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Crtica radical e antirracismo: um debate urgente
para o Servio Social brasileiro

 

Radical criticism and anti-racism: an urgent debate for Brazilian Social Services

 

Iara Vanessa Fraga de SANTANA*

Universidade Estadual do Cear, Curso de Servio Social, Centro de Estudos Sociais Aplicados,

Fortaleza, CE, Brasil.

E-mail: iara.santana@uece.br

Descrio: cone

Descrio gerada automaticamente https://orcid.org/0009-0001-3718-2739

 

Tales Willyan Fornazier MOREIRA

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Curso de Servio Social,

Departamento de Cincias Humanas e Sociais, Tefilo Otoni, MG, Brasil.

e-mail: taleswf@live.com

Descrio: cone

Descrio gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-9191-7820

 

Introduo

           

C

onforme evidenciado por Souza (2024)[1], h em curso no Brasil contemporneo uma intensa disputa poltica e terica em torno do debate das relaes tnico-raciais e do antirracismo, em que comparecem trs principais tendncias na disputa pela hegemonia do debate: i) a perspectiva liberal, a-crtica ao capital, calcada no individualismo e reprodutora da lgica da sociedade de classes, que aponta como sada para o racismo o empreendedorismo negro / afroempreendedorismo, a representatividade nos espaos de poder[2] e a construo de uma elite negra; ii) a de vis culturalista, puramente essencialista, que reivindica um afrocentrismo apartado das determinaes estruturais de classe como forma de negao ao eurocentrismo[3], clamando por uma frica a-histrica e idlica[4] e; iii) a perspectiva crtica, que tem como caracterstica central a relao estrutural entre raa-etnia e classe, antirracismo e anticapitalismo.

 

Frente a esse cenrio de disputas que se coloca nesse campo, reafirmar o mtodo e a perspectiva indissocivel entre classe e raa-etnia, antirracismo e anticapitalismo, condio sine qua non para avanarmos na crtica radical ao racismo e para a superao do capitalismo com todas suas opresses e violncias estruturais. Esta se refere a uma tarefa histrica que se coloca para ns de maneira central no tempo presente, cuja prpria dinmica da realidade e o movimento da histria nos convoca a realizarmos as necessrias costuras da vida[5] e construirmos mediaes no plano terico e poltico que mirem para um horizonte estratgico revolucionrio e humanamente emancipado. Em outros termos, mediaes que nos permitam construir uma sociedade anticapitalista, livre de explorao/opresso e desracializada[6].

 

Nesse movimento, urgente tambm reconhecermos as trajetrias dos povos indgenas e comunidades tradicionais que sobreviveram sculos de colonizao-escravido. Suas histrias, memrias e saberes historicamente expropriados e invisibilizados, podem tambm apontar caminhos possveis para o enfrentamento ao racismo. nos corpos-territrios desses povos que a ganncia pelo lucro capitalista encontra a fonte de riquezas desde o processo de acumulao primitiva at a atual fase de acumulao. E esse contexto gerador de diversas expresses da questo social, atravessa os variados espaos scio-ocupacionais do Servio Social, nos convidando, portanto, a conhecer essa realidade para transform-la.

 

As reflexes seguintes esto divididas em dois tpicos que evidenciam a necessidade de o Servio Social realizar as crticas e autocrticas necessrias para o real enfrentamento ao racismo. O primeiro realiza aproximaes iniciais sobre os territrios de povos indgenas e comunidades tradicionais, a partir da relao raa-etnia-territrio-luta de classes, enfatizando a necessidade de avanarmos na construo de conhecimentos para o exerccio profissional junto a esses territrios. O segundo trata do antirracismo no Servio Social, registrando os importantes avanos construdos pela profisso, em especial nos ltimos anos, mas tambm evidenciando os significativos desafios que ainda comparecem nesse campo e que urge superarmos, rumando a construo de uma sociedade sem racismo.

Dilogos desde os territrios de povos e comunidades tradicionais

 

Na cadncia acelerada deste tempo em que as relaes sociais constitutivas de racismo alcanaram reconhecimento, ocupando desde as prateleiras das corporaes mundiais at as bibliotecas comunitrias, h de se ter cautela.  Essas resultam dos sculos de movimentao do povo negro e indgena, que tem incio ainda nas expropriaes coloniais, seguida da travessia do atlntico. As revoltas, insurgncias, aquilombamentos e greves fincaram as razes dos movimentos negro e indgena na construo do antirracismo. Mesmo com a morte, o apagamento, o roubo e a apropriao da cincia produzida por esses povos, conseguiram ecoar alm-mar vestgios que subsidiaram as anlises em torno da questo tnico racial.

 

Essas se avolumaram nos marcos do movimento negro e indgena na segunda metade do sculo XX e possibilitaram ramificaes diversas que ora rompem, ora reproduzem as contradies da sociedade classes. E talvez, ou inclusive por isso, possvel encontrar nas fraes da classe trabalhadora, respostas para o enfrentamento ao racismo que se conectam com a multiplicidade dos nveis de alienao aos quais estamos imersos(as). A ttulo de exemplo, apesar de escassas, podemos observar candidaturas de indgenas alinhadas com a extrema direita que explicitamente declaram guerra aos territrios originrios. Ou, ainda, publicaes e projetos que enaltecem o poder de negros(as) mesmo que sejam alguns(mas) poucos(as) , que venceram e chegaram ao topo, via empreendedorismo e fora de vontade.

 

Nessa esteira, ocupamos o trecho advindo dos acmulos do Servio Social renovado, cujo mtodo [...] permanece mudando ou muda permanecendo (Bagli, 2006, p. 81). H de se evidenciar que as reprodues equivocadas de um marxismo ortodoxo no mbito do Servio Social brasileiro, retardaram a construo de uma prxis antirracista na profisso e ainda possvel  encontrarmos nos dias atuais anlises sob essas sombras.

 

Nesse processo de crtica e autocrtica levantamos: quem de ns durante a formao ouviu referncia primeira greve geral urbana de trabalhadores(as), ocorrida no ano de 1857, liderada por negros(as) de ganho? Ou, sobre a greve de jangadeiros em 1881, com a fundamental mobilizao de mulheres, que paralisou o transporte de negros(as) escravizados(as) dos navios negreiros para a terra? Ambas duraram semanas, desestabilizaram a economia de transio do escravismo para o capitalismo, mas no ganharam as folhas de leituras nas nossas graduaes.

 

Porm, como [...] no caminho da luz todo mundo preto [...][7] e [...] a viva contradio apresenta-se no novo que se constri, no velho que se destri e, sobretudo, naquilo que se reconstri, seja sobre novas ou antigas formas [...] (Bagli, 2006, p. 81), alinhamos essas reflexes a um exerccio coletivo de tessitura do enfrentamento ao racismo numa perspectiva da crtica radical sociabilidade capitalista que, por sua vez, tambm racista e patriarcal.

 

Ao girarmos as velas do barco, escolhemos rumar para o dilogo com a realidade antiga e atual dos povos indgenas e comunidades tradicionais, buscando identificar contribuies para a luta antirracista, pois so esses grupos populacionais que permanecem sendo os principais alvos da necessidade de lucratividade do capital.

 

No primeiro momento, de acumulao primitiva, as metrpoles europeias exploraram os bens da natureza que eram cultivados, zelados e socializados pelos povos originrios na latinoamrica.  chamada de primitiva [...] porque constitui a pr-histria do capital e do modo de produo que lhe corresponde (Marx, 2013, p. 514).

 

A princpio, os cercamentos e a expulso violenta das populaes camponesas no hemisfrio norte, depois o extermnio e escravizao das populaes originrias ao sul. Assim, os quase quatrocentos anos de escravido indgena e negra banhou de sangue e suor a histria deste pas. Por essa razo, [...] a transformao da frica [e Amrica Latina grifo nosso] numa reserva para a caa comercial de peles-negras caracteriza a aurora da era da produo capitalista. Esses processos idlicos constituem momentos fundamentais da acumulao primitiva (Marx, 2013, p. 533).

 

Digamos que essa juno riquezas naturais x povos originrios (sejam das Amricas ou da frica), foi fundamental para a formao da economia brasileira que vivemos hoje, reveladora da questo racial e agrria no resolvidas. Prado Jr. (1961) rompe com os escritos sobre o Brasil feudal e nos auxilia a compreender esse lugar do pas inserido na dominao da burguesia europeia. Apesar dos seus estudos terem como ponto de partida a chegada dos portugueses com suas estratgias de ocupao desconsiderando os povos que j se encontravam aqui , contribui para entendermos esse lugar do Brasil dependente e subalternizado.

 

Cultiva-se a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantar o algodo ou caf: simples oportunidade do momento, com vistas para um mercado exterior longnquo, um comrcio estvel e precrio sempre. [...] a colonizao no se orienta no sentido de constituir uma base econmica slida e orgnica, isto , a explorao racional e coerente dos recursos do territrio para satisfao das necessidades materiais da populao que nela habita (Prado Jr., 1961, p. 67).

 

O extrativismo, as grandes monoculturas nos sistemas de sesmarias, alterando a diversidade de algumas biomas brasileiros, bem como a minerao, so expresses do capitalismo que recria mtodos de colonizao (Souza, 2024). Ainda no que se refere as reflexes aqui tecidas sobre terra e territrios tnicos, tambm cabe destacar que Prado Jr. (1961) no reconhece a subalternizao das populaes racializadas negras e indgenas como essencial para a realizao desse projeto capitalista e patriarcal de extermnio. Ao contrrio, defende em seus escritos a tese da mestiagem, sugerindo inclusive em algumas passagens a superioridade e evoluo dos colonos europeus em detrimentos daqueles(as).

 

A outra funo do escravo, ou antes da mulher escrava, instrumento de satisfao das necessidades sexuais de seus senhores e dominadores, no tem um efeito menos elementar. No ultrapassar tambm o nvel primrio e puramente animal do contato sexual, no se aproximando seno muito remotamente da esfera propriamente humana do amor, em que o ato sexual se envolve de todo um complexo de emoes e sentimentos to amplos que chegam at a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem (Prado Jr., 1961, p. 115).

 

Em dilogo com esse autor, Gonzalez (1984) tece profundas crticas e nos convida a pensar um Brasil verdadeiramente dos de baixo, a partir de uma histria que no nega o estatuto de sujeito humano s populaes negras e indgenas. Tratados sempre como objetos. At mesmo como objeto de saber. por a que a gente compreende a resistncia de certas anlises que, ao insistirem na prioridade da luta de classes, se negam a incorporar as categorias de raa e sexo. Ou seja, insistem em esquec-las (Gonzalez, 1984, p. 232). Essa concepo equivocada que trata classe como mera abstrao e desconsidera sua diversidade, expresso daquele marxismo ortodoxo, que tambm racista e sexista.

 

Dito isso, oportuno destacar as expropriaes contemporneas na certeza de que [...] a violncia a parteira de toda a sociedade velha que est prenhe de uma sociedade nova (Marx, 2013, p. 821). Nesta fase do desenvolvimento veloz do capitalismo, em busca de recomposio das taxas de lucratividade a fim de sair de mais uma crise, os bens comuns da natureza tm sido a principal estratgia. A chamada destruio criativa da terra e de outros bens comuns como os minrios, a gua, o ar e at o sol, vem sendo fundamental para acumulao de capitais, haja vista serem meios de produo doados pela natureza e no demandarem grandes investimentos em capital constante (Harvey, 2011, p. 151).


Montanhas inteiras so cortadas ao meio medida que minerais so extrados, criando cicatrizes de pedreiras nas paisagens, com fluxos de resduos em crregos, rios e oceanos; a agricultura devasta o solo e, por centenas de quilmetros quadrados, florestas e matos so erradicados acidentalmente como resultado da ao humana, enquanto a queima das florestas na Amaznia, consequncia da ao voraz e ilegal de pecuaristas e produtores de soja, leva erosao da terra (Harvey, 2011, p.151).

 

Por estabelecerem uma relao diferenciada daquela com a natureza, esses bens comuns se encontram melhor mantidos nas terras e territrios dos povos e comunidades tradicionais e, por isso, esses voltam a ser os principais alvos de acumulao na contemporaneidade. De acordo com o Decreto 6.040/2007 (BRASIL, 2007)[8], essas populaes so constitudas por:

 

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e prticas gerados e transmitidos pela tradio; II - Territrios Tradicionais: os espaos necessrios a reproduo cultural, social e econmica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporria, observado, no que diz respeito aos povos indgenas e quilombolas, respectivamente, o que dispem os arts. 231 da Constituio e 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias e demais regulamentaes (Brasil, 2007, no paginado).

 

No esteio dos processos de resistncia desses povos e comunidades tradicionais, estes tambm conquistaram a criao do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), a partir do Decreto n 8.750, de 9 de maio de 2016 (BRASIL, 2016). Ocupam assento no CNPCT povos indgenas, quilombolas, ciganos, povos de terreiro de matriz africana, pescadores(as) artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiaras, faxinalenses, benzedeiros(as), raizeiros(as), geraizeiros(as), caatingueiros(as), vazanteiros(as), veredeiros(as), apanhadores(as) de flores sempre vivas, pantaneiros(as), ribeirinhos(as) e comunidades de fundos e fechos de pasto.

 

De acordo com o Relatrio sobre os Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) do ano de 2018, esses territrios vivenciam diversas violaes de direitos realizadas pelo capital com amparo do Estado. Resultante da realizao de misses em alguns dos territrios distribudos em todo o pas, o relatrio ao passo que visibiliza as particularidades do modo de vida desses povos e comunidades, a exemplo das prticas de sade realizadas por parteiras, benzedeiras e raizeiras, tambm denuncia a ameaa de continuidade de suas histrias.

 

A experincia de povos e comunidades tradicionais com seus territrios implicam tambm em um sentimento de pertencimento a um lugar, nutrido pela memria do seu processo de ocupao, incluindo eventos e pessoas de um passado comum; pelo apego paisagem em que nasceram e se criaram os membros da comunidade, ao longo de geraes; pela familiaridade adquirida com o lugar e cada um dos seus elementos materiais e simblicos (Brasil, 2018, p. 21).

 

H uma tendncia de os processos de expropriao alcanarem a vida em sua totalidade, alm da terra e do territrio (natureza fundiria), os bens de uso comum, a partir do trabalho e, por sua vez, o conhecimento produzido[9]. Esses processos incidem tambm sobre as relaes culturais, tradies, sobre conquistas sociais como o direito sade e educao, por exemplo, crescentemente privatizados (Fontes, 2010).

 

Kopenawa; Bruce (2015) nos faz recordar que o ensino sobre a demarcao das terras e dos territrios adveio do homem branco. Assim, [...] a demarcao, diviso de terra, traar fronteira costume de branco, no do ndio. Brasileiro ensinou a demarcar terra indgena, ento a gente passamos a lutar por isso (Kopenawa; Bruce, 2015, p. 36), destacando a juno questo racial e agrria.

 

O Mapa de Conflitos: Injustia Ambiental e Sade no Brasil da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgado em 2024, identificou 297 conflitos no ano de 2010 e, at o momento, somam-se 640 situaes de injustia ambiental que envolvem, principalmente, a violncia e expropriao dos megaprojetos do capital contra territrios de povos e comunidades tradicionais, ou de periferias e ocupaes urbanas. Tal realidade reafirma a leitura de totalidade e no recortada da diviso social e racial do trabalho, uma vez que a luta de classes no Brasil determinada tambm pela origem tnico-racial dos(das) trabalhadores(as) desde o incio. Portanto, so aquelas populaes com suas riquezas naturais[10] que permanecem sendo exploradas, evidenciando o racismo ambiental.

 

O Relatrio do Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), lanado em julho de 2024 com dados de 2023, anuncia as consequncias de quatro anos de governo anti-indgena e os poucos e lentos avanos do atual governo que criou o Ministrio dos Povos Indgenas. De acordo com o levantamento realizado, foi identificado a continuidade de altos ndices de violncia contra indgenas e a ocorrncia de muitos conflitos e invases aos territrios tradicionais. As expropriaes realizadas nesses territrios, tambm podem ser compreendidas a partir das contribuies de Pankararu (2022).

 

Esse cenrio deletrio no muda quando miramos os territrios quilombolas. Estudo recente realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e a Coordenao Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ) (Oviedo; Lima; Sousa, 2024) afirma que 98% dos quilombos reconhecidos (so 485) esto ameaados por obras de infraestrutura, requerimentos minerrios e por sobreposies de imveis particulares. A incidncia de obras de infraestrutura corresponde a 57,9% totalizando 286 territrios quilombolas, impactando 1.931.583,9 ha (Oviedo; Lima; Sousa, 2024).

 

Essa realidade se apresenta no cotidiano do trabalho das(os) assistentes sociais de diversas formas e nos variados espaos scio-ocupacionais, o que nos impe conhecer para transformar, necessariamente rompendo com prticas racistas.

 

Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, o pensamento deles que se mostra curso e obscuro. No consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. [...] por isso que suas palavras ficam to ruins e emaranhadas. No queremos mais ouvi-las. Para ns, a poltica outra coisa. So as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. So as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois so nossas mesmo. Os brancos no sonham to longe quanto ns. Dormem muito, mas s sonham consigo mesmos (Kopenawa; Bruce, 2015, p. 37).

 

Dialogar com o conhecimento produzido ancestralmente por indgenas, quilombolas, quebradeiras de cco, comunidades de fundo de pasto, de terreiro, pescadores(as) e tantas outras, pode ser uma das estratgias indispensveis para a construo de uma prxis radicalmente antirracista, a qual pressupe o enfrentamento ao capitalismo, considerando a relao entre terra-raa/etnia-classe.

 

O antirracismo no Servio Social brasileiro: rupturas e permanncias

 

No mbito do Servio Social brasileiro, o debate tnico-racial e do antirracismo tambm tem se colocado como uma das questes mais candentes nesta quadra histrica, haja vista todo o processo de construo em torno desse debate, protagonizado h dcadas por assistentes sociais negras e, em especial, pela centralidade que a discusso tem ganhado na agenda poltica das entidades profissionais, ampliando expressivamente o debate na categoria a partir dos meados da ltima dcada[11] (Moreira, 2024).

Cabe mencionar, desse modo, que as perspectivas terico-polticas em disputa presentes no interior dos movimentos antirracistas e da sociedade em geral, tambm encontram eco na profisso, sendo necessrio, portanto, apreender o Servio Social articulado ao movimento da histria (Iamamoto, 2019), uma vez que a dinmica do real incide diretamente nos processos de formao e trabalho profissional, no sendo possvel conceb-lo a partir de uma perspectiva ensimesmada, como se fosse uma ilha isolada da sociedade.

 

Considerando que a profisso e seus agentes so parte e expresso desse processo mais amplo, e que tambm comparece no debate da categoria perspectivas polticas e tericas diversas, esse cenrio nos exige ainda mais coerncia e radicalidade com o mtodo para a apreenso da realidade em uma perspectiva de totalidade histrica, recusando concepes liberais, conservadoras, antimarxistas, culturalistas, essencialistas e pautadas na poltica identitria[12]. imprescindvel, portanto, avanarmos nessa direo radical, sobremaneira, nesse momento estratgico de ampliao do debate na profisso, tendo em vista que:

 

Estamos em um cenrio decisivo em relao aos rumos do debate tnico-racial e do antirracismo na profisso, uma vez que a virada na agenda poltica das entidades contribuiu para um avano expressivo da discusso nos espaos de formao e trabalho profissional, mas, ao mesmo tempo, comparece nesse processo tanto movimentos de adeso formal, quanto de adeso real ao antirracismo. Exatamente por isso, compreendemos que nessa contradio tambm residem as possibilidades histricas de superao da adeso formal ao antirracismo, tendo como base os acmulos construdos pela profisso nesse campo (Moreira, 2024, p. 50).


Esse processo em curso de enraizamento do antirracismo na profisso, permeado de desafios e desencontros terico-polticos, deve impulsionar coletivamente a categoria profissional a avanar nesse debate, a partir dos seus fundamentos, at mesmo porque, sendo o racismo um elemento estrutural e ordenador da sociedade capitalista, ele no apenas uma expresso, mas determinao que estrutura a prpria questo social, portanto, condicionante de todas suas refraes (Assis, 2022).

 

Deste modo, sendo a questo social a razo de ser da profisso (Netto, 2001) e considerando a funcionalidade do racismo para o sistema de explorao/dominao capitalista, este no se trata de um debate temtico,  reduzido ao campo culturalista e identitrio ou, ainda, uma responsabilidade de pesquisadores(as), estudantes e militantes negros(as), indgenas e quilombolas, ao contrrio: avanar radicalmente nesse debate refere-se a um imperativo compromisso tico-poltico de todos(as) aqueles(as) que acreditam e se colocam na defesa intransigente da direo emancipatria do projeto tico-poltico.

 

Ao mesmo tempo que esse debate tem ganhado expressiva amplitude na profisso, ele continua sendo um ponto de tenso, disputas e falsos antagonismos, como se houvesse oposio entre raa-etnia e classe, antirracismo e anticapitalismo. Por isso, compreendemos que [...] ou a categoria profissional incorpora essa discusso, dando relevo ao tema a partir de uma perspectiva terico-crtica, ou deixar que esse debate seja realizado de forma a-histrica e descolada das mltiplas determinaes histricas e materiais (Rocha, 2014, p. 304).

 

Nesse nterim, cabe ressaltar que se h inmeros equvocos terico-polticos no que se refere s tendncias presentes no campo do antirracismo que disputam a hegemonia do debate tnico-racial, cujas sombras se alastram na profisso, na mesma medida, h de se reconhecer tambm os limites e desencontros histricos em relao a leitura do racismo que ocorreu no interior da esquerda marxista e que influenciou o Servio Social brasileiro.

 

Portanto, para a efetiva superao destes dilemas, tambm necessrio um permanente movimento de autocrtica por parte da profisso, pois, sob a influncia da esquerda marxista tradicional[13], o debate do racismo foi tratado por dcadas no Brasil (e reproduzido pelo Servio Social)[14] como algo de menor importncia, meramente identitrio, ps-moderno ou, ainda, como um desvio burgus que fragmenta a classe (Farias, 2017).

 

Desse modo, concordamos que:

 

Sem o mergulho na formao social concreta, as anlises de classes no Brasil imprimiram um racismo epistemolgico, ao ocultar uma realidade de luta dos/as negros/as feita contra a explorao capitalista e as suas resultantes. Mesmo as anlises marxistas e marxianas reforaram o racismo epistemolgico, por raramente contriburem com anlises que, fundadas nas particularidades e determinaes da formao social brasileira, dessem conta do nvel de explorao a que estavam submetidos/as os/as trabalhadores/as negros/as (Martins, 2017, p. 276).

 

Esta reflexo extremamente relevante e tambm deve mobilizar setores marxistas, em especial a esquerda marxista tradicional, a realizarem uma autocrtica honesta acerca da leitura sobre as relaes tnico-raciais no Brasil, tendo em vista que a leitura hegemnica da esquerda marxista no pas, sobremaneira durante o sculo XX, foi influenciada por uma viso economicista, etapista e alheia prpria realidade brasileira, relegando a luta contra o racismo assim como outras lutas anti opresses a segundo plano, como se fosse descolada da luta de classes (Moreira, 2024).

 

No sem motivos, que apenas muito recentemente o Servio Social vem consolidando um entendimento coletivo de que a classe no mera abstrao, ao contrrio, ela determinada e atravessada pela condio tnico-racial, de gnero, sexualidade, territrio e gerao. Em se tratando da particularidade brasileira, a maioria da populao negra, constituda de pretos(as) e pardos(as)[15], sendo este tambm o contingente da classe trabalhadora mais impactado pelo processo destrutivo do capital. Dessa maneira,

 

Constata-se que tal superao, passa necessariamente, pela compreenso do movimento das classes, uma vez que o servio social busca a perspectiva da totalidade histrica. Assim, o debate da profisso engloba o enfrentamento das diferentes formas de opresses e explorao de classe, no como fenmenos isolados ou ocasionais, mas como parte inerente da origem e reproduo da lei geral de acumulao capitalista em seus diferentes momentos e particularidades scio-histricas, onde o racismo precisa ser compreendido como elemento estrutural desta sociedade (Elpidio, 2020, p. 523, grifos nossos).

 
Sendo assim, urge avanarmos no debate tnico-racial e do antirracismo numa perspectiva radical, compreendendo que o racismo, enquanto desdobramento dos processos de colonialismo e escravismo, historicamente, se coloca como pilar essencial da explorao e dominao capitalista, desde os tempos de acumulao primitiva. Assim, necessrio compreendermos o racismo como elemento determinante e constitutivo da sociedade capitalista, como este se dinamiza em nossa particularidade scio-histrica e estrutura as relaes de produo e reproduo social.

 

Algumas consideraes

 

Os apontamentos que aqui fizemos resultam de intensos dilogos, incidncias polticas e trabalho profissional com as populaes negras perifricas, bem como com povos indgenas e comunidades tradicionais. As reflexes ora apresentadas expressam tambm anlises tecidas coletivamente no cho do enfrentamento dirio ao racismo no mbito do Servio Social, mas tambm fora dele. Essa caminhada, por vezes to desafiadora e desanimadora, encontra firmeza, sentido e nimo quando recordamos do nosso compromisso histrico com nossos(as) ancestrais que j miravam um horizonte de justia e liberdade.

 

Nessa direo, precisamos combater, com a mesma firmeza e radicalidade, tanto os setores liberais, conservadores, antimarxistas, ps-modernos e essencialistas presentes no interior das lutas antirracistas, que negam as determinaes estruturais da sociedade capitalista e a  relao entre raa-etnia e classe, antirracismo e anticapitalismo. Mas, tambm, os setores que reproduzem a lgica da esquerda marxista tradicional, que no so capazes de ultrapassar uma mera revoluo formal-abstrata, pois desconsideram a determinao tnico-racial na composio da classe trabalhadora que, na realidade brasileira, possui centralidade (Farias, 2017).

 

Portanto, registramos que nenhuma dessas perspectivas nos serve para avanarmos na superao radical dessa sociedade, estruturada pelo racismo, pelo sexismo e pela violncia colonial, que funciona como uma verdadeira mquina de moer corpos negros, indgenas e de tantas outras comunidades que tradicionalmente mantm sociabilidades resistentes ao modelo capitalista secularmente imposto.

 

 

 

Referncias

 

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Iara Vanessa Fraga de Santana

Assistente Social (UECE). Doutora em Servio Social (UFPE). Mestra em Desenvolvimento Territorial da Amrica Latina e Caribe (ENFF/UNESP-So Paulo). Especialista em Direitos Sociais do Campo/Residncia Agrria (UFG) e em Gesto de Polticas Pblicas em Raa e Gnero (UNB). Docente do curso de Servio Scoial da Universidade Estadual do Cear (UECE). Integrande do Laboratrio de Pesquisas e Estudos em Servio Social (LAPESS) e do Mestrado Acadmico em Servio Social (MASS/UECE). Compe a Diretoria Executiva do Instituto Terramar e a Articulao Antinuclear do Cear.

 

Tales Willyan Fornazier Moreira

Assistente Social (UFTM). Doutor e Mestre em Servio Social (PUC/SP). Docente do curso de Servio Social da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Lder do GEFEPSS UFVJM - Grupo de Estudo e Pesquisa: Fundamentos, Formao e Exerccio Profissional em Servio Social (DGP-CNPq). Membro do Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indgenas (NEABI) da UFVJM. Membro da coordenao colegiada da Rede Mineira de Grupos de Estudos sobre os Fundamentos do Servio Social (ReMGEFSS). Compe a Frente Nacional de Assistentes Sociais no Combate ao Racismo.

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  A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024. Acesso Aberto. Esta obra est licenciada sob os termos da Licena Creative Commons Atribuio 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante no pode revogar estes direitos desde que voc respeite os termos da licena

 

[1] Nos referimos ao primoroso texto da autora Cristiane Luiza Sabino de Souza, intitulado A disputa em torno do debate racial no Brasil: teoria e mtodo para o avano da perspectiva crtica, publicado nesta edio da Revista Argumentum, n. 2 de 2024.

[2] Compreendemos que em uma sociedade profundamente racista e desigual, a representatividade cumpre sim um papel de significativa relevncia, quando aliada a um projeto poltico comprometido com o fim do racismo e do capitalismo. Do contrrio, a mera representatividade por ela mesma, que refora a ideia de negros/as ou indgenas no topo acaba to somente sendo funcional ao capital, no se expressando em nenhuma mudana concreta na vida das populaes negras e indgenas, pois no representa um projeto coletivo, mas individual.

[3] Conforme aponta Souza (2024), esse movimento fundamental para a crtica ao colonialismo, contudo, no pode ocorrer de maneira superficial, a-histrica, reduzida ao campo da cultura e das epistemologias sem fazer a crtica radical ao capitalismo, e o que tem prevalecido nesse campo uma crtica esvaziada ao eurocentrismo.

[4] Souza (2024) tambm menciona que essa perspectiva culturalista, ao apartar raa-etnia e classe visto que negam toda contribuio do marxismo por ser eurocntrico e no apresentar nenhuma contribuio para este debate , ao no apreender a complexidade dos desafios vivenciados pelas populaes negras (que vivem na sociedade de classes, cujo sistema capitalista cria e recria suas estratgias coloniais de dominao) e ao se ater to somente dimenso cultural e epistemolgica, no refletindo sobre as contradies reais que os povos africanos vivenciam sob a gide destrutiva do neocolonialismo/imperialismo, acaba por reproduzir uma concepo metafsica de negritude, culminando tambm numa perspectiva a-histrica e romantizada de frica.

[5] Referncia msica Costura da Vida, de Srgio Perer (2019), grande msico, artista mineiro e uma referncia importante na resistncia contra o racismo.

[6] Como afirma Almeida (2019), num sentido revolucionrio, a afirmao da raa feita to somente para que um dia possamos super-la. Deste modo, fundamental termos ntido que nossa luta, numa dimenso radical, deve se direcionar para a superao da noo de raa, visto que esta foi construda historicamente para justificar a explorao, a violncia, a desumanizao, o genocdio e a barbrie. Foi com base nesta construo que as populaes negras e indgenas passaram a ser tratadas como outros, isto , como sub-humanos e inferiores.

[7] Referncia ao trecho da msica Principia (2029), do rapper e compositor brasileiro, Emicida.

[8] Esse decreto institui a Poltica Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais.

[9] Sobre isso encontramos a relevante afirmativa no Relatrio do CNDH (Brasil, 2018): Povos e comunidades tradicionais tm sistemas prprios de conhecimento sobre a realidade, que refletem suas experincias histricas e territoriais e contribuem para o manejo da vida em todas as suas dimenses materiais e simblicas, que incluem o sagrado. Os sistemas de conhecimentos tradicionais indicam outras formas de estar no mundo, com potencial para renovar o pensamento e ampliar os repertrios de saberes e fazeres na construo de solues para os novos desafios da contemporaneidade, sejam os desafios socioambientais ou aqueles relativos convivncia com respeito diferena e valorizao da diversidade (Brasil, 2018, p. 21).

[10] Comumente a literatura nomeia de recursos naturais, ou riquezas naturais, o que muitos povos indgenas e comunidades tradicionais chamam de me terra, pachamama. As guas, as florestas e os demais bens comuns da natureza so considerados organismos vivos e sacralizados para muitos desses povos. Em razo disso fazemos este destaque, pois os significados e sentidos da natureza so radicalmente diferenciados.

[11] Destacamos aqui algumas das mais importantes e emblemticas construes deste perodo recente: a Campanha de gesto do Conjunto CFESS-CRESS (trinio 2017-2020) Assistentes Sociais no Combate ao Racismo; a construo dos Subsdios para o debate sobre a Questo tnico-Racial na Formao em Servio Social e do documento As cotas na psgraduao: orientaes da ABEPSS para o avano do debate, ambos pela ABEPSS (binio 2017-2018); a construo da Plataforma Antirracista no site da ABEPSS e a realizao da pesquisa A insero da educao para as relaes tnico-raciais no mbito da ps-graduao na rea de Servio Social nos ltimos cinco anos (2017-2022), tambm realizadas pela ABEPSS (binio 2021-2022); o espraiamento dos Comits Antirracistas nos CRESS e a construo do Comit Antirracista do CFESS, em 2023, bem como a publicao da Resoluo CFESS n. 1.054/2023, de 14 de novembro de 2023, que estabelece normas vedando condutas de discriminao e/ou preconceito tnico-racial no exerccio profissional do/a assistente social. Alm desses marcos no mbito das entidades representativas, destacamos a criao da Frente Nacional de Assistentes Sociais no combate ao racismo (2020) e da Articulao Brasileira de Servio Social e Povos Indgenas (2021).

[12] Para maior aprofundamento sobre a poltica identitria, sugerimos a leitura de Haider (2019).

[13] Nos referimos aqui ao debate realizado por Farias (2017). Em linhas gerais, trata-se de uma esquerda que, sob a influncia stalinista, j nasceu degenerada no Brasil, contaminando e hegemonizando o pensamento da esquerda brasileira at a dcada de 1960.

[14] Nessa direo, importante mencionar a discusso realizada por Matilde Ribeiro (2004), quando a autora destaca que mesmo com todos avanos conquistados no processo de renovao profissional, as relaes tnico-raciais acabaram sendo invisibilizadas no contexto das anlises de classe. Se, de um lado, temos o VI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) de 1989 como um marco histrico central para o debate das relaes raciais na profisso e registros de assistentes sociais negras(os) que desde a dcada de 1940 participavam dos movimentos raciais e feministas e estavam nas trincheiras de denncia ao racismo , isso no foi suficiente para que esse debate fosse incorporado coletivamente no processo de renovao do Servio Social. Ao evidenciar isso, no estamos querendo fornecer a munio ao inimigo(a) para fortalecer perspectivas a-histricas e/ou que recusam todas as imprescindveis conquistas do Servio Social renovado, ao contrrio, nossa inteno sinalizar que os desafios, disputas e desencontros terico-polticos em relao a esse debate so histricos na profisso (a princpio, pela influncia da esquerda marxista tradicional que reproduzia uma concepo de que a luta contra o racismo enfraqueceria a luta contra o capitalismo, como se fossem lutas opostas e, no tempo presente, perspectivas que negam a sociedade de classes e as contribuies do marxismo), mas se acirram de maneira significativa nesta quadra histrica, tendo em vista o movimento de enraizamento desta discusso no Servio Social brasileiro, de maneira ininterrupta, h quase uma dcada (Moreira, 2024).

[15] De acordo com o IBGE (2022), a populao negra representa 55,9% da populao brasileira. Mais informaes disponveis em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6408.