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Gramsci e Serviço Social: a filologia como método de estudos

 

Gramsci and Social Work: philology as a method of study

 

Renato de Brito GOMES

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamentehttps://orcid.org/0009-0000-3978-8999

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

e-mail: renatobritogomes@gmail.com

 

Resumo: O objetivo do artigo é apresentar as diversas metodologias que vêm sendo desenvolvidas desde os anos 1970 para a leitura e estudo dos Cadernos do Cárcere. Investiga-se a apropriação dos Cadernos pelo Serviço Social e faz-se uma hipótese interpretativa associada a dois ciclos da pesquisa gramsciana em que o recorte ocorre considerando as fontes de acesso à obra. Por fim, sugere-se uma leitura de Gramsci que busque o “ritmo do pensamento”, através da integralidade e fragmentariedade das notas em sentido cronológico, entendendo suas nuances, desenvolvimentos e reformulações, e como a edição brasileira “crítico-temática” pode oferecer resistências nesse sentido. Avalia-se que a eventual incorporação pelos assistentes sociais das ferramentas de leituras atualizadas e mesmo das novas interpretações gerará, novamente, importantes pesquisas.

Palavras-chave: Gramsci. Serviço Social. Cadernos do Cárcere.  Filologia. Metodologia.


Abstract: This article presents the methodologies developed since the 1970s for the reading and study of the Prison Notebooks. The appropriation of the notebooks by Social Service is investigated and an interpretive hypothesis is made associated with two cycles of Gramscian research in which the outcome depends on the sources of access to the work. Finally, a reading of Gramsci is suggested that seeks the “rhythm of thought” through a chronological reading of the entirety and fragmentary nature of the notes, understanding their nuances, developments, and reformulations, and how the Brazilian “critical-thematic” edition can offer endurance in this regard. It concludes that the eventual incorporation by social workers of updated reading tools and even new interpretations will, once again, generate important research.

Keywords: Gramsci. Social Work. Prison Notebooks. Philology. Methodology.

 

1 Introdução

 

O

artigo resgata as diversas propostas metodológicas de estudo e interpretação dos Cadernos do cárcere. A utilização de novas fontes associa-se a tentativas mais apuradas de leitura do texto e a diferenciadas técnicas de estudo. Expõe-se também os determinantes de uma nova escola interpretativa, apresentando seus resultados principais.

 

Em paralelo, investiga-se a relação dos Cadernos com o Serviço Social. Faz-se uma hipótese associada a dois ciclos da pesquisa em que o recorte ocorre considerando as fontes de acesso à obra, e sugere-se que a incorporação desses últimos desenvolvimentos poderá, novamente, permitir novas formulações.

 

O texto é composto por esta introdução, em que se encontra delimitado o objeto e os propósitos da investigação; uma segunda seção, que faz um panorama das edições e interpretações dos Cadernos, desde a sua publicação na Itália até os resultados das pesquisas mais recentes, mostrando também o percurso brasileiro. Na terceira seção, discute-se a incorporação dos Cadernos pelo Serviço Social; os apontamentos finais buscam sublinhar algumas conclusões, relacionando as duas temáticas anteriores.

           

2 Edições e propostas metodológicas de estudo e leitura dos Cadernos do cárcere

 

Antonio Gramsci morreu em abril de 1937, seus Cadernos ficaram aos cuidados de sua cunhada, Tatiana Schucht. O material chegou à embaixada soviética, em Roma, em julho daquele ano, de onde seria levado à Moscou, local onde a sua preservação estaria assegurada. P. Togliatti foi um personagem central nesse processo, intervindo junto à Internacional Comunista para que chegasse o mais rapidamente possível à União Soviética. Em 1941, Togliatti já o havia lido e escrito a G. Dimitrov que “[...] os cadernos de Gramsci [...] contêm materiais que só podem ser utilizados depois de uma cuidadosa elaboração. Sem esse tratamento [...] poderiam ser não úteis ao partido” (Togliatti, [1941] 1994, p. 144-145, tradução nossa).

 

Desse tratamento, resultou a edição coordenada por F. Platone, com a supervisão de Togliatti, que veio a público entre 1948 e 1951 na Itália. Os textos foram divididos em seis volumes, em ordem diversa daquela em que foram escritos, estando presentes quase todas as notas de redação única, as de segunda redação e também algumas de primeira (Francioni, 2016, p. 7, tradução nossa). Nos prefácios, havia o alerta sobre a composição, mas “[...] era inescapável a impressão de que Gramsci encaminhara a redação de seis diferentes ‘livros’” (Coutinho, 2014, p. 25). Os Cadernos foram editados considerando uma “[...] partição disciplinar [...]” (Francioni, 2016, p. 7, tradução nossa) e “[...] acabavam sugerindo ao leitor que Gramsci havia escrito livros na prisão (sobre materialismo histórico e Croce, sobre intelectuais, sobre o Risorgimento italiano, etc)” (Francioni, 2016, p. 8, tradução nossa). É ponto pacífico que a publicação temática estava associada à necessidade de tornar o texto menos explosivo em relação à doutrina oficial (Liguori, 1996), em seu conteúdo havia pontos de choque com o marxismo-leninismo.

 

Liguori (1996) ressalta que “[...] o efeito perturbador que os Cadernos tiveram no panorama da cultura italiana foi [...] enorme, produzindo uma profunda renovação em vários campos” (Liguori, 1996, p. 57, tradução nossa). Para Francioni (2016), a edição temática “[...] foi certamente fundamental para a primeira difusão do pensamento” (Francioni, 2016, p. 7-8, tradução nossa). Coutinho (2014) afirmou que, sem ela, “[...] talvez Gramsci fosse até hoje conhecido apenas como um mártir na luta contra o fascismo” (Coutinho, 2014, p. 26-27).

 

Não seria [...] razoável subestimar de forma alguma a importância e os méritos da primeira edição dos Cadernos do Cárcere. A escolha então feita, de agrupar as notas de Gramsci por tópicos e temas homogêneos, e de ordenar esses agrupamentos em uma série de volumes independentes, foi [...] o meio mais adequado para garantir a mais ampla circulação do conteúdo dos Cadernos. [...] Certamente não se pode dizer que o critério temático seguido seja alheio aos temas abordados nos Cadernos: foi, em última análise, uma escolha possível que o próprio Gramsci poderia ter feito se tivesse decidido dar uma forma definitiva à sua obra (Gerratana, 2014, p. XXXIII, tradução nossa).

 

No entanto, continua, “[...] os limites e inconvenientes desse arranjo não poderiam deixar de vir à tona quando começamos a nos aprofundar no estudo da obra” (Gerratana, 2014, p. XXXIII, tradução nossa). As edições posteriores passaram a não impor ao texto um caráter organizativo não atribuído por Gramsci e a considerar que não havia uma versão final da obra. Se a escolha de Togliatti era possível, o fato editorial que se passava a valorizar é que “[...] essa escolha Gramsci não a fez, e isso não pode deixar de ser levado em conta” (Gerratana, 2014, p. XXXIII, tradução nossa).

 

A edição crítica de Gerratana foi publicada em 1975, é composta por 29 cadernos numerados pela ordem cronológica, tendo como critério o começo de suas redações, e seus parágrafos são numerados seguindo a ordem em que foram iniciados. A edição conta também com um aparato crítico que permite contextualizar e ter acesso a diversos textos, fontes e personagens.

 

Foram publicadas, integralmente, as notas de primeira redação, as de redação única e as notas reescritas, denominadas Textos A, B e C. Considerou-se o caráter não acabado da obra, o “[...] mais importante era que o que estava escrito como ‘material ainda em andamento’ fosse lido como tal, que o ‘provisório’ não aparecesse como ‘definitivo’” (Gerratana, 2014, p. XXXIV, tradução nossa).

 

A edição de Gerratana buscou ser “[...] uma ferramenta de leitura que nos permita acompanhar o ritmo de desenvolvimento com que a pesquisa de Gramsci se desenrola” (Gerratana, 2014, p. XXXV, tradução nossa). Era necessário “[...] reproduzir o texto dos Cadernos tal como foram escritos por Gramsci, para que nada de externo se interponha entre este texto e o leitor” (Gerratana, 2014, p. XXXV, tradução nossa).

 

Nenhuma intervenção [...] parecia legítima porque poderia de alguma forma prejudicar o caráter integral da reprodução das notas [...]. O caráter claramente provisório destas páginas, bem como as repetidas advertências de Gramsci sobre a necessidade que ele próprio poderia encontrar de corrigir, ou mesmo derrubar, após possíveis verificações, afirmações contidas em suas notas, deveriam ser suficientes para nos livrar de qualquer preocupação alheia ao caráter ‘desinteressado’ da obra (Gerratana, 2014, p. XXXVIII, tradução nossa).

 

Embora os critérios possam parecer “[...] muito minuciosos [...]” (Gerratana, 2014, p. XL, tradução nossa), “[...] não teria sido correto simplificar, substituindo as ‘munições’ da filologia pelas linhas gerais de um sistema interpretativo perfeito [...]” (Gerratana, 2014, p. XL, tradução nossa), neste caso “[...] simplificar’ significaria, como o próprio Gramsci advertiu, ‘distorcer e falsificar’” (Gerratana, 2014, p. XL, tradução nossa). A edição “[...] presume não estar sobrecarregada de hipóteses interpretativas, apesar de ter sido criada no quadro de uma linha de interpretação” (Gerratana, 2014, p. XXXV, tradução nossa).

 

Liguori (1996) nota que “[...] houve uma percepção imediata de como o trabalho de Gerratana [...] permitiu (e por si já constituiu) um salto qualitativo” (Liguori, 1996, p. 179, tradução nossa). A “[...] antiga edição temática e a leitura que ela sugeria foram integralmente arquivadas” (Liguori, 1996, p. 179, tradução nossa), acentuou-se o “[...] caráter fragmentário do texto [...]” (Liguori, 1996, p. 180, tradução nossa), embora sua construção “[...] tivesse como pressuposto um plano geral forte” (Liguori, 1996, p. 180, tradução nossa).

 

Problemas relativos à edição de Gerratana foram apontados pouco tempo depois, considerando a opção por reproduzir “[...] os manuscritos de Gramsci tal como aparecem fisicamente” (Francioni, 1984, p. 17-18, tradução nossa).

 

Muitas vezes Gramsci trabalhava em vários cadernos ao mesmo tempo, ou retomava aqueles compilados em períodos anteriores para acrescentar novas notas nos espaços em branco restantes. Há, portanto, faixas de sobreposição temporal na escrita de Gramsci que atravessam os Cadernos horizontalmente e, consequentemente, momentos da redação em que não há sucessão cronológica de um caderno a outro, mas de uma nota a outra na alternância de cadernos diferentes (Francioni, 1984, p. 19, tradução nossa).

 

A reprodução dos cadernos considerando a cronologia do início de suas redações, muitas vezes, resulta em notas escritas em ordem diferente sendo lidas como sequenciais, ou em notas escritas de forma sucessiva aparecendo como dispersas. Há uma “[...] insuficiência dos critérios cronológicos da edição crítica [...]” (Liguori, 1996, p. 213, tradução nossa), que aparece principalmente em relação aos cadernos miscelâneos e reside no fato de que o texto “[...] não foi reproduzido como foi escrito por Gramsci” (Liguori, 1996, p. 214, tradução nossa).

 

O debate de uma nova edição é iniciado na década de 1990 e ganha, com Francioni (1992), uma proposta central que forneceu muitos dos critérios adotados na Edizione nazionale[1]. Na mesma década, foi criada a International Gramsci Society Italia (IGS-Itália), que, a partir do Seminario Sul Lessico dei Quaderni del Carcere, iniciado em 2000, contribui para criação, desenvolvimento e consolidação de um método de pesquisa.

 

O livro Le parole di Gramsci (Frosini; Liguori, 2004) apresentou a primeira sistematização da metodologia. Novamente, foi acentuado “[...] o caráter ‘aberto’ dos Cadernos [...]” (Frosini; Liguori, 2004, p. 9, tradução nossa), devido ao “[...] fato de que eles não foram publicados pelo seu autor, que permanecem no estado das notas, bem como o espírito de investigação e de dialogicidade que os permeia” (Frosini; Liguori, 2004, p. 9, tradução nossa). Indicou-se que a obra de Gramsci é integralmente permeada pela política, no entanto, muitas vezes existem interpretações do texto que acabam “[...] mesmo por forçar, parcializar e unilateralizar” (Frosini; Liguori, 2004, p. 9, tradução nossa). Contudo, ressaltam, a filologia é uma forma de interpretação, já que “[...] interpretar é não só inevitável, mas é também a única via para a compreensão de um texto” (Frosini; Liguori, 2004, p. 9, tradução nossa). Deve-se

 

[...] reler o texto com rigor filológico e com as ferramentas mais sofisticadas à nossa disposição, para recomeçar a partir do que Gramsci deixou escrito - e da forma como o deixou escrito - libertando a sua obra de toda uma série de interpretações datadas que correm o risco de sufocar o seu espírito (Frosini; Liguori, 2004, p. 9, tradução nossa).

Sublinhou-se que “[...] o projeto [...] implica, portanto, uma forte ênfase na dimensão temporal [...]” (Frosini; Liguori, 2004, p. 10, tradução nossa), ou seja, os Cadernos devem ser lidos considerando-se a ordem cronológica em que as notas foram escritas. Isso não significa linearidade, trata-se de uma construção em que se nega “[...] qualquer lematização rígida baseada na ideia de que os termos gramscianos possam ser definidos de modo unívoco uma vez por todas” (Frosini; Liguori, 2004, p. 10, tradução nossa).

 

Ao abordar as categorias dos Cadernos, os autores ressaltaram a necessidade de “[...] delinear a origem do lema [...], o papel que desempenha no sistema conceitual do autor e a sua evolução interna nos Cadernos” (Frosini; Liguori, 2004, p. 10, tradução nossa). A análise apontou, sintetizam os autores, para “[...] um método unitário [...]” (Frosini; Liguori, 2004, p. 11, tradução nossa) caracterizado por “[...] fidelidade ao texto, atenção ao desenvolvimento diacrônico do conceito dentro da história interna da obra, recepção crítica do ‘estado da arte’ sobre o tema” (Frosini; Liguori, 2004, p. 11, tradução nossa).

 

Na mesma esteira, As rosas e os Cadernos (Baratta, 2004) apresentou a seguinte linha interpretativa: “[...] a materialidade dos Cadernos torna-se expressão de uma forma original de pensamento que pode ser designada de maneiras diferentes: uma estrutura em espiral, um retículo, um labirinto” (Baratta, 2004, p. 14). Não há sínteses finais porque “[...] as raízes da incompletude/interminabilidade do opus gramsciano [...]” (Baratta, 2004, p. 16) localizam-se na “[...] sua abertura imanente ao outro de si” (Baratta, 2004, p. 16). O objetivo é assumir “[...] o ‘estilo’ e o ‘ritmo’ do seu pensamento não apenas como objeto, mas como método de estudo” (Baratta, 2004, p. 17).

 

Gramsci e la filosofia (Frosini, 2003) buscou responder à pergunta sobre como devem ser lidos e interpretados os Cadernos. Considerando os avanços da filologia, fez o alerta de que

 

Isto não quer dizer que todo intérprete [...] deva se tornar filólogo, mas sim que qualquer interpretação que ignore não apenas a consciência material, mas [...] sobretudo metodológica, dos resultados a que a filologia gramsciana laboriosamente chegou ao longo dos anos está condenado a permanecer mais ou menos na superfície das questões, porque [...] tenderá inevitavelmente a tomar como definitivas as teses provisórias, possivelmente contrastando-as de forma antinômica com outras, igualmente provisórias e desenvolvidas em momentos diferentes (Frosini, 2003, p. 15, tradução nossa).

 

Em Gramsci em contraponto (Baratta, 2011) o tema central era a aproximação de “[...] um núcleo ainda fecundo do método de pensamento e da forma de escrita de Antonio Gramsci” (Baratta, 2011, p. 22). A “[...] filologia [...] implica ‘amor às palavras’, as quais são portadoras de realidade: uma realidade escondida, enganosa, resistente, difícil” (Baratta, 2011, p. 31). A “filologia viva” expressa uma relação orgânica entre a filologia, entendida “[...] como ciência crítica da leitura [...]” (Baratta, 2011, p. 50) e a filosofia da práxis.

 

La religione dell’uomo moderno (Frosini, 2010) sistematizou alguns elementos metodológicos para a leitura dos Cadernos. Indicou-se “[...] um retorno aos textos, auxiliado pela consciência da complexidade e inesgotabilidade desta obra” (Frosini, 2010, p. 16, tradução nossa). O central é a necessidade de “[...] recuperação [...] da dimensão aberta, provisória, no limite hipotética do pensamento” (Frosini, 2010, p. 16, tradução nossa). Nesta linha, os Cadernos possuem uma “[...] natureza absolutamente móvel do enredo [...], tão singular que não possui uma estrutura definitiva” (Frosini, 2010, p. 17, tradução nossa). Por fim, é preciso assumir a “[...] necessidade - uma vez assumida a impossibilidade de descrever o pensamento expresso nos Cadernos - de pensá-lo: pensá-lo não apenas em relação ao presente de Gramsci, mas também ao nosso” (Frosini, 2010, p. 17, tradução nossa).

 

Il ritmo del pensiero. Per una lettura diacronica dei “Quaderni del carceredi Gramsci (Cospito, 2016) atentou para a valorização do “[...] plano diacrônico em relação ao sincrônico, o caráter aberto da reflexão gramsciana com respeito aos seus (nunca definitivos) pontos de chegada” (Cospito, 2016, p. 41). Existe uma “[...] polissemia dos conceitos e das categorias que são utilizadas em relação a definições específicas” (Cospito, 2016, p. 41). A tarefa colocada para os novos pesquisadores é a de “[...] voltar a ler a obra principal de Gramsci - uma obra complexa, difícil, labiríntica, com muitos significados que não podem ser apreendidos por uma leitura menos que minuciosa - com rigor filológico e aderência aos textos” (Durante; Liguori, 2012, p. 7).

 

No Brasil, as obras de Gramsci vêm à público entre 1966 e 1968. Essas traduções apresentaram “[...] ao leitor brasileiro um Gramsci especialmente filósofo e crítico literário, em que a dimensão [...] política tinha um peso secundário” (Coutinho, 2009, p. 38). Suprimidos os prefácios, a tradução “[...] contribuiu para reforçar ainda mais [...] a falsa impressão [de] que [...] Gramsci escrevera ‘livros’ mais ou menos sistemáticos” (Coutinho, 2014, p. 38).

 

Tais traduções permaneceram por anos sendo o principal material disponível em português. Contudo, com o tempo, passaram a existir o que Coutinho (2014) denominou “[...] problemas intoleráveis” (Coutinho, 2014, p. 38). Com a publicação da edição Gerratana, “[...] a nova edição brasileira não mais poderia se basear na velha edição” (Coutinho, 2014, p. 39). Ou seja, considerados os métodos desenvolvidos com a edição Gerratana e o avanço dos estudos gramscianos no Brasil, o coordenador da tradução temática afirmou que ela passou a ser insuficiente para o aprofundamento e a ampliação dos estudos, e que sugeria uma visão, em certa medida, ultrapassada.

 

Por essa avaliação, Coutinho, em conjunto com L. S. Henriques e M. A. Nogueira, resolveram realizar uma nova tradução dos Cadernos. A edição crítico-temática veio a público entre 1999 e 2002 em seis volumes e expressou um “[...] projeto original [...]” (Coutinho, 2014, p. 39) que procurou incorporar elementos das diferentes edições. Gramsci foi novamente publicado considerando uma partição temática e os “[...] eixos articuladores [são] os ‘cadernos especiais’” (Coutinho, 2014, p. 40). Assim, “[...] os ‘cadernos miscelâneos’ [...] terão suas várias notas desagregadas e alocadas tematicamente após cada ‘caderno especial’” (Coutinho, 2014, p. 40).

 

A proposta “[...] recolhe sugestões não só da velha edição togliattiana […] e, sobretudo, da ‘edição Gerratana’” (Coutinho, 2014, p. 39). Da edição Gerratana, são incorporadas as numerações dos cadernos e parágrafos e a divisão entre Textos A, B e C. Os Textos A estão ausentes pela hipótese de que Gramsci, “[...] se houvesse disposto de mais tempo para concluir sua obra – ele teria convertido todas as suas notas em textos C, ou seja, teria transformado todos os seus ‘cadernos miscelâneos’ em ‘cadernos especiais’” (Coutinho, 2014, p. 40). Explicitou-se que “[...] é precisamente essa suposição que adotamos como base da atual edição brasileira” (Coutinho, 2014, p. 40).

 

Entretanto, diferente das edições temáticas, na nova edição, “[...] as notas contidas nas partes ‘miscelâneas’ [...] serão dispostas em ordem cronológica” (Coutinho, 2014, p. 40). Embora o cerne do projeto envolvesse uma crítica da edição temática, ele reconheceu méritos nela, afirmando que “[...] essa última faz com que seja mais fácil, para o leitor que lê Gramsci pela primeira vez [...]” (Coutinho, 2014, p. 43), justamente porque gera “[...] uma recepção menos fragmentária de suas reflexões” (Coutinho, 2014, p. 43). Em suma, o central na edição é que “[...] os ‘cadernos especiais’ serão agrupados mais ou menos tematicamente em cada volume [...]” (Coutinho, 2014, p. 43) e, por sua vez, “[...] as notas miscelâneas serão agrupadas conforme o tema tratado em cada ‘caderno especial” (Coutinho, 2014, p. 43). Assim,

 

[...] a nova edição brasileira dos Cadernos oferece ao leitor [...] a junção dos elementos positivos das duas edições italianas: da velha edição temática, conserva as vantagens de uma maior acessibilidade imediata aos textos gramscianos; mas, ao mesmo tempo, coloca à sua disposição os instrumentos que lhe permitem desfrutar do rigor filológico próprio da edição Gerratana (Coutinho, 2014, p. 44).

 

No que diz respeito à chegada dos estudos filológicos no Brasil, destaca-se que ocorreu através de eventos científicos, de traduções de livros, do esforço de diferentes pesquisadores e grupos de pesquisa, através da publicação de artigos, livros etc. A International Gramsci Society - Brasil (IGS-Brasil), fundada em 2015, cumpre desde então um papel de aglutinação e disseminação de tais estudos.

 

Em 2004, a tradução do livro As rosas e os Cadernos (Baratta, 2004), por Giovanni Semeraro, apresenta, para a edição brasileira, a intenção de “[...] abrir um novo discurso ‘italiano’ sobre Gramsci no Brasil” (Barata, 2004, p. 11). Em 2006, um grupo de pesquisa trilhou um caminho para “[...] assentar as bases para uma nova leitura dos Quaderni del carcere no Brasil, na qual essa perspectiva [...] histórico-filológica servia como guia metodológico” (Bianchi, 2016, p. 11).

 

Em 2007, o leitor passou a ter acesso a um complexo estudo sobre um conjunto de léxicos relacionados à política, com a tradução de Roteiros para Gramsci (Liguori, 2007) por L. S. Henriques. Outro marco foi a tradução do Dicionário Gramsciano (1926-1937) (Liguori; Voza, 2017), em 2017, que oferece um percurso sobre uma infinidade de verbetes abordados nos Cadernos. No mesmo ano, ocorreu o primeiro encontro da IGS-Brasil. Na ocasião, o “[...] ponto alto do Colóquio foram os debates, polêmicas e perspectivas em torno [...] do que vem sendo denominada de ‘virada filológica’ nos estudos da obra de Gramsci” (Simionatto, 2019, p. 151)[2].

 

A recém-publicada biografia intelectual de Gramsci, de Gianni Fresu (2020), também é uma produção de destaque no cenário brasileiro, visto que acompanha a integralidade da vida do marxista e mostra a unidade revolucionária que há nas suas formulações. Da mesma forma, está disponível em português a biografia de Gramsci escrita por Angelo D’Orsi (2022), que, por conta dos avanços documentais dos últimos anos, preenche uma série de lacunas e lança luz sobre alguns fatos.

 

A última obra que merece ser mencionada é a atualíssima tradução integral dos Cadernos do cárcere (2024) realizada pela IGS-Brasil com base na edição Gerratana. Agora, o leitor brasileiro passa a ter acesso à totalidade dos 29 cadernos teóricos que Gramsci escreveu, um instrumento de pesquisa que permite uma aproximação mais atenta, tendo em vista os cuidados da filologia.

 

Por fim, em várias passagens dos Cadernos, encontram-se indicações metodológicas do próprio Gramsci, conforme indicado a seguir. No Q4, §1, lê-se que “[...] quando se pretende estudar uma concepção de mundo que nunca foi exposta sistematicamente pelo autor-pensador” (Q4, §1, p. 419), é imprescindível “[...] realizar um trabalho minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo” (Q4, §1, p. 419). Acrescenta-se que a “[...] coerência essencial deve ser procurada não em escritos separados em séries, mas em todo o desenvolvimento do variado trabalho intelectual [...]” (Q16, §2, p. 1840), sublinhando a necessidade de um “[...] trabalho filológico [...]” (Q16, §2, p. 1840) preliminar, livre de “[...] qualquer preconceito e apriorismo” (Q16, §2, p. 1841).

 

Deve-se considerar o “[...] desenvolvimento intelectual do pensador, para reconstruí-lo conforme os elementos que se tornaram estáveis e permanentes, ou seja, foram realmente assumidos […] como pensamento próprio” (Q4, §1, p. 419). A seleção dos textos “[...] pode ser feita por períodos mais ou menos extensos [...]”, isso leva “[...] a uma série de ‘depurações’ [...] [de] teorias parciais em relação às quais aquele pensador pode ter tido [...] uma simpatia até o ponto de tê-las aceitado provisoriamente” (Q16, §2, p. 1841).

 

Isso se aplica em especial a “[...] um pensador não sistemático, quando se trata de uma personalidade na qual a atividade teórica e a atividade prática estão indissoluvelmente entrelaçadas, portanto, um intelecto em contínua criação e perpétuo movimento” (Q4, §1, p. 419).

 

Deve ser feita uma “[...] biografia, muito minuciosa [...]” (Q4, §1, p. 410), considerando os elementos “[...] não apenas no tocante à atividade prática, mas especialmente à atividade intelectual” (Q16, §2, p. 1841). É premente uma “[...] apresentação de todas as obras, até as mais secundárias, em ordem cronológica, dividida nos vários períodos: de formação intelectual, de maturidade, de domínio e aplicação serena do novo modo de pensar” (Q16, §2, p. 1841). O central é “[...] a busca do leitmotiv, do ritmo do pensamento mais importante de cada citação separada” (Q4, §1, p. 419).

 

Igualmente relevante é que “[...] entre as obras do mesmo autor, é preciso distinguir as que ele terminou e publicou, das que ficaram inéditas [...]” (Q4, §1, p. 419) em relação às que foram “[...] publicadas por algum amigo ou discípulo [...] com uma intervenção ativa do editor” (Q16, §2, p. 1842). O conteúdo das inéditas “[...] deve ser tratado com muito discernimento e cautela: ele deve ser considerado não definitivo, pelo menos naquela forma determinada; deve ser considerado material ainda em elaboração, ainda provisório” (Q4, §1, p. 419).

Pode ocorrer que “[...] estas obras, especialmente se em elaboração por um longo período de tempo sem que o autor se decidisse a completar, em conjunto ou em parte fossem repudiadas pelo autor” (Q16, §2, p. 1842). Sublinha-se que, nesse caso, “[...] seria bom ter um texto-base [...] ainda não reelaborado pelo compilador, ou pelo menos uma minuciosa descrição do texto original feita com critérios filológicos” (Q4, §1, p. 419/20).

 

Isso porque “[...] uma obra nunca pode ser identificada com o material bruto, reunido para a sua compilação [...]” (Q16, §2, p. 1843) já que tem valor central “[...] o peso maior ou menor dado a este ou àquele elemento reunido no período preparatório são realmente o que constitui a obra efetiva” (Q16, §2, p. 1843). Embora a análise seja dirigida a Marx, salta aos olhos como as indicações podem ser aplicadas à sua obra e não parecem desprovidas de sentido.

 

Problematizando generalizações abusivas e a ideia de que se pudesse construir uma sociologia marxista, Gramsci escreveu que isso era “[...] um incentivo a improvisações fáceis” (Q7, §6, p. 856). Deve-se considerar que a “[...] ‘experiência’ do materialismo histórico é a própria história, o estudo de fatos particulares, a ‘filologia’ [...]” (Q7, §6, p. 856) e que “[...] a ‘filologia’ é a expressão metodológica da importância de fatos particulares entendidos como ‘individualidades’ definidas e especificadas” (Q7, §6, p. 856). O autor prossegue afirmando que o objetivo de tal marxismo “[...] consiste em reduzir uma concepção de mundo a um formulário mecânico que dá a impressão de ter toda a história no bolso” (Q11, §25, p. 1428).

 

A experiência em que se baseia a filosofia da práxis não pode ser esquematizada; é a própria história na sua infinita variedade e multiplicidade, cujo estudo pode dar origem ao nascimento da “filologia” como método de erudição na apuração de fatos particulares e ao nascimento da filosofia entendida como metodologia geral da história (Q11, §25, p. 1428/9).

 

Uma passagem em um caderno avançado expressa uma tensão que perpassa toda a obra de Gramsci, a relação entre unidade e diversidade. Lê-se que “[...] encontrar a identidade real sob a aparente diferenciação e contradição, e encontrar a diversidade substancial sob a identidade aparente [...]” (Q24, §3, p. 2268) é “[...] o dom mais delicado, incompreendido e ainda assim essencial do crítico de ideias e do historiador do desenvolvimento histórico” (Q24, §3, p. 2268).

 

3 Gramsci e o Serviço Social brasileiro:  aproximações e uma hipótese interpretativa

 

Quando os Cadernos foram publicados no Brasil, o Serviço Social na América Latina (Netto, 2011, p. 145-146) passava por um processo que foi considerado como “Movimento de Reconceituação”, surgido no bojo da crise do Serviço Social tradicional e como crítica a ele. Tratou-se de laicizar a profissão, negando sua história confessional de relação com a Igreja Católica, de construir críticas ao seu caráter tecnicista, burocrático, moralizante e psicologizante, bem como de criticar o viés funcionalista que a orientava.

 

Embora todos os seus integrantes contestassem o Serviço Social tradicional, o Movimento de Reconceituação foi composto por “[...] um polo [que] investia num aggiornamento do Serviço Social e outro [que] tencionava uma ruptura com o passado profissional” (Netto, 2011, p. 147). É relevante sublinhar que “[...] é no marco da reconceptualização que, pela primeira vez, de forma aberta, a elaboração do Serviço Social vai socorrer-se da tradição marxista” (Netto, 2011, p. 148). Destaca-se que “[...] depois da reconceptualização, o pensamento de raiz marxiana deixou de ser estranho ao universo profissional dos assistentes sociais” (Netto, 2011, p. 148). O seu ocaso deveu-se “[...] à supressão dos espaços políticos democráticos nos principais polos da renovação” (Netto, 2011, p. 148).

 

Após a aproximação do Serviço Social com a teoria crítica nos anos 1960, limitado posteriormente pela ditadura, voltou a vigorar, em 1970, certo grau de abertura associado a um conjunto de lutas sociais, estudantis e sindicais, que permitiram uma nova convergência. Nesse bojo, surgiu uma importante e hoje hegemônica vertente do Serviço Social denominada intenção de ruptura. Ela incorporou uma forte crítica à autocracia burguesa e uma defesa da democracia, opôs-se ao perfil profissional requisitado pela ditadura e, por fim, apresentou uma visão política diferente das anteriormente compartilhadas pelos assistentes sociais, já que fazia uma leitura de que a sociedade se organiza incontornavelmente através de projetos societários das classes fundamentais do modo de produção capitalista (Netto, 2011).

 

Seu objetivo foi, em suma, o “[...] de romper substantivamente com o tradicionalismo e suas implicações teórico-metodológicas e prático-profissionais” (Netto, 2011, p. 250). Com suas formulações, paulatinamente o Serviço Social vai realizando incorporações cada vez mais rigorosas e bem-sucedidas da obra marxiana e da tradição marxista como um todo, de modo que Gramsci estava incluído nesse processo e teve influência considerável nessa vertente da profissão.

 

V. Faleiros é apontado como iniciador dessa interlocução com a obra publicada originalmente em 1972 e editada no Brasil sob o título de Metodologia e Ideologia do Trabalho Social (Faleiros, 1981) (Simionatto, 1999; Dias, 2019). Aprofundando a relação, temos o mestrado de S. Ammann, defendido em 1976 e publicado em Participação social (Ammann, 1980; Simionatto, 1999). Outro polo aglutinador foi a PUC-Rio, por meio de dissertações de mestrado orientadas por M. L. Cardoso. O grupo utilizou Gramsci para contestar as formulações do Serviço Social tradicional e avançar em direção às propostas da reconceituação (Simionatto, 1999). Desenvolveram-se também pesquisas no departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão que buscaram refletir metodologicamente sobre a prática profissional, objetivando refutar seus traços conservadores. Outra vez, a professora M. L. Cardoso estava envolvida (Simionatto, 1999; Rodrigues, 2018).

 

Simionatto (1999) indica obras seminais do período da renovação. A primeira é Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil (1992), de S. Ammann. Em A questão da transformação e o trabalho social (1983), A. M. P. Carvalho oferece ao Serviço Social brasileiro uma interpretação em que pela primeira vez recorreu-se às fontes originais. A última obra é Metodologia do Serviço Social: a práxis como base conceitual (1989) escrito por M. Maciel e F. G. Cardoso.

 

Na década de 1990, três obras de envergadura, considerando fundamentação teórica e influência exercida, merecem destaque. Classes Subalternas e Assistência Social (Yasbek, 2016) discute não o conhecido teórico da hegemonia, mas seu pensamento em relação aos subalternos. Já Cultura da Crise e Seguridade Social (Mota, 2015) problematiza a conformação da hegemonia burguesa à luz das transformações societárias.

 

De relevo, e utilizado em nossa interpretação, foi o livro Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social (Simionatto, 1999). Nele, a autora realiza um panorama integral das relações entre Gramsci o Serviço Social brasileiro até então. No início dos anos 2000 e no mesmo bojo das pesquisas anteriores, em Serviço Social e a organização da cultura (Abreu, 2011), construiu-se um importante debate sobre a cultura e os perfis pedagógicos profissionais dos assistentes sociais.

 

Nos anos seguintes ocorre uma continuidade e aprofundamento dos intercâmbios entre Gramsci e o Serviço Social. Ajudam a compreender esse processo “[...] o fortalecimento e a consolidação da pós-graduação, a aprovação das diretrizes curriculares e o projeto ético-político” (Simionatto, 2021, p. 5-6). Contudo, é impossível desconsiderar que [...] nos anos 2000, a publicação da nova edição dos Cadernos do cárcere, dos Escritos políticos, das Cartas do cárcere e a tradução do Dicionário gramsciano (1926-1937) para o português marcam um salto qualitativo no aprofundamento dos estudos (Simionatto, 2021, p. 6).

 

A nova tradução brasileira teve um impacto monumental nas pesquisas dos diferentes âmbitos das Ciências Sociais e no Serviço Social. Considerando um recorte, Negri (2016, p. 37) encontrou, entre 2000 e 2012, cerca de 250 produções que discutiam principalmente o lugar da profissão e a ação profissional; as principais categorias utilizadas foram as de Estado, sociedade civil e hegemonia (Negri, 2016). Para um recorte, entre 2010 e 2015, Simionatto e Negri (2017) chegam a mais de 350 artigos que podem ser divididos segundo os eixos de Estado, sociedade civil e políticas sociais, sociedade civil e democracia e hegemonia e sociedade civil.

 

Nos estudos surgidos após os anos 2000, destaca-se que o “[...] rigoroso trato das categorias, a amplitude das elaborações e o aprofundamento das concepções gramscianas são elementos fundamentais” (Negri, 2016, p. 218). Isso se deve a “[...] um arco significativo de categorias buscadas nas fontes originais e em intérpretes brasileiros e de outras nacionalidades” (Simionatto; Negri, 2017, p. 19).

 

4 Apontamentos finais

 

Demonstrou-se que o traço filológico vem sendo paulatinamente mais valorizado no estudo da obra de Gramsci. Nesse sentido, a edição Gerratana e os seminários da IGS-Itália são marcos incontornáveis. Incorporando ganhos dessa leitura, surge a nova edição “crítico-temática” brasileira. A tarefa, contudo, não foi realizada sem problemas. Reconhecendo a incorporação dos números dos cadernos e parágrafos como grande mérito, a edição repete a partição temática, não apresenta a integralidade da obra e os volumes são compostos por notas em ordem diversa da que foram escritas. Embora afirme-se que “[...] o leitor mais exigente poderá recompor, com facilidade, todo o percurso cronológico seguido por Gramsci [...]” (Coutinho, 2014, p. 44), é forçoso reconhecer que tal tarefa não é possível de ser executada.

 

A necessidade de acompanhar o “ritmo do pensamento” através da leitura da integralidade das notas em sentido cronológico, entendendo suas nuances, desenvolvimentos e reformulações, é dificultada pela edição, que sugere obras acabadas e evita o sentido da fragmentariedade, da provisoriedade, do caráter inconcluso e da diacronia. Isto é, a edição “crítico-temática” inibe a utilização dos recursos metodológicos desenvolvidos nos últimos anos.

 

Não se contesta a fidelidade das notas traduzidas. Trata-se de reconhecer, entretanto, que ela sugere uma leitura metodológica que vem sendo paulatinamente abandonada pela pesquisa recente, já que, por exemplo, a exclusão dos Textos A, a desagregação dos cadernos miscelâneos e o privilégio dado aos cadernos especiais são escolhas que atualmente encontram pouco respaldo analítico e metodológico. Isso não quer dizer que Gramsci precisa tornar-se um assunto de especialistas, as mais diversas formas de pesquisa em diferentes níveis de profundidade contribuem para o avanço de suas ideias. O diálogo com o Serviço Social é um exemplo de tal argumento. Mesmo que inicialmente incorporado com debilidades, Gramsci contribuiu para as formulações teóricas que ajudam na intenção da profissão de romper com seu viés conservador.

 

Rapidamente, as pesquisas do Serviço Social chegam às fontes originais, mesmo considerando as limitações que a primeira edição possuía, e os anos 1990 assistiram ao surgimento de importantes produções. A edição “crítico-temática” permitiu ao Serviço Social incorporar Gramsci em um novo patamar, os assistentes sociais tinham acesso à parte maior da obra e poderiam saber a ordem em que os cadernos foram escritos, daí deriva um trato mais rigoroso das categorias e a leitura de fontes originais mais confiáveis. Portanto, faz-se uma avaliação aproximativa de que se pode falar em dois grandes ciclos da relação entre Gramsci e a pesquisa no Serviço Social no que diz respeito à utilização de suas fontes, o que, avalia-se, está associado ao resultado das pesquisas. O argumento não é retórico, já que nosso estudo mostra que a realidade da edição “crítico-temática” proporcionou saltos qualitativos.

 

Faz-se uma última hipótese. As traduções temáticas tornaram Gramsci conhecido em nosso território e permitiram corajosas leituras aos assistentes sociais que procuravam suas formulações para romper com os traços conservadores da profissão; a edição “crítico-temática” possibilitou um acesso a fontes de melhor qualidade e gerou pesquisas e novas formulações mais cuidadosas, por isso se questiona: seriam desprezíveis as propostas que vêm sendo apresentadas nos últimos anos na pesquisa gramsciana? A eventual incorporação pelos assistentes sociais das ferramentas de leituras atualizadas, e mesmo das novas interpretações, gerarão certamente novas pesquisas importantes, e a nova tradução dos Cadernos realizada pela IGS-Brasil oferece uma ótima oportunidade. Tal hipótese, contudo, só poderá ser confirmada por sucessivos esforços de pesquisas no âmbito do Serviço Social.

 

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Renato de Brito GOMES

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Economista pela UFRJ.

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora

 

 

 

Submetido em: 14/6/2024. Revisado em: 12/2/2025 e 1º/4/2025. Aceito em: 19/3/2025.

 

 

Agência financiadora

 

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

 

 

 

 

 

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]A Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci, realizada pelo Istituto della enciclopedia italiana, consiste na publicação crítica e integral da obra de Antonio Gramsci e é considerada um ponto culminante dos estudos filológicos.  Até o momento, foram publicados os Quaderni di traduzione, dois volumes do epistolário, dois volumes dos escritos pré-carcerários e um volume dos cadernos miscelâneos.

[2] Nesse artigo, pode-se encontrar um percurso detalhado da recepção das ideias de Gramsci no Brasil no século XXI, estando a filologia inclusa nesse bojo.