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Envelhecimento e dependência no Brasil: os imbricamentos de classe, “raça”/etnia e gênero

Aging and dependency in Brazil: the overlapping of class, race/ethnicity, and gender

Líbia Mafra Benvindo de MIRANDA

Descrição: Ícone Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0001-8109-4907

Universidade Federal do Piauí. Centro de Ciências Humanas e Letras.

Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. Teresina, Piauí, Brasil

E-mail: libiamafra@gmail.com.

Solange Maria TEIXEIRA

Descrição: Ícone Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-8570-5311

Universidade Federal do Piauí. Centro de Ciências Humanas e Letras. Departamento de Serviço Social.

Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. Teresina, Piauí, Brasil

E-mail: solangeteixeira@ufpi.edu.br.

Resumo: O artigo objetiva analisar aspectos relacionados à velhice dependente da classe trabalhadora marginalizada e invisibilizada, assim como a sua vinculação com a complexidade das relações sociais envolvidas pela condição de classe, “raça”/etnia e gênero, de modo a evidenciar que a produção social da velhice se encontra na materialidade da vida de homens e mulheres. Trata-se de um trabalho teórico, de caráter bibliográfica e documental, baseado na literatura de base crítica, especialmente de cariz marxista. Discute-se envelhecimento a partir da gerontologia crítica, e dependência a partir do imbricamento das particularidades de classe, raça/etnia e gênero. Conclui-se que na sociedade do capital, na qual a divisão de classes e a exploração de uma pela outra, imbrincada ao racismo e sexismo, formam um “nó” simbiótico que ampliam e reproduzem as iniquidades sociais de modo a impactar nas velhices.

Palavras-chaves: Envelhecimento. Dependência. Desigualdades Sociais. Imbricamento. Gerontologia Crítica.

Abstract: This article analyses aspects of old age dependency within the marginalised and invisible working class, and its connection to the complexity of social relations of class, race/ethnicity and gender, to highlight that the social production of old age is found in the materiality of the lives of men and women. This is theoretical work with a bibliographic and documentary basis, based on critical literature, particularly that of a Marxist nature. The discussion is founded on critical gerontology and dependency based on the overlapping of particularities of class, race/ethnicity, and gender. It concludes that capitalist society, with its division of classes and the exploitation of one by the other, intertwined with racism and sexism, form a symbiotic “knot” that expands and reproduces social inequities that impact old age.

Keywords: Aging. Dependency. Social Inequalities. Imbrication. Critical Gerontology.

Introdução

Por muito tempo, os temas envelhecimento e velhices ficaram à margem dos estudos e da agenda pública, ocorrendo o que Simone de Beauvoir (2018) chamou de conspiração do silêncio em sua obra intitulada A Velhice, cujo objetivo era quebrar essa conspiração. Para a escritora, ser velho na sociedade do capital carrega em si muitos estigmas que tornam esse processo (envelhecimento) e condição (velhice) algo vergonho de se viver e ser: “[...] os homens eludem aspectos de sua natureza que lhes degradam. E, estranhamente, a velhice, para a sociedade, aparece como uma espécie se segredo vergonhoso, do qual é indecente falar” (Beauvoir, 2018, p. 7). Assumimos essas concepções que terminam por se voltarem contra nós mesmos, a ponto de recusarmos a nos reconhecermos como velhos, pois velho é o outro, já que “[...] antes que se abata sobre nós, a velhice é uma coisa que só concerne ao outro” (Beauvoir, 2018, p. 7).

Somente com as transições demográficas e epidemiológicas, somadas às mudanças na família e as transformações no mundo do trabalho, o meio acadêmico, as entidades profissionais alusivas e as instituições internacionais despertaram para o debate sobre envelhecimento e velhices, tornando-se um campo de estudos tensionado por diferentes perspectivas de análise desse processo. Porém, a velhice da classe trabalhadora, dos povos negros, daqueles que perderam sua capacidade funcional, dos segmentos mais marginalizados ainda é pouco estudada, porque ainda predomina o interesse em se estudar a velhice ativa, saudável e bem-sucedida.

A velhice dependente permanece no universo das famílias. Não tem visibilidade, exceto quando se refere aos custos financeiros ou aos novos procedimentos e técnicas de rastreio para postergar, ao máximo, as perdas e, por conseguinte, o consumo de serviços públicos (Bernardo, 2019, p. 20).

As questões de classe, “raça”1/etnia e gênero são minimizadas ou invisibilizadas, uma visão sob a qual se fundou a gerontologia social tradicional (Debert, 2020). Neste estudo, objetiva-se analisar aspectos relacionados à velhice dependente da classe trabalhadora marginalizada e invisibilizada, assim como a sua vinculação com as particularidades de classe, “raça”/etnia e gênero, de modo a evidenciar que a produção social da velhice se encontra na materialidade da vida de homens e mulheres.

O estudo se caracteriza como um trabalho teórico de base bibliográfica e documental, por meio do qual se dialoga com uma literatura e dados empíricos selecionados por critérios de intencionalidade, numa amostragem típica das metodologias qualitativas tendo, como critérios de inclusão, a filiação das/os autoras/es e a utilização de uma abordagem crítica, especialmente de cariz marxista, dentre as quais se destacam: Teixeira (2008, 2009, 2019), Campelo e Paiva (2014), Saffioti (2015), Bernardo (2019) e outros/as. Esta escolha intencional é um esforço, primeiro, de desenvolver uma análise do envelhecimento a partir da gerontologia crítica, e depois da dependência a partir do imbricamento das desigualdades de classe, raça/etnia e gênero, tomando como base as estatísticas dos institutos de pesquisas nacionais (IBGE, FIOCRUZ, IPEA) e outras fontes de dados.

O texto está dividido em quatro partes, incluindo esta introdução e as considerações finais. Na primeira parte intitulada Envelhecimento e a gerontologia social crítica: descortinando a produção social da velhice, abordam-se as perspectivas gerontológicas com ênfase na gerontologia crítica. Sob o título Envelhecimento e Dependência: as particularidades de classe, a segunda parte versa sobre “raça”/etnia e gênero e está subdividida em dois subitens. Nela são apresentados os aspectos conceituais do imbricamento das particularidades de classe, “raça”/etnia e gênero, além de reflexões sobre capacidade funcional, dependência, autonomia e dados estatísticos que se configuram como determinantes para uma velhice como problema social (solitária, dependente, com comorbidades e dificuldade de locomoção, e outros problemas).

Parte-se do pressuposto, neste percurso investigativo, que a velhice dependente é determinada não só por aspectos biológicos, mas também pelas desigualdades e iniquidades de classe, cor, etnia, gênero e outras. Portanto, questiona-se como as desigualdades sociais classe, “raça”/etnia e gênero podem produzir uma velhice trágica, problemática e dependente?

1 Envelhecimento e a gerontologia social crítica: descortinando a produção social da velhice

Na atualidade, o tema envelhecimento tem grande relevância social e científica, sendo abordado sob diferentes perspectivas. Há aqueles que o definem como “[...] saudável, bem-sucedido, produtivo e ativo” (Carvalho, 2013, p. 10-11). Contudo, críticas vêm sendo feitas a essas definições, dado o caráter multidimensional e complexo da senescência. Tomando como referência Carbonnelle (2010), Carvalho (2013) destaca que “[...] essa crítica está relacionada com a apropriação do objeto de estudo [...]” (Carvalho, 2013, p. 11), por não se levar em conta o caráter histórico, político, econômico e social da palavra.

Duas correntes têm influenciado a gerontologia social tradicional2: a francófona e a anglo-saxônica. Na teoria explicativa francófona, predominam as análises do envelhecimento sob o viés demográfico e biológico, exacerbando a dualidade desse processo, visto ao mesmo tempo, e contraditoriamente, como algo negativo e positivo.

Envelhecer significa ‘ser mais velho’ e ‘ter mais idade’ e esse estado enfatiza a falência da vitalidade de um ser vivo, a solidão e o isolamento [...]. Esta perspectiva polarizou o discurso sobre envelhecimento. Assim temos, por um lado, o envelhecimento negativo e, por outro, o envelhecimento bem-sucedido (Carvalho, 2013, p. 11).

Na tradição anglo-saxônica, o envelhecimento é abordado como uma etapa do ciclo da vida e idealizado como bem-sucedido quando o indivíduo se adapta ao processo de mudança decorrente da senescência. Há, portanto, uma centralidade no indivíduo e na sua subjetividade.

Na abordagem anglo-saxônica prevalece a abordagem do envelhecimento como ageing – ciclo da vida enquanto ideia de envelhecimento bem-sucedido como um processo ‘in transition’ – adaptação à mudança. O envelhecimento é analisado sob o ponto de vista da discriminação pela idade, ‘ageísmo’ e ‘idadismo’. Estes processos são consequência do processo de ‘desingagement’ – diminuição das interações dos mais velhos após a reforma (Carvalho, 2013, p. 11).

Ainda segundo Carvalho (2013), as perspectivas de envelhecimento associadas aos pensamentos francófono e anglo-saxônico vêm sendo superadas pela abordagem da representação do envelhecimento e pela noção de envelhecimento ativo, que consideram os determinantes da promoção da saúde. Conforme a Organização Mundial de Saúde (2005, p. 12), o envelhecimento ativo é “[...] um processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas [...]” (Organização Mundial de Saúde, 2005, p. 12), se apresentando, portanto, como mais amplo.

O envelhecimento ativo, saudável e bem-sucedido pressupõe que as manifestações típicas da velhice podem ser modificadas, até mesmo seus aspectos mais negativos, a depender do estilo de vida, hábitos, comportamentos de cada indivíduo e políticas públicas destinadas às pessoas idosas, evidenciando uma responsabilização dos indivíduos e mascarando os determinantes sociais, já que não diferencia os efeitos próprios da velhice (declínio biológico) daqueles que decorrem das particularidades classe, “raça”/etnia, gênero e outros. O foco é o indivíduo e não os aspectos estruturais da sociedade.

Essas perspectivas, de viés ideológico positivista e neoliberal, têm influenciado a gerontologia social tradicional, os organismos internacionais (OMS, ONU e outros) e o conjunto das políticas para pessoas idosas, sobretudo, daqueles países mais desenvolvidos, com desdobramentos nos países periféricos e dependentes que, por meio do próprio Estado, vêm fazendo ajustes e contrarreformas nos sistemas de proteção social para atender às determinações do grande capital e dos países centrais mais poderosos.

São relevantes as contribuições dessas correntes e da gerontologia social tradicional para a visibilidade da problemática social da velhice e para a sua inserção na agenda pública, mas os avanços em termos de visibilidade e conquista de direitos não se deram de forma unilateral, senão pelas correlações de forças, pela luta de classe. Como bem afirma Teixeira (2009), a problemática do envelhecimento do trabalhador deve ser pensada na ordem da sociedade capitalista e das lutas de classe, pois estas últimas “[...] problematizam necessidades não satisfeitas [...]” (Teixeira, 2009, p. 67), a serem atendidas por meio de políticas públicas, assim como para a compreensão da velhice do trabalhador como expressão da questão social, o que requer considerar os determinantes dessa problemática. “Abordar o envelhecimento do trabalhador, como expressão da questão social, implica o resgate dos determinantes econômicos, políticos, culturais que engendram essa problemática social, na ordem e no tempo do capital” (Teixeira, 2009, p. 67).

Ao fazer tal afirmação, a autora explicita a sua postura de pesquisadora baseada na gerontologia social crítica. Essa visão não é hegemônica, embora venha ganhando força com os recentes estudos que partem de uma análise do envelhecimento sob a ótica da totalidade social e da interseção de diferentes marcadores de opressão e desigualdade como classe, “raça”/etnia, gênero e outros como categorias mediadoras.

Beauvoir (2018) já tecia suas críticas à gerontologia positivista por seu caráter descritivo ao afirmar que “[...] a velhice não poderia ser compreendida se não em sua totalidade; ela não é somente um fato biológico, mas também um fato cultural [...]” (Beauvoir, 2018, p. 17) determinado pelo contexto social.

Essa concepção de Simone de Beauvoir (2018) tem influenciado os estudos da gerontologia crítica. Contrapondo-se às abordagens homogeneizantes e universalistas, a gerontologia social crítica percebe o envelhecimento e as velhices como determinados pelas condições materiais de existência e pelo lugar que cada indivíduo ocupa nas relações sociais no contexto da ordem social capitalista, tornando-as diversas e assimétricas.

Discutir velhices humanas significa apreender diferentes e desiguais processos de vida, considerando que a inserção de indivíduos e populações numa estrutura de classes condicionará seus processos de envelhecimento e velhices (Campelo e Paiva; Soares; Santos, 2020, p. 76).

Para Campelo e Paiva (2014), a gerontologia social crítica desenvolve suas análises na perspectiva da totalidade social, contrapondo-se à racionalidade capitalista, pois analisa as relações sociais de produção e reprodução social numa perspectiva histórica, com centralidade no trabalho enquanto categoria fundante do ser social e concebe a velhice como uma construção social, além de contextualizar o adoecimento humano como uma expressão da questão social. A abordagem crítica permite ir além dos aspectos cronológicos e biomédicos, evidencia que a velhice é diferente e desigual para indivíduos e determinados grupos, classes, raças e populações.

Neste estudo, entende-se que o envelhecimento não pode ser compreendido apenas como um declínio geral, limitado a uma perspectiva biológica, epidemiológica e demográfica.

De acordo com Teixeira (2009), os aspectos sociais (socioeconômicos e culturais) têm sido pouco abordados ou restritos a papéis e hábitos sociais, e não aos determinantes estruturais, como a condição de classe no modo de envelhecer. Acrescenta ainda a autora que essas análises obscurecem as expressões da questão social do envelhecimento, pois as pessoas não envelhecem nem enfrentam as dificuldades e vulnerabilidades postas pela condição etária da mesma forma.

Considerando-se que o homem envelhece sob determinadas condições de vida, fruto do lugar que ocupa nas relações de produção e reprodução social, não se pode universalizar suas características no processo de construção das bases materiais da existência, porque os homens não vivem e não se reproduzem como iguais, antes, são distintos nas relações que estabelecem na produção da sua sociabilidade, principalmente na sociabilidade fundada pelo capital, nas quais as desigualdades, pobrezas, e exclusões sociais lhes são imanente e, reproduzidas e ampliadas no envelhecimento do trabalhador (Teixeira, 2008, p. 30).

A análise desse processo demanda uma perspectiva crítica e de totalidade social, pois a sociedade deve ser vista como um todo, contrapondo-se, assim, à racionalidade moderna e capitalista que oculta a essência dos fenômenos. Ademais, considerando que o trabalho é uma categoria central da sociabilidade humana e que se estende para além do objeto que dele resulta, pois origina relações entre os homens para além do trabalho enquanto tal (reprodução social), a organização social humana insere-se na totalidade social.

Concorda-se com Campelo e Paiva (2019) quando diz que o ponto de partida para os estudos sobre o envelhecimento “[...] são as relações de produção e reprodução social [...]” (Campelo; Paiva, 2019, p. 218) , e, portanto, a partir da perspectiva de classe, assim alinhando-se à contribuição de Beauvoir (2018), anota que “[...] tanto ao longo da história como hoje em dia a luta de classes determina a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice” (Beauvoir, 2018, p. 14).

Envelhecer varia de sociedade para sociedade e de indivíduo para indivíduo, visto que se relaciona com o meio social, político, econômico e cultural no qual se está inserido(a), e determina sua trajetória de vida, sem esquecer que nas diferenças existem homogeneidades.

Compartilhando dessa mesma compreensão, Boutique e Santos (1996) esclarecem:

É importante, então, considerar que não existe um só envelhecer, mas processos de envelhecimento, como o de gênero, de etnia, de classe social, de cultura – determinados socialmente. As desigualdades do processo de envelhecimento se devem, basicamente, às condições desiguais de vida e de trabalho a que estiveram submetidas as pessoas idosas (Boutique; Santos, 1996, p. 82).

Para Minayo e Coimbra Júnior (2002) “[...] nas análises do envelhecimento humano, trata-se de abrir-se para a diversidade e as condições históricas que possibilitam algumas homogeneizações por frações de classe e grupos, condições de gênero, etnia-raça e outros” (Minayo; Coimbra, 2002, p. 15). Esses elementos proporcionam heterogeneidades, diferenças e desigualdades sociais, mas também homogeneizações.

É, portanto, a análise crítica, fundamentada no materialismo dialético, método que desnaturaliza os fenômenos sociais e busca desvendar sua essência, de maneira a alcançar o concreto pensado enquanto síntese das múltiplas determinações, que possibilita evidenciar a pluralidade dos modos de envelhecer, e o que os aproxima e gera certas homogeneizações no contexto das relações sociais.

Analisar o fenômeno da senescência sob a perspectiva de totalidade supera as visões universalistas e as singularizantes desse processo, e considera as múltiplas determinações que ligam os fenômenos à totalidade.

Embora sejam possíveis certas universalizações, pelas condições de inserção das pessoas nas estruturas produtivas, sociais e culturais que geram condições semelhantes de vida, o envelhecimento não é um processo homogêneo, ele é complexo e heterogêneo, vivido de maneira particular por cada indivíduo, demandando políticas sociais dirigidas ao(à) velho(a) trabalhador(a), condizentes com as suas condições de existência (Teixeira, 2019, p. 177).

A população idosa é composta de muitas populações ou grupos de pessoas idosas que o método positivista não logra visualizar nem desvendar, já que não supera a pseudoconcreticidade dos dados empíricos. É necessário o método histórico-dialético marxista para capturar a essência daquele fenômeno que se apresenta de forma singular e aparente, e por meio de mediações das particularidades chegar à compreensão do concreto como síntese de múltiplas determinações, desvelando como as particularidades classe, gênero e “raça”/etnia interferem no modo de envelhecer.

A longevidade em massa chega também às classes trabalhadoras, mas junto àquelas frações menos abastadas há uma maior propensão à dependência de cuidados de longa duração, com variações e diferenças relacionadas ao sexismo e ao racismo. Este estudo visa evidenciar a simbiose das desigualdades, cujas bases são as relações sociais e materiais que na sociabilidade capitalista se ampliam e tornam a velhice não só diferente, mas também desigual e até trágica quando esses vários marcadores se interseccionam e se consubstanciam.

Envelhecimento e Dependência: as particularidades de classe, “raça”/etnia e gênero

Devido às desigualdades sociais a velhice da classe trabalhadora se expressa como um problema social, carregada de estigmas e preconceitos, a mesma é invisibilizada. No item seguinte procura-se esclarecer que nem sempre a velhice representa perda de funcionalidades e de autonomia, mas as situações de opressão terminam por levar aqueles seguimentos mais vulneráveis a uma velhice problemática, isso quando conseguem alcançá-la.

Cabe esclarecer que a funcionalidade diz respeito à “[...] capacidade que um indivíduo possui para realizar as tarefas necessárias para a sua sobrevivência cotidiana e interação social. Ela poderia ser mensurada segundo variados métodos e sofreria variações conforme o contexto socioeconômico e cultural em que o indivíduo estivesse inserido” (Groisman, 2015, p. 33).

A dependência não significa perda de autonomia; ela está relacionada com a necessidade de auxílio de terceiros ou de equipamentos e/ou tecnologias. Para a Organização Mundial de Saúde (2005), a independência é a “[...] habilidade de executar funções relacionadas à vida diária, isto é, a capacidade de viver independentemente na comunidade com alguma ou nenhuma ajuda de outros” (Organização Mundial de Saúde, 2005, p. 14). Já a autonomia se refere à “[...] habilidade de controlar, lidar e tomar decisões pessoais sobre como se deve viver diariamente, de acordo com suas próprias regras e preferências” (Organização Mundial de Saúde, 2005, p. 14).

Dessa forma, cabe questionar: por que, para determinados grupos, as desigualdades se ampliam na velhice de modo a contribuir para uma velhice dependente e sem autonomia? Entende-se que essa análise deva ser mediada pelas particularidades classe, “raça”/etnia e gênero, pois tais mediações possibilitam, à luz das teorias aqui adotadas, reconstruir o fenômeno do envelhecimento, dando significado a aspectos singulares que são determinados universalmente.

A articulação das particularidades (classe, “raça”/etnia e gênero), discutidas e analisadas sob várias perspectivas: interseccionalidade de feministas negras e de tradição estadunidense (Akotirene, 2018; Crenshaw, 2002); consubstancialidade e coextensividade (Kergoat, 2010); coformação (Falquet, 2008) de tradição francesa e ligada ao feminismo materialista; nós simbióticos (Saffioti, 2015) ou imbricamentos para as feministas marxistas, supera as tradicionais determinações unilaterais, lineares e isoladas da incidência das desigualdades, mostrando que uma se articula com a outra, ampliando os processos de exploração, opressão e dominação, numa perspectiva de análise fundamental para os estudos sobre envelhecimento e dependência3.

Faz-se essa discussão para que se entenda que a leitura dialética das particularidades classe “raça”/etnia e gênero4, e da sua relação com o envelhecimento enquanto problemática social, requer a adoção de uma perspectiva de análise que parta das bases materiais das relações sociais, tomando a divisão sexual do trabalho como determinante para as análises do trabalho do cuidado, sobretudo com pessoas idosas dependentes, por se considerar que classe, “raça”/etnia e gênero se cruzam e se correproduzem, determinando o processo de envelhecimento e as velhices. No que concerne ao cuidado essa abordagem permite desnaturalizar essa atividade como um atributo feminino e evidenciar as desigualdades na realização e acesso ao cuidado.

A produção social da velhice só será captada na sua essência quando as análises sobre envelhecimento forem além das explicações biomédicas, cronológicas e demográficas. O imbricamento das relações sociais de poder anteriormente apontadas é indispensável, porquanto determina a velhice no que concerne às condições de saúde, à qualidade de vida, integração social, acesso às políticas sociais e à renda.

Questiona-se: quais desvantagens decorrem das iniquidades associadas ao preconceito e discriminação por classe social, gênero, “raça”/etnia, geração, escolaridade, território e outros? Como o imbricamento desses marcadores de desigualdades pode tornar a velhice mais trágica ou até mesmo impossibilitar o alcance dessa etapa da vida?

Envelhecimento, desigualdade e dependência

A longevidade tem alcançado as diferentes classes e frações de classe, mas a qualidade de uma vida longeva, a quantidade de comorbidades e os níveis de autonomia, independência/dependência e de capacidade/incapacidade funcional se explicam para além das questões biomédicas, pois a produção social das velhices é determinada por particularidades (classe, “raça”/etnia, gênero), tipo e condições de trabalho, acesso à saúde, à educação, ao saneamento básico etc.

O aumento da população idosa e longeva denota desigualdades resultantes das contradições estruturais e da redução do papel do Estado sob a forte influência do neoliberalismo, que preconiza a focalização e a seletividade das políticas públicas, a perda da primazia do Estado na implementação destas, a responsabilização individual e das famílias, a precarização das condições de trabalho, redução e até mesmo o desmonte de direitos.

A longevidade dos grupos mais vulneráveis caracteriza-se por uma maior propensão a depender de cuidados de terceiros devido a um envelhecimento precoce, doentio, pobreza, falta de informações e instrução, o que se denomina de velhice como problemática social, na qual estão presentes dificuldade de locomoção, isolamento social e comorbidades ou multimorbidades, como se verá adiante (Silva, 2020).

Contudo, é importante destacar que velhice e a longevidade não estão associadas necessariamente a doenças e dependência. Muitas pessoas podem passar pela velhice sem desenvolver morbidades ou incapacidades funcionais, principalmente quando se tem acesso a uma boa alimentação, educação, saneamento básico, serviços de saúde, renda e quando não se é vítima de racismo, machismo e violência. O pertencimento de classe é um dos determinantes desse processo e torna as velhices com diferenças abismais − um verdadeiro hiato separa estas velhices. Mas as classes não são internamente homogêneas e comportam diferenças: têm sexo, sexualidade, cor da pele e origem étnica.

No Brasil é possível se confirmar a tese de que as diversas desigualdades sociais, raciais e de gênero, acentuadas pelo capitalismo, tornam a velhice da classe trabalhadora, e de suas frações mais empobrecidas, mais problemática, pois tem maior possibilidade de desenvolver algum tipo de dependência, uma situação que veio à tona no contexto da pandemia da COVID-19 (Camarano, 2020).

Em um estudo sobre os determinantes da incapacidade funcional em pessoas idosas numa perspectiva étnico-racial, Silva (2017, 2020) chama atenção para as iniquidades raciais que impossibilitam a chegada aos sessenta anos – idade utilizada para definir a pessoa idosa nos países em desenvolvimento, conforme a ONU e a OMS. Assevera o autor que a pessoa negra (preta e parda) já nasce em condição desigual e ao longo da sua trajetória, salvo raras exceções, essa desigualdade continua impactando na velhice. As disparidades não findam com a chegada da senescência; elas permanecem e até se ampliam com o preconceito e a discriminação de classe, o racismo, a xenofobia, o idadismo e a homofobia, resultando em consequências para a saúde, o bem-estar e o convívio social.

Os modos de envelhecer e viver a velhice das pessoas negras, indígenas e de diversas etnias agregam situações de opressão, sofrimento e dor diferentemente daquelas mais privilegiadas em termos econômicos e de acesso ao poder. Assim, o envelhecimento delas não é vivido com dignidade, justiça e em conformidade com o envelhecimento ativo, definido como um “[...] processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas” (Organização Mundial de Saúde, 2005, p. 13).

Portanto, as análises sobre envelhecimento e dependência perpassam o debate sobre as desigualdades sociais, e a explicação das suas raízes estruturais está no processo de formação social das sociedades − neste caso a brasileira.

O Brasil por séculos assumiu a condição de país colonizado, com uma economia baseada até o século XIX na escravidão, o que concorreu para a emergência de um capitalismo tardio e dependente, e para a perpetuação do racismo estrutural, que reproduz até os dias atuais a ideia de que às mulheres negras cabe o papel de escrava mucama, muitas vezes exploradas no trabalho doméstico, no cuidado e abusadas sexualmente no exercício dessas atividades.

O trabalho doméstico no Brasil é um trabalho realizado majoritariamente por mulheres negras oriundas de famílias de baixa renda. Essa afirmação soaria coloquial não apenas em função da banalização que se faz da presença das mulheres no serviço doméstico, mas também pelo racismo estrutural que, em alguma medida, aprisiona os corpos de mulheres negras nas mesmas atividades realizadas na cozinha da casa grande durante o período de escravidão (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019, p. 11).

O racismo associado às assimetrias de classe e gênero é a raiz e a fonte de manutenção e ampliação das desigualdades, e o envelhecimento desigual é uma das suas expressões sociais, inclusive no que tange à longevidade. Dados do IBGE mostram que embora o aumento da expectativa de vida tenha atingido também camadas mais vulneráveis, o envelhecimento é díspar quando se considera o indicador regional (Cabral, 2021).

No Brasil, a expectativa de vida alcançou o patamar de 76,9 anos, porém nos estados mais pobres, que estão localizados nas regiões Norte e Nordeste, a média é 8,5 a menos que nas regiões mais ricas. A unidade federativa com o maior índice de expectativa de vida é Santa Catarina, cujo índice é de 80,4 anos de idade, seguida por Espírito Santo e São Paulo, ambos com 79,5 anos. O Piauí e o Maranhão são os estados com o menor valor: 71,9 anos.

As disparidades impactam na velhice, no seu alcance e na sua qualidade. No Brasil, povos negros (pretos e pardos) têm como desafio nascer vivo e sobreviver ao longo da sua trajetória, em face das mais variadas formas de violência (Silva, 2017, 2020).

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2022), aponta que 18,3% das pessoas com 18 anos ou mais de idade haviam sofrido violência física, psicológica ou sexual nos 12 meses anteriores à pesquisa. As pessoas pretas foram as mais atingidas, com 20,6%, seguidas das pardas, 19,3%. Entre as pessoas brancas, 16,6% relataram ter sofrido algum tipo de violência. As mulheres foram mais vítimas de violência (19,4%) do que os homens (17,0%), principalmente as mulheres pretas, grupo de cor ou raça e sexo com maior proporção de vítimas (21,3%).

Segundo os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, houve 49,9 mil homicídios no Brasil em 2020, correspondendo a uma taxa de 23,6 mortes por 100 mil habitantes. O total de homicídios foi 9,6% maior do que o observado em 2019 (45,5 mil), mas ainda situado em patamar inferior ao observado em anos anteriores (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).

Os números encontrados mostram alta desigualdade na taxa de homicídios por cor ou raça. Em 2020, as pessoas de cor ou raça parda apresentaram taxa de 34,1 mortes por 100 mil habitantes, e as de cor ou raça preta, 21,9 mortes, o que representa quase o triplo e o dobro, respectivamente, da taxa observada entre as pessoas de cor ou raça branca: 11,5 mortes por 100 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022). Por isso quando se estudam velhices, é preciso perguntar: quais grupos vivem com desvantagens em relação a outros grupos sociais?

A população LBGTQI+5 se enquadra nas estatísticas dos segmentos vítimas do preconceito e da discriminação devido à ideologia heteronormativa e patriarcal, o que se materializa nas mais variadas formas de violência, que vão desde a falta de acesso às políticas públicas, ao trabalho e à renda, até as violências psicológicas e físicas, muitas vezes tendo como consequência a morte, tornando o Brasil um dos países que mais matam essa população, que tem como expectativa de vida 35 anos de idade6.

O imbricamento das relações de poder de classe, “raça”/etnia e gênero impacta também em outros indicadores como o mercado de trabalho e renda, educação e moradia, trazendo efeitos para o processo de envelhecimento e para a velhice.

A educação é um dos direitos que mais determinam socialmente a velhice, pois quanto maior o nível de escolaridade, mais informações para se acessar outros direitos como a saúde, a renda, a moradia etc. A educação é determinante no que concerne à saúde, pois possibilita o acesso a informações sobre hábitos saudáveis, sobre a rede de serviços e sobre como acessá-la. Ademais, os melhores empregos, com boas condições de trabalho e melhor renda, são ocupados por aqueles que possuem uma melhor escolaridade.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2022) põem em relevo o recorte racial no que concerne a esses indicadores, destacando que “[...] apesar da população preta e da parda representarem 9,1% e 47,0%, respectivamente, da população brasileira em 2021, sua participação entre indicadores que refletem melhores níveis de condições de vida está aquém desta proporção” (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022, p. 49). O mesmo estudo referente a 2018 mostra que a taxa de analfabetismo entre pretos e pardos é de 9,1%, enquanto a brancos é de 3,9%, o que explica em parte os dados referentes ao mercado de trabalho, que indicam que, em 2021, 69% dos cargos gerenciais eram ocupados por pessoas brancas, e somente 29,5% por pessoas negras (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).

A falta de acesso à educação é também determinante nos níveis de pobreza e, por consequência, na qualidade de vida das pessoas. O recorte racial mostra que negros (pretos e pardas) compõem os números mais expressivos de pessoas abaixo da linha da pobreza. Pessoas que vivem com renda diária inferior a US$ 1,90: brancos 5,0% e negros (pretos e pardos) 20,4%; que vivem com US$ 5,50: brancas 18,6% e negros (pretos e pardos) 72,9% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).

Entre a população residente em domicílios próprios, 20,8% das pessoas pardas e 19,7% das pessoas pretas residiam em domicílios sem documentação da propriedade, enquanto a proporção encontrada entre as pessoas brancas era cerca de metade desse valor (10,1%). Pretos e pardos enfrentam, portanto, uma situação de maior insegurança de posse e de informalidade da moradia própria (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).

Esses dados evidenciam que o racismo se desdobra em iniquidades, pois como bem afirma Camara Jones (2002), é “[...] um sistema de estruturação de oportunidades e atribuição de valor com base no fenótipo, ‘raça’ [...]” (Jones, 2002, p. 9), prejudicando ou favorecendo injustamente determinados grupos ou comunidades. A equidade diz respeito à equivalência de igualdade; sua ausência gera desigualdades nas políticas públicas, no acesso aos serviços e bens de consumo que são essenciais a uma vida longeva e com saúde.

O relatório da Rede Pessan (2022) expõe um dado vergonhoso para o Estado brasileiro: no final de 2020, 19,1 milhões conviviam com a fome. Em 2022, identificaram-se 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. A insegurança alimentar é a condição de não ter acesso pleno e permanente a alimentos, e a fome representa a sua forma mais grave.

Na sociabilidade do capital, as desigualdades são inerentes ao sistema. Manter as assimetrias favorece a manutenção do equilíbrio do capitalismo, seu processo de acumulação do capital e a concentração de riquezas, que na contemporaneidade tem o domínio do capital financeiro. É característica do modo de produção capitalista a desigualdade de classe, a exploração da classe trabalhadora, a apropriação da riqueza produzida por uma classe detentora dos meios de produção. Por meio da divisão sexual do trabalho, inferioriza e desvaloriza o trabalho das mulheres e dos povos negros e de outras minorias étnicas, bem como determina quais postos estes podem assumir.

Para Gonzalez (2020):

[...] o racismo – enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas – denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social (Gonzalez, 2020, p. 35).

Bernardo (2019), em seu estudo realizado sobre o envelhecimento da classe trabalhadora e dependência, expõe a relação existente entre a materialidade da produção da velhice com perdas de capacidade funcional ou frágil, associando-a a uma trajetória laboral precarizada, à falta de acesso às políticas públicas e à ameaça dos direitos.

A maior parte dos idosos de nossa amostra sobrevive com seus recursos previdenciários (aposentadorias ou pensões) entre um a dois salários mínimos. Constituem as pessoas de referência de seus domicílios e deparam-se regularmente com frequentes ameaças e instabilidade de perda de direitos. São homens e mulheres, a maioria migrantes, trabalhadores desde muito jovens na informalidade ou em vínculos intermitentes, com baixa escolaridade e rendimentos insuficientes. Trabalhadores(as) da área de serviços ou doméstico não remunerado, acometidos pelo adoecimento crônico com repercussão direta no exercício da autonomia, usufruíram pouco da aposentadoria ou pensão, seja porque continuariam trabalhando até adoecer, seja porque adoeceriam ainda na ‘ativa’ (Bernardo, 2019, p. 154).

A pobreza e a extrema pobreza, a falta de acesso ao saneamento básico, a alimentação adequada e cuidados hospitalares têm implicações na redução da expectativa de vida, no desenvolvimento de comorbidades e de transtornos psiquiátricos, além da perda de capacidade funcional. A trajetória de uma vida de discriminação e preconceitos pode levar a uma velhice com problemas de mobilidade e isolamento social. As estatísticas mostram que as maiores vítimas de uma velhice problemática, seja do ponto de vista das patologias, seja por questões econômicas, são as mulheres.

Envelhecimento com dependência: reflexos das iniquidades de classe, raça/etnia e gênero

No Brasil, estudos mostram que há diferenças na prevalência das situações de dependência ou incapacidade funcional7 conforme o grupo racial da pessoa idosa (Silva, 2017, 2020) e que a incapacidade funcional é maior entre as mulheres, seja por terem uma maior expectativa de vida, logo mais suscetíveis às doenças crônicas (Olmo, 2013), seja pelas condições da sua trajetória de vida e condições de existência, considerando que estas, por vezes, acumulam a responsabilidade do trabalho doméstico e/ou do cuidado com o trabalho remunerado. Elas são vítimas de variados tipos de violência, de preconceitos e de discriminação pela questão de gênero, cor e idade, além da falta de acesso à educação, à renda, à alimentação, ao trabalho e à moradia digna.

Outro dado importante para essa relação com a dependência é o que mostra uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019): o número de pessoas com dois anos ou mais de idade com deficiência no país era de 17,3 milhões; quase metade (49,4%) da população com deficiência era idosa.

Em um estudo realizado por Camarano (2022) e tomando como referência a PNS/IBGE (2019), verifica-se que as pessoas idosas (sessenta anos ou mais) afirmaram ter em média 1,8 doença crônica em 2019. Entre as mulheres, a taxa é de 2,4. As doenças mais frequentes são hipertensão, doença de coluna ou costas, colesterol alto, diabetes e artrites ou reumatismo.

Quanto às limitações ou dificuldades para realizar as atividades básicas da vida diária (ABVDs) no período entre 2013 e 2019, observa-se que houve um crescimento das taxas em torno de 54% e 86% para homens e mulheres, respectivamente. Entre os homens, o maior crescimento foi observado para o grupo de sessenta a 69 anos; entre as mulheres, para as de setenta a 79 anos. A proporção de quem precisa de ajuda aumenta com a idade. É mais elevada entre os homens de sessenta a 79 anos comparativamente às mulheres. Já entre os octogenários, as mulheres são as que mais demandam por auxílio (Camarano, 2022).

Quanto à dependência de cuidados, a pesquisa indica que em 2020 existiam 24,5 pessoas dependentes para cada cem cuidadores potenciais. Esse valor era composto por 19,0 crianças e por 5,5 idosos para cem cuidadores. Os resultados apontam para uma queda da demanda de cuidados por crianças para 15,1 a cada cem adultos em 2040. Pode-se esperar que a demanda da parte dos idosos venha mais do que a dobrar: de 5,5 para 12,7 por cem cuidadores (Camarano, 2022). Estimativas de Camarano (2017) indicam que o número de idosos brasileiros que deverão necessitar de cuidados prolongados poderá crescer entre 61% e 77% entre 2010 e 2030, e que os homens e as mulheres deverão passar 4,2 e 4,7 anos, respectivamente, demandando cuidados de longo prazo.

Considerações Finais

Infere-se pelas discussões e análises feitas até aqui que, na sociedade do capital, a divisão de classes e a exploração de uma pela outra, imbrincada ao racismo e ao sexismo, formam um “nó” simbiótico que amplia e reproduz as iniquidades sociais, refletidas na divisão racial do trabalho, na falta de acesso às diversas políticas públicas, na convivência com as diversas formas de violência, de modo a impactar nas velhices da classe trabalhadora de maneira mais problemática e dependente que as de outros grupos privilegiados.

Ademais, o estudo reforça a ideia de que as assimetrias de gênero tornam a trajetória de vida das mulheres mais difícil pela sobrecarga de trabalho – muitas vezes precisam conciliar trabalho remunerado com o doméstico e do cuidado – pelas situações de violência e pela condição de classe e “raça” que as tornam mais vulneráveis que as mulheres de determinados grupos (brancas, de classe média e com melhores condições de vida), tornando mais trágica suas velhices.

A pessoa idosa que depende de cuidados nas sociedades contemporâneas coloca em xeque as atuais políticas sociais de cuidados em contexto de austeridade neoliberal e sua capacidade de atender a uma demanda crescente e às situações de vida das famílias, especialmente as mais pobres, afetadas nos seus modelos familiares, nas condições de sobrevivência e sociabilidades postas pelas atuais mudanças no mundo do trabalho e na reconfiguração do Estado.

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Líbia Mafra Benvindo de MIRANDA Trabalhou na concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados.

Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestrado em Políticas Públicas – UFPI, Graduação em Serviço Social – UFPI e Assistente Social da UFPI.

Solange Maria TEIXEIRA Trabalhou na revisão crítica do artigo.

Pós-Doutorado em Serviço Social pela PUC-SP, Doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão, Mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí. Professora associada da Universidade Federal do Piauí.

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora

Submetido em: 6/3/2024. Aceito em: 9/10/2024.

Creative Common - by 4.0 Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

Argum., Vitória, v. 17, p. 1-17, e-44012, 2025.  ISSN 2176-9575


  1. Compartilhando do mesmo entendimento de Falquet (2008), adota-se o uso de aspas na palavra raça para chamar atenção para “[...] o caráter eminentemente social, artificial e compósito [...] A ‘raça’ reagrupa notadamente as relações de poder relacionadas à ‘cor’ e à etnicidade, mas também à nacionalidade e ao status legal” (Falquet, 2008, p. 123).↩︎

  2. É importante esclarecer que a gerontologia tradicional se fundamenta no paradigma positivista generalizante. Caracteriza-se pela falta de análise das desigualdades sociais no processo de envelhecimento, homogeneizando as velhices e responsabilizando os indivíduos por uma velhice fora dos padrões ideais (Arruda, 2019).↩︎

  3. Sem a pretensão de aprofundar essas perspectivas, as apresentamos com o objetivo de sinalizar a existência de abordagens diversas sobre a temática.↩︎

  4. Gênero, enquanto categoria de análise, abarca as diferentes identidades em constante processo de formação. Seu aspecto relacional pressupõe que a análise de homens e mulheres deva se dar de forma recíproca, ampliando dessa forma as abordagens para além da visão do homem como opressor e da mulher como vítima. Apesar da importância do uso do termo gênero para a superação dos binarismos e do essencialismo biológico, concorda-se com Saffioti (2015, p. 148) quando afirma que esse não deve ser usado como substituto do termo mulher, muito menos com exclusividade nas análises de gênero, e sim junto com a categoria patriarcado, pelo caráter político e histórico desse. Nessa perspectiva, o uso das categorias analíticas gênero e patriarcado se justifica por sua importância no processo de desconstrução de estruturas e pressupostos de gênero ancorados na ideologia do patriarcado, no essencialismo biológico e no discurso dicotômico; mas, também, para compreender as relações assimétricas de gênero reproduzidas no mercado de trabalho, na família, nos espaços de poder, entre outras instituições sociais, inclusive o Estado, que têm suas ações materializadas por meio de políticas públicas.↩︎

  5. Atualmente também se usa a sigla LGBTQIAPN+. É uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não binárias e mais.↩︎

  6. Dados disponíveis em: https://observatoriomortesviolentaslgbtibrasil.org .↩︎

  7. Para Olmo (2013, p. 8), “[...] diversos autores conceituam a capacidade funcional como a habilidade física e mental que um indivíduo possui para executar as atividades necessárias para o dia a dia, tais como as atividades básicas, atividades instrumentais e mobilidade física, porém, ainda não há consenso definitivo sobre a definição da capacidade funcional”.↩︎