Educação
antirracista e ações afirmativas contra o crime perfeito
Anti-racist education and affirmative action against
the perfect crime
Arilson dos Santos
GOMES*
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), Acarape, CE, Brasil.
Universidade Federal
do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, CE, Brasil.
e-mail: arilsondsg@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-0214-2312
Matilde RIBEIRO
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (UNILAB), Acarape, CE, Brasil.
e-mail:
mribeiro@unilab.edu.br
https://orcid.org/0000-0002-5161-5924
Prefeitura de Fortaleza, Secretaria de Educação, Fortaleza, CE,
Brasil.
e-mail:
tiago.morais@educacao.fortaleza.ce.gov.br
https://orcid.org/0000-0001-9950-7167
Resumo: No auge das discussões sobre a
política de cotas raciais, no Brasil, o antropólogo Kabengele
Munanga (2010) disse: “Nosso
racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo
seu racismo”. Portanto, como consolidar direitos e combater o racismo sem
racistas? Diante disso, este texto, por meio do uso de revisão de literatura
narrativa e embasado em análises de um arcabouço legislativo, procura
evidenciar: quais seriam as ferramentas para tensionar o racismo brasileiro? O
estudo conclui que uma das armas contra o crime perfeito, além do Ministério
Público e de movimentos sociais atuantes, seja que os sujeitos
beneficiários das Ações Afirmativas, por meio das cotas raciais, estejam
comprometidos com a atualização de normas e regras de currículos hegemônicos e
atentos aos editais de seleção, que sejam conscientes da atuação histórica do
Movimento Negro para a mudança de paradigmas sociais e raciais, que
possibilitam transformações estruturais da sociedade ainda impregnadas pela
ideologia do racismo.
Palavras-chave: Movimento Negro. Direitos. Educação antirracista. Ações Afirmativas.
Abstract: At the
height of discussions around the policy of racial quotas in Brazil,
anthropologist Kabengele Munanga (2010) said: “Our racism is a perfect crime,
because the victim himself is responsible for his racism”. How can we,
therefore, consolidate rights and combat racism without racists? Through a
review of the narrative literature, and based on analysis of the legislative
framework, this text highlights the tools required to put pressure on Brazilian
racism? It concludes that, in addition to the Public Prosecutor’s Office and
active social movements, one of the weapons against the perfect crime is that those
benefiting from Affirmative Actions through racial quotas are committed to
updating the norms and rules of hegemonic curricula, are aware of the selection
criteria, and are aware of the historical role of the Black Movement in
changing the social and racial paradigms which enables the structural
transformation of a society still permeated by the ideology of racism.
Keywords: Black movement. Rights. Anti-racist education. Affirmative
actions.
Submetido em: 16/6/2024.
Revisado em: 24/6/2024; 1/7/2024. Aceito em: 1/7/2024.
A |
educação, como fonte de cidadania, foi negada
à população negra, e distorcida quando se trata da população indígena.
Aprofundando essa reflexão, Petrônio Domingues (2009) assegura que a “[...]
educação é considerada um instrumento de importância capital para enfrentar o
racismo e garantir a integração e prosperidade do afro-brasileiro na sociedade”
(Domingues, 2009, p. 963).
O Brasil está longe da vivência de um
processo efetivo de democracia, justiça e igualdade. Mário Theodoro caracteriza
essa condição pela existência de uma profunda e persistente “[...] desigualdade
que se sustenta não apenas na questão econômica e social, mas também no acesso
diferenciado aos serviços públicos e principalmente à segurança e à justiça”
(Theodoro, 2022, p. 17). Ou seja, “[...] racismo, preconceito e discriminação
devem ser enfrentados com outro conjunto de políticas e ações” (Theodoro, 2008,
p. 174).
Para Matilde Ribeiro (2022), esse
conjunto de políticas são as Ações Afirmativas, que podemos compreender, por
meio do programa de cotas, bonificações, políticas de acessibilidade, programas
de assistência financeira, cursos preparatórios, entre outros, como fios
condutores para a Promoção de Igualdade Racial. Theodoro (2022) enfatiza a
urgente necessidade da relação entre as Políticas Universais e as Ações
Afirmativas, fortalecendo o posicionamento em defesa das cotas sociais e
raciais.
Kabengele Munanga,
em entrevista à Fundação Perseu Abramo (2010), no auge das discussões sobre
cotas raciais no Brasil, disse:
Quando
a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995, perguntaram para
muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim.
Perguntaram para as mesmas pessoas: ‘você já discriminou alguém?’. A maioria
disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como
você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que
reage: ‘você que é complexado, o problema está na sua cabeça’. Ele rejeita a
culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso
racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo
seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema (Munanga,
2010, não paginado).
O racismo encontra-se nas doutrinas, nas concepções do mundo
e nas crenças (Gomes, 2005). É uma reprodução ideológica de que um grupo, em
virtude de suas características físicas, culturais, regionais e morais seja
superior a outro, como uma hierarquia a serviço dos privilégios de alguns e da
subalternização de outros.
Desde a década de 1980, o racismo se torna crime
inafiançável e imprescritível. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define
os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (Brasil, 1989).
Recentemente, a Lei nº 14.532/2023 equipara a injúria racial ao crime de
racismo (Brasil, 2023).
Se existe um conjunto de leis que reprimem o racismo, como,
então, ele pode ser um crime perfeito? Destarte, ele somente pode ser perfeito
com a anuência de quem se beneficia com a sua reprodução.
Uma análise sobre a realidade brasileira feita pelo
líder e escritor quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015), conhecido como
Nego Bispo, alertou sobre as constantes estratégias de apagamento de parte da
história do povo negro no Brasil (é importante ressaltar que isso se volta a
56,1% da população e persiste na historiografia brasileira em relação aos
quilombos). Segundo o autor, “[...] O termo quilombo que antes era imposto como
uma denominação de uma organização criminosa reaparece agora como uma organização
de direito, reivindicada pelos próprios sujeitos quilombolas” (Santos, 2015, p.
50).
Portanto, como consolidar direitos e combater o racismo sem
racistas? É nessa linha que as palavras de Munanga
dialogam com as ferramentas que possibilitam o enfrentamento dessa assertiva.
Pois, as armas contra o crime são as letras do direito conquistado por meio das
Ações Afirmativas, na modalidade de cotas, e de uma educação antirracista
reivindicadas pelos movimentos sociais em torno do reconhecimento e da
reparação das consequências desse crime praticado contra os grupos
historicamente racializados: indígenas, quilombolas,
mulheres negras e populações negras em geral.
Sistematizado em três partes, o texto, em caráter
interdisciplinar e com a utilização de revisão de literatura narrativa,
problematiza se as ações afirmativas, consubstanciadas por uma educação
antirracista, efetivamente conseguem combater o crime perfeito tal como
apontado por Munanga. Na primeira parte,
desenvolvemos uma discussão histórica e da luta antirracista preconizada pelos
movimentos sociais. Após, refletimos sobre as leis que amparam uma educação
antirracista. Na terceira parte, examinamos como as cotas étnico-raciais, no
emprego público para docente e no ensino superior, evidenciam as tensões para o
combate ao crime perfeito.
A desigualdade histórica e A luta por educação
antirracista
Antes e durante o século XX, as ciências, o ensino e os
materiais didáticos reproduziram uma história que fixou os sujeitos negros a
estereótipos que remetiam essas populações a um passado da escravidão que se
mantinha presente (Gomes, 2023). Era praticamente impossível compreender a
trajetória do continente africano e das populações negras sem a fantasmagoria a
que fomos projetados pela racionalidade hegemônica ocidental (Mbembe, 2014). No Brasil, nas populações negras e indígenas
eram reproduzidas as mesmas situações.
África, negros/as e seus descendentes eram experenciados
como algo reduzido, acabado e postulado a permanecer imutável. Civilizações,
tecnologias, descobertas, invenções, criações, artes, linguagem e inovações não
eram relacionadas a esses. Diante disso, desenhou-se no ensino desigualdades
que se refletiam no cotidiano, pois, como valorizar corpos negros se foram
descendentes de escravizados e os legados de seu continente original
inexistiam? (Gomes, 2023).
Essas distorções acompanhavam, além das disciplinas
ensinadas nas escolas, a construção das identidades dos/as estudantes negros/as
que, não raras vezes, aprendiam que, para serem aceitos, era preciso negar-se
(Gomes, 2005). Pois quem, em sala de aula, gostaria de ser associado ao que era
considerado inferior? Ao acontecer isso, as distorções mais evidentes reportam
a falta de autoestima, de sonhos e do querer ser, já que essas situações
desencadeiam uma sucessão de acontecimentos conhecidos: ausência de referências,
reprovação e evasão são as tônicas que se materializam na falta de
oportunidades e, assim, as desigualdades se tornam comuns às estatísticas dos
institutos de pesquisas que evidenciam as más condições legadas historicamente
às populações negras e indígenas de norte a sul do País.
Por outro lado, o mito da percepção do universal e do
humano, respaldado no eurocentrismo e no ocidentalismo, e a branquitude se
tornaram referências concretas à luz da matéria ensinada. Resultado, a educação
básica, com a máscara do universalismo, estava a serviço de uma inegável
reprodução sistemática de discriminações e da manutenção de privilégios sociais
em que a tônica racial sempre esteve presente (Almeida, 2018).
Portanto, como, historicamente, a comunidade negra livre
reivindicou suas necessidades? A educação e a produção de conhecimento foram as
principais ferramentas para a integração das populações negras (Gomes, 2017).
Ademais:
Os
movimentos negros se constituíram, enquanto atores coletivos, no mesmo
espaço/tempo em que se consolidava, no país, a estrutura social de classes, em
conformidade à ordem social competitiva, dando à luz as primeiras formas
associativas de luta, específica dos trabalhadores urbanos [...] (Gonçalves,
1998, p. 33). Nos anos 20, evocam a raça, nos anos 40, a tradição
afro-brasileira e, finalmente, nos anos 70, a cultura negra (Gonçalves, 1998,
p. 35).
As pressões organizadas pelos movimentos sociais
influenciaram diretamente nas legislações municipais, estaduais e federais
brasileiras. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988),
o artigo 68 reconheceu o direito das terras aos remanescentes de quilombos.
Nesse mesmo ano, é fundada a primeira instituição pública voltada para a
promoção e a preservação da arte e da cultura afro-brasileira: a Fundação
Cultural Palmares (FCP), entidade vinculada ao Ministério da Cultura (Gomes,
2017). Contudo, historicamente, seguem os desafios para uma sociedade de fato
antirracista e inclusiva.
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(2022), 69% dos cargos gerenciais são ocupados por brancos e 29,5% por pretos e
pardos. Em relação ao impacto da pandemia no Exame Nacional do Ensino Médio,
por exemplo, realizado em 2021, os brancos mantiveram uma taxa de
comparecimento maior do que os demais grupos ao longo do período analisado.
Pretos e pardos tiveram mais dificuldades do que os brancos para comparecer ao
exame (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).
Para transformar esse quadro, têm-se as políticas públicas
específicas, como forma de reconhecimento e de acesso às populações
historicamente marginalizadas. Nesse sentido, os movimentos sociais foram
fundamentais para as afirmações das identidades na busca de direitos. As
reivindicações organizadas e a educação historicamente praticada pelo Movimento
Negro Educador (Gomes, 2012), ressignificaram a identidade, o conceito de raça
e as próprias políticas de Estado. A criação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei
nº 12.288/2010) (Brasil, 2010)[1]
trouxe para os nossos cotidianos ferramentas fundamentais para o combate ao
racismo.
Diante do protagonismo político dos movimentos sociais, as
estruturas do Estado são tencionadas, pois, no campo jurídico e legislativo,
passam a existir marcos que permitem o combate ao racismo estrutural e
institucional (Gomes, 2022). Para Silvio Almeida (2018), o racismo se torna
estrutural quando é produzido e reproduz os sujeitos, a economia, a política, a
sociedade e as subjetividades. Outra forma de racismo é o institucional:
As instituições são homogeneizadas por determinados grupos
raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses
políticos e econômicos que serve para manter a hegemonia do grupo racial no
poder, já que depende da existência de regras e padrões que dificultam a
ascensão de negros, naturalizando assim o domínio do grupo formado por homens
brancos (Almeida, 2018, p. 28).
A
reprodução do racismo no âmbito das instituições, mesmo com uma legislação
considerável, dificulta a execução de um ensino antirracista e,
consequentemente, a elaboração de aprendizados e saberes necessários para se
combater o crime perfeito.
Leis que amparam a educação antirracista: Leis nº
10.639/03 e nº 11.645/08, e as transformaçÕes curriculares
Convém recordar que a Lei do Império “[...] referente
a reforma do ensino primário e secundário da Côrte” (Brasil, 1854) não permitia
que os escravizados frequentassem a escola. De acordo com o Decreto nº 1.331-A:
“Art. 69. Não serão admitidos á matricula, nem poderão
frequentar as escolas: § 1º Os meninos que padecerem moléstias contagiosas. §
2º Os que não tiverem sido vacinados. § 3º Os escravos” (Brasil, 1854, grifos
nossos).[2]
Embora o Brasil não tivesse um regime segregacionista
institucionalizado aos olhos do mundo ocidental, o País, à sua maneira,
construiu políticas racistas que impossibilitavam acessos, como observado
anteriormente em relação aos escravizados. Mesmo com a abolição, na condição de
libertos, além de não possibilitar dias melhores, aniquilou a construção de uma
identidade positiva.
A eles foi negada a
possibilidade de aprender a ler, ou se lhes permitia, era com o intuito de
incutir lhes representações negativas de si próprios e convencê-los de que
deveriam ocupar lugares subalternos na sociedade. Ser negro era visto como
enorme desvantagem, utilizava-se a educação para despertar e incentivar o
desejo de ser branco. Além de cor da pele [...] tratava-se também de lugar a
ocupar na sociedade, de poder (Silva, 2007, p. 495).
Corroborando o pensamento de Fanon,
afirmamos que “[...] A civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao
negro um desvio existencial [...]” (Fanon, 2008, p.
30). Nessa construção racista, seria necessária a elaboração de outras
linguagens, novas epistemologias.
Eis que, nessa disputa, surge, no Brasil, o Movimento
Negro. Uma das características do Movimento Negro é “[...] trazer o debate sobre o racismo para a cena
pública, indagar as políticas públicas e ressignificar e politizar a raça,
dando-lhe um trato emancipatório e não inferiorizante”
(Gomes, 2012, p. 733).
As organizações negras
espalhadas pelo País evidenciam historicamente as iniciativas dessas populações
em suas estratégias educativas de combate ao racismo, valorização da autoestima
e busca por elevação e reconhecimento social (Silva, 2007; Gomes, 2017;
Domingues, 2009) contra os epistemicídios.
Segundo Sueli Carneiro (2005), o epistemicídio
é um fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo e a
discriminação provocam no cotidiano escolar a partir da negação, aos negros, da
sua condição de sujeitos do conhecimento, o que se dá por meio de
desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do continente africano
e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade pela imposição do
embranquecimento.
Na educação, a Lei Federal nº 10.639, de 2003, que
estabeleceu, no currículo oficial da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da
temática História e Cultura Afro-Brasileira (Brasil, 2003), completou 20
anos desde sua promulgação. Fato é que, aos poucos, temos avançado na inclusão
de conteúdos voltados à temática da Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer), sobretudo na Educação Básica. Mas, pouco temos feito
no que tange à formação inicial e continuada de professores/as, e consideramos
que os currículos de formação em licenciatura ainda precisam efetivar tal lei
no Ensino Superior.
A Lei surge mediante a luta política construída pelo
Movimento Negro brasileiro, desde 1970, visando à reparação histórica às
populações negras de toda a violência instituída pela estrutura social (Gomes,
2017), que nega suas existências mediante o racismo estrutural (Almeida, 2018)
desde a colonização e está moldada pela colonialidade
do poder, do saber e do ser (Mignolo, 2019).
A princípio, essa legislação, no campo da educação, ao
alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996
(Brasil, 1996), incluiu os artigos 26-A e 79-B, que tratam, respectivamente, da
obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana e da institucionalização, no calendário escolar, do 20 de novembro
alusivo ao Dia Nacional da Consciência Negra.
Nesse contexto, na efervescência do debate, apenas a
abrangência da dimensão da lei não era suficiente. Em 10 de março de 2004,
foram aprovadas as “[...] Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (Dcnerer)” (Brasil, 2004). Por isso, os
sistemas de ensino público e privado, por força de lei, deveriam aderir a tais
princípios legais, com a finalidade de efetivar a Educação para as Erer nas escolas de Educação Básica. Porém, após 20 anos,
não é o que temos observado apesar dos inúmeros avanços na área.
Dito isso, conforme discute Gomes (2017), não há dúvidas da
importância das sucessivas lutas do Movimento Negro no final do século XX para
a construção das políticas de igualdade racial que, hoje, ainda caminham com
embates para sua plena efetivação. Devemos, assim, reconhecer que a inclusão
dos conteúdos voltados para o ensino da cultura negra, na educação, ainda
enfrenta diversos tensionamentos, dentre eles, talvez o maior seja a
continuidade dessa lei como uma política de Estado, e não como uma política de
Governo.
Por outro lado, no conjunto de reivindicações dos movimentos
sociais, em 2008, mais uma vez, alterou-se a LDBEN (Brasil, 1996) através da
Lei nº 11.645/2008, que tornou obrigatório, nos estabelecimentos de ensino
fundamental e de ensino médio (sistemas públicos e privados), o estudo de História
e Cultura Afro-brasileira e Indígena (Brasil, 2008), como um marco
importante para o reconhecimento da diversidade cultural dos povos originários
e suas contribuições sociais, econômicas e políticas na história do País.
As Leis nº 10.639/2003 (Brasil, 2003) e nº 11.645/2008
(Brasil, 2008) consideram a necessidade de combater as discriminações
historicamente legitimadas contra as populações negras e indígenas na sociedade
brasileira e na educação. É importante combater tanto o racismo antinegro como
o anti-indígena, pois ambos os grupos sociais foram e
são constituintes de nossa identidade nacional e histórica.
Vivenciamos um sistema de organização social resultante da
colonização ocidental sob o resto do mundo, principalmente reproduzindo, ainda,
a inferiorização do Continente Africano. Nessa estrutura, o poder é tido como o
principal elemento para manutenção dos ideais políticos, culturais, econômicos
e pedagógicos gestados na ideia de inferioridade e do padrão de
dominação/subordinação dos/as indígenas e dos/as negros/as, além da
supervalorização da cultura europeia.
Assim, a educação, enquanto um fenômeno social, é
atravessada por todos esses elementos que compõem a base do sistema de
dominação. Romper com essa lógica levará bastante tempo, até que consigamos
minimamente fraturar os complexos tentáculos da colonialidade
(Mignolo, 2019), visto que seu projeto se mantém
ativo mesmo após o doloroso e longínquo processo de colonização, reproduzido,
principalmente, pelo capitalismo racial e o discurso do mérito.
Bento (2022), fundamentada em Charles W. Mills, explica que:
“[...] uma sociedade que se alimenta do lucro e do preconceito de raça vendido
como liberalismo meritocrático, na verdade, está impondo o capitalismo racial”
(Bento, 2022, p.40).
O capitalismo racial funciona:
[...]
por meio de uma lógica da exploração do trabalho assalariado, ao mesmo tempo em
que se baseia em lógicas de raça, etnia e de gênero para expropriação, que vão
desde a tomada de terras indígenas e quilombolas até o que chamamos de trabalho
escravo ou o trabalho reprodutivo de gênero etc. (Bento, 2022, p. 41).
Contudo, fora dos muros acadêmicos, o Movimento Negro vem
desenvolvendo processos educativos contra o pensamento hegemônico. Destacamos a
literatura que passa a ser reconhecida pela academia, sobretudo a partir das
cotas, com a entrada de estudantes e docentes negros, indígenas e quilombolas
no Ensino Superior. Grupos também representados em programas de pós-graduação
(estudantes e futuros docentes) com visões pós-coloniais, decoloniais,
contra-coloniais ou antirracistas também chegaram às
escolas para transformar mentalidades ultrapassadas ou conservadoras diante de
um mundo com saberes legítimos pluriversal.
O reconhecimento da diversidade cultural é também uma
questão de direitos humanos: de ter direito a ter direitos. Pois, como mundo
globalizado, e em decorrência das desigualdades raciais, de gênero e de classe,
há o lugar de cada pertencimento dentro da pirâmide social que classifica quem
é quem, em um direito formalista, como aponta Lélia González, em que se “[...]
reproduz e se perpetua os valores do ocidente branco como verdadeiros
universais” (González, 1988, p. 73).
Nesse amálgama social, a educação tem um papel fundamental
para demonstrar a relevância das diferentes culturas e como essas, em suas
similitudes e conflitos, moldam o mundo e constituem as identidades subjetivas
de cada grupo cultural a nível planetário. Ademais, é rota de fuga para
combater preconceitos, xenofobias, discriminações e intolerâncias religiosas
contra a cultura negra e as demais culturas racializadas.
Sem isso, o caminho inverso é concordar com a estrutura universalista posta e,
assim sendo, caminhando lado a lado das armadilhas da colonialidade,
mesmo quando dizem que nossa educação é democrática e para todos.[3]
Mesmo com a instauração das cotas para ingresso no
ensino superior e nos concursos públicos (Brasil, 2012; Brasil, 2014a), os
desafios para as efetivações dessas legislações permanecem. A falta de controle
administrativo e a falta de aplicação correta das vagas destinadas para as
pessoas negras, no emprego público, evidenciam os problemas para combater o
racismo nas instituições.
As Leis nº 12.711/12 (atualizada pela Lei nº
14.723/2023), nº 12.990/14 e seus reflexos na formação superior
Como desdobramento do combate ao racismo, refletido neste
texto enquanto um crime perfeito, tem-se a discussão da educação, o acesso às
universidades como mais um tema candente para o debate, espaços que, em suas
práticas científicas e culturais, foram determinantes à colonização material e
à reprodução da colonialidade e do racismo.
Por isso, delimitamos as análises nas políticas de Ações
Afirmativas em seu programa de cotas “[...] no ingresso nas
universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio” (Brasil, 2012) ― Lei nº 12.711/2012 (Brasil, 2012), atual Lei nº
14.723/2023 (Brasil, 2023b) ― e a lei que trata da “Reserva aos negros de 20%
(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento
de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública
federal” (Brasil, 2014a) ― Lei nº 12.290/2014 (Brasil, 2014) ― com ênfase nas
vagas ofertadas para docentes no Ensino Superior Federal.
De acordo com o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação
Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ):
[...]
ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de
pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão
socioeconômica no passado ou no presente [...] aumentando a participação de
minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens
materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural (GEMA/
UERJ).
Portanto, as cotas raciais são uma das vertentes dessas
políticas. Para versar sobre uma política fundamental na transformação do
ensino e da educação, na última década, faz-se importante retornar no tempo, já
que o protagonismo do movimento negro, mais uma vez, faz-se presente.
Em meados da década de 1990, a raça teve destaque na
sociedade brasileira e nas políticas de Estado. A ressignificação emancipatória
possibilitada pelo Movimento Negro chega às instituições. Em 1995, após a
realização da “Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela
Cidadania e pela Vida [...]” (Gomes, 2012, p. 739), em Brasília, “[...] no dia
20 de novembro foi entregue ao presidente da República da época o Programa para
a superação do racismo e da desigualdade étnico-racial. Neste documento a
demanda por Ações Afirmativas já se fazia presente como proposição para a
educação superior e o mercado de trabalho” (Gomes, 2012, p. 739). Políticas de
reparações apontadas no documento elaborado na África do Sul por ocasião da Terceira
Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância (Declaração de Durban, 2001) promovida
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Como enfatizamos, as cotas constituem importantes mecanismos
de inclusão e de combate às desigualdades sociais e raciais (Madeira, 2017;
Ribeiro, 2022). Porém, são programas de políticas que devem estar associadas a
outras iniciativas.
Para Zelma Madeira:
[...]
a adoção de políticas de ações afirmativas, crescimento econômico com
redistribuição de riqueza e renda e medidas de superação da discriminação em
áreas estratégicas como no mercado de trabalho, acesso às políticas de geração
de emprego e renda, da assistência social, acesso à justiça, educação e saúde,
de modo geral denunciando o racismo presente no interior das instituições
sociais (Madeira, 2017, p. 29).
A Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas na Educação,
foi promulgada em 29 de agosto de 2012 (Brasil, 2012). Ela determina que 50%
das vagas, nas Universidades e nos Institutos Federais, sejam destinadas a
alunos oriundos do ensino público. Das vagas totais, pelo menos 50% são
destinados a pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (artigo 3º da
Lei nº 12.711/2012). Além disso, 50% (cinquenta por cento) das vagas totais,
deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou
inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita (Brasil,
2012).
Contudo, mesmo com os avanços possibilitados pela Lei de
Cotas, na Educação, alguns desafios se fazem presentes. De acordo com o
relatório elaborado por meio do acordo de cooperação técnico-científica entre a
Defensoria Pública da União (DPU) e a Associação Brasileira de Pesquisadores/as
Negros/as (ABPN), firmado em 2021, com a finalidade de desenvolverem atividades
em conjunto para a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos da
população negra e o enfrentamento do racismo, há um longo caminho para
aperfeiçoamentos.
Conforme o relatório, destacamos alguns apontamentos
apresentado como resultado dessa cooperação técnica: a) que todas as 59
universidades federais passaram a adotar a política de cotas raciais com o
início da vigência da Lei nº 12.711/2012 (Brasil, 2012),[4]
demonstrando o papel universalizante desta legislação; b) que, entre as
instituições respondentes (ao relatório), denota-se uma falta de monitoramento
interno da política afirmativa, problema que, somado às distintas metodologias
adotadas pelas universidades federais, na compilação dos dados repassados,
revelaram diversas dificuldades na composição de um retrato amplo do perfil
racial de estudantes em nível superior e da execução da política pública; e um
terceiro apontamento, c) que a defasagem identificada no número de evasão de
ingressantes cotistas raciais ameaça a eficácia da política e reforça a
importância do monitoramento permanente, expondo a necessidade de atenção e
ações voltadas à permanência dos(as) estudantes nas universidades, uma vez que
“[...] são visíveis as disparidades que marcam as dificuldades de acesso e
permanência dos jovens brasileiros, particularmente dos negros e oriundos de
famílias de baixa renda” (Relatório Técnico DPU e ABPN, 2022, p. 58-59), sobre
a implementação da política de cotas raciais nas universidades federais.
Diante das situações evidenciadas, efetivamente se constata
que as cotas transformaram o perfil de ingressantes na universidade pública,
sobretudo em relação à pluralidade dos sujeitos identificados com distintos
pertencimentos. Negros, indígenas, classes sociais menos abastadas, assim como
as pessoas com deficiência, passaram a compor, em maior quantidade, os bancos
acadêmicos. Um fator preocupante, retratado no relatório, corresponde ao pouco
ou nenhum monitoramento efetuado pelas gestões universitárias que possam gerar
um diagnóstico aprimorado sobre o perfil dos estudantes cotistas quanto ao seu
pertencimento racial, situação que prejudica a avaliação dos dados do impacto
da Lei. Sobre a questão da defasagem e evasão, a falta de políticas de
permanência continua a prejudicar a efetividade da lei quanto ao sucesso dos
alunos negros e das alunas negras.
A Lei de Cotas na Educação foi revisada e aprimorada em
2023, votada e aprovada pelo Congresso Nacional com alguns avanços importantes
na discussão apresentada pela DPU e pela ABPN. Dos quais destacamos: a) a
inclusão dos grupos quilombolas, b) ampliação da política afirmativa de reserva
de vagas para os cursos de pós-graduação, c) os alunos optantes pela reserva de
vagas que se encontrem em situação de vulnerabilidade social serão priorizados
no recebimento de auxílio estudantil e d) a renda igual ou inferior a um
salário-mínimo. A Lei de Cotas na Educação foi sancionada em novembro de 2023,
sob égide da Lei nº 14.723/2023, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
indicando aprimoramentos (Brasil, 2023b).
A Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, aprovada pelo
Congresso Nacional a partir de iniciativa da Presidenta Dilma Rousseff, reserva
aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de
cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal,
das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades
de economia mista controladas pela União (Brasil, 2014).
Contudo, passado o prazo de execução da Lei Federal, ainda
há um longo processo para sua efetivação. A exemplo do constatado no número de
vagas oferecidas nos concursos para a carreira no Magistério Superior Federal;
até o momento, o total de 20% das vagas para negros, estipuladas na Lei de
Cotas, sequer foram aplicadas (Rios; Mello, 2019).
Conforme os dados apresentados pelos autores, nenhuma região
efetivamente aplicou os 20% de vagas para negros, como apregoa a Lei nº
12.990/2014 (Brasil, 2014a). As universidades do Sul foram as que mais
aplicaram: 11,3% das vagas; as universidades do Nordeste foram as que menos
ofertaram: apenas 2,6% das vagas.
Flávia Rios e Luiz Mello destacam a importância das
universidades nas Ações Afirmativas, sobretudo em relação ao ingresso de
discentes possibilitado pela Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 (Brasil,
2012). Para os autores:
[...]
é preciso dar um passo a mais: combater as desigualdades raciais da base ao
topo. Intelectuais, pesquisadoras/es,
docentes e gestoras/es públicas/os terão mais legitimidade para combater as
desigualdades sociais e raciais no Brasil se antes fizerem seu dever de casa.
Afinal, o corpo docente das instituições de ensino superior no Brasil,
incluídas as públicas e as privadas [...] é formado por maioria branca
(52,9%), seguida de pardas/os (14,4%) e, por fim, pretas/os (2%), amarelas/os
(1%) e indígenas (0,1%), com destaque para uma elevadíssima taxa de “não
declaração” de cor/raça (29,4%) (Rios; Mello, 2019, grifos nossos).
Evidencia-se
um “[...] processo em que condições de subalternidade
e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos
âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas” (Almeida, 2018, p. 24).
Ademais, como pontua Cida Bento (2022), “[...] os pactos narcísicos, exigem a
cumplicidade silenciosa do conjunto dos membros do grupo racial dominante”
(Bento, 2022, p. 121). Inclusive ao acesso às instituições, por indicação a
cargos e na oferta de vagas para concursos públicos para docência superior na
esfera federal; o que é observado pelas indicações ou pelas vagas ofertadas à
ampla concorrência, tendo como a maior beneficiária a branquitude (Gomes,
2024).
A
presença de professores negros e negras, com acréscimo de indígenas e
quilombolas, na docência superior, potencializa o ensino, pois permite um
impacto, a partir das experiências desses sujeitos e de suas culturas, para
além da presença de seus corpos, nas transformações dos currículos e na
atualização das referências bibliográficas, situação que contribui sobremaneira
para um ensino plural, antirracista e diverso. A Lei nº 12.990, de 9 de junho
de 2014 (Brasil, 2014a), será pautada na Câmara Federal em 2024, período em que
será discutida a sua possível prorrogação e a necessidade de continuidade para
sua efetividade.
Conclusão
Após séculos de exclusão e pouco mais de duas décadas da
assunção das políticas de Erer, de Ações Afirmativas
e dos programas de cotas raciais, tem-se a constatação de que os avanços ainda
são insuficientes para extirpar o crime. Esse, aliás, só se torna perfeito
porque alguns, cientes do pacto da branquitude, se beneficiam, pois “[...]
mesmo brancos progressistas nem sempre estão desejosos a admitir em alguma
instância que são beneficiárias do racismo” (Bento, 2002, p. 148). Ou seja:
igualmente ganham com a sua negação ou com a culpabilidade da vítima. Essa
situação faz com que os movimentos sociais estejam sempre atentos. Pois, contra
o racismo, não basta boa vontade ou reconhecimento de sua existência; se assim
o fosse, o crime não seria perfeito.
A meta 8 do Plano Nacional de Educação de Elevar a
escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) e igualar
a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Brasil, 2014b), ainda é uma
meta ao invés de realidade. Por isso, o Movimento Negro e a Organização das Mulheres Negras cobram,
em 2024, um Plano Nacional de Educação efetivo na promoção da equidade racial (Por um
PNE que busque a promoção da equidade racial, 2024).
Portanto, temos que cuidar para que não sejam forjados novos
fenômenos, como o combate ao racismo sem distribuição de recursos, a inclusão
de sujeitos nas universidades sem atualização de currículos que atendam às
novas demandas, sem garantia da permanência a cotistas. Ou seja, atentar para
não ofertar vagas às cotas em concursos sem fazer com que os sujeitos
beneficiários sejam realmente os ocupantes dos cargos destinados e proferir
discursos de pluralidade sem mexer com posições de privilégio. Assim sendo:
Carecemos de ações de mobilização e
sensibilização da sociedade civil e do Estado pela via de processos de inclusão
social, em que possam garantir o reconhecimento identitários e heranças
culturais dos grupos étnicos discriminados, do respeito à diversidade e sua
ancestralidade para que possam usufruir da riqueza produzida, pela via da
redistribuição, de políticas públicas que garantam a igualdade racial, para
além de uma igualdade abstrata formal, mas que possam trazer à tona a
contradição dessa formação social, na produção e reprodução da vida para
patamares de qualidade, de respeito às especificidades da população negra
(Madeira, 2017, p. 29, grifos nosso).
Sinalizamos, pois, a emergência da construção de um programa
de monitoramento das leis antirracistas, que em regime de colaboração entre o
Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ministério da Educação (MEC) em
articulação com os representantes dos Movimentos Negros e do Ministério
Público, para que possam atuar para fiscalizar o cumprimento das leis. E,
igualmente, com a presença de sujeitos vinculados a saberes antirracistas, nas
escolas, trazer propostas pedagógicas originais condizentes com os saberes advindos
das cosmo-percepções negras, principalmente nas escolas públicas. Inclusive,
criando políticas de bonificação e valorização dos trabalhos dos/as
professores/as que desenvolvem as temáticas étnico-raciais para além do livro
didático. Visto que, as escolas, secretarias de educação e gestões escolares
têm reproduzido o racismo institucional, ou seja: ainda seguem realizando o
tratamento diferenciado entre raças e saberes culturais produzidos pelos
diferentes grupos sociais, hierarquizando estéticas e conhecimentos a partir da
hegemonia ocidental.
Em complemento a isso, é importante que os sujeitos
beneficiários das Ações Afirmativas, por meio das cotas raciais, estejam
comprometidos com a atualização de normas e regras de currículos hegemônicos e
atentos aos editais de seleção, que sejam conscientes da atuação histórica do
Movimento Negro para a mudança de paradigmas sociais e raciais, que
possibilitem transformações estruturais da sociedade, ainda impregnadas pela
ideologia do racismo institucional.
Quanto às vagas destinadas à reserva de cotas em concursos
públicos federais, igualmente se faz necessária uma ampla fiscalização,
envolvendo a sociedade civil e o Ministério Público a fim de evitar estratégias
nefastas identificadas no âmbito das Instituições de Ensino Superior ao ofertar
as vagas para docentes de maneira “fatiada” por áreas, para evitar a destinação
do percentual mínimo dos 20% das vagas para ocupação de pessoas negras. Outro
fator importante é o fortalecimento das Comissões de Heteroidentificação
(Gomes, 2024).
Após 20 anos da Lei nº 10.639/2003, e mais de 10 anos da
promulgação das políticas cotas raciais no serviço público, o que temos
observado é uma descontinuidade de suas implementações, pois ainda existem
muitas resistências institucionais para a execução das legislações:
Significa
reconhecer que alguns dos sistemas existentes hoje foram construídos para
manter negros e negras em condição de inferioridade; significa refletir sobre o
que os desmantelamentos desses sistemas fará com a vida das pessoas que dele
vêm se beneficiando (Bento, 2022, p.123-124).
Convenhamos que, para que o combate ao crime perfeito se
efetive, é preciso ter, nos diferentes níveis e espaços sociais, a subversão da
lógica do racismo à brasileira e do “[...] capitalismo racial [...]” (Bento,
2022, p. 37), colocando-os em xeque por meio das práticas que permitam a todos,
para o bem comum, combatê-los. E, para isso, a consolidação das ações
afirmativas na modalidade de cotas para ingresso discente e docente no Ensino
Superior ou em concursos e seleções nas esferas estaduais e municipais poderá
resultar em transformações mais efetivas.
Por fim, a presença de pessoas negras, indígenas e
quilombolas, em espaços de poder historicamente ocupados por brancos e pelos
valores da branquitude e em que a reprodução das cosmovisões ocidentais são a
tônica, permite ― se articulada ao senso crítico com a produção de conhecimento
qualificado ― a reunião de cidadãos conscientes da real pluralidade. O que, em
grande medida, motiva a resistência necessária contra a continuidade da
reprodução de um crime ― talvez, hoje, não tão perfeito ― reforçado por setores
extremistas radicais que preferem assumir posições públicas, em redes sociais
virtuais e nas praças, de sua crença à branquitude acrítica (Cardoso, 2010) e
ao capitalismo. Ao que parece, sentem-se encurralados diante das resistências
cotidianas, também cada vez mais públicas, dos indivíduos e dos coletivos
negros respaldados pela institucionalização, ainda com riscos, das políticas de
reconhecimento.
REFERÊNCIAS
Almeida, S. de. O que é racismo estrutural?. Belo
Horizonte: Letramento, 2018.
Bento, M. A. Branquitude. O lado oculto
do discurso sobre o negro. In: Carone, Iray;
Bento, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia
social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002.
Bento, C. O pacto da branquitude.
São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília (DF): Presidência da
República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jun. 2024.
Brasil. Decreto nº 1.331-A, e
17 de fevereiro de 1854. “Approva o Regulamento
para a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da
Côrte”. Rio de Janeiro, 1854. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1331-a-17-fevereiro-1854-590146-publicacaooriginal-115292-pe.html. Acesso em: 22 jun.
2024.
Brasil. Lei nº 14.532, de 11 de
janeiro de 2023. Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei
do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial. Brasília (DF),
2023a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm. Acesso em: 1 jul. 2024.
Brasil. Lei nº 14.723, de 23 de
novembro de 2023. Altera a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012,
para dispor sobre o programa especial para o acesso às instituições federais de
educação superior e de ensino técnico de nível médio. Brasília (DF), 2023b.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14723.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 12.990, de 9 de junho
de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos
concursos públicos. Brasília (DF), 2014a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 13.005, de 25 de junho
de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE. Brasília (DF), 2014b.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 12.711, de 29 de agosto
de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio. Brasília (DF), 2012.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 12.288 de 20 de julho
de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Brasília (DF), 2010.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 11.645, de 10 de março
de 2008. Inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília (DF), 2008.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro
de 2003. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Brasília (DF), 2003. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília,
1996. Brasília (DF), 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 16 jun. 2024.
Brasil. Lei nº 7.716 de 05 de janeiro
de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Brasília (DF), 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm#:~:text=Impedir%20o%20acesso%20%C3%A0s%20entradas,Art. Acesso em: 22 jun. 2024.
Brasil. Parecer CNE/CP nº 3, de 10 de
março de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Brasília (DF), 2004. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/diversas/temas_interdisciplinares/diretrizes_curriculares_nacionais_para_a_educacao_das_relacoes_etnico_raciais_e_para_o_ensino_de_historia_e_cultura_afro_brasileira_e_africana.pdf. Acesso em: 30 jun. 2024.
Cardoso, L. Branquitude acrítica e
crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista.
Revista Latinoamericana
de Ciencias Sociales Centro de Estudios
Avanzados en Niñez y Juventud de la Universidad de Manizales y el Cinde, v. 8, n. 1, p.
607-630. Enero/Junio.2010.
Carneiro,
Sueli. A Construção do Outro como Não-ser como fundamento do Ser. São
Paulo: FUESP, 2005.
Declaração
de Durban. África do Sul, 2021. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/publications/declaracao-de-durban.
Acesso em: 1 jul. 2024.
Domingues,
P. O recinto sagrado: educação e antirracismo no Brasil. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 138, p. 963-994, set./dez. 2009.
Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas.
Salvador: EDUFBA, 2008.
Gomes,
A. S. Protagonismo negro nas políticas públicas: a Lei de Cotas em tempo de
avaliação no Congresso Nacional. Escritas
do Tempo, Marabá, v. 4, n. 10, p. 46-70, 30 abr. 2022.
Gomes, A. S. Guia de Educação
Antirracista da Nova Escola. Marabá, 2023. (Prelo).
Gomes,
A. S. História e debates contemporâneos sobre as cotas raciais no serviço
público brasileiro: entre a efetividade e o controle. Revista Faces de Clio,
Juiz de Fora: UFJF, v. 10, n. 19, jan./jul. 2024 (Prelo).
Gomes, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.
Gomes, N. L. Movimento Negro e Educação:
ressignificando e politizando a raça. Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 120,
p. 727-744, jul./set. 2012 Disponível em https://www.scielo.br/j/es/a/wQQ8dbKRR3MNZDJKp5cfZ4M/#. Acesso em: 16 abr. 2024.
Gomes, N. L. Alguns termos e conceitos
presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In:
Coleção educação para todos.
Brasília (DF): SECAD/MEC, p. 39-62, 2005.
Gonçalves, L. A. O. Os
movimentos negros no Brasil: construindo atores sociopolíticos. Revista
Brasileira de Educação, São Paulo, n. 9, 1998. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n09/n09a04.pdf. Acesso em:
8 abr. 2024.
González, L. A
categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun.,1988.
Grupo de Estudos Multidisciplinares da
Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (GEMA/ UERJ). Disponível
em https://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-sao-acoes-afirmativas/. Acesso em: 22 jun.
2024.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Brasília
(DF), 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf. Acesso em: 30 jun. 2024.
Madeira, M. Z. de A. Questão racial
e opressão: desigualdades raciais e as resistências plurais na sociedade
capitalista. Argumentum, Vitória, v. 1, n. 9,
21–31, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/15440. Acesso em: 2 jul.2024.
Mbembe, A. Crítica
da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.
Mignolo, W. A colonialidade
está longe de ter sido superada, logo, a decolonialidade deve prosseguir. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand, 2019. Disponível em: https://assets.masp.org.br/uploads/temp/temp-YC7DF1wWu9O9TNKezCD2.pdf. Acesso em: 14 jul. 2022.
Munanga, K. Nosso racismo é um crime perfeito.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010. Disponível em: https://fpabramo.org.br/2010/09/08/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito-entrevista-com-kabengele-munanga/. Acesso em: 12 jun. 2024.
Por um PNE que busque a promoção da equidade racial. Disponível
em: https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2024/02/PNE_Equidade_Racial_resumo_final.pdf.
Acesso em: 22 jun. 2024.
Relatório Técnico Pesquisa DPU ABPN sobre
a implementação da política de cotas raciais nas universidades federais.
Brasília (DF): Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais
- Defensoria Pública da União; Associação
Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN, 2022. Disponível em: https://abpn.org.br/relatorio-pesquisa-sobre-a-implementacao-da-politica-de-cotas-raciais-nas-universidades-federais/. Acesso em: 24 jun.2024.
Ribeiro, M. Ações afirmativas como eixos
para a política pública de igualdade racial no Brasil. Cadernos Teoria e
Debate, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, p. 23-49, 2022.
Rios, F.; Mello, L. Estudantes e docentes
negras/os nas instituições de ensino superior: em busca da diversidade
étnico-racial nos espaços de formação acadêmica no Brasil. Boletim Lua Nova, São Paulo, nov. 2019.
Santos,
A. B. dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília (DF):
INCTI/UnB, 2015.
Silva, P. B. G.
Aprender, ensinar e relações Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no
Brasil étnico-raciais no Brasil. Revista Educação, Porto Alegre, v. 63, n.
3, p. 489-506, set./dez. 2007.
Theodoro,
M. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In:
Theodoro, M. (Org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil:
120 anos após a abolição. Brasília (DF): Ipea, 2008.
Theodoro,
M. A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil.
Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
________________________________________________________________________________________________
Arilson dos Santos
GOMES
Trabalhou na concepção, delineamento, interpretação e revisão crítica do artigo
e na versão final a ser publicada.
Doutor
em História realizando Estágio Pós-Doutoral no ProfHistória
da UFC. Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB). Professor do Mestrado Interdisciplinar
em Humanidades (MIH/UNILAB). Professor
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará
(PPGH/UFC). Pesquisador do Programa Cientista Chefe da Cultura
-FUNCAP/SECULT/Ceará.
Matilde RIBEIRO Trabalhou na
concepção, revisão crítica e redação do artigo.
Doutora
Honoris Causa pela Universidade Federal do ABC. Doutora em Serviço Social
realizando Estágio Pós-Doutoral na UFABC, Mestre em Psicologia Social e
Graduada em Serviço Social (1983) pela PUC/SP. Desde 2014, é professora na
UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira)
tendo sido lotada cinco anos na unidade Malês/BA, e, desde 2019, atua no curso
de Pedagogia em Redenção-Ceará
Tiago Moraes de
FREITAS
Trabalhou na redação do artigo.
Professor
substituto na Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), anos iniciais do Ensino
Fundamental. Mestre em Educação (2022 - 2024) pelo Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Estadual do Ceará (PPGE/UECE). Graduado como Bacharel
em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira - UNILAB e Pedagogo pela mesma universidade.
________________________________________________________________________________________________
* © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024 Acesso
Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative
Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material
em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir
deste material para qualquer fim, mesmo que comercial. O licenciante não pode revogar estes direitos
desde que você respeite os termos da licença.
[1] O Estatuto da Igualdade Racial,
conforme o primeiro artigo de sua Lei é destinado a garantir à população
negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas
de intolerância étnica (Lei nº 12.288/2010) (Brasil, 2010).
[3] Devemos compreender que “[...] a construção
e a manutenção das desigualdades raciais e de gênero, entre outras, nas
instituições e no sistema político e econômico em que estamos mergulhados
[...]” Bento, 2022, p. 42), incluindo a educação, é resultado do “[...]
supremacismo branco (que) é a expressão da antidemocracia [...]” e “[...] da
reprodução da herança branca” (Bento, 2022, p. 42).
[4]
Atualmente, existem 63 universidades federais no Brasil, conforme os dados do
Ministério da Educação.