http://10.47456/argumentum.v17.2025.45386
Pacote anticrime e política de drogas no
Brasil no governo Bolsonaro
Anti-crime
package and drug policy in Brazil under the Bolsonaro government
Jaqueline
Carvalho QUADRADO
https://orcid.org/0000-0002-5220-3710
Universidade Federal do Pampa, Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas e
Programa de Pós-Graduação em
Ciências Humanas, São Borja, RS, Brasil
e-mail: jaquelinequadrado@unipampa.edu.br
Resumo: O presente texto visa a analisar,
especificamente, as medidas tomadas pelo governo Bolsonaro, a saber: o Pacote
Anticrime e a Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, que institui a Nova
Política Nacional sobre Drogas. Aponta-se a utilização do crime como uma
questão estratégica, especialmente para fins políticos, como forma de render
avaliações positivas ao governo por parte da população, bem como a utilização
do medo e sensação de insegurança enquanto elementos justificadores da
flexibilização de direitos fundamentais, através da edição de leis mais
gravosas e do aumento do controle nos espaços, que são facilmente constatados
no cotidiano das cidades.
Palavras-chave: Pacote anticrime. Drogas. Estado
penal.
Abstract: This text
analyses measures taken by the Bolsonaro government, specifically: the
Anti-Crime Package and Law nº 13,840, of June 5, 2019, which instituted the New
National Drug Policy. It identifies the use of crime as a strategic issue,
especially for political purposes, as a way of earning positive evaluations of
the government by the population. It also recognises the use of fear and a
sense of insecurity as elements to justify the removal of fundamental rights,
through the enactment of more onerous laws and increased control, as witnessed
in daily city-life.
Keywords: Anti-crime
package. Drugs. Penal state.
Introdução
O |
mandato do governo Bolsonaro (2019-2022) é
marcado por posturas inadequadas, declarações e ameaças à democracia, à
soberania nacional, ao meio ambiente e aos direitos dos trabalhadores,
mitigação de direitos sociais e endurecimento das políticas e legislações
destinadas à segurança pública. Bolsonaro seguiu dando à legião de apoiadores o
que prometeu[1]:
“[...] um projeto político e econômico que se alinha ao discurso propagado
durante o processo eleitoral e à carreira política do presidente: neoliberal, cis-heterossexista e racista” (Ribeiro, 2020, p. 214). Note-se que a summa filosófica do governo Bolsonaro foi breve e, ao mesmo tempo,
fluentemente comunicável e, certamente, vendável.
A
emergência de uma direita populista no cenário brasileiro se vincula
estreitamente ao contexto internacional de crescimento do conservadorismo
reacionário de traços fascistas e expõe a face hiperautoritária
do neoliberalismo na atual quadra de crise do capitalismo contemporâneo.
A nova
governabilidade das economias e das sociedades, como razão neoliberal, são
baseadas na generalização do mercado e na liberdade irrestrita do capital.
Nesta quadra, os direitos fundamentais passaram a constituir obstáculos ao
poder econômico. O que se observa é uma retomada da ortodoxia neoliberal em sua
fase mais antidemocrática, antipopular, fundamentalista e penal, constituindo
uma ditadura de novo tipo. Eis algumas das razões do golpe à democracia
brasileira, marca do Estado Pós-Democrático de Direito[2].
O projeto
conservador-reacionário se fortalece ainda mais no tocante à responsabilização
individual e moral dos sujeitos por possíveis relações problemáticas com as
drogas e, de modo consequente, a ampliação da legislação penal como resposta
imediata à insegurança social e à violência.
Este texto
é baseado em pesquisa bibliográfica e análise documental, utilizando-se da
perspectiva dialética materialista, tendo por objetivo analisar o Pacote
Anticrime e a Lei n.º 13.840, de 5 de junho de 2019 (Brasil, 2019), que
instituiu a Nova Política Nacional sobre Drogas, atos normativos tomados no
governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Neste horizonte, identificamos alguns
atos normativos do governo Jair Bolsonaro que respondem ao populismo penal[3]
que o elegeu, a saber: o Decreto de Posse de Armas; o Pacote Anticrime; e a
nova Lei Nacional de Drogas. Aqui vamos tratar, especialmente, dos dois últimos
atos.
A discussão
aqui está estruturada em dois tópicos, além desta introdução: no primeiro,
buscou-se debater sobre O Pacote Anticrime e a nova Lei Nacional de Drogas. No
segundo tópico, debateu-se A nova política nacional de drogas. Finda-se este
artigo com as considerações finais, retomando os traços mais marcantes do
autoritarismo bolsonarista que foi a usurpação da função legislativa, mediante
a expedição desenfreada de decretos sem o devido e amplo debate com a
sociedade.
O Pacote Anticrime e a nova Lei
Nacional de Drogas
O governo
de Bolsonaro foi marcado por um processo de intensificação do papel das
polícias, da Justiça Penal e do sistema penitenciário, dentre outros motes,
buscou fazer valer a lei e a ordem e se manteve no lastro do mesmo modo de agir
apregoado nos tempos de ditadura.
O pacote
anticrime, eis uma das garantias vendidas pelo Estado sobre o novo plano de
segurança pública: incrementação de tipos penais e agravamento de medidas
executórias. O plano de segurança pública, denominado pacote anticrime, do
ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, cuja aprovação foi compromisso
explícito da campanha presidencial de Bolsonaro. Bastante festejadas pelos
setores e defensores do punitivismo, as medidas propostas pelo pacote não
destoavam das velhas receitas ao apresentar medidas que ampliam o sistema
penal, sem voltar o olhar para os problemas que o
permeiam, talvez por estes representarem a solução para o projeto genocida em
curso, que se traduz por morte e encarceramento, e nos obriga a uma reflexão do
sentido da democracia e do direito quando tratamos de grupos raciais/étnicos,
por exemplo.
Composto
pelos projetos de Lei nº 881/2019, 882/2019 e 38/2019, o pacote anticrime foi
remetido pela Presidência da República ao Congresso Nacional em 19 de fevereiro
de 2019. As deliberações propostas, posteriormente transformadas na Lei nº
13.964/2019, promoveram alterações em inúmeros dispositivos, a exemplo do
Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40), do Código de Processo Penal (CPP,
Decreto-lei nº 3.689/41), da Lei de Execução Penal (7.210/84), da Lei de Crimes
Hediondos (8.072/90) e do Código Eleitoral (4.737/65) (Dias; De Vitto, 2019).
As deliberações incidem em várias frentes, sempre no viés de mitigação de
direitos e garantias penais e processuais penais. Além disso, sofisticam as
estratégias da incursão genocida na dimensão do extermínio, ao ampliar “[...]
os casos para aplicação dos excludentes de ilicitude, alargando a salvaguarda
jurídica para casos de letalidade policial” (Freitas, 2019, p. 39).
No tocante
ao período em apreço, dentre as legislações aprovadas, destaca-se o denominado
pacote anticrime, o qual viola frontalmente princípios constitucionais como a
presunção da inocência, a individualização da pena e o devido processo legal,
ampliando o encarceramento em massa; fortalece uma visão demagógica e populista
de extrema-direita do Direito Penal, a partir de um punitivismo que esfacela os
direitos fundamentais, sem qualquer eficácia objetiva para diminuição dos
crimes e da violência. Assim, prisão em segunda instância, recrudescimento de
penas, alteração do conceito de organização criminosa e plea bargain são medidas que amplificam o
encarceramento e fortalecem as redes do crime que crescem dentro e fora do
sistema penal.
Além disso,
o mais grave: a proposta de excludente de ilicitude para policiais é evidente licença para matar, é a legalização do
extermínio das populações indesejadas. Aprovado, e transformado na Lei nº
13.964/2019 (Brasil, 2029), uma das modificações foi a ocorrida no Art. 25 do
Código Penal, que dispõe sobre as hipóteses de legítima defesa e foi alterado a
fim de estender o benefício aos agentes públicos definidos pelo art. 114 da
Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), quais sejam: policiais federais,
rodoviários e ferroviários federais, civis, militares e corpos de bombeiros
militares.
O projeto
inicial previa a extensão para duas situações: a) quando o agente policial ou
de segurança pública, em conflito armado ou em risco iminente deste, previne
injusta agressão a direito seu ou de outrem; e b) quando o agente policial ou
de segurança pública previne agressão ou risco de agressão à vítima mantida
refém durante a prática de crimes. A extensão, todavia, foi aprovada apenas
para a segunda situação, ou seja, quando há a prevenção de agressão ou risco de
agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
Por certo,
a não aprovação da legítima defesa a esses agentes em situações de conflito
armado, no contexto de uma política beligerante, sobretudo no que se refere à
guerra às drogas, pode ser considerada uma vitória. Entretanto, num cenário em
que são comuns os enganos e
estratagemas como modificação de cenários de crime, implantação de provas,
dentre outros artifícios utilizados para incriminação de indivíduos vistos como
suspeitos, mesmo a aprovação da escusa condicionada à proteção de vítima
mantida como refém durante a prática de crimes precisa ser encarada com
cautela, de modo que não se torne mais um dispositivo à disposição de um
aparato policial compromissado com o genocídio antinegro.
Michel
Foucault (2000) demonstrou que o direito de fazer
viver e deixar morrer é uma das dimensões do poder de soberania dos Estados
Modernos e que esse direito de vida e de morte “[...] só se exerce de uma forma
desequilibrada, e sempre do lado da morte” (Foucault, 2000, p. 286). “É esse
poder que permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis” (Carneiro,
2011, p. 134). É essa política de extermínio que cada vez mais se instala no
Brasil, pelo Estado, com a conivência de grande parte da sociedade
Certo é que
o pacote anticrime é um arremedo argumentativo que ignora o que é o direito
quando pretende reduzi-lo a normas ditadas unicamente pelo Estado,
desconsiderando o direito que é construído a partir das perspectivas da
sociedade. O objetivo das alterações das respectivas leis nada mais é que a
criação de um novo sentido comum repressivo que generalize e consolide a
estratégia de controle social sobre os descartáveis. Assim, a seletividade é
construída também pelo Legislativo e possibilitada por um Judiciário que é
igualmente seletivo no momento de aplicação das leis. Esse cenário, por sua
vez, é agravado pela fascistização representada pela eleição de Bolsonaro e de
inúmeros representantes, para o Congresso Nacional, defensores de medidas
igualmente rígidas e autoritárias.
A lógica
interna da criminalidade é, na maioria, uma consequência da marginalização
social e seus agentes potenciais são todos os habitantes de favelas e das
periferias. Desse modo, o objetivo não é a prevenção de delitos – impossível
dentro do realismo social no qual se move o Estado – mas a localização e
qualificação étnico-racial dos criminosos.
Conforme o pensamento do criminólogo radical Juarez Cirino dos Santos (2008, p.
19), “[...] ao contrário do que a ideologia dominante prega, não é o crime que
produz o controle social, mas o controle social que produz o crime”.
Apresentado
em fevereiro de 2019 (dois mil e dezenove), pelo Ministro da Justiça e
Segurança Pública à época, Sérgio Moro, o Projeto de Lei Anticrime (Pacote
Anticrime) promove alterações em 14 (quatorze) leis, e foi alvo de muitas
críticas por parte de juristas e da população leiga. A proposta aprovada altera
o Código Penal e outras leis de segurança pública e tem por finalidade
reduzir/conter o crime organizado, a corrupção e os crimes violentos, através
da aplicação de penas mais severas para quem os pratique. Alguns artigos da Lei
13.964/19 (Brasil, 2029) foram aprovados; outros, vetados pela comissão
designada para sua aprovação definitiva; e outros, não sancionados pelo
Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, como também, após a sua
entrada em vigor, certos artigos tiveram sua eficácia suspensa por tempo
indeterminado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como o que trata da criação
do juiz das garantias.
Tais
modificações surgiram como pressuposto de diminuir a grande insegurança que
vive a sociedade brasileira e abrir espaço para uma imprescindível reforma no
Código Penal Brasileiro. A violência no Brasil é um problema histórico, que
atinge diversas classes sociais, e são vários os fatores responsáveis por esta
mazela (sociais, econômicos, políticos e culturais), atrelados à corrupção, o
que deixa a população vulnerável, amedrontada e até mesmo desacreditada no
próprio Estado - o qual, nos termos do Art. 144, caput da Constituição Federal de 1988
(CF/88), deveria garantir segurança a todos. Objetivando o recrudescimento das
leis penais e processuais penais enquanto modo de combater o crime, sob o
pretexto do combate à corrupção, houve uma intensificação sobre tipos penais
associados à criminalização da pobreza, a exemplo do roubo (Art. 157 do Código
Penal), incluindo hipóteses de majoração de um terço até a metade em hipóteses
de utilização de arma branca.
Ainda sobre
o supracitado crime, incluiu o parágrafo § 2º-B ao artigo 157 do Código Penal,
que prevê a possibilidade de aumento do dobro da pena, ou seja, de 8 a 20 anos
de reclusão, quando o crime for cometido com arma de fogo de uso restrito ou
proibido, ou seja, aquelas de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições
de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas.
No âmbito
do cumprimento das penas, alterou a Lei nº 12.850/2013 para estipular penalidades mais severas a crimes cometidos
no contexto de organizações criminosas. Neste sentido, modificou o artigo 2º, §
8º a fim de estabelecer que as lideranças de organizações criminosas armadas ou
que tenham armas à disposição deverão iniciar o cumprimento da pena em
estabelecimentos penais de segurança máxima. Além disso, previu no § 9º da
referida lei que integrantes de organização criminosa ou que tenham praticado
crime por meio de organização criminosa, após condenação expressa em sentença,
não poderão progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento
condicional, ou outros benefícios prisionais, se houver elementos probatórios
que indiquem a manutenção do vínculo associativo. Por fim, o pacote anticrime
altera o art. 75 do Código Penal com vistas a ampliar o tempo de cumprimento
das penas privativas de liberdade de 30 (trinta) para 40 (quarenta) anos.
Em relação aos homicídios, o
documento elenca Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, Bahia e Ceará como os
estados que estariam apresentando piora nesse quesito, ocasião em que introduz
a pauta das drogas, afirmando haver uma epidemia
nos referidos estados e que, por serem governados pela esquerda, não se
trataria de coincidência. Ademais, aponta ter havido uma bolsa crack, em cidades administradas pelo
Partido dos Trabalhadores (PT) no estado de São Paulo (Brasil, 2018, p. 26).
O projeto
de governo de Bolsonaro, com um claro perfil belicista, buscou descredibilizar
as informações de que a polícia brasileira é a que mais mata, suplantando os
policiais como heróis nacionais, cuja corporação deveria ser nomeada “Panteão
da Pátria e da Liberdade” (Brasil, p. 29, 2018).
O Plano de
Governo partia do pressuposto de que “[...] prender e deixar na cadeia salva
vidas” (Brasil, p. 30, 2018). Desse modo, o Plano apresenta oito ações que
seriam destinadas à redução dos homicídios, roubos, estupros e outros crimes:
a) Investir fortemente em
equipamentos, tecnologia, inteligência e capacidade investigativa das forças
policiais; b) Prender e deixar preso! Acabar com a progressão de penas e as
saídas temporárias!; c) Reduzir a maioridade penal
para 16 anos!; d) Reformular o Estatuto do
Desarmamento para garantir o direito do cidadão à legítima defesa sua, de seus
familiares, de sua propriedade e a de terceiros!; e)
Policiais precisam ter certeza que, no exercício de
sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica.
Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros
precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu
trabalho será lembrado por todos nós! Pela Nação Brasileira! f) Tipificar como
terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território
brasileiro; g) Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade
privada, como exemplo nas restrições da EC/81; h) Redirecionamento da política
de direitos humanos, priorizando a defesa das vítimas da violência (Brasil,
2018, p. 30).
Os pontos
aqui destacados do Plano de governo apresentado por Jair Messias Bolsonaro
foram utilizados como parâmetros para orientar as escolhas das principais
legislações que, até o momento, têm orientado a incursão genocida e contribuído
para a vulnerabilidade do povo negro e pobre, destinatário principal das
políticas criminais.
Entre o
discurso anticorrupção e a realidade, todavia, relatórios da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de novembro de 2019,
apontam retrocessos no combate à
corrupção no Brasil. Um dos documentos, intitulado Brazil: Setbacks in the
Legal and Institutional
Frameworks (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico,
2019), revela preocupante recrudescimento da ingerência sobre os órgãos
responsáveis pelo enfrentamento à corrupção, a exemplo da Polícia Federal, da
Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal Federal.
O relatório
faz menção às investigações acerca da intervenção de Bolsonaro em órgãos de
controle, além de, no âmbito do Poder Judiciário, citar decisões do Supremo
Tribunal Federal que seriam responsáveis por retrocessos jurisprudenciais e
descrédito do tribunal constitucional que coincide com o momento de ascensão do
autoritarismo no país. Os desmantelamentos das forças-tarefa e renúncias de
procuradores seriam demonstrações desses retrocessos. O presidente, por seu
turno, dizia ter acabado com a corrupção.
É
perceptível, portanto, que a segurança pública não é a segurança de todos os
cidadãos brasileiros. O Estado brasileiro ignora que o fracasso de suas forças
repressivas decorre de outras dimensões da vida social, a exemplo, da educação,
saúde, alimentação, distribuição de rendas e riquezas. A posição do governo
Bolsonaro em implementar novas políticas públicas de segurança pública só vem
agravar os conflitos étnico-raciais, econômicos e sociais. As ações do Estado
foram, paulatinamente, conduzidas para um certo tipo de Estado reacionário
ultraliberal, legitimado pelo uso da força, com o argumento de ser a única
reação possível frente à desordem. Ao contrário de um Estado democrático, o
conceito de ordem está diretamente vinculado ao consenso produzido por todos os
atores em conflito, horizontalmente.
A
elaboração normativa sobre como deveria ser o castigo para esses desvios são
decisões contingenciais que respondem à ordem social e aos regimes de poder
hegemônicos. “A dimensão do poder, a fim de alcançar as razões políticas da
criminalização” (Flauzina, 2006, p. 520).
A nova política nacional de drogas
Tomemos
como ponto de partida o Decreto n.º 9.761 de abril de 2019 (Política Nacional
sobre Drogas) que altera a Lei 11.343/2006 (Institui o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) (Brasil,
2006); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção
social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá
outras providências). Na mesma direção de um supremo populismo penal e
fundamentalista, houve a aprovação do PLC n.º 37 (dispõe sobre o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos
usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas
sobre drogas) no Senado Federal, de autoria do Ministro da Cidadania Osmar
Terra, que alterou a Lei 11.343/2006, ou seja, a Política Nacional sobre
Drogas.
Nesta nova
disposição, entre as medidas mais preocupantes implementadas pelo decreto,
destacam-se: a) a substituição da redução de danos pela diretriz da
abstinência; b) priorização uma atenção manicomial e hospitalar aos usuários;
c) precarização e dificultação do acesso integral previsto pelo Sistema Único
de Saúde (SUS); além de d) previsão de internação involuntária por até três
meses (Albuquerque, 2019). Este projeto substitui a redução de danos pela
diretriz da abstinência e, portanto, prioriza uma atenção manicomial e
hospitalar aos usuários; desfinancia a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), precariza e dificulta o acesso dos usuários à
saúde pública, na perspectiva da integralidade apontada pelo Sistema Único de
Saúde (SUS); prevê internação involuntária, de até três meses, possibilitando
que esse dispositivo seja utilizado para higienização das grandes cidades por
meio do recolhimento em massa de pessoas em situação de rua.
Ainda, tal
dispositivo incorpora as Comunidades Terapêuticas (CTs)
no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD), cujos modelos de
tratamento para o cuidado incluem isolamento social, abstinência total e
trabalho forçado, além de, muitas vezes, possuírem uma fundamentação religiosa
compulsória aos usuários, além de serem equipamentos privados. Note-se que a
atenção aos usuários de drogas realizadas pelas CTs
vai de encontro à Lei n°10.216/2001 (Brasil, 2001) (Dispõe sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental).
Oportuno
destacar que é comum que parte das CTs sejam de
filiação religiosa ou médica, e que um número considerável tem sido espaço para
internações compulsórias e com violações dos direitos das pessoas em
tratamento. Além disso, o tema da internação compulsória aliada ao
financiamento com recursos públicos às CTs, o que
pode alavancar “[...] uma indústria de internações provocadas pelos interesses
econômicos destas instituições, mas também pela funcionalidade política de
punição e segregação dos corpos indesejáveis” (Albuquerque, 2019, p. 9-10).
A análise
das tendências legislativas observadas durante o governo Bolsonaro, notadamente
da Lei de Drogas, revela a utilização, pela direita, de um discurso baseado no
combate à criminalidade e na proteção da sociedade contra a violência,
sustentado na garantia da ordem social. O resultado desse modelo de atuação,
diverso da esquerda no discurso, mas bastante semelhante em determinados
aspectos práticos, no âmbito da justiça criminal, buscou investir no
recrudescimento penal, tal qual os governos anteriores. O recrudescimento é
baseado no movimento Lei e Ordem, movimento este que se deu nos Estados Unidos
em meados da década de 1970, bem como a evolução histórica no ordenamento
jurídico em que foi inserido à época, como um modelo a ser seguido pelo Brasil.
O movimento surge na força contramajoritária que se
insere na sociedade pós Segunda Guerra Mundial e nasce com a perspectiva de
frear os crescentes índices de criminalidade das grandes metrópoles, aumentando
a atuação policial na reprimenda dos delitos praticados. Logo, advém a
necessidade de repressão máxima e, com ela, a elaboração de variadas leis
repressivas. Por consequência, a sociedade é dividida em dois grupos: aquele
composto por pessoas do bem, as quais merecem a proteção das leis; e os delinquentes,
considerados inimigos da sociedade e do Estado, que devem ser punidos de forma
que não haja reincidências criminosas.
As taxas de criminalidade das cidades estadunidenses
que adotaram políticas públicas lastreadas nos movimentos lei e ordem, em
particular na tolerância zero, foram comprovadamente reduzidas porque, de forma
complementar, houve significativo investimento em projetos sociais e estímulo à
economia, o que não ocorre no Brasil: muito pelo contrário, há um
desmantelamento em curso das políticas públicas.
Quanto ao
perfil dos clientes, permaneceu o
caráter seletivo e discriminatório do sistema de justiça criminal, eleitos,
sobretudo, por meio da Lei de Drogas, uma das principais responsáveis por
garantir o efeito contrário ao pretenso compromisso assumido com o
desencarceramento, mediante o pacote anticrime (Lei n.º 13.840, de 5 de junho
de 2019) que combateria os crimes e consequentemente o encarceramento.
Para mais,
na análise das medidas implementadas pelo decreto, é possível verificar uma
ampliação da ameaça de vulnerabilidade que compreende a questão das drogas,
visto que as políticas públicas sobre drogas foram alteradas, expressando
características que vão na contramão dos direitos sociais e do acesso às ações
coletivas de saúde, respeito aos usuários e descriminalização. Em outras
palavras, um retrocesso das conquistas da Reforma Psiquiátrica, assim como a
ampliação do aspecto punitivo e do controle social das classes subalternizadas.
Portanto, é notório que a criminalização permanecerá atingindo o mesmo público,
através do recolhimento em massa de pessoas em situação de rua, por exemplo.
Diante
disso, a política de enfrentamento às drogas tem se resumido à criminalização
que, quando não é letal, encarcera. E para tanto, orienta a atuação
legislativa, o entendimento dos magistrados e o modo como a segurança pública é
gerida (Duarte; Freitas, 2019). “[...] Imaginar uma sociedade
perfeita sob a bandeira da lei e da ordem é um pensamento fascista, mas fazer
isso por intermédio do encarceramento é loucura” (Valois, 2017, p. 650). Isso porque “O fim da guerra às drogas não
será alcançado por intermédio do judiciário, pois este, como parte da
superestrutura do Estado, instrumento conservador do status quo, tende a se movimentar mais lentamente do que a base
(Valois, 2017, p. 451)”.
As mãos de
um presidente, sem escrúpulos ou cautela, podem ser usadas para amplificar o
estado nazifascista, mesmo com os possíveis freios judiciais. Consolidaram-se
normas sem comedimento presidencial.
Considerações finais
Ressalta-se
que um dos traços mais marcantes do governo bolsonarista foi a direção de um
supremo populismo penal e fundamentalista, que, notadamente em matéria penal e
de segurança pública, assunto de alta complexidade, deveria ensejar maiores
debates. É importante lembrar que, em uma sociedade democrática, as leis que
impactam toda a sociedade devem ser debatidas pelos representantes
democraticamente eleitos, incluindo o presidente, mas não se limitam a ele.
Um debate
mais amplo sobre a questão das drogas implica reconhecer a sua determinação
fundante: mercadorias inseridas na produção capitalista no contexto do
proibicionismo e o mercado ilegal decorrente. Vale lembrar que na economia
capitalista a dimensão determinante é a produção e não o consumo, embora tais
dimensões estejam vinculadas. A criminalização das drogas alimenta e perpetua o
sistema capitalista-racista-patriarcal produtor de opressão, exploração e
desigualdades. Por isso, o tráfico é sustentado não pelos consumidores, mas
pela produção capitalista e seu sistema de desigualdades raciais e sociais em
relação direta com a proibição. Acrescenta-se que, a partir do encarceramento
em massa, as redes criminosas do tráfico de drogas se expandem e surgem
consequências, tais como: violência urbana, expansão de empresas de vigilância,
corrupção dos operadores do Estado e outros ramos da economia ilegal como o
tráfico de armas, exploração e tráfico sexual, dentre outras.
O avanço do
reacionarismo ultraliberal ameaça os valores básicos do Estado democrático de
direito, a partir de uma nova política fundada em um menos Estado social e um
mais Estado penal. Por conseguinte, a criminalização da pobreza e a eliminação
dos inúteis para o capitalismo trazem como consequência a radicalização da
questão das drogas como questão política e pública, imposta a mais severa
precarização e marginalização às classes subalternas. Neste sentido, Cohen
alerta para que “[…] lo aniquilamento de lo humano en el
hombre no termina con la cancelación de sus derechos jurídicos. La segunda etapa de su
destrucción concierne a la persona moral y se opera a través de la
separación del resto del mundo” (Cohen, 2006, p. 42).
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e "nova" lei de drogas: fascistização neoliberal e gestão dos
indesejáveis. In: Congresso
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Jaqueline Carvalho QUADRADO
Doutora em Sociologia,
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Professora do Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) e Programa de Pós-Graduação em
Ciências Humanas (PPGCH) e professora do Curso de Serviço Social da Universidade
Federal do Pampa – Campus São Borja/RS/Brasil. Coordenadora do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Violência, Gênero e Sexualidade
/ATENA(Unipampa). É líder do Grupo de Pesquisa
Gênero, Ética, Educação e Política-GEEP (CNPq/Unipampa).
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Editoras responsáveis
Ana Targina
Ferraz – Editora-chefe
Maria Lúcia Teixeira Garcia –
Editora
Submetido em: 31/7/2024. Revisado em:
3/4/2025. Aceito em: 7/5/2025.
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[1] No Plano de Governo
intitulado O caminho da prosperidade,
com forte apelo patriótico, citações bíblicas, imagens que remetem ao divino
cristão e atribuição das mazelas sociais brasileiras ao comunismo e aos anos de
governo do Partido dos Trabalhadores, Bolsonaro apresentou uma proposta que configurava a nova forma de governar.
[2] “Por pós
democrático, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites
rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o
poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No
Estado pós democrático a democracia permanece, não mais com um conteúdo
substancial e vinculante, mas como um mero simulacro, um elemento apaziguador” (Casara, 2017, p. 23).
[3] Pensamento penal
dominante no Brasil, que tem dominância na sociedade devido ao forte apelo
legitimador, sobretudo nos momentos de crise, consubstanciado pelo que
Alessandro Baratta (2013) denomina o mito
do Direito Penal igualitário. O populismo penal produz o que se denomina
senso comum punitivo, ideia amplamente partilhada por várias dimensões da
sociedade, inclusive na esquerda, de que o direito penal é capaz de resolver os
conflitos sociais.