo Michel Temer de Latuff (2016).

 

Imagem

Figura 8: Charge A questão da demarcação das terras indígenas no governo Bolsonaro de Latuff (2019).

 

Ambas as charges indicam a existência de relações de proximidade, e até mesmo de cumplicidade, entre a bancada ruralista e os governos retratados e sugerem que o papel que estaria cumprindo estes governos em relação a favorecer os interesses da burguesia agrária seria o de criar as condições necessárias para o avanço dos projetos econômico e político dessa fração de classe burguesa e que, antagonicamente, implicaria no agravamento da segurança jurídica, material e até mesmo física das populações indígenas.

 

Vale destacar que a sugerida cumplicidade se assenta no reconhecimento de que a bancada ruralista, por sua vez, agiu em defesa dos interesses dos respectivos governos. A votação favorável ao impeachment (leia-se Golpe de Estado) da então presidenta Dilma Rousseff contou com expressiva participação da bancada ruralista, assim como os parlamentares da referida bancada também não apoiaram a abertura de investigação contra Temer por corrupção passiva e organização criminosa. No caso de Bolsonaro, desde sua campanha eleitoral, ele já havia prometido paralisar os processos de demarcação de terras indígenas e de territórios quilombolas e já acenava seu alinhamento político com a burguesia agrária; diante disso, em contrapartida, esta lhe garantiu uma base parlamentar para levar adiante suas propostas de governo.

 

De modo geral, as charges de Carlos Latuff aqui analisadas, retratando aspectos relacionados à questão da demarcação das terras indígenas, apresentam alguns dos conflitos que se estabeleceram na conjuntura política nacional derivados da referida problemática e revelam a participação dos múltiplos segmentos e sujeitos envolvidos, procurando explicitar os posicionamentos políticos e ideológicos no contexto da luta de classes. Na retratação chárgica de Latuff, predominantemente, o Poder Executivo aparece como um ator político alinhado aos interesses econômicos e políticos da burguesia agrária e também da bancada ruralista, em especial, no que se refere à questão da demarcação das terras indígenas, bem como se revela negligente em relação à proteção das terras indígenas e ao cumprimento do preceito constitucional de garantir a demarcação das terras indígenas. Por fim, também é recorrente a representação da resistência e da insatisfação dos povos indígenas, remetendo ao cenário de precariedade, atrasos e ataques que incidem sobre a efetivação dos direitos territoriais dos povos indígenas, fator crucial para a sua segurança física ante os severos conflitos fundiários, seu bem-estar e a continuidade de seus projetos coletivos presentes e futuros (Silva, 2018).

 

Considerações finais

 

A charge, a nosso ver, se mostra um vigoroso e estimulante produto cultural e fonte histórica que nos permite compreender a dinâmica sociopolítica de um determinado fenômeno social ou de um fato ou tempo históricos. Suas características de ludicidade e de ser uma produção de natureza dissertativa (Miani, 2023) conferem à charge uma vitalidade e uma força discursiva que possibilita aos pesquisadores e pesquisadoras desbravarem o universo real e simbólico das representações e das formações discursivas e ideológicas que conformam uma determinada realidade.

 

Ao propor analisar a questão da demarcação das terras indígenas por meio da análise do discurso chárgico de Carlos Latuff nos aventuramos nesse desafio e acreditamos que, ao menos de modo satisfatório, apresentamos algumas contribuições que se somam a uma perspectiva materialista dialética de compreensão deste processo social que tem marcado de maneira significativa a história política brasileira recente.

 

A produção chárgica de Carlos Latuff sobre a demarcação das terras indígenas no Brasil é muito mais ampla e complexa do que os limites deste artigo nos permitiram apresentar e aprofundar. Além disso, há outros chargistas que, tanto quanto Latuff, também merecem ter sua obra analisada, tarefa que se apresenta como desafio que pretendemos continuar assumindo e que, oxalá, tenhamos companhia nessa empreitada.

 

Referências

 

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Rozinaldo Antonio MIANI Trabalhou na concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e revisão crítica.

Possui Graduação em Comunicação/Jornalismo e História. Mestrado em Comunicação. Doutorado em História. Pós-doutorado em Comunicação (ECA/USP - Fundação Araucária/PR). Docente do Departamento de Comunicação e dos Programas de Mestrado em Comunicação (PPGCom/UEL) e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social (PPGSER) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Tem experiência nas áreas de comunicação popular e comunitária, humor gráfico e mundo do trabalho; tem atuação nas áreas de movimentos sociais, participação popular e políticas sociais. Coordena o Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (NCP/CNPq).

 

Bruna Miyuki Enomoto AKAMATSU Trabalhou na redação do artigo e na análise e interpretação dos dados.

Possui graduação em Comunicação/Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestranda em Comunicação pelo Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (PPGCom/UEL). Bolsista Capes. Integra o Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (NCP/CNPq) e desenvolve pesquisas nas áreas de humor gráfico e processos sociais.

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática

 

 

Submetido em: 29/2/2024. Aceito em: 26/7/2024.

 

 

 

 

 

 

Creative Common - by 4.0

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 



[1] A primeira metade da década de 1990 foi marcada, dentre outros fatos importantes, pelo impeachment de um presidente (Fernando Collor de Mello); pela realização de um plebiscito que decidiu manter o regime presidencialista como sistema de governo; por uma crise parlamentar, em especial, pelos desdobramentos da CPI do Orçamento; pelo impacto das medidas relacionadas ao Plano Real; e pela realização de eleições presidenciais marcadas por uma polarização em torno de dois projetos distintos.

[2] A Terra indígena Raposa-Serra do Sol foi declarada posse permanente dos povos indígenas por meio da Portaria 820/1998 (Brasil, 1998), assinada pelo então ministro da Justiça Renan Calheiros, editada no dia 11 de dezembro de 1998.

[3] Por imprensa popular e alternativa definimos como aquela imprensa de natureza contra-hegemônica, “[...] vinculada aos interesses históricos das classes subalternas, no contexto da luta de classes, numa perspectiva emancipatória, produzida e/ou impulsionada pelas mais diversas organizações sócio-políticas engajadas na luta anticapitalista” (Miani, 2010, p. 299).

[4] A Lei 14.701/2023 (Brasil, 2023) é um dos principais desdobramentos do debate em torno da tese do marco temporal na atualidade, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter julgado como inconstitucional e, portanto, derrubado a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, afirmando que a tese é incompatível com a proteção constitucional aos direitos dos povos indígenas.