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A disputa em torno do debate racial no Brasil: teoria e método para o avanço da perspectiva crítica

 

The dispute surrounding the racial debate in Brazil: theory and method for advancing the critical perspective

 

Cristiane Luiza Sabino SOUZA*

Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Socioeconômico,

Departamento de Serviço Social, Florianópolis, SC, Brasil.

e-mail: crisabino1@gmail.com

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-6044-619X

 

Introdução

 

N

os últimos anos, o debate público sobre o racismo no Brasil se intensificou. Se por muito tempo esteve sufocado pelos diversos mecanismos de afirmação do mito da democracia racial, que nega a existência de desigualdades raciais no Brasil, atualmente o reconhecimento da sua existência e as discussões sobre isso abrangem diversas dimensões da vida social, incluindo, além dos movimentos sociais tradicionais, como o Movimento Negro Unificado: universidades, instituições públicas e privadas, partidos políticos, mídias em geral e mesmo as grandes corporações do capital financeiro. Expansão que trouxe à tona diferentes interpretações sobre os fundamentos do racismo e as razões da sua existência na nossa sociedade, bem como distintas proposições ao seu enfrentamento, evidenciando disputas sobre a direção do debate do alcance revolucionário que nele pode – ou não - se imbricar.

 

Com o intuito de abrir um debate, a principal questão apresentada por este ensaio tem em vista refletir sobre essa disputa política e teórica em torno do debate racial no Brasil na atualidade, compreendendo que a demarcação de determinado campo teórico e político no estudo do racismo revela também o fortalecimento da perspectiva de sociedade da qual emana tal campo. Em outros termos, a discussão racial no Brasil não pode fugir dos projetos político-societários em histórico embate: a manutenção do projeto de dominação capitalista de origem colonial-escravista ou a criação de alternativas sociais emancipatórias.

 

Partindo dessa premissa e com o objetivo de explicitar a batalha das ideias em torno do debate racial, bem como de afirmar a perspectiva teórica e política a partir da qual vislumbro maiores potencialidades de explicar e transformar a realidade, o texto que segue será dividido em duas partes, além da conclusão: 1) síntese crítica das perspectivas teórico-políticas no debate; 2) Teoria e método para o debate do racismo com base nas contribuições marxistas latino-americanas e caribenhas.

 

1.       Perspectivas teóricas e políticas no debate racial no Brasil contemporâneo

 

De maneira muito resumida e, certamente com riscos de não alcançar todas as dimensões manifestas nos debates teóricos e proposições políticas em tela podemos situar três perspectivas no debate racial no Brasil hoje: a começar pela que podemos amplamente nomear de liberal.

 

Essa primeira, embora possa parecer tensionar pela garantia de direitos e pela defesa da vida das pessoas negras, ao não questionar a estrutura da sociedade, reduz-se ao individualismo e incorpora a lógica da sociedade de classes. Manifesta-se na defesa de mecanismos como o empreendedorismo negro, a formação de uma elite negra brasileira, a representatividade nos espaços de poder. Vigora a ideia de que é possível tomar dos donatários brancos da riqueza concentrada alguma fatia do que foi roubado historicamente dos negros, mas sem mexer na estrutura de funcionamento da sociedade, apenas convencendo os brancos e ricos do seu comportamento racista e da necessidade de incorporação de negros no seu processo de geração de riqueza, sobretudo, da lucratividade que a potência negra, com as oportunidades certas, pode gerar. Manuais, letramentos raciais ou constrangimento moral são os principais métodos e, ao fim, a filantropia dos ricos e poderosos diante da miséria negra parece bastar - desde que os influencers e a representatividade negra cheguem ao topo. A desconsideração pela estrutura econômica que cria o topo, revela a incapacidade desse antirracismo cosmético sequer tensionar essa estrutura.

 

Nesse âmbito, o discurso do empreendedorismo e o seu incentivo pela mídia, pelas organizações do capital e pelo Estado, por exemplo, corresponde à incapacidade de criação de emprego com direitos e garantias, mas serve para ocultar a brutal superexploração e a continuidade de uma situação em que grande parte dos/as trabalhadores/as negros/as sempre esteve inserida: o trabalho por conta própria ou informal, ambos precários[1]. 

 

Também deve ser objeto de análise crítica o desdobramento dessa perspectiva no que tange à existência de um hiper foco na reivindicação de políticas educacionais para a população negra. Estas evidentemente são absolutamente necessárias, devem ser ampliadas e fortalecidas, mas não podem ser vistas de maneira salvacionista, sob o risco de, diante dos seus limites, servir ao discurso moralizante, meritocrático e conservador típico do racismo à brasileira. O mero acesso à educação, sem mudanças políticas e econômicas estruturais, sem mesmo questionar a universidade e escolas existentes (e o sentido social das políticas de educação sob o capital), não pode ser capaz de impulsionar as transformações que necessitamos construir.

 

Moura (2014) já apreendia os dinamismos dessa perspectiva ao analisar as formas de comportamento predominantes no movimento negro metropolitano de São Paulo, os quais certamente se ampliaram muito nos últimos anos e ultrapassam aquele quadro. Partindo das observações desse autor, identificamos que também na atualidade há uma seleção de valores reivindicativos e a apreensão dos elementos étnico-raciais manifesta por parte expressiva dos movimentos, lideranças e personalidades, reflete os anseios de uma classe média negra letrada na reivindicação da igualdade étnica. Embora suas reivindicações apresentem-se como generalizantes, o que informa sobre a disputa no direcionamento do debate racial, alheiam-se dos profundos problemas enfrentados pela enorme maioria negra pauperizada.

 

Além de Moura (2014), Haider (2019) nos ajuda a compreender as armadilhas decorrentes dessa perspectiva, que tem hegemonizado o debate no Brasil, embora não seja nova. As políticas identitárias são parte das respostas dadas pela classe dominante às demandas por igualdade racial. Expressam a sua agilidade no cooptação e encaminhamento de uma das mais profundas contradições da sociedade colonial-imperialista quando aquelas demandas tornam-se pulsantes e ganham força no terreno político. Nesse sentido, tais políticas correspondem à própria lógica de reprodução do capital, partindo dos discursos que convencem os/as trabalhadores/as negros/as da possibilidade de se integrarem nessa sociedade, alcançar o seu topo, como se em algum momento da história desse país, a vida e o trabalho e a morte das pessoas negras tenham deixado de ser central à reprodução dessa lógica; como se a hierarquização racial não fosse um mecanismo fundamental à engrenagem da superexploração para a acumulação de capital.

 

Uma segunda perspectiva, que se manifesta mais nos espaços acadêmicos e desdobra-se para os movimentos sociais, aqui amplamente nomeada de ‘culturalista’. Nesta é notório a reivindicação de um afrocentrismo de maneira identitária e essencialista, a qual aparece como negação do eurocentrismo. Essa negação, certamente fundamental à crítica ao colonialismo, no entanto, se dá de maneira superficial e fragmentada, de modo que a compreensão das relações forjadas pelo chamado Ocidente e impostas para o resto do mundo, são reduzidas à cultura e às epistemologias.  

 

Prevalece nesse campo a ideia de que a classe não explica a raça, uma vez que a teoria das classes sociais, formulada pelo marxismo seria eurocêntrica. E crítica ao eurocentrismo reduzida à cultura esvazia a crítica ao colonialismo na sua amplitude- siamês do imperialismo, fincado em bases militares, bombardeios no Terceiro Mundo e na pilhagem dos recursos naturais etc. Assim, não alcança a complexidade dos problemas e dilemas vividos pelas populações racializadas no mundo tal qual ele é: capitalista, dividido em classes, que cria e recria métodos coloniais de dominação e que precisa ser combatido levando em conta esses processos.

 

O idealismo que se desdobra dessas discussões as faz escorregar por concepções metafísicas de negritude, na homogeneização da Diáspora e na reivindicação de uma África a-histórica e idílica (pois sequer coloca em análise as contradições reais vivenciadas pelos povos africanos sob as garras do neocolonialismo/imperialismo).  E o essencialismo aí gestado, ao fim, assemelha-se aos mesmos princípios ideológicos que criaram a ideia de raça e a impuseram como mecanismo de dominação.

 

Desse modo, além de redundar no liberalismo apontado anteriormente, resulta no conservadorismo moral que, diante da impossibilidade de enfrentar as desigualdades raciais, cria e admite métricas e critérios na definição de quem pode ou não ser negro no Brasil. A incorporação de discussões sobre colorismo, pardismo etc, são expressões disso, com a total desconsideração dos elementos históricos e estruturais que particularizam o racismo e as relações raciais no Brasil, tão amplamente discutido por intelectuais como Clovis Moura, Lélia Gonzalez e outros inseridos na fundação do Movimento Negro Unificado na década de 1970.

 

Aliás, vê-se nessa tendência uma situação já identificada e alertada por Lélia Gonzalez (2020) na década de 1980: “Continuamos passivos em face da postura político ideológica da potência imperialisticamente dominante da região: os Estados Unidos [...]” (Gonzalez, 2020, p. 121), de onde importamos perspectivas teóricas e políticas, que, se são válidas para explicar as relações raciais naquele território, não necessariamente podem ser incorporadas automaticamente à realidade brasileira. E o debate superficial e tiktokezado dessas questões, sem qualquer amparo teórico apenas abre espaços para controvérsias que desgastam e enfraquecem a militância negra, envolta em discussões superficiais e desconectados das questões cotidianas enfrentadas pela população negra em sua luta diária para existir. Nesse sentido, ressalto as considerações de Almeida (2019) de que “[...] no fim das contas, a identidade desconectada das questões estruturais, a raça sem a classe, as pautas por liberdade desconectadas dos reclamos por transformações econômicas e políticas nos tornam presas fáceis do sistema” (Almeida, 2019, p. 190). 

 

A terceira é aquela que, de modo abrangente, podemos denominar como perspectiva crítica. O cerne dessa definição está na indissociabilidade entre raça e classe, antirracismo e anticapitalismo. Para esta perspectiva, a crítica da econômica política é fundamental e segue na esteira de grandes intelectuais e políticos cuja práxis política revolucionária contra o colonialismo e o racismo encontraram no materialismo histórico-dialético as ferramentas teóricas necessárias para desvendar a realidade a ser transformada nas periferias capitalistas.

 

Considerar a relação de intelectuais periféricos, sobretudo negros, negras e indígenas com o marxismo requer considerarmos que o marxismo é uma ciência viva, em construção, portanto, também perpassada pelas mesmas disputas inscritas nas relações socio-raciais e sexuais, portanto, também há marxismos em disputa, como aponta Farias (2017).  Portanto, as bases teóricas e políticas marxistas que observam a indissociabilidade entre raça e classe, para além de Marx, vem de intelectuais que, ao buscarem as múltiplas determinações das realidades particulares, manifestas em seus territórios africanos, asiáticos, latino-americanos e caribenhos e mesmo norte-americanos[2], tanto explicitaram a validade do marxismo fora da Europa, como ampliaram e enriqueceram as suas elaborações.

 

A interpretação marxista do racismo nos ajuda a entender que a batalha das ideias[3] nesse debate, além de epistemologias ou meras narrativas, são disputas políticas por projetos societários, pela construção, ou não, de mecanismos de tensionamento e transformação da sociedade que cria e recria o racismo. É este um campo de batalhas complexo e heterogêneo, no qual estão em oposição os interesses políticos e econômicos capitalistas contra os dos dominados e explorados; assim como confrontam-se, também, interesses diversos no bojo dos próprios movimentos de resistência, sob os distintos direcionamentos políticos que os atravessa (Souza, 2021).

 

2.      Teoria e método para o debate do racismo: as contribuições marxistas latino-americanas e caribenhas

 

Neste item, considerando a amplitude das discussões que poderiam ser desenvolvidas e a importância delas, pretendi sintetizar debates gerais que expressem a teoria e o método para o debate do racismo numa perspectiva de totalidade. Com base nas contribuições marxistas latino-americanas e caribenhas, apresentarei cinco dimensões de análise que considero centrais ao debate, sem pretender esgotá-las ou nelas reduzir a complexidade da discussão em tela.

 

2.1. A riqueza teórica do marxismo desenvolvido na América Latina e Caribe

 

No contexto latino-americano e caribenho, as análises mais frutíferas sobre as particularidades do capitalismo nesta região foram desenvolvidas no âmbito da teoria social marxista. Muitas dessas análises trazem mediações para a compreensão da particularidade da formação social fundada pelo escravismo colonial, da relação contraditória entre capital e trabalho que se desenvolve sob tais fundamentos e o papel da economia dessa região na dinâmica global da acumulação de capital; outras dedicaram-se mais a decifrar as relações de dominação necessárias à reprodução do capital na região, dando-nos elementos para explicar o racismo, o sexismo, a questão agrária, indígena e ambiental. Referenciamos dentre tais contribuições (devidamente apresentadas em outros trabalhos) intelectuais como José Carlos Mariátegui, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Agustin Cueva, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, assim como os caribenhos CLR James, Walter Rodney, Lloyd Best, dentre outros[4].

 

O elemento fundamental que conecta as suas elaborações, muito amplas e diversas entre si, e as tornam essenciais para desvendarmos a relação entre o racismo e a luta de classes é a análise da formação social e econômica latino-americana e caribenha, considerando o desenvolvimento desigual do capitalismo e as relações colonialistas/imperialistas em voga. Demonstram que desenvolvimento e subdesenvolvimento são faces da mesma moeda e que, a partir das relações desiguais forjadas desde a invasão colonial e o modo de produção por ela estabelecido, restou às nossas economias a subalternidade aos interesses imperialistas. A dependência estrutural, advinda da continuidade das relações colonialistas, engendra mecanismos sui generis de extração de valor, manifestos na superexploração da força de trabalho, na marginalização da maioria dos processos mais dinâmicos da economia, na perenidade da questão agrária e na criação do racismo como mecanismo de dominação e justificativa ideológica às desigualdades produzidas por esse processo (Souza, 2020)

 

É considerando a amplitude dessas elaborações, baseadas no método marxista, que podemos tomá-las para analisar a concretude do racismo e suas múltiplas dimensões. Ou seja, colocar as relações raciais em revista para além das suas manifestações imediatas e fragmentadas, cuja violência e brutalidade, abertas ou veladas, estão enraizadas no ordenamento social necessário à produção e reprodução do capital, em particular na América Latina e Caribe, onde a desigualdade é historicamente exacerbada e afeta desproporcionalmente a parcela negra e indígena da população.

 

A apropriação desse campo teórico para explicar as relações raciais fornece elementos fundamentais para a compreensão de que o racismo, sendo fruto do processo que cria as bases do capitalismo - o colonialismo e a escravidão - se complexifica e se transforma ao longo da trajetória das relações desiguais de produção e reprodução do capital, tendo, essencialmente, a função de mistificar estas mesmas relações (Souza, 2021). Assim, a premissa é de que as relações raciais e suas manifestações não podem ser apreendidas apartadas da lógica da acumulação capitalista com seu desenvolvimento desigual e combinado e sua sociabilidade colonialista e imperialista.

 

Mais importante, expressa-se nas elaborações desses(as) intelectuais a necessidade de nos debruçarmos sobre as particularidades da América Latina e do Caribe, desvendarmos a suas complexas determinações e formularmos respostas as necessidades próprias de cada território.

 

2.2.             A diversidade da classe trabalhadora no Brasil e a indissociabilidade entre exploração e dominação de classes, o racismo e o sexismo

 

Tomando por referência as contribuições assinaladas anteriormente, desvendar a situação contemporânea da classe trabalhadora brasileira, em particular a da sua parcela negra, requer a apreensão da formação sócio-histórica e econômica que emerge com o escravismo colonial e transita para um capitalismo dependente sem grandes rupturas com a estrutura desigual originária, ao contrário, que a fortalece e solidifica.

 

Sob a dialética da dependência (Marini, 2011) negros e indígenas ocupam a larga franja marginal de expropriados sempre em crescimento, dada a dinâmica de permanente expulsão da força de trabalho do processo produtivo (Moura, 2021; Gonzalez, 2020). Expulsão que, no entanto, ao retirar a maioria negra do centro direto da produção de riquezas, estabelece mecanismos de organização dos despossuídos face ao mercado de trabalho para garantir o funcionamento da dinâmica econômica assentada na superexploração (Souza, 2020).

 

E é em vistas da necessidade de organização social, diante de um sistema que espalha a violência e a brutalidade, e alimenta-se da desigualdade econômica e política, que devemos entender como as classes dominantes criam e recriam mecanismos de dominação da classe trabalhadora. Para essa classe, nem mesmo a liberdade e as igualdades formais, mediadas pelo mercado e pelo direito burguês, puderam se desenvolver em plenitude (Osório, 2014; Fernandes, 2006), o racismo e o sexismo são criados e recriados como mecanismos de dominação fundamentais, como já explicitaram nossas referências nesse debate, como Clóvis Moura (2021) e Lélia Gonzalez (2020) (Souza, 2020; 2023).

 

Na sua diversidade, a classe trabalhadora brasileira contemporânea é branca, indígena, amarela e, majoritariamente, negra; do campo e da cidade; dos centros supostamente mais desenvolvidos e dos rincões do Brasil profundo. Mas nessa diversidade há uma hierarquização racial, baseada no preconceito de cor, que determina também as diversas formas de inserção ao mercado de trabalho: formal, informal, precarizado, subempregado...; determina, portanto, que a parcela negra dessa classe esteja nas piores condições de trabalho, de vida e de morte. Sendo que as mulheres são ainda submetidas pela desigualdade de gênero, numa sociedade patriarcal que faz com que as mulheres negras ocupem os piores lugares na divisão sócio-racial e sexual do trabalho. Divisão esta que ainda é dinamizada pelas desigualdades regionais e territoriais.

 

Em vistas do Método, entendo, por exemplo, que colocar em evidência a condição de superexploração e subalternização das mulheres negras não é, e não pode ser, uma redução a uma questão específica ou uma fragmentação identitária. No Brasil, as mulheres negras, são submetidas às mais complexas formas de superexploração e dominação, as quais expressam as profundas contradições dessa sociabilidade regida pela exploração de classe, pelo racismo e pelo sexismo. No movimento analítico, partir do concreto ao abstrato, do singular ao universal, da aparência imediata à essência das determinações históricas da realidade social, econômica e política das mulheres negras na sociedade brasileira fornece precisas sínteses das múltiplas determinações que engendram a existência da classe trabalhadora na sua totalidade diversa e contraditória. E isso, a meu ver, é dar de fato movimento na realidade ao método proposto por Marx (2008).

 

Em outros termos, a partir da consideração sobre as determinações de raça e sexo, ao mirarmos a singularidade das mulheres negras, na mediação com os processos globais de reprodução do capital, podemos enxergar com maior profundidade a complexidade dos processos de dominação impostos ao conjunto da classe trabalhadora. Este é um caminho que nos leva tanto à raiz do problema a ser enfrentado pelo conjunto da classe, como pode revelar a potência na luta daquelas que constroem o país, que carregam nas costas expressiva parte do fardo da reprodução social[5] e que nada tem a perder diante de uma sociedade que lhes exige muito e lhes nega tudo, como bem provocou Lélia Gonzalez (2020).

 

2.3.             A memória histórica das lutas da classe trabalhadora estilhaçada pela dominação colonial e os entraves à própria classe trabalhadora no reconhecimento dos processos que lhes são constitutivos.

 

Para falar sobre luta de classes na América Latina, tomando as contribuições elencadas, mostra-se imprescindível colocarmos em análise o memoricídio (Baéz, 2010), manifesto na destruição sistemática da memória-história das lutas e resistências de negros e indígenas por liberdade e igualdade, tanto durante o escravismo colonial, quanto sob o capitalismo dependente. Este tem sido um mecanismo de mistificação dos processos históricos e de alienação do conjunto da classe trabalhadora a respeito da sua própria trajetória, que coloca como heróis nacionais os vencedores da classe dominante e como anti-heróis aqueles que deram suas vidas na luta por liberdade e justiça, desde as invasões coloniais (Moura, 1994). Tal sistemática de apagamentos engendrada e alimentada pela ideologia da branquitude, que fragmenta a compreensão da história da classe trabalhadora e, reiteradamente, invisibiliza a contribuição de negros e indígenas na construção dessa sociedade. Contribuição que não se reduz ao campo cultural, dando-se, sobretudo, na produção da riqueza apropriada privadamente pelo capital (Moura, 2023; Souza, 2023).

 

No Brasil são amplos os mecanismos de mistificação da atuação social dos sujeitos que fazem a sua história. Forjou-se hegemonicamente uma narrativa que tanto invisibiliza a presença dos negros e indígenas na construção da Nação, quanto fetichiza a participação daqueles considerados brancos nesse processo, atribuindo-lhes a competência pelo progresso e desenvolvimento, para os quais, supostamente, os outros seriam incapazes. Na historiografia dominante sobre a classe trabalhadora brasileira, a elaboração da ideia de superioridade do trabalhador branco se dá no mesmo processo de desmoralização e invisibilidade da memória-história e presença incontornável dos negros e indígenas (Gorender, 2016; Kowarik, 2019; Moura, 2023). 

 

Nesse sentido, a atenção à teoria da luta de classes, em vistas das particularidades da sua formação nesse território é uma chave de análise fundamental à compreensão da complexidade da alienação e dominação ideológica que a classe trabalhadora como um todo vem sendo submetida pelos donatários do poder, por meio dos seus aparelhos de dominação cultural, educacional, midiático etc. Entender como as relações engendradas no seio do escravismo colonial produz para o capitalismo dependente uma classe trabalhadora livre cindida pela histórica invenção das raças humanas e pela hierarquização racial é indispensável à própria classe trabalhadora para o reconhecimento de quem são seus reais inimigos e qual alternativa se construirá coletivamente para derrotá-lo.

 

2.4.            A questão agrária segue pulsante como contradição central no capitalismo dependente e incide nas condições de vida e morte da classe trabalhadora, sobretudo da sua parcela negra e indígena.

 

Outra dimensão fundamental à análise das relações raciais e da situação social e econômica da população negra e indígena é o fato de que condição dependente determina a função da terra, assim como a superexploração e a dominação dos/as trabalhadores/as, em conformidade com os interesses dominantes (Marini, 2011; Traspadini, 2022; Souza, 2020). Diante disso, é de suma relevância ao debate a relação entre o racismo e a propriedade privada monopolista da terra. Afinal, quem são, majoritariamente, os sem terras e os sem tetos desse país? Quem são os submetidos à fome, à subnutrição e aos adoecimentos decorrentes do não acesso adequado à alimentação, num país que tem recordes anuais de produção agrícola e pecuária, cuja classe dominante se vangloria de ser o celeiro no mundo? Quem são os que mais sofrem as consequências da crise climática, ambiental e social que escancara os limites da espoliação da natureza?

 

Colocar tais questionamentos no cerne do debate racial no Brasil é fundamental para se chegar na função que a racialização exerce na naturalização da sociedade destrutiva criada pela ideia de desenvolvimento e progresso sob o capitalismo. E não é possível fazer lutas antirracistas sem questionar o modelo de produção de riquezas que resulta em tanta devastação, impondo o monopólio privado da terra e a submissão das suas riquezas naturais à produção mercantil e à acumulação do capital.

 

No Brasil, quanto mais se aprofunda a crise do capital, mais as classes dominantes - sintetizadas no agronegócio - explicitam o seu poder pelo domínio da terra e dos bens naturais, tendo como consequência a concentração de riqueza, a superexploração, a marginalização da maioria das pessoas dos processos econômicos, sociais e políticos (Traspadini, 2022; Stedile, 2013; Souza 2020).

 

O agronegócio, que nas suas diferentes formas, desde a plantation, comanda esse país desde a sua fundação, esfrega o seu poderio na cara do povo trabalhador todos os dias e nos convence de que sem essa matriz produtiva não há saídas. Vemos cotidianamente a propaganda do agro é pop, agro é tudo, as notícias sobre o crescimento exorbitante da produção agrícola, sobre os novos recordes das safras e da exportação. A fome, as tragédias ambientais, os conflitos fundiários[6] e o aprofundamento da violência contra os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e lutadores pelo direito à terra, são o resultado desse projeto político-econômico. São a opção pela defesa de uma estrutura produtiva guiada pelos interesses do mercado internacional que pauta às economias latino-americanas serem sequestradas para a exportação de commodities.

 

A concentração fundiária[7], cujas raízes foram firmadas desde a Lei da Terra de 1850, tem na sua contraface o crescente número sem terras e sem tetos. Estes, majoritariamente negros, escancaram as consequências das escolhas da classe dominantes na defesa dos seus próprios interesses como se fossem de toda a Nação, como afirma Fernandes (2006). E diante de tais interesses, à imensa maioria da classe trabalhadora é impelida a viver com menos do que necessita, sempre comprimida entre os preços dos alimentos e dos aluguéis. 

 

Pensar a realidade da população negra e indígena exige ter em vista os processos que enchem as mãos e os bolsos dos proprietários privados de grandes latifúndios e construtoras; daqueles que determinam o destino das fontes diretas de riquezas naturais e da força de trabalho barata; daqueles que realizam um projeto de sociedade que mantém à margem a imensa maioria das gentes deste território. 

Ontem e hoje, o monopólio da terra e a reprodução do racismo como arma ideológica de dominação colocam à luta de classes mecanismos particulares de dominação e da exploração dos trabalhadores pelo capital, sendo que, para a parcela negra e indígena, rebaixada moral, social, psicológica e economicamente, os impactos são ainda mais profundos (Souza, 2020).

 

2.5.        A importância da teoria marxista na crítica do Estado e do direito para a elucidação da correlação de forças que se coloca na luta antirracista e anticapitalista.

 

Outro aspecto fundamental que a teoria crítica marxista nos coloca para o debate racial é a análise do Estado e o entendimento do seu sentido e significado face às relações sociais capitalistas. Essa crítica é fundamental para a elucidação dos limites da perspectiva de que a ocupação das instituições de poder é suficiente para a modificação da estrutura de dominação que mata pessoas negras e indígenas diuturnamente nesse país; ou de que via institucionalização das demandas dessa população encontraremos as saídas à perpetuação do racismo. Se tais processos se fazem necessários, diante da realidade que se apresenta, não reconhecer seus limites e suas contradições é cair na armadilha sempre posta pela classe dominante por meio dos seus aparelhos de dominação.

 

A crítica marxista do Estado e do direito nos ajuda a compreender o caráter de classe desse Estado, e por conseguinte das diversas dimensões da sua atuação na sociedade, assim como elucida a relação entre Estado e racismo face a luta de classes (Almeida, 2019; Oliveira, 2021). O Estado burguês, em particular na sua constituição sob o capitalismo dependente latino-americano, segundo Jaime Osório (2014), só pode garantir sua legitimidade a partir de fortes mecanismos de coerção e sua principal função é a garantir a da superexploração dos trabalhadores e gestar a harmonia social – sobretudo por meio da violência - em sociedades de trabalhadores miseráveis e esgotados prematuramente. 

 

Para os despossuídos e desempregados, sem terras, sem teto, sem direitos, entendidos como inimigos da ordem e do progresso, as políticas de controle da pobreza revelam-se como controle ou eliminação dos pobres e formam parte das ações cotidianas desses Estados, sendo negros, indígenas e periféricos o alvo principal (Almeida, 2015; Serra, 2009). Nisso vale ressaltar que, diante das enormes fraturas sociais geradas pela dependência, o racismo, a elaboração de negros/as e indígenas como o outro, como o cidadão de segunda classe, atua para a naturalização e normalização da violência institucionalizada[8] (Moura, 2021).

 

Sob a dominação neoliberal, que expressa a radicalização da pilhagem da riqueza socialmente produzida pelo capital em crise, a destruição dos parcos direitos trabalhistas acessados historicamente apenas por uma parcela dos brasileiros acena para um momento em que o capital parece dispensar consensos, e a classe trabalhadora necessita reformular seu embate. A rapina é descaradamente institucionalizada e reaviva as formas mais perversas de relações sociais, nas quais o ódio e a violência se voltam de forma direta contra negros/as e indígenas. Isso se expressa no aceleramento do genocídio e do encarceramento da juventude pobre e negra, passando pela inferiorização, desumanização e negação do indígena e do direito que este tem às suas próprias terras e redunda nas chacinas e exacerbação de diversos conflitos nas periferias urbanas e no campo.

 

Em síntese, os conflitos sociais em toda a América latina contemporânea são a reiteração dos seus lastros históricos e o controle desses   conflitos passa pelo domínio da terra, do território, da corporeidade e subjetividade da sua gente, papel exercido fundamentalmente pelos Estados e suas instituições. Esta é uma consideração fundamental para a compreensão da correlação de forças postas para a luta antirracista e anticapitalista, que não podem colocar como horizonte final conquistas políticas institucionais, dentro do ordenamento burguês dos Estados nacionais. Se essas são imprescindíveis, é preciso ter em vistas os seus limites e contradições, na busca por ultrapassá-los.

 

Conclusão

 

Ao observar o debate contemporâneo sobre o racismo no Brasil, insisto que há uma disputa ideológica manifesta nas diversas interpretações em voga e revela-se a hegemonia de debates incapazes de superar a aparência dos fenômenos. Devemos comemorar o fato de que hoje no Brasil a denúncia ao mito da democracia racial e o reconhecimento da existência do racismo é uma realidade que começa a se concretizar. Por outro lado, desmanchando-se no ar do liberalismo pós-moderno, a aparente solidez que esse debate ganhou nos últimos anos vai sendo corroída pelas contradições colocadas por aquelas disputas. E o deslocamento da relação classe e raça na análise do racismo no Brasil é a mais expressiva.

 

A perspectiva aqui posta é a de que não podemos deslocar a análise da realidade e dizer das misérias e opressões que vivem as pessoas negras e indígenas no Brasil sem remeter à história do trabalho e da classe trabalhadora, sem identificar nos processos de superexploração e no monopólio privado da terra, na economia dependente e na subordinação imperialista as suas raízes.

 

A submissão das respostas à desigualdade racial aos mecanismos liberais burgueses, em vez de impulsionar processos de emancipação, aprofundam a fetichização da pobreza e da racialização das relações sociais e mistificam os mecanismos brutais de superexploração, que afeta desigualmente a parcela negra e indígena da classe trabalhadora que, historicamente, segue inserida na precariedade do trabalho, na informalidade, na ausência de proteção social etc.

 

Hoje o maior desafio da classe trabalhadora é recuperar suas forças críticas e coletivas no terreno político, avançar contra as múltiplas camadas de dominação ideológica,  alienação e fragmentação. É preciso ir além da política da representatividade e construir espaços políticos de participação ampla e efetiva, que possibilitem recolocar em cena o desejo da superação do capitalismo e da estrutura racista e sexista que o sustenta. Face tal desafio, não há dúvidas em afirmar que a luta antirracista deve ser radicalmente anticapitalista e vice-versa. Em vista disso, é inegável a importância do materialismo histórico-dialético à essa análise, sobretudo considerando as contribuições ao seu desenvolvimento dadas pela práxis teórica e política dos mais importantes intelectuais anticoloniais e antirracistas, como os mencionados nesse texto.

 

 

 

Referências

 

Almeida, M. da S. Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do capitalismo. Revista Em Pauta: Teoria Social E Realidade contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, 2015. Doi: 10.12957/rep.2014.15086. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/15086. Acesso em: 9 jul. 2024.

 

Almeida, S. O que é racismo estrutural?  São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

 

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Cristiane Luiza Sabino SOUZA

Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Mestre em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta no Departamento de Serviço Social da UFSC e membro do Instituto de Estudos Latino-americanos (IELA/UFSC). Pesquisa sobre lutas de classes na América Latina, questão racial e questão agrária.

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*  © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024. Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.

[1] A informalidade do trabalho, no capitalismo dependente, é uma tendência histórica, e expressa inviabilização do direito social à proteção ao trabalho face à extrema pilhagem da riqueza produzida pelos/as trabalhadores/as, mas expressa também a dinâmica da luta de classes e a subordinação total da classe trabalhadora aos ditames do mercado. De acordo com a publicação online da Agência de Notícias do IBGE (Pessoas..., 2022, não paginado), “[...] a desocupação, a subutilização e a informalidade continuam atingindo mais pretos e pardos do que os brancos. Em 2021, as taxas de desocupação foram de 11,3% para os brancos, de 16,5% para os pretos e de 16,2% para os pardos. No ano anterior, esses percentuais foram de 11,1%, 17,4% e 15,5%, respectivamente”. Os dados da PNAD/IBGE do primeiro trimestre de 2024 reafirma essa realidade, mostrando que a taxa de desocupação por cor ou raça ficou abaixo da média nacional para os brancos (6,2%) e acima para os pretos (9,7%) e pardos (9,1%). (PNAD..., 2024, não paginado).

[2] É muito ampla a lista de intelectuais negros(as) marxistas nos diferentes continentes e contextos, que atuaram politicamente seja nas lutas anticoloniais, na crítica ao subdesenvolvimento e na luta revolucionária, seja nas lutas por direitos civis, dentre outras.  Para citar alguns: Amilcar Cabral, Kwame NKruma; CLR James, Walter Rodney, Frantz Fanon; José Calos Mariátegui, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Angela Davis, Claudia Jones...

[3] Nesse campo de batalhas, a Revista Jacobina, Edição n. 7 de 2023 traz excelentes contribuições de intelectuais críticos(as) contemporâneos à análise das relações raça e classe no Brasil.

[4] A obra Marxismo Negro: Pensamento descolonizador do Caribe Anglófono, de Daniel Montañes Pico (2024) recentemente lançada no Brasil pela Editora Dandara, apresenta um interessante panorama sobre o pensamento de alguns desses intelectuais.

[5] Um importante elemento para desvendar a relação entre a superexploração no capitalismo dependente brasileiro e as determinações articuladas pelo sexismo e pelo racismo para o funcionamento dessa economia, é o trabalho doméstico remunerado. Correspondente a quase 6% de toda a força de trabalho empregada, pode revelar a dinâmica da reprodução social sob o capitalismo dependente, no qual o rebaixamento dos salários abaixo do necessário para a reprodução da força de trabalho, cujos custos, realizados pelo trabalho doméstico (remunerado ainda mais abaixo do necessário) são em parte transferidos, majoritariamente, para as mulheres negras. Compreender a superexploração da força de trabalho e as engrenagens que possibilitam que a acumulação ocorra a partir dela, exige que coloquemos em revista esse elemento, investigando as suas múltiplas dimensões tão naturalizadas no país (Souza; Santos, 2023).

[6] De acordo com a publicação Conflitos no campo Brasil 2023, da Comissão Pastoral da Terra (Conflitos..., 2024) no ano de 2023, registrou-se um total de 2.203 conflitos, com 31 assassinatos, sendo 14 indígenas, 9 sem-terra, 4 posseiros, 3 quilombolas e 1 funcionário público. 950.847 pessoas envolvidas em conflitos, numa abrangência de 59.442.784 hectares de terras. Se considerada a série histórica dos últimos 10 anos, 2023 foi o ano com o maior número de conflitos, à frente de 2020, primeiro ano da pandemia de COVID-19 e que havia registrado 2.130 conflitos (o ano com o menor registro de conflitos nessa década, foi 2015, com 1.380).

[7] O Brasil tem 45% do total das suas terras nas mãos de 1% dos proprietários (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). A distribuição desigual da terra expressa-se na identificação de cor/raça dos proprietários. De acordo com o Censo Agro 2017, cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores declarados como brancos, proporção maior que a dos estabelecimentos com produtores pardos (42,6%), pretos (7,8%), indígenas (0,8%) e amarelos (0,6%). Mas isso é bem mais complexo quando se observa os tamanhos das propriedades: se os estabelecimentos com área total de até 71,5% dos proprietários eram negros, nos estabelecimentos com mais de 500 hectares, 72,2% dos produtores proprietários são brancos. Naqueles com área acima de 10 mil hectares, 79% dos proprietários eram brancos e apenas 18,9% negros (pretos ou pardos). O Censo de 2020 indica, por sua vez, que o número de imóveis vazios no país alcançou 11 milhões, um aumento de 87% em relação ao levantamento de 2010 e representa quase o dobro do número de pessoas sem moradia, que em 2022 era de 6 milhões.

[8] Isso se explicita, por exemplo, pela violência policial ou pelo encarceramento da juventude negra. O Brasil possui a 3º maior população carcerária do mundo, mais de 900 mil pessoas presas, sendo mais de 60% eram jovens negros. Além disso, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023), no ano de 2020, 78,9% das vítimas letais em decorrência de intervenções policiais eram negras, 30% com idade entre 18 e 24 anos, exatamente jovens que não encontram lugar no mercado de trabalho formal e tampouco políticas de proteção social.