http://10.47456/argumentum.v17.2025.44981
Ética profissional e os labirintos da precarização: desafios e resistências no trabalho de assistentes sociais
Professional ethics and the labyrinth of precarisation: challenges and resistance in the work of Social Workers
Anderson da Silva FAGUNDES
https://orcid.org/0000-0002-7455-5071
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Área do Conhecimento de Humanidades.
Curso de Serviço Social, Caxias do Sul, RS, Brasil.
e-mail: anderson.fagundes@outlook.com
Tatiana REIDEL
https://orcid.org/0000-0002-8590-3836
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana. Departamento de Serviço Social. Porto Alegre, RS, Brasil.
Bolsista Produtividade CNPQ.
e-mail: tatyreidel@gmail.com
Resumo: Neste artigo, analisa-se a ética profissional de assistentes sociais frente à precarização do trabalho, com base em pesquisa bibliográfica e empírica realizada com 168 profissionais no Rio Grande do Sul. Os resultados revelam a reatualização do conservadorismo no cotidiano profissional, influenciado por processos de alienação, adoecimento e intensificação da exploração. Identifica-se, contudo, a existência de resistências individuais e coletivas como estratégias ético-políticas. O estudo evidencia o paradoxo entre a adesão formal ao projeto ético-político e a persistência de valores conservadores de cunho pessoal. Conclui-se pela necessidade de superação da alienação, fortalecimento da ética profissional como mediação crítica entre condições objetivas e ação profissional, reafirmando seu caráter histórico, coletivo e emancipatório.
Palavras-chave: Ética Profissional. Precarização do Trabalho. Serviço Social.
Abstract: This article analyses the professional ethics of social workers in the context of labour precarisation based on bibliographic and empirical research conducted with 168 professionals in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. The findings reveal a resurgence of conservatism in everyday professional practice, shaped by processes of alienation, sickness, and intensified exploitation. Against this background, the study identifies ethical-political strategies as both individual and collective forms of resistance. It highlights the paradox between the formal adherence to the ethical-political project and the persistence of conservative personal values. The study concludes by emphasising the need to overcome alienation and to strengthen professional ethics as a critical mediation between objective conditions and professional action, reaffirming its historical, collective, and emancipatory character.
Keywords: Professional ethics. Labour precarisation. Social service.
1 INTRODUÇÃO
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efletir sobre o trabalho de assistentes sociais sob a ótica da ética profissional é essencial à defesa do projeto ético-político do Serviço Social. Nesse horizonte, as múltiplas expressões da precarização da vida e das relações laborais não se apresentam dissociadas do trabalho profissional; ao contrário, entrelaçam-se em seu cotidiano, demandando uma apreensão crítica da realidade social que ultrapasse as aparências.
O trabalho, enquanto categoria ontológica, fundamenta os valores sociais e ocupa posição central na reflexão ética. A análise crítica da ética profissional demanda a retomada de seus fundamentos ontológicos, ancorados nas categorias de ser social, práxis e liberdade. A ética refere-se a escolhas conscientes mediadas pelas condições concretas de vida e de trabalho. Bonfim (2011) destaca que, ao abordar a ética a partir da ontologia do ser social, torna-se possível distinguir ética e moral, situando esta última como expressão histórico-social. Assim, a ética se concretiza nas relações sociais em torno da produção da vida material, com o trabalho como elemento central.
A consciência das contradições inerentes à sociabilidade capitalista é fundamental para o reconhecimento da categoria profissional como parte da classe trabalhadora e de sua inserção na divisão do trabalho. Nesse sentido, compreender essa posição é essencial para analisar os impactos dos processos de precarização na consolidação – ou no distanciamento – dos valores ético-políticos que orientam a profissão. A efetivação da ética profissional, portanto, está intrinsecamente vinculada à direção social da profissão e à luta por direitos sociais, articulando-se com o projeto ético-político (Netto, 2008; Barroco, 2010; Brites; Barroco, 2022). Trata-se de uma perspectiva que reforça a necessidade de compreender a ética profissional articulada às determinações socioeconômicas e às condições de trabalho.
Os valores éticos que norteiam o Serviço Social brasileiro estão expressos no Código de Ética Profissional de 1993, articulado à Lei nº 8.662/1993 e às Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996), conformando os fundamentos do projeto profissional crítico e hegemônico. No entanto, a materialização dessa direção é constantemente tensionada pela intensificação da precarização do trabalho. A lógica da polivalência e da multifuncionalidade molda competências conforme as exigências do mercado, e aprofunda a exploração da força de trabalho, a flexibilização dos contratos e a regressão de direitos historicamente conquistados (Antunes, 2012). Tal cenário é sustentado por valores excludentes da moralidade burguesa e por uma racionalidade conservadora, que reafirma costumes e tradições opressoras (Barroco, 2015).
As novas morfologias do trabalho no Serviço Social (Raichelis, 2018), conformadas em um contexto de crise estrutural do capital e incorporadas aos modelos de gestão, intensificam o processo de exploração e colocam novos desafios ético-políticos à profissão. Soma-se a isso a instituição de marcos jurídicos que legitimam formas precarizadas de inserção laboral – como a terceirização, o teletrabalho, o trabalho intermitente e os vínculos autônomos – amplamente difundidas em escala global.
Behring (2008) analisa a contrarreforma neoliberal como reconfiguração do Estado em favor do capital, desestruturando políticas públicas e comprometendo direitos sociais. No Serviço Social, tal lógica impacta a organização do trabalho e das políticas sociais, agora orientadas pelo mercado. Observa-se a transferência de responsabilidades estatais ao setor privado e ao terceiro setor, com políticas focalizadas, seletivas e restritivas (Corrêa; Reidel, 2021).
Diante desse cenário, torna-se urgente problematizar o trabalho profissional sob a perspectiva ética, reconhecendo os limites impostos pela sociabilidade capitalista. Tal necessidade se intensifica frente à ascensão de discursos e práticas moralizantes, expressão do atual conservadorismo, os quais, conforme analisam Cisne, Cantalice e Araújo (2020), expressam um caráter contrarrevolucionário e de sustentação da ordem.
Este artigo, com base em pesquisa bibliográfica e empírica, analisa as expressões da ética profissional no cotidiano de assistentes sociais, discutindo os desafios e as possibilidades de efetivação do projeto ético-político em meio à intensificação da precarização da vida e do trabalho.
2 O PERCURSO METODOLÓGICO E A CARACTERIZAÇÃO IDENTITÁRIA DE ASSISTENTES SOCIAIS PARTICIPANTES
Este estudo se fundamenta no método materialista histórico-dialético, articulando pesquisa bibliográfica e empírica com abordagem mista e caráter exploratório-descritivo. A revisão bibliográfica (2017-2021) abrangeu produções com descritores “ética” e “ética profissional” nas bases SciELO e nos periódicos Serviço Social & Sociedade e Katálysis, além dos anais do XVI ENPESS (2018) e XVI CBAS (2019), revelando que a temática representa menos de 3% da produção científica.
A etapa empírica considerou o universo de 9.461 assistentes sociais inscritos e ativos no CRESS-RS em 2021. Com critérios estatísticos (heterogeneidade de 50%, margem de erro de 5% e intervalo de confiança de 80%), definiu-se uma amostra representativa composta por 168 profissionais (P1 a P168), distribuídos em 69 municípios.
Quanto à formação acadêmica, 89,3% dos profissionais graduaram-se em cursos presenciais, enquanto 10,7% concluíram a graduação na modalidade a distância, ofertada no Rio Grande do Sul desde 2007. Em relação à formação continuada, 80,4% possuem pós-graduação (62,5% lato sensu e 17,9% stricto sensu). A maioria das(os) participantes tem entre 25 e 50 anos.
Em termos de identidade de gênero, 91,7% (n = 154) são mulheres[1], 5,4% (n = 9) são homens cisgêneros e 3% (n = 5) optaram por não declarar. Sobre a orientação sexual, 88,1% (n = 148) se identificam como heterossexuais, 4,8% (n = 8) como bissexuais, 3,6% (n = 6) preferiram não informar, 2,4% (n = 4) se identificam como lésbicas ou gays e 1,2% (n = 2) se identificam como pansexuais.
A história do Serviço Social no Brasil revela sua constituição como profissão majoritariamente feminina, associada ao cuidado historicamente atribuído às mulheres. Segundo Iamamoto e Carvalho (2007), a escolha pelo Serviço Social foi ligada à vocação e ao amor ao próximo – atributos socialmente vinculados ao feminino –, o que contribuiu para um baixo status social e desvalorização salarial. Cisne e Santos (2018) apontam que a profissão está imersa nas relações sociais de sexo, pois o Serviço Social está inserido não apenas na divisão sociotécnica, mas também sexual do trabalho, atravessado por demandas e expectativas oriundas de uma sociedade cis-hétero-patriarcal e racista.
A divisão do trabalho, que restringiu o papel das mulheres na produção e na vida pública, persiste nas condições de trabalho do Serviço Social. No estudo, observou-se que 54,2% (n = 91) das participantes eram responsáveis pelo cuidado de pessoas em seus lares, corroborando com a análise de Dorna (2021), que evidencia a desigualdade de gênero e a violência simbólica do patriarcado no capitalismo.
Entre as/os participantes, 76,8% se autodeclaram brancas, em contraste com o dado nacional que aponta 50,34% de assistentes sociais negras/os (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2022). Tal disparidade evidencia a importância de considerar a interseccionalidade entre raça, classe e gênero na análise das condições de inserção profissional.
Nesse contexto, torna-se imprescindível aprofundar o debate sobre as relações étnico-raciais e o enfrentamento ao racismo estrutural, compreendendo essas dimensões como centrais à formação e ao trabalho profissional crítico. Elpidio et al. (2025) assinalam que, diante do avanço de forças regressivas e neoconservadoras, a profissão é tensionada em um campo de disputas, o que exige a intensificação do debate crítico sobre a questão social, as desigualdades étnico-raciais, o racismo, a eugenia e o machismo patriarcal/sexismo, compreendidos como desafios estruturais da luta de classes no contexto histórico contemporâneo.
Os dados empíricos revelam que 75% das/os profissionais atuam no setor público, sobretudo nas políticas de Assistência Social (49,9%), Saúde (23,8%) e Educação (7,7%). A contratação predominante ocorre por concurso (57,7%), mas há expressiva presença de vínculos precários, como celetistas, autônomos e informais.
Na conjuntura atual, a precarização dos serviços públicos e a contrarreforma do Estado incidem diretamente sobre o trabalho profissional, exigindo uma abordagem multidimensional das trabalhadoras e trabalhadores. Tais processos evidenciam contradições entre a orientação social do trabalho e as exigências dos empregadores, em um cenário marcado pela intensificação da acumulação capitalista flexível, neoliberal, informatizada e informal, com acentuada exploração do trabalho (Reidel et al., 2022). Além disso, tais transformações no mercado de trabalho, incluindo no setor público, incentivam a individualização, a avaliação por metas de produtividade, a diferenciação salarial e a competição entre trabalhadores, enfraquecendo a mobilização coletiva (Raichelis; Arregui, 2021).
A maioria das profissionais (48,8%, n = 82) relatou receber entre 4 e 10 salários-mínimos, seguida por 37,5% (n = 63) com salários entre 2 e 4 salários-mínimos. Apenas 7,7% (n = 13) ganham até 2 salários-mínimos, 5,4% (n = 9) recebem entre 10 e 20 salários-mínimos, e 0,6% (n = 1) ultrapassam 20 salários-mínimos. Esses dados evidenciam a precarização do trabalho, com rebaixamento salarial e condições de mercado desfavoráveis. Como destaca Camargo (2021, p. 495), "[...] a profissão tem enfrentado as consequências da precarização do trabalho, compartilhada com a classe trabalhadora em diferentes instituições empregadoras". Profissionais com remuneração inferior a dois salários-mínimos atuam principalmente na assistência social privada, com vínculos celetistas, autônomos (RPA) ou informais, enquanto aqueles com salários mais elevados estão nas políticas públicas, como Saúde, Previdência, Sociojurídico e Segurança Pública, com vínculos estatutários.
Apresenta-se a seguir a análise acerca do trabalho profissional no Serviço Social, a partir de suas condições e relações de trabalho no contexto da precarização[2]. Outrossim, os rebatimentos, as possibilidades e os desafios da consolidação ética profissional nos distintos espaços sócio-ocupacionais também serão foco da discussão.
3 ÉTICA PROFISSIONAL E AS CONDIÇÕES DE TRABALHO: FUNDAMENTOS E DESAFIOS CONCRETOS
A ética profissional do Serviço Social brasileiro está alicerçada na teoria social crítica, em especial no pensamento marxiano, e tem como horizonte a emancipação humana e a justiça social. Conforme Barroco (2010), trata-se de uma ética fundamentada na liberdade, não como abstrata, mas como a capacidade de transformar a realidade por meio de escolhas conscientes e situadas historicamente.
Nessa perspectiva, o projeto ético-político profissional, segundo Netto (2008), não é um referencial normativo, mas a síntese de uma construção histórica da categoria, com uma escolha política de direção crítica e emancipatória, visando romper com a tradição conservadora e defendendo os direitos humanos, a liberdade, a democracia e a luta contra todas as formas de opressão.
A compreensão da ética deve ser pensada como mediação entre as condições sociais e as ações profissionais. Não há efetivação da ética profissional à margem da realidade concreta do trabalho. Discutir a ética profissional, portanto, envolve refletir sobre as condições e relações de trabalho que a desafiam. Ela se manifesta não apenas no dever-ser, mas nas contradições do cotidiano profissional, sendo impactada pela precarização, alienação, adoecimento e a reatualização do conservadorismo.
A apreensão dos fundamentos ético-políticos da profissão permite uma análise crítica sobre como a precarização das relações e condições de trabalho afeta diretamente a ética profissional. A intensificação da exploração do trabalho e a consequente precarização resultam na deterioração das condições de vida, o que Seligmann-Silva (2012) denomina como precarização de ordem ética.
A ética crítica, segundo Barroco (2010), é mediação entre esferas da vida social e atividade orientada à emancipação humana, manifestando-se pela moral, reflexão e ação ética, como exercício da liberdade. Indissociável da práxis política, a ética não se restringe a normas abstratas, mas está enraizada nas contradições históricas que atravessam o viver social, expressando-se nas escolhas, lutas e sentidos atribuídos à vida.
Com base nessa perspectiva, a moral – enquanto objeto da ética – deve ser situada em seu caráter sócio-histórico, como um conjunto de normas que regula as relações entre indivíduos. Essas regras são determinadas pelas concepções histórico-sociais que as conformam. A ética, nesse processo, abre caminho para a crítica e a transformação, desvelando os sentidos das normas e a possibilidade de superação das formas alienadas da vida.
A ética constitui um campo teórico amplo, voltado à compreensão dos fundamentos da ação humana, dos valores morais e das normativas que orientam os modos de ser no contexto das relações sociais. A práxis ética, nesse sentido, refere-se às ações humanas historicamente determinadas, fruto da objetivação realizada pelos sujeitos sociais (Lukács, 2013).
Com base na concepção de ética e na orientação da profissão, indagou-se às/aos respondentes sobre a centralidade do trabalho e da ética no Serviço Social. Os dados revelam consenso significativo: 97% concordam totalmente e 3% parcialmente com essa centralidade. Quando questionadas/os sobre a possível restrição da ética profissional ao Código de Ética, 32,7% (n = 55) discordam totalmente, 29,8% (n = 50) discordam, 17,9% (n = 30) concordam, 11,3% (n = 19) mostraram-se indiferentes e 8,3% (n = 14) concordam totalmente. Tais dados denotam a permanência de compreensões normativas e formalistas, expressando as disputas ideológicas que atravessam o Serviço Social.
Ao se abordar a capacidade de efetivar a dimensão ética da profissão mesmo diante de conflitos entre valores pessoais e profissionais, os dados revelam um quadro heterogêneo: 31,5% (n = 53) concordam totalmente e 26,8% (n = 45) concordam; por outro lado, 21,4% (n = 36) discordam, 12,5% (n = 21) discordam totalmente e 7,7% (n = 13) mostram-se indiferentes. A distribuição das respostas evidencia tensões na incorporação da direção ético-política do projeto profissional, revelando um paradoxo: embora amplamente reconhecida como central, a efetivação dessa dimensão parece, em parte, fragilizada pela mediação entre convicções pessoais e princípios profissionais.
Esse cenário pode indicar uma adesão formal ou parcial ao projeto ético-político, sugerindo que sua apropriação crítica ainda não é plenamente consolidada entre as/os profissionais. Tal realidade se insere em um contexto mais amplo, marcado pelo avanço de perspectivas neoconservadoras e reacionárias na sociedade. Essas correntes tendem a negligenciar a análise crítica da realidade e sua dimensão ontológica, limitando-se a abordagens epistemológicas e ideológicas desvinculadas da totalidade social (Closs; Reidel; Corrêa, 2021).
Nesse sentido, a efetivação da ética profissional exige mais do que adesão normativa: pressupõe o enraizamento teórico-prático de seus fundamentos e a disposição para confrontar contradições históricas, ideológicas e subjetivas, afirmando a ética como mediação entre projeto profissional e emancipação humana.
Os dados sobre a concordância entre valores éticos pessoais e profissionais demonstram que 72,6% (n = 122) concordam totalmente, 25,6% (n = 43) concordam, 1,2% (n = 2) são indiferentes, e 0,6% (n = 1) discordam. Algumas falas revelam uma influência neoconservadora, ligada à moralidade burguesa, que permeia o cotidiano profissional e molda o trabalho profissional, mesmo em graus distintos, como se pode observar no seguinte relato:
[...] aparentemente seguimos uma linha de pensamento/paradigma hegemônico, mesmo as correntes teóricas ao diferirem em alguns aspectos, de modo geral, se alinham nos objetivos finais, me parecem caminhos diferentes para um mesmo propósito. Ocorre que tenho a impressão de que elementos que fogem à regra do que social histórico e coletivamente tem se firmado como "norte/caminho/paradigma" para o agir profissional, pode ser, na verdade, uma forma velada de engessar o pensamento e, consequentemente, o agir profissional dos assistentes sociais, bem como a reprodução histórica dessa "corrente filosófica" garante sua "manutenção" evitando, talvez, seu questionamento/dissolução/aprimoramento (P19).
Neste ponto, é importante ressaltar que os projetos profissionais não são estáticos, pois acompanham as dinâmicas do real e se ajustam às exigências da realidade, sempre a partir de uma perspectiva teórico-política. Contudo, como apontado por Netto (2008), os corpos profissionais são espaços de tensões e lutas. Dessa forma, a afirmação de um projeto profissional não elimina as divergências.
Nos relatos, é evidente a tensão e o conflito na profissão, com segmentos que defendem alternativas ao projeto hegemônico e contestam os valores éticos da profissão, ainda que de forma sutil. Um exemplo disso é a fala de uma participante que, embora compreenda as novas configurações familiares, adota um posicionamento conservador, resistindo a práticas e valores que considera incompatíveis, o que exemplifica a tensão entre ética profissional e crenças pessoais:
Entendo as novas configurações familiares e respeito, mas não concordo com todas elas. Todas as pessoas vivem, atuam como lhes convêm e não devo intervir, mas não significa que concorde (P44).
A consolidação do projeto profissional abrange componentes diversos, incluindo preceitos imperativos e indicativos (Netto, 2008). É possível inferir, a partir da análise dos dados, uma disparidade em relação aos valores e aos princípios fundamentais expressos no Código de Ética de 1993. Isso evidencia disputas e tensões no âmbito do Serviço Social, especialmente devido à expressão e à defesa de valores conservadores no exercício da profissão.
Considerando que a profissão está intrinsecamente ligada às relações sociais e não é um fim em si mesma, faz-se evidente na realidade brasileira uma série de investidas conservadoras no Serviço Social. Isso inclui a adesão à ideologia neoconservadora e pós-moderna, a desvalorização dos fundamentos históricos e teórico-metodológicos que sustentam a formação e o trabalho profissional, a redução do trabalho profissional às prescrições dos manuais das políticas sociais em detrimento da direção social e estratégica da profissão, além do tecnicismo que busca construir um perfil profissional jurídico-normativo e neutro (Cisne; Cantalice; Araújo, 2020).
Embora o Serviço Social tenha conquistado avanços, não se observa a superação do conservadorismo dentro da categoria, sendo que ele se constitui como força fundamental na reprodução do capital, sempre presente e exercendo papel central na sustentação da sociedade capitalista.
3.3 ESTRATÉGIAS ÉTICAS DE ENFRENTAMENTO E RESISTÊNCIAS
No que diz respeito ao enfrentamento dos desafios éticos vivenciados no trabalho profissional, os dados evidenciam que a maioria das estratégias adotadas pelas assistentes sociais articula dimensões individuais e coletivas (59,5%), enquanto 28% optam por estratégias exclusivamente coletivas e 7,1% por estratégias individuais. Apenas 5,4% não indicam alternativas. Esses dados apontam para a centralidade da mediação entre as dimensões subjetivas e objetivas, evidenciando que a superação dos impasses ético-políticos exige a construção de práticas ancoradas na coletividade e na crítica social.
Nesse contexto, a participação em espaços coletivos – como conselhos profissionais, fóruns, frentes de luta, sindicatos, movimentos sociais e grupos de pesquisa e extensão – mostra-se fundamental para o fortalecimento ético-político da profissão. Tais espaços promovem a construção de estratégias de resistência e o fortalecimento da consciência crítica e da solidariedade entre trabalhadores. Como destacam Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010), os enfrentamentos coletivos às adversidades ampliam a capacidade de resistência e mobilizam sujeitos em torno de propósitos comuns.
A participação da categoria profissional em espaços político-organizativos constitui um aspecto relevante na conformação de estratégias de resistência. Verifica-se que 67,9% das pessoas respondentes (n = 114) estão inseridas em algum espaço de articulação coletiva, enquanto 32,1% (n = 54) não participam de nenhuma instância desse tipo. Essa realidade evidencia a urgência de ampliar e fortalecer a presença da categoria em espaços coletivos de enfrentamento às determinações do capital e às expressões da questão social.
A organização política, nesse sentido, não se apresenta como um aspecto acessório ou voluntarista, mas como uma necessidade histórica da classe trabalhadora diante das formas de exploração, dominação e alienação que estruturam o modo de produção capitalista. A inserção ativa em movimentos sociais, partidos políticos, entidades sindicais e conselhos profissionais constitui parte da construção de um projeto societário contra-hegemônico, capaz de denunciar a superexploração do trabalho, a precarização da vida e os processos de desumanização que se aprofundam na contemporaneidade. Como aponta Raichelis (2011), a organização coletiva mantém-se como uma estratégia concreta de resistência às investidas neoliberais, que operam no sentido de fragmentar, individualizar e enfraquecer os vínculos de solidariedade entre os trabalhadores.
Dessa forma, a adesão consciente e crítica a espaços político-organizativos deve ser compreendida como parte da práxis profissional comprometida com a transformação social. Para o Serviço Social, essa dimensão implica reforçar o vínculo com o projeto ético-político da profissão. Tal compromisso requer, necessariamente, a recusa da neutralidade e o engajamento ativo nas lutas coletivas, superando o isolamento e reafirmando a centralidade da ação política na direção da emancipação humana.
3.4 A INTENSIFICAÇÃO DA PRECARIZAÇÃO NO TRABALHO E SUA INCIDÊNCIA NOS DESAFIOS ÉTICOS
A precarização, como processo histórico e multidimensional, ultrapassa a esfera econômica e atinge a subjetividade e a vida cotidiana. Sob a lógica do capital, estratégias como gestão por desempenho, intensificação do ritmo de trabalho e vigilância permanente impõem controle, gerando insegurança, individualismo e fragmentação dos coletivos. Esses mecanismos desestabilizam as condições materiais de trabalho e afetam a saúde mental, promovendo sentimentos de impotência, desvalorização e culpa.
Como analisa Santos (2010), a inserção no trabalho, no contexto da mundialização do capital, acentua a alienação e transforma as relações sociais em mercadoria. Os desafios éticos, como demonstrado nas respostas do estudo, impactam diretamente o cotidiano profissional, mobilizando estratégias de enfrentamento e gerando sobrecarga física e emocional.
A Tabela 1 sintetiza 739 registros de precarização, os quais evidenciam desafios como gestão conservadora, falta de recursos, alta carga de trabalho e relações conflitivas, com impacto direto nas condições e nas intervenções profissionais.
Tabela 1 - Precarizações vivenciadas no trabalho
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|
Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
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Gestores com valores conservadores |
107 |
14,4 |
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Falta de recursos humanos |
95 |
12,8 |
|
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Falta de recursos financeiros |
77 |
10,4 |
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Alta carga de trabalho |
57 |
7,7 |
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Relações de trabalho conflituosas |
56 |
7,5 |
|
|
Falta de autonomia no trabalho |
56 |
7,5 |
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Não compartilhamento da tomada de decisões |
55 |
7,4 |
|
|
Falta de condições físicas |
55 |
7,4 |
|
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Baixa remuneração |
53 |
7,1 |
|
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Gestão hierárquica |
53 |
7,1 |
|
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Baixa satisfação no trabalho |
34 |
4,6 |
|
|
Instabilidade no trabalho |
23 |
3,1 |
|
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Vínculo com instituições religiosas |
17 |
2,3 |
|
|
Não identifica |
1 |
0,1 |
|
|
Total |
739 |
100,0 |
|
Fonte: Fagundes (2022, p. 105).
Como aponta Seligmann-Silva (2012), os efeitos da precarização impactam o processo saúde-doença, marcados por relações de poder assimétricas. A autora também destaca a precarização de ordem ética, que ela chama de apagão ético, evidenciado por meio do rompimento dos laços de confiança, radicalização da competição individual e do desaparecimento da solidariedade. Para uma compreensão crítica dessa realidade, é necessário fortalecer a resistência ético-política, por meio de estratégias coletivas de enfrentamento às imposições do capital.
Os achados da pesquisa que subsidiam este artigo possibilitam visibilizar a realidade de trabalhadores assistentes sociais em meio a precarização, insegurança e instabilidade. Os dados também apresentam de que modo esta condição pode enfraquecer os laços de solidariedade e cooperação entre a categoria, incentivando a competição e o individualismo, na contramão dos princípios éticos defendidos pela profissão.
As respostas apresentadas demonstram a sobreposição de dimensões objetivas e subjetivas, o que revela a complexidade dos sentidos atribuídos ao trabalho na atualidade. Além de afetar a saúde mental das/dos profissionais – com relatos que envolvem sofrimento psíquico, sentimento de impotência, exaustão e desvalorização –, os desafios éticos também mobilizam a busca por estratégias de enfrentamento, tanto individuais quanto coletivas, como expresso na Tabela 2.
Tabela 2 - Desafios éticos e impactos no cotidiano do trabalho
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Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
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Impactos na saúde mental |
100 |
35,2 |
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Me motivam para a busca de superação dos desafios éticos |
70 |
24,6 |
|
|
Sentimento de incompetência |
69 |
24,2 |
|
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Me causam insegurança para lidar com os desafios éticos |
32 |
11,2 |
|
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Não me afetam |
8 |
2,8 |
|
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Outros |
4 |
1,4 |
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Não identifico |
1 |
0,3 |
|
|
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Total |
284 |
100,0 |
Fonte: Fagundes (2022, p. 107).
A precarização das relações e condições de trabalho tem promovido um desgaste contínuo, tanto físico quanto mental, diretamente relacionado às assimetrias de poder que incidem sobre o processo produtivo e sobre os sujeitos que nele atuam. Essa correlação desigual mobiliza forças que atravessam o campo biopsicossocial da saúde-doença, e que produzem sofrimento e adoecimento no interior da lógica laboral (Seligmann-Silva, 2012).
Nas respostas, uma expressiva parcela das e dos participantes relatou impactos significativos na saúde mental, o que indica sinais de esgotamento e sofrimento ético-político. Tais efeitos comprometem a razão social do trabalho – sua dimensão ontológica e emancipatória – e contribuem para a perda de sentido do trabalho profissional (Franco; Druck; Seligmann-Silva, 2010). Esse fenômeno, marcado por medo, incerteza e desesperança, extrapola o plano individual e reflete tendências estruturais que atingem amplamente a classe trabalhadora.
Assistentes sociais, nos diversos espaços sócio-ocupacionais, estão inseridos em um cenário marcado pelas tendências estruturais do mercado de trabalho contemporâneo, como a flexibilização, desregulamentação e desterritorialização, que intensificam a precarização e a exploração do trabalho. No entanto, essa realidade assume contornos ainda mais intensos na profissão, dado o enfrentamento cotidiano com as múltiplas expressões da questão social, materializadas em violações de direitos, desigualdades e violências (Santos, 2010). Essa conjuntura repercute diretamente na saúde física e mental dos profissionais, fragilizando as condições de trabalho e influenciando as formas de objetivação e subjetivação no exercício profissional (Raichelis, 2011).
A flexibilização, ao exigir adaptação constante e polivalência, pode levar ao empobrecimento da identidade profissional e à perda do sentido do trabalho. Isso pode gerar conflitos éticos para o/a trabalhador/a, que se vê obrigado/a a realizar tarefas que não correspondem a seus valores ou a renunciar à sua qualificação e experiência. Nardi (2006) analisa como esses conflitos éticos afetam a subjetividade do/a trabalhador/a, gerando sofrimento, angústia e dilemas morais. Assim, a intensificação do trabalho, com metas inatingíveis e ritmo acelerado, pode levar à fragilização orgânica, existencial e identitária dos/as trabalhadores/as, o que pode implicar em desrespeito aos limites humanos, sobrecarga física e mental e desconsideração pela dignidade do trabalhador. Tais condições se relacionam com a ética profissional, uma vez que levam a sentimentos de injustiça e revolta e, em alguns casos, à adoção de comportamentos antiéticos justificados como forma de sobrevivência.
A intensificação das expressões da questão social e a precarização das condições de trabalho aprofundam os desafios ético-políticos, tensionando a implementação do projeto profissional. Nesse cenário, os dilemas éticos, embora gerem sofrimento e impotência, também impulsionam estratégias de resistência, tanto individuais quanto coletivas. Trata-se de uma dinâmica dialética, onde o compromisso com os direitos sociais e a emancipação se articula ao desalento diante da ausência de mediações estruturais para enfrentar as determinações da desigualdade e da pobreza (Raichelis, 2011).
As principais dificuldades relatadas referem-se a condições objetivas e subjetivas de trabalho, como alta demanda, escassez de recursos, restrições à autonomia e desvalorização profissional. Tais fatores se agravam pelas tensões com a gestão, pelas políticas de austeridade, pela retirada de direitos e pelo avanço de pautas neoconservadoras nos espaços sócio-ocupacionais.
Esses elementos refletem processos institucionais e estruturais que impactam, de forma gradual, a natureza interventiva e relacional da profissão, historicamente comprometida com os setores subalternizados. Ao lidar com as expressões da questão social, o Serviço Social vivencia o enfraquecimento das ações voltadas aos segmentos populares e da dimensão socioeducativa crítica, dificultando a concretização de práticas voltadas à transformação social e à emancipação humana (Raichelis, 2013).
Observa-se nos dados, ainda, sentimentos de desrespeito e subalternização da profissão, evidenciados por 14,1% (n = 25) das/os respondentes, que apontam ofensivas à imagem profissional, baixa valorização e disparidades salariais, como ilustram os relatos: “[...] sensação de sobrecarga, pois profissionais de outras áreas não sabem o que o assistente social faz [...]” (P133); “Baixa remuneração, pouco ou nenhum incentivo para aperfeiçoamento profissional [...]” (P35); “Ser vista como instrumento de controle” (P66). Também são mencionadas dificuldades para a realização do trabalho, como falta de autonomia e exigências incompatíveis com as atribuições profissionais, como aponta uma participante: “centralização na concessão de benefícios eventuais em detrimento do saber técnico profissional; gestão limita duração do tempo de atendimento” (P130).
Os achados da pesquisa permitem inferências sobre o impacto desses processos no cotidiano de vida e trabalho de assistentes sociais. As afirmações apresentadas evidenciam como a condição de assalariamento, a subordinação à rígida divisão social do trabalho e a disciplina burocrática fazem parte da vida dessas trabalhadoras e, por isso, expressam sua inserção em processos alienantes. Para Bonfim (2011), essas relações impedem, portanto, as pessoas de terem consciência da sua genericidade, ou seja, o fato de não reconhecerem o produto de seu trabalho como parte de uma produção coletiva, que possibilita a engrenagem da vida material e espiritual, os impede de ter consciência dos seres genéricos que são, com consciência da espécie a que pertencem.
Identifica-se desafios nas relações de trabalho, marcadas por conflitos, hierarquização e lógica de competitividade, que geram dificuldades de afirmação técnica nas equipes. A predominância de certos saberes e profissões contribui para a dificuldade em propor reflexões críticas e estratégias de resistência, como revelam os relatos: “[...] divergências de ideologias com segmentos presentes no contexto institucional [...]” (P141); “Me posicionar diante da equipe quando o pensamento da maioria segue a lógica da benesse e assistencialismo” (P19).
Percebe-se nestes dados os desafios da superação de uma perspectiva de ética tradicional, ou conservadora, que se baseia na aceitação acrítica de valores socialmente legitimados, transmitidos por instituições como família e religião. Os dados também exprimem uma intenção de ruptura com a ética liberal, que se fundamenta na autonomia individual e na racionalidade, para a vivência de uma perspectiva ética crítica, de base marxista, que sustenta o projeto ético-político da profissão, compreendida como construção histórica e social, na qual os sujeitos coletivos são capazes de desenvolver consciência crítica para transformar a realidade.
Outra dificuldade mencionada é a “[...] precarização das políticas públicas, que culmina na desvalorização do trabalhador [...]” (P153), os processos de recrudescimento do Estado, a perda de direitos trabalhistas e o conservadorismo no âmbito das políticas sociais: “Gestores que não valorizam e inviabilizam o trabalho do Serviço Social. Dinâmica institucional violadora em que se banalizam violações. Profissionais, de diferentes categorias, institucionalizados e punitivos” (P123).
A alienação se manifesta em diferentes níveis, com respondentes relatando não se reconhecerem no que produzem. Impactos subjetivos incluem sentimentos de incompetência, falta de compreensão sobre o alcance do trabalho, responsabilização da população usuária e descrença em mudanças, dificultando a formulação de estratégias. No estudo, 24,2% (n = 69) dos participantes relataram sentir-se incompetentes, como exemplifica a fala: “[...] há o sentimento de incompetência profissionalmente, de impotência” (P125).
Mesmo tendo nitidez de que a categoria profissional faz parte de uma sociedade alienante, sua negação é possível. Segundo Mészáros (2006), a única forma de acabar com a alienação é pela própria atividade humana autoconsciente. Nesta esteira, verifica-se que a reflexão ética é o caminho para avaliar constantemente ações, preconceitos, compromissos e relações com usuários e profissionais, pois a atividade alienada não produz somente a alienação, mas também a consciência de ser alienado (Mészáros, 2006).
Bonfim (2011) propõe uma reflexão sobre o dilema de vivenciar um projeto profissional orientado pela liberdade como princípio ético central, em contraste com um cotidiano de trabalho que a nega. Como afirma Mészáros (2006), o trabalho alienado constitui um obstáculo à realização da liberdade humana.
Dessa forma, os dados empíricos apresentados não podem ser interpretados isoladamente, mas à luz das mediações ético-políticas que conformam o trabalho profissional. A ética, ao se articular com as condições materiais do trabalho, revela os desafios e possibilidades da práxis profissional. Assim, reafirma-se a importância de pensar a ética como unidade dialética entre as dimensões objetiva e subjetiva, entre as determinações sociais e as escolhas conscientes que orientam a ação profissional.
Os valores éticos ganham legitimidade quando mediados por situações concretas da prática profissional. A ausência dessa mediação crítica e indissociável entre teoria e prática tende a produzir uma adesão superficial ao projeto ético-político, esvaziando-o de seu conteúdo transformador e restringindo-o a um formalismo normativo descolado das contradições que marcam o cotidiano de trabalho. Tal fenômeno distancia-se do cerne do ethos profissional e é indicativo da reatualização de posturas conservadoras no interior da profissão, que tensionam o compromisso com a emancipação humana e a defesa dos direitos sociais.
Os resultados do estudo indicam que os desafios éticos enfrentados cotidianamente por assistentes sociais não se reduzem a dilemas morais, mas expressam contradições sociais, desmonte de políticas públicas e precarização do trabalho. Esses desafios impactam a saúde mental e podem romper com a dimensão social do trabalho, gerando sentimentos de impotência, insegurança e perda de sentido. Tal ruptura compromete sua função mediadora na vida social. A ética, nesse contexto, não é neutra nem subjetiva, mas componente da luta de classes no exercício profissional, exigindo enfrentamento radical das condições que negam o trabalho digno e comprometido com os interesses da classe trabalhadora.
O aprofundamento das expressões da questão social, o crescimento exponencial das demandas institucionais e o atendimento de uma população marcada por múltiplas violações de direitos, somados à ausência de condições materiais e institucionais adequadas, agravam os dilemas éticos e impõem limites à materialização dos princípios do projeto profissional crítico. Contudo, é nesse mesmo cenário adverso que emergem estratégias de resistência, tanto individuais quanto coletivas, que expressam a recusa à lógica da barbárie e afirmam o compromisso com a dignidade humana, a justiça social e a radicalidade democrática.
Dessa forma, torna-se imperativo manter uma postura vigilante diante das reconfigurações do mundo do trabalho e das investidas conservadoras que tensionam o fazer profissional. A leitura crítica da totalidade social – contraditória, desigual e em constante movimento – é condição indispensável para a construção de ações ético-políticas que resistam às formas de dominação e que afirmem projetos societários fundados na igualdade substantiva. Como destacam Brites e Barroco (2022, p. 120), “[...] remar contra a maré, em termos éticos, significa não se omitir diante das violações de direitos, tampouco compactuar com práticas que reproduzem opressões, discriminações e injustiças.”
Por fim, reitera-se a relação da ética com a defesa da qualidade dos serviços prestados e com a valorização do trabalho profissional, indo além do simples cumprimento de deveres legais, comprometendo-se com princípios éticos do Serviço Social e orientando a atividade profissional numa perspectiva social e política. Assim, faz-se necessário manter o esforço contínuo de compreender a dimensão ética do trabalho profissional, numa perspectiva de totalidade, historicidade e movimento dialético, utilizando-a como uma lente crítica para questionar ações, preconceitos e formas de atendimento aos sujeitos. Ao decifrar e intervir na realidade concreta a partir dessa perspectiva, constrói-se a potência transformadora do Serviço Social, forjando os caminhos possíveis para uma nova sociabilidade, fundamentada na emancipação humana.
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Anderson da Silva Fagundes Trabalhou na concepção e delineamento do estudo; análise e interpretação dos dados; redação do artigo; revisão crítica e aprovação da versão final para publicação.
Assistente Social. Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto Alegre, Brasil). Especialista em Saúde da Criança pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA, Porto Alegre, Brasil). Docente do curso de Serviço Social da Universidade de Caxias do Sul (UCS, Caxias do Sul, Brasil).
Tatiana Reidel Trabalhou na concepção e delineamento do estudo; análise e interpretação dos dados; redação do artigo; revisão crítica e aprovação da versão final para publicação.
Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS, Porto Alegre, Brasil). Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto Alegre, Brasil). Bolsista Produtividade CNPQ.
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Silvia Neves Salazar – Editora-chefe
Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora
Submetido em: 24/6/24. Revisado em: 22/4/2025. Aceito em: 9/7/2025.
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[1] Com destaque para a representação de mulher transgênero de 0,6% (n = 1).
[2] A precarização estrutural do trabalho se configura como elemento central dessa nova dinâmica trazida pelo regime de acumulação flexível, pois ela modifica a condição salarial estável a partir do desemprego estrutural, criando insegurança e instabilidade nos vínculos empregatícios, inserindo a classe trabalhadora – a partir do rebaixamento de salários em detrimento da intensificação do trabalho – em um modo de vida precário. Configurando-se como elemento central na dinâmica atual do capitalismo, a precarização estrutural é também uma estratégia de dominação. Druck (2011) afirma que essa dominação se dá “[...] principalmente na imposição de condições de trabalho e de empregos precários frente à permanente ameaça de desemprego estrutural criado pelo capitalismo. Afinal, ter qualquer emprego é melhor do que não ter nenhum” (Druck, 2011, p. 43).