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Tendências da política de HIV/AIDS no governo Bolsonaro

 

HIV/AIDS policy trends under the Bolsonaro government

 

Jussara Fernandes de OLIVEIRA

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0009-0002-0141-6406

Governo da Paraíba, Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente Alice de Almeida,

 João Pessoa, PB, Brasil.

e-mail: jussarafernandesldr@gmail.com  

 

Jordeana DAVI

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0001-7495-6150

Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,

Departamento de Serviço Social, Curso de Serviço Social, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,

Campina Grande, PB, Brasil

e-mail: jordeanadavipereira@gmail.com

 

 

Resumo: O presente artigo analisa a política direcionada ao HIV e aids no governo Bolsonaro, período em que o país também enfrentou a pandemia de COVID-19, num contexto de ultraneoliberalismo, com recrudescimento conservador no campo social. Tem como objetivo analisar tendências da política de enfrentamento do HIV e aids no governo Bolsonaro (2019 a 2022), frente à pandemia de COVID-19. Apoiamo-nos no método crítico-dialético, buscando apreender o objeto na sua totalidade e contradição. Para a coleta de dados, realizamos pesquisa bibliográfica e documental. O estudo revelou que as tendências da política de enfrentamento do HIV e aids no governo Bolsonaro foram de desmonte da estrutura institucional de resposta à síndrome de imunodeficiência adquirida, negacionismo científico, invisibilização da epidemia e dos usuários e concepção conservadora na condução da política.

Palavras-chave: HIV/aids. Ultraneoliberalismo. Política de Saúde. Governo Bolsonaro.

 

Abstract: This paper analyses HIV/AIDS policy under the Bolsonaro government, a period in which the country faced the COVID-19 pandemic, was contending with ultra-neoliberalism, and experiencing a resurgence conservatism in regard to the social field. It analyses trends in the policy to combat HIV under the Bolsonaro government (2019 to 2022) during the COVID-19 pandemic. We employ the critical-dialectical methodology, seeking to grasp the subject in its entirety and contradictions. Data was gathered through bibliographic and documentary research. The study revealed that the trends in the policy to combat HIV/AIDS under the Bolsonaro government were to dismantle the institutional structure responsible for responding to AIDS, scientific denialism, the hiding of the epidemic and those living with HIV/AIDS, and a conservative outlook in the application of the policy.
Keywords: HIV/AIDS. Ultra-neoliberalism. Health Policy. Bolsonaro Government.
 

 

1 Introdução

 

E

ste artigo é fruto de pesquisa realizada em Programa de Pós-Graduação concluída em 2023. Seu objetivo é apresentar as tendências da política de enfrentamento do vírus causador da síndrome de imunodeficiência adquirida (HIV e aids), no governo Bolsonaro, num contexto de pandemia de COVID-19 e de novas determinações sociais, políticas e econômicas do ultraneoliberalismo, que impõem inflexões para a política de saúde, de maneira geral.

As novas estratégias do capital na busca por sua recomposição após o crash de 2008 colocaram aos estados novas exigências, simbolizando uma intensificação dos ataques aos modelos de proteção social e da mercadorização dos direitos sociais, num ritmo cada vez mais acelerado, através de diversas contrarreformas (Davi; Santos; Rodrigues, 2017). No Brasil, esse processo se intensifica a partir de 2016, com o Novo Regime Fiscal, por meio da Emenda Constitucional Nº 95 de 2016 (Brasil, 2016), o que consideramos ser a abertura do país ao ultraneoliberalismo. Dessa forma, a política de saúde responsável pelo enfrentamento do HIV e aids passa a sofrer um processo de desfinanciamento e desmonte (Mendes; Carnut; Melo, 2023).

 

Atrelado a isso, no contexto político e social, temos o levante de uma nova onda conservadora combinada a um novo tipo de onda fascista totalmente voltada aos interesses ultraneoliberais, sendo o ápice desse processo o governo Bolsonaro (Silva, 2021).

 

Faz-se necessário situar esse contexto para apontarmos como o governo Bolsonaro conduziu a política nacional de HIV e aids e os resultados ou consequências dessa condução. É importante destacar a postura do governo, que se caracterizou como negacionista, anticiência e assentada em discursos reacionários, fundamentalistas, preconceituosos e extremistas. Houve, também, a utilização de informações falsas (fake news), que impactaram diretamente as pessoas vivendo com HIV e aids.

 

Partindo do método crítico-dialético, buscamos apreender as determinações econômicas, políticas e culturais do objeto. Lançamos mão de pesquisa bibliográfica e documental, através da qual buscamos identificar e analisar as tendências assumidas pelo governo Bolsonaro na política de enfrentamento do HIV e aids.

 

2 A Política de enfrentamento do HIV/aids no Governo Bolsonaro: desmonte e conservadorismo

 

A política de enfrentamento do HIV e aids é composta por diversas ações que devem ser implementadas não só a nível federal, que englobam promoção, proteção, prevenção, diagnóstico e assistência, além de estratégias de desenvolvimento institucional e gestão de programa (Oliveira, 2023). Toda essa estrutura depende do SUS para se realizar.

 

O governo Bolsonaro adotou o ultraneoliberalismo, ocasionando um desmonte institucional desde o primeiro ano de gestão com o aprofundamento do ajuste fiscal herdado da gestão Temer (Behring; Cislaghi; Sousa, 2020). Desse modo, a crise instalada a partir da chegada da pandemia de COVID-19 encontrou solo fértil em meio à fragilização das instituições e dos instrumentos de políticas que se tornaram imprescindíveis para o combate da crise, a despeito de termos o Sistema Único de Saude (SUS) (Dweck, 2021). Nesse contexto, assistiu-se à ausência de medidas efetivas para o enfrentamento da emergência sanitária e ao abandono dos cuidados e das ações referentes a outras doenças, como a epidemia de HIV e de aids (Oliveira, 2023).

 

Conforme Silva (2021, p. 7), “[...] o ultraneoliberalismo expressa o aprofundamento veloz e destrutivo do projeto neoliberal, a fase mais bárbara e perversa do desmonte dos direitos, da precarização e da privatização de empresas e serviços públicos vivida pelo país”. Compreendemos, assim, que, no Brasil, o ultraneoliberalismo é a lógica que passa a comandar as medidas de aprofundamento do ajuste fiscal e contrarreformas em áreas estratégicas, como a Saúde, a partir do governo Temer, sendo a primeira medida do seu governo a aprovação da EC/95 de 2016, que instituiu um teto de gastos orçamentários no Brasil com vigência de 20 anos, visando garantir a transferência do fundo público para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, em favor do capital financeiro (Cislaghi, 2021).

 

Somado a isso, a ascensão da extrema direita expressa no bolsonarismo caracterizou-se como um momento de profunda regressão para a democracia brasileira, para as instituições democráticas, para os direitos sociais, para o meio ambiente e para os direitos humanos (Demier, 2020). Bolsonaro, que chegou ao poder não “[...] como um líder político, e, sim, como um líder de um movimento capaz de destruir políticas e políticos [...]” (Avritzer, 2021, p. 13-14), utilizou-se de um discurso genérico anticorrupção e, também, reacionário, com o velho jargão Deus, pátria e família, declarando guerra a tudo o que considerava ameaçar esses princípios, atacando as pautas e discussões que historicamente são defendidas pelos setores progressistas por meio de discursos, usando como ferramenta as redes sociais, através da divulgação de fake news, o que comprometeu não só o enfrentamento da pandemia de COVID-19, mas também das doenças que historicamente carregam certo estigma, como a aids.

 

Bolsonaro protagonizou diversos episódios que ficaram marcados por sua irresponsabilidade ao disseminar notícias falsas e opiniões providas de preconceitos que atingiram todas as Pessoas vivendo com HIV e aids (PVHA) e as chamadas populações-chave, demonstrando sua falta de interesse em atender essa ou qualquer outra pauta com o rigor que o seu cargo exigia (Oliveira, 2023).

 

Observamos que o posicionamento adotado desde o início do governo Bolsonaro com relação à política de enfrentamento do HIV e da aids, na maioria das vezes, foi permeado por manifestações racistas, sexistas e homofóbicas, tendo o então presidente manifestado discursos de ódio aos soropositivos (Barbosa Filho; Vieira, 2021), o que gerou preocupação em relação à política de HIV/aids no país e ao modo como seriam propostas e ofertadas as ações e os serviços, com destaque para as campanhas educativas com foco nos jovens, visto o avançar de uma onda conservadora na sociedade que se opõe à necessidade de educação sexual de forma eficaz, no sentido de combater o espraiamento das diversas ISTs, principalmente do HIV e aids, em nossa sociedade.

 

O Brasil sempre ocupou um lugar de referência no que compete à luta contra a aids. A União tem a responsabilidade de coordenar e normatizar as políticas de saúde no país, incluindo aquelas relacionadas ao HIV e aids, sendo o Ministério da Saúde (MS) o órgão responsável por definir diretrizes, elaborar políticas e programas nacionais, financiar e supervisionar a implementação das ações de saúde, incluindo as relacionadas ao HIV e aids (Oliveira, 2023). Desde os primeiros casos diagnosticados na década de 1980 no país, muitos avanços puderam ser constatados ao longo dos anos. De acordo com Figueiredo (2018):

 

Isso fez com que a demanda por cooperação técnica e humanitária na área crescesse, sendo que, nesse processo, muitas das experiências desenvolvidas no país nas diferentes áreas – assistência, tratamento, articulação entre governo e sociedade civil, direitos humanos, prevenção, vigilância epidemiológica, logística de medicamentos antirretrovirais (ARV), monitoramento e avaliação, comunicação, entre outras – fossem e continuem sendo compartilhadas e incorporadas às respostas nacionais de distintos países, principalmente na América Latina, no Caribe e no continente africano, particularmente em relação aos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) (Figueiredo, 2018, p. 76-77).

 

A gestão Bolsonaro, de acordo com Oliveira (2023), adotou o negacionismo, também, no enfrentamento do HIV e aids, campo considerado, ainda, como um problema de saúde urgente, negligenciando o compromisso firmado com entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), através do Programa Conjunto sobre HIV e aids (UNAIDS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS), no sentido da eliminação da aids até 2030. O UNAIDS (2022) destacou a lentidão na diminuição de novas infecções por HIV na América Latina, ressaltando o modo como a pandemia da COVID-19 impactou nesse processo. A referida organização defende a necessidade do enfrentamento das desigualdades econômicas, sociais, culturais e jurídicas que impulsionam a doença e dificultam o acesso a serviços essenciais de prevenção e combate ao HIV. É importante destacar que a América Latina e o Caribe aumentaram a expectativa de vida de pessoas vivendo com HIV, graças ao impacto da introdução da Terapia Antirretroviral nos anos 2000, estando aptos a aderirem às recomendações da OMS que visam atingir a meta global de erradicação da aids até 2030 (Azevedo, 2021).

 

Nesse sentido, frente às medidas econômicas, políticas e sociais do governo Bolsonaro, em especial no que se refere à Saúde, as ações que contribuem para o enfrentamento e futura erradicação da aids não foram cumpridas, destaque para aquelas com foco em prevenção e educação, além das testagens que apontam para uma subnotificação, conforme indicam os Boletins Epidemiológicos do período em questão.

 

Oliveira (2023) identifica que as mudanças implementadas no governo Bolsonaro, no que tange à política de HIV e aids, podem ter dificultado a diminuição de novas infecções. Uma dessas mudanças foi a interferência significativa no Departamento de HIV/aids do MS, reduzindo-o a duas coordenações, reunidas, desde então, no Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DDCCI), por meio do Decreto Nº 9.795, de 17 de maio de 2019 (Brasil, 2019), sendo elas a Coordenação-Geral de Vigilância do HIV/aids e das Hepatites Virais e a Coordenação-Geral de Vigilância das Infecções Sexualmente Transmissíveis, simbolizando um rebaixamento do programa de tratamento de HIV e aids, além de colocar sob a sua responsabilidade duas outras doenças que não estão relacionadas ao contágio sexual – tuberculose e hanseníase (Mendes et al., 2021), num evidente desmonte da política e do programa que sempre foi referência mundial no enfrentamento da síndrome da imunodeficiência adquirida.

 

Para Bolsonaro, as PVHA representavam apenas mais um custo. Em um de seus depoimentos à imprensa durante sua aparição no “cercadinho” (local organizado com grades que restringiam o acesso da imprensa e do público no Palácio da Alvorada, utilizado diariamente durante o governo Bolsonaro), o então presidente afirmou que as pessoas portadoras de HIV representam “[...] uma despesa para todos no Brasil [...]” (Pessoa..., 2020, não paginado), além de “[...] um problema sério para elas mesmas” (Pessoa..., 2020, não paginado). Ressaltamos que, embora mantenha essa opinião acerca das PVHA, a distribuição dos medicamentos da Terapia Antirretroviral foi mantida, apesar da redução do orçamento para a Saúde, que engloba os gastos com a política de aids. Além disso, não houve crescimento nos investimentos em prevenção.

 

Dados levantados no Portal da Transparência indicam que, no período de 2019 a 2022, além da redução do financiamento geral da Saúde, os gastos com o enfrentamento do HIV e aids não chegaram a representar sequer 1% do orçamento do MS (Brasil, 2023). Além dessa ínfima participação, constata-se, de acordo com os dados analisados, que a maior parte desses gastos foi feita com medicamentos dispensados às PVHA, integrantes da Terapia Antrirretroviral, aprofundando a tendência que ocorre desde o início da década de 2010, de privilegiamento dos cuidados biomédicos e da estratégia de tratamento como prevenção – nas modalidades de Profilaxia Pré-Exposição (PreP) e Profilaxia Pós-Exposição (PeP) –, adotada no Brasil a partir do final de 2013, priorizando o tratamento antirretroviral em detrimento de ações de prevenção e educação em saúde, não considerando que as PrePs ainda têm uma distribuição muito desigual no país. Dessa forma, promoveu-se o esvaziamento das campanhas preventivas e do fortalecimento de toda a rede de serviços, que sempre estiveram presentes nos resultados positivos do enfrentamento do HIV e aids (Oliveira, 2023).

 

Gráfico 1 – Percentual dos gastos do orçamento do Ministério da Saúde com a ação orçamentária “Atendimento à população com medicamentos para tratamento dos portadores de HIV e aids e outras doenças sexualmente transmissíveis” (2019-2022)

Fonte: Elaboração própria com base em dados de Brasil (2023).

 

No Gráfico 1, podemos observar um crescimento nos recursos da Saúde entre 2019 e 2020, justificado pela emergência da pademia de COVID-19. Registra-se uma queda em 2021 e 2022, apesar da manutenção da pandemia. Na análise do período do governo Bolsonaro, identifica-se apenas uma variação, de maneira geral, de 1% do gasto total da Saúde destinado à garantia de medicamentos empregados no tratamento do HIV e da aids.

 

Nesse sentido, Seffner e Parker (2016) destacam um fenômeno que denominam como neoliberalização da prevenção da aids no Brasil. Para eles, essas ações se conjugam com certo raciocínio de ordem neoliberal, numa pauta de ontologia individualizante, priorizando o método testar e tratar, retirando investimentos das ações de prevenção, fornecendo a pedra de toque para aqueles que estão infectados pelo HIV e para os que possam vir a se infectar, de modo que sejam tratados apenas como consumidores individuais de medicamentos, com o afrouxamento das estratégias coletivas e das respostas sociais a toda a complexidade da aids, que vai além do ponto de vista biomédico.

 

Segundo Scheffer (2022), em 2021, o Ministério da Saúde investiu somente R$ 100.098 mil em campanhas de prevenção do HIV, o que equivale a 0,6% do total aplicado há 20 anos, em 1998, dado mais antigo disponível, sendo, naquela época, o valor do investimento de R$ 16,5 milhões – corrigidos pela inflação.

 

Nossas ponderações acerca das PreP e PeP não são de contraposição à sua existência e utilização, considerando que a adoção dos dois modelos de terapia promoveu qualidade de vida e autonomia às PHVA. Nossa crítica é tecida ao analisarmos que o diálogo educativo, as campanhas acerca da prevenção e a própria cobertura assistencial antes existente vêm sendo abandonados.

 

Outra ação governamental que expressou uma tendência ao processo de invisibilização da síndrome da imunodeficiência adquirida foi o encerramento de todos os perfis do programa de aids em redes sociais, a exemplo das contas no X (antigo Twitter) e no Facebook, que mantinham atualizações diárias com informações acerca da doença, e que, desde então, passaram a ser vinculadas à página oficial do Ministério da Saúde, junto a outros assuntos, caracterizando uma perda de prioridade e uma diminuição da atenção específica ao HIV e aids (Putti, 2019). Além da evidente perda de prioridade, essas medidas dificultaram as buscas por informações específicas sobre HIV e aids, visto que elas passaram a estar dispersas em meio a outras notícias e informações do Ministério da Saúde. Para elucidar esse processo, buscamos no conceito da sorofobia a razão norteadora para tal decisão, que, segundo Barbosa Filho e Vieira (2021, p. 135):

 

[...] pode ser entendida como o conjunto de crenças irracionais, discriminatórias e medos infundados sobre o HIV/aids que resultam em episódios de violência institucional, física, psicológica e política não só contra as populações soropositivas, mas também contra grupos sociais considerados mais vulneráveis à pandemia de HIV/aids. A sorofobia se sustenta em discursos e dispositivos de poder que vão desde a tutela, interdição, segregação, punição e controle sobre os corpos soropositivos até o extremo de reduzir vidas humanas à condição de despesas que devem ser evitadas pelo Estado, por meio de medidas que articulam uma simbiose entre moralismo, populismo, culpabilização individual, meritocracia e austeridade neoliberal (Barbosa Filho; Vieira, 2021, p. 135):

 

Essas posturas ganharam força concomitantemente com o conservadorismo presente no meio político e social, estimulando o surgimento de uma extrema direita que fomentou o governo Bolsonaro, sendo capaz de promover e incentivar desastrosas ações durante todo o seu mandato, institucional e socialmente. Acerca disso, Barbosa Filho e Vieira (2021) afirmam que essa guinada conservadora no discurso político governamental propiciou as bases da sorofobia. Somado a isso houve “[...] o desmonte de algumas das principais estratégias de enfrentamento da epidemia de HIV e aids e censura das campanhas e programas fundamentados na pedagogia da prevenção. Desde então, a sorofobia vem sendo radicalizada por sujeitos políticos da extrema direita” (Barbosa Filho; Vieira, 2021, p. 135).

 

Contribuiu para essa configuração a adoção por parte dos quadros do governo de propostas de cariz conservador ancoradas no fundamentalismo religioso, sendo esse um padrão adotado pela figura política de Jair Bolsonaro durante sua campanha, e que se estendeu ao seu governo, tendo representantes de igrejas, majoritariamente de denominações evangélicas, ocupando cargos do alto escalão. As investidas contra os saberes técnico-científicos introduziram uma intenção evangelizadora dentro dos espaços políticos, como se explicitou nas intenções de organização para as políticas de prevenção do HIV e aids e demais ISTs assentadas em um viés moralista. Segundo Scheffer (2022, não paginado), o MS, na gestão Bolsonaro, adotou a tática da “fraternidade reacionária”, que consistiu em censurar previamente tudo aquilo relacionado à sexualidade e a questões de gênero que pudesse desagradar ao então presidente e à sua base fundamentalista.

 

Como um resgate dessa conjuntura moralizante e em certo grau punitivista, destacamos a campanha de abstinência sexual para jovens intitulada de Tudo tem seu tempo, defendida pela então ministra de Estado da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, a pastora evangélica Damares Alves, que foi uma defensora ferrenha do governo Bolsonaro e símbolo do conservadorismo religioso-cristão, que passou a imperar em quase todos os espaços públicos do Estado. Essa campanha se inspirou em estratégias desenvolvidas nos Estados Unidos, lançadas há muitos anos como instrumento de prevenção à aids. A ex-ministra Damares Alves defendeu abertamente a abstinência entre os adolescentes como método preventivo e, aproximando-se de seus defensores dos EUA, propôs que o método fosse ensinado nas escolas. Em maio de 2019, em entrevista à rede de notícias BBC Brasil, a então ministra defendia sua proposta:

 

Estamos vendo uma campanha muito grande do sexo pelo prazer, tão somente pelo prazer, mas temos que voltar a falar do afeto, trazer o afeto para esse debate. O método mais eficiente é a abstinência. Por que não falar sobre isso? Por que não falar de retardar o início da relação sexual? Eu defendo essa tese (Alvim, 2020, não paginado).

 

Em dezembro de 2019, foi organizado pelo ministério um seminário sobre o tema gravidez na adolescência, conduzido por Damares Alves na Câmara dos Deputados, demonstrando seu empenho em tornar a ação uma política pública. Os principais palestrantes foram a diretora da organização norte-americana Ascend, Mary Anne Mosack, que é responsável por promover cursos para qualificar educadores a incentivarem a ausência da vida sexual para os jovens, além do pastor Nelson Junior, dirigente da Associação Evangélica Cristã Eu escolhi esperar, que tem como política central o incentivo à abstinência sexual até o casamento (Paraguassu, 2020). Mesmo recebendo apoio dessas figuras representativas, a ex-ministra negou que existisse na proposta um viés religioso na campanha.

 

A proposta não teve boa repercussão no âmbito do Ministério da Saúde, levando a ministra Damares Alves, quando necessário, a diminuir sua ênfase na abstinência sexual como política central, alegando que o foco do ministério era uma defesa do adiamento do início da atividade sexual como uma alternativa, mas não como a única opção (Paraguassu, 2020).

 

Com a divulgação do evento, o MS foi notificado pela Defensoria Pública da União, que recomendou que não fosse lançada a campanha sobre abstinência sexual, por não haver evidências científicas que comprovassem a eficácia do método. O documento citou um estudo americano, lançado em 2017, que comprovava o impacto negativo da abstinência sexual na saúde de adolescentes. Conforme noticiado, o documento informou o seguinte:

 

A conclusão de tais pesquisas é que as políticas de abstinência sexual não promoveram mudanças positivas algumas na iniciação sexual e na vida sexual dos/as jovens, de modo que não impedem nem a gravidez na adolescência nem a propagação de infecções sexualmente transmissíveis entre os/as jovens (Zylberkan, 2020, não paginado).

 

A estratégia explicitou a intenção do governo Bolsonaro de cercear os diálogos acerca do direito humano à saúde em seu contexto de educação para a prevenção, de diferenças entre gêneros e de identidades de gênero e sexualidade. Esse viés cresceu a partir de 2016, sobretudo nas escolas, que passaram a sofrer com a tentativa de imposição de uma mordaça ideológica, expressa em atitudes como incentivo à perseguição de professores e desrespeito à autonomia docente dentro de sala de aula, respaldadas na proposta da Escola sem Partido[1]. A Educação, enquanto política pública, e a escola, enquanto espaço de poder, passaram a ser disputadas pelos representantes dessa nova extrema direita, através de seu reacionarismo, para que o pensamento crítico e emancipatório fosse interditado.

 

A proposta de uma política de abstinência sexual para adolescentes e jovens simboliza para a política de enfrentamento do HIV e aids um retrocesso na medida em que inviabiliza um dos pilares principais, o direito à educação e à prevenção. Entende-se que a escola é um dos locais em que, em sua maioria, os adolescentes e os jovens sentem-se seguros para falar de seus anseios e de suas angústias, assim, não abordar a questão da sexualidade como primordial é uma forma de negar-lhes a oportunidade de compreender a sociedade, a cultura e a si próprios, impedindo-os de tomar decisões mais acertadas, que promovam segurança e bem-estar.

 

O Boletim Epidemiológico de HIV e aids de 2020 indicou que, nos dez anos anteriores, houve crescimento das taxas de detecção de aids em homens jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos, que foram, respectivamente de 64,9% e 74,8% entre 2009 e 2019. Já em relação às taxas de detecção nas mulheres, verificou-se, no decênio anterior, um decréscimo em todas as faixas etárias, sendo as de 5 a 9 anos, de 10 a 14 anos, de 25 a 29 anos, de 30 a 34 anos e de 35 a 39 anos as que tiveram as maiores quedas: 57,1%, 61,5%, 42,9%, 51,8% e 50,5% respectivamente, quando comparadas os anos de 2009 e 2019 (Brasil, 2020).

 

O Boletim do ano subsequente (2022, ano base 2021) indicou que, no que se refere às faixas etárias, observou-se, no período analisado, que 102.869 casos (23,7%) são de jovens entre 15 e 24 anos, representando 25,2% e 19,9% dos casos no sexo masculino e feminino, respectivamente. Os dados mostram a importância de políticas públicas direcionadas a essa população de forma contínua e sistemática (Brasil, 2023).

 

O presidente Jair Bolsonaro, ao ser questionado em entrevista à imprensa sobre a citada proposta, defendeu a campanha de abstinência sexual como uma boa alternativa de método contraceptivo, expondo, mais uma vez, sua falta de conhecimento e trato com assuntos relevantes e científicos, em mais uma confusão entre método contraceptivo e proteção contra as ISTs, reduzindo a problemática apenas à gravidez precoce indesejada (Bolsonaro..., 2020). O então presidente, naquele período, deu a seguinte declaração: “[...] a Damares está sendo dez nessa questão, defendendo a mudança de comportamento necessária no Brasil. Quando ela fala em abstinência sexual, esculhambam ela. Eu tenho uma filha de 9 anos. Você acha que eu quero ter uma filha grávida ano que vem? Não” (Bolsonaro..., 2020, não paginado).

 

Barbosa Filho e Vieira (2021) chamaram a atenção para o montante de recursos investidos na campanha de abstinência sexual, em torno de R$ 3 milhões, oriundos do Ministério da Saúde, além da possibilidade de tal campanha tornar-se uma política pública, colocando-se como mais um dispositivo de cerceamento dos direitos sexuais e reprodutivos dos grupos historicamente excluídos. Destacaram ainda que, durante o lançamento dessa campanha, foram confeccionados cartazes que informavam que, nos insumos de prevenção, a exemplo dos preservativos, havia a presença de poros que permitiam a passagem do vírus HIV, mostrando como a desinformação e o negacionismo foram ferramentas políticas do governo Bolsonaro.

 

Havia uma intenção por trás da postura assumida durante o governo Bolsonaro, que estava diretamente ligada à ofensiva ultraneoliberal. Não se tratou apenas de irresponsabilidade ou de despreparo, mas, também, de conivência com as exigências postas pela crise do capital, que busca sua recomposição. De acordo com Butturi Júnior (2021, p. 62):

 

É justamente o vértice entre economia neoliberal e invenção de um novo conservadorismo que materializa a estratégia bolsonarista. O HIV e a epidemia da Aids parecem recuperar não apenas memórias discursivas, mas parecem apontar para uma forma de produção de práticas, via silenciamento ou amplificação discursiva de uma nova moralidade e de uma nova distribuição da vida e da morte – que passa por estratégias tão distintas quanto a redução do espaço nas políticas públicas ou a materialização de enunciados sobre o pecado, a moral e a ‘família tradicional’. A relação entre, por um lado, o cálculo neoliberal e, por outro, a moralidade ancorada nos enunciados de conservadorismo-cristandade, permanecerá como uma espécie de motor de funcionamento dos discursos desse dispositivo (Butturi Júnior, 2021, p. 62).

 

Seguindo a lógica neoconservadora, que teve lugar central no cenário político e nas ações do governo Bolsonaro, as pessoas que ocuparam os quadros de gestão não fugiram a essa exigência, desde o primeiro escalão até os apoiadores no Congresso Nacional. O primeiro nomeado para o cargo de ministro da Saúde do seu governo, o médico Luiz Henrique Mandetta, afirmou que caberia às famílias, e não ao Estado, a tarefa da promoção de ações de prevenção ao HIV e aids. Segundo Scheffer (2022, não paginado), Mandetta pregou que campanhas de aids não poderiam “ofender as famílias”, tendo na época vetado uma cartilha de prevenção voltada a homens trans.

 

A defesa de abstinência sexual como método contraceptivo ou preventivo contra as ISTs é símbolo do fundamentalismo religioso empregado pelo governo Bolsonaro desde a campanha eleitoral. Nesse sentido, os segmentos como as mulheres e o público LGBTQIAP+, assim como a juventude, tornaram-se ainda mais vulneráveis à falta de investimentos em políticas públicas que garantissem acesso a direitos e a serviços básicos.

 

Ao organizarmos os dados levantados e analisados nesta pesquisa, foi possível indicar as seguintes tendências do governo Bolsonaro quanto à abordagem do HIV e da aids: ações balizadas por uma lógica conservadora e impregnadas por influências do fundamentalismo-religioso; retrocesso político com o resgate de abordagens já superadas no que diz respeito às questões ligadas ao processo de infecção, adoecimento, tratamento e práticas de prevenção, de inclusão e de respeito às particularidades de cada segmento; corte significativo do financiamento, de modo a privilegiar apenas o foco na medicalização; e falta de um melhor detalhamento da temática para o acesso do público.

 

 

4 Considerações finais

 

Findado um período em que o país esteve entregue ao desgoverno (tanto no seu significado descontrolado quanto, sobretudo, no sentido de mal administrado, um eufemismo para caracterizar o período em questão), concordamos que a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro não foi um raio em céu azul, mas o resultado da crise política dos anos anteriores, com a aglutinação da direita já conhecida com novos personagens que uniram populismo com extremismo, colocando-se contra qualquer perspectiva de direitos sociais, igualdade e Estado social, ainda que nos limites impostos pelo capital.

 

Não estávamos vivenciando um fenômeno mundial isolado. Desde o crash de 2008-2009, as estratégias do capital para recompor suas taxas de lucro têm buscado no fator ideológico forças para derrubar governos e representantes alinhados ou simpatizantes de uma política mais progressista. Não foi coincidência a promoção do Golpe de 2016 no Brasil e todas as investidas de desestabilização de governos progressistas pela América Latina, ações sempre patrocinadas pelo imperialismo norte-americano. Essa era uma das estratégias para a implantação das políticas ultraneoliberais.

 

Bolsonaro foi abraçado pelo capital por representar a oportunidade de restaurar a lucratividade por meio de medidas de intensificação do ajuste fiscal, desmonte das políticas sociais e apropriação do fundo público, mantendo-se sempre na defesa das políticas econômicas ultraneoliberais.

 

Na Saúde, além do desfinanciamento promovido pela EC 95, tivemos que enfrentar o descaso, o despreparo e a incompetência de seus dirigentes. Bolsonaro conduziu as políticas sociais, dentre elas a Saúde, seguindo o princípio da austeridade e, desse modo, apenas deu continuidade ao processo iniciado pelo seu antecessor, promovendo o encolhimento orçamentário, que é próprio das políticas austeras. Além do impacto causado pela vigência da EC 95, desde 2017 para a Saúde, Bolsonaro promoveu o desmonte do modelo de Atenção Primária à Saúde, uma estratégia responsável pelo atendimento e acompanhamento da população por todo o país.

 

Referências

 

Alvim, M. Abstinência sexual: as disputas e os resultados das políticas para adolescentes nos EUA que inspiram governo Bolsonaro. BBC News Brasil, São Paulo, 15 jan. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-51043161. Acesso em: 20 mar. 2024.

 

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Jussara Fernandes de OLIVEIRA Trabalhou na redação do artigo e na sua revisão crítica.

Assistente Social, com mestrado e graduação pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande. Possui especialização lato sensu em Assistência Social e Políticas de Saúde pela Unifip/Erga Omnes - Campina Grande. Agente Socioeducativo na Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente Alice Almeida - FUNDAC Paraíba. Membro do Grupo de Estudos, Pesquisa e Assessoria em Políticas Sociais (GEAPS – UEPB).

 

Jordeana DAVI Trabalhou na redação do artigo e na sua revisão crítica.

Assistente Social, doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente é professora do Departamento e da Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB - Campina Grande).

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Editoras:

Ana Targina Rodrigues Ferraz – Editora-chefe

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora de Seção

 

 

 

 

Submetido em: 29/5/2024. Aceito em: 25/7/2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Creative Common - by 4.0

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[1] Escola sem Partido é um movimento surgido em 2014, que criou um projeto de lei a ser implementado nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal –, tratando da obrigatoriedade de fixação de cartazes em todas as salas de aula dos Ensinos Fundamental e Médio, contendo “os deveres do professor”. Em síntese, o movimento defende que as escolas e os professores têm assumido uma doutrinação ideológica, política e partidária que deve ser combatida. Para uma reflexão mais completa acerca da temática, ver o trabalho de Frigotto (2017), intitulado Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira.