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Pacote anticrime e política de drogas no Brasil no governo Bolsonaro

 

Anti-crime package and drug policy in Brazil under the Bolsonaro government

 

Jaqueline Carvalho QUADRADO

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamentehttps://orcid.org/0000-0002-5220-3710

Universidade Federal do Pampa, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e

Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas, São Borja, RS, Brasil

e-mail: jaquelinequadrado@unipampa.edu.br

 

Resumo: O presente texto visa a analisar, especificamente, as medidas tomadas pelo governo Bolsonaro, a saber: o Pacote Anticrime e a Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, que institui a Nova Política Nacional sobre Drogas. Aponta-se a utilização do crime como uma questão estratégica, especialmente para fins políticos, como forma de render avaliações positivas ao governo por parte da população, bem como a utilização do medo e sensação de insegurança enquanto elementos justificadores da flexibilização de direitos fundamentais, através da edição de leis mais gravosas e do aumento do controle nos espaços, que são facilmente constatados no cotidiano das cidades. 

Palavras-chave: Pacote anticrime. Drogas. Estado penal.

 

Abstract: This text analyses measures taken by the Bolsonaro government, specifically: the Anti-Crime Package and Law nº 13,840, of June 5, 2019, which instituted the New National Drug Policy. It identifies the use of crime as a strategic issue, especially for political purposes, as a way of earning positive evaluations of the government by the population. It also recognises the use of fear and a sense of insecurity as elements to justify the removal of fundamental rights, through the enactment of more onerous laws and increased control, as witnessed in daily city-life.

Keywords: Anti-crime package. Drugs. Penal state.

 

Introdução

 

O

 mandato do governo Bolsonaro (2019-2022) é marcado por posturas inadequadas, declarações e ameaças à democracia, à soberania nacional, ao meio ambiente e aos direitos dos trabalhadores, mitigação de direitos sociais e endurecimento das políticas e legislações destinadas à segurança pública. Bolsonaro seguiu dando à legião de apoiadores o que prometeu[1]: “[...] um projeto político e econômico que se alinha ao discurso propagado durante o processo eleitoral e à carreira política do presidente: neoliberal, cis-heterossexista e racista” (Ribeiro, 2020, p. 214). Note-se que a summa filosófica do governo Bolsonaro foi breve e, ao mesmo tempo, fluentemente comunicável e, certamente, vendável.

 

 

A emergência de uma direita populista no cenário brasileiro se vincula estreitamente ao contexto internacional de crescimento do conservadorismo reacionário de traços fascistas e expõe a face hiperautoritária do neoliberalismo na atual quadra de crise do capitalismo contemporâneo.

 

A nova governabilidade das economias e das sociedades, como razão neoliberal, são baseadas na generalização do mercado e na liberdade irrestrita do capital. Nesta quadra, os direitos fundamentais passaram a constituir obstáculos ao poder econômico. O que se observa é uma retomada da ortodoxia neoliberal em sua fase mais antidemocrática, antipopular, fundamentalista e penal, constituindo uma ditadura de novo tipo. Eis algumas das razões do golpe à democracia brasileira, marca do Estado Pós-Democrático de Direito[2].

 

O projeto conservador-reacionário se fortalece ainda mais no tocante à responsabilização individual e moral dos sujeitos por possíveis relações problemáticas com as drogas e, de modo consequente, a ampliação da legislação penal como resposta imediata à insegurança social e à violência.

 

Este texto é baseado em pesquisa bibliográfica e análise documental, utilizando-se da perspectiva dialética materialista, tendo por objetivo analisar o Pacote Anticrime e a Lei n.º 13.840, de 5 de junho de 2019 (Brasil, 2019), que instituiu a Nova Política Nacional sobre Drogas, atos normativos tomados no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Neste horizonte, identificamos alguns atos normativos do governo Jair Bolsonaro que respondem ao populismo penal[3] que o elegeu, a saber: o Decreto de Posse de Armas; o Pacote Anticrime; e a nova Lei Nacional de Drogas. Aqui vamos tratar, especialmente, dos dois últimos atos.

 

A discussão aqui está estruturada em dois tópicos, além desta introdução: no primeiro, buscou-se debater sobre O Pacote Anticrime e a nova Lei Nacional de Drogas. No segundo tópico, debateu-se A nova política nacional de drogas. Finda-se este artigo com as considerações finais, retomando os traços mais marcantes do autoritarismo bolsonarista que foi a usurpação da função legislativa, mediante a expedição desenfreada de decretos sem o devido e amplo debate com a sociedade.

 

O Pacote Anticrime e a nova Lei Nacional de Drogas

 

O governo de Bolsonaro foi marcado por um processo de intensificação do papel das polícias, da Justiça Penal e do sistema penitenciário, dentre outros motes, buscou fazer valer a lei e a ordem e se manteve no lastro do mesmo modo de agir apregoado nos tempos de ditadura.

O pacote anticrime, eis uma das garantias vendidas pelo Estado sobre o novo plano de segurança pública: incrementação de tipos penais e agravamento de medidas executórias. O plano de segurança pública, denominado pacote anticrime, do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, cuja aprovação foi compromisso explícito da campanha presidencial de Bolsonaro. Bastante festejadas pelos setores e defensores do punitivismo, as medidas propostas pelo pacote não destoavam das velhas receitas ao apresentar medidas que ampliam o sistema penal, sem voltar o olhar para os problemas que o permeiam, talvez por estes representarem a solução para o projeto genocida em curso, que se traduz por morte e encarceramento, e nos obriga a uma reflexão do sentido da democracia e do direito quando tratamos de grupos raciais/étnicos, por exemplo.

 

Composto pelos projetos de Lei nº 881/2019, 882/2019 e 38/2019, o pacote anticrime foi remetido pela Presidência da República ao Congresso Nacional em 19 de fevereiro de 2019. As deliberações propostas, posteriormente transformadas na Lei nº 13.964/2019, promoveram alterações em inúmeros dispositivos, a exemplo do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40), do Código de Processo Penal (CPP, Decreto-lei nº 3.689/41), da Lei de Execução Penal (7.210/84), da Lei de Crimes Hediondos (8.072/90) e do Código Eleitoral (4.737/65) (Dias; De Vitto, 2019). As deliberações incidem em várias frentes, sempre no viés de mitigação de direitos e garantias penais e processuais penais. Além disso, sofisticam as estratégias da incursão genocida na dimensão do extermínio, ao ampliar “[...] os casos para aplicação dos excludentes de ilicitude, alargando a salvaguarda jurídica para casos de letalidade policial” (Freitas, 2019, p. 39).

 

No tocante ao período em apreço, dentre as legislações aprovadas, destaca-se o denominado pacote anticrime, o qual viola frontalmente princípios constitucionais como a presunção da inocência, a individualização da pena e o devido processo legal, ampliando o encarceramento em massa; fortalece uma visão demagógica e populista de extrema-direita do Direito Penal, a partir de um punitivismo que esfacela os direitos fundamentais, sem qualquer eficácia objetiva para diminuição dos crimes e da violência. Assim, prisão em segunda instância, recrudescimento de penas, alteração do conceito de organização criminosa e plea bargain são medidas que amplificam o encarceramento e fortalecem as redes do crime que crescem dentro e fora do sistema penal.

 

Além disso, o mais grave: a proposta de excludente de ilicitude para policiais é evidente licença para matar, é a legalização do extermínio das populações indesejadas. Aprovado, e transformado na Lei nº 13.964/2019 (Brasil, 2029), uma das modificações foi a ocorrida no Art. 25 do Código Penal, que dispõe sobre as hipóteses de legítima defesa e foi alterado a fim de estender o benefício aos agentes públicos definidos pelo art. 114 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), quais sejam: policiais federais, rodoviários e ferroviários federais, civis, militares e corpos de bombeiros militares.

 

O projeto inicial previa a extensão para duas situações: a) quando o agente policial ou de segurança pública, em conflito armado ou em risco iminente deste, previne injusta agressão a direito seu ou de outrem; e b) quando o agente policial ou de segurança pública previne agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática de crimes. A extensão, todavia, foi aprovada apenas para a segunda situação, ou seja, quando há a prevenção de agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

 

Por certo, a não aprovação da legítima defesa a esses agentes em situações de conflito armado, no contexto de uma política beligerante, sobretudo no que se refere à guerra às drogas, pode ser considerada uma vitória. Entretanto, num cenário em que são comuns os enganos e estratagemas como modificação de cenários de crime, implantação de provas, dentre outros artifícios utilizados para incriminação de indivíduos vistos como suspeitos, mesmo a aprovação da escusa condicionada à proteção de vítima mantida como refém durante a prática de crimes precisa ser encarada com cautela, de modo que não se torne mais um dispositivo à disposição de um aparato policial compromissado com o genocídio antinegro.

 

Michel Foucault (2000) demonstrou que o direito de fazer viver e deixar morrer é uma das dimensões do poder de soberania dos Estados Modernos e que esse direito de vida e de morte “[...] só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte” (Foucault, 2000, p. 286). “É esse poder que permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis” (Carneiro, 2011, p. 134). É essa política de extermínio que cada vez mais se instala no Brasil, pelo Estado, com a conivência de grande parte da sociedade

 

Certo é que o pacote anticrime é um arremedo argumentativo que ignora o que é o direito quando pretende reduzi-lo a normas ditadas unicamente pelo Estado, desconsiderando o direito que é construído a partir das perspectivas da sociedade. O objetivo das alterações das respectivas leis nada mais é que a criação de um novo sentido comum repressivo que generalize e consolide a estratégia de controle social sobre os descartáveis. Assim, a seletividade é construída também pelo Legislativo e possibilitada por um Judiciário que é igualmente seletivo no momento de aplicação das leis. Esse cenário, por sua vez, é agravado pela fascistização representada pela eleição de Bolsonaro e de inúmeros representantes, para o Congresso Nacional, defensores de medidas igualmente rígidas e autoritárias. 

 

A lógica interna da criminalidade é, na maioria, uma consequência da marginalização social e seus agentes potenciais são todos os habitantes de favelas e das periferias. Desse modo, o objetivo não é a prevenção de delitos – impossível dentro do realismo social no qual se move o Estado – mas a localização e qualificação étnico-racial dos criminosos. Conforme o pensamento do criminólogo radical Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 19), “[...] ao contrário do que a ideologia dominante prega, não é o crime que produz o controle social, mas o controle social que produz o crime”.

 

Apresentado em fevereiro de 2019 (dois mil e dezenove), pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública à época, Sérgio Moro, o Projeto de Lei Anticrime (Pacote Anticrime) promove alterações em 14 (quatorze) leis, e foi alvo de muitas críticas por parte de juristas e da população leiga. A proposta aprovada altera o Código Penal e outras leis de segurança pública e tem por finalidade reduzir/conter o crime organizado, a corrupção e os crimes violentos, através da aplicação de penas mais severas para quem os pratique. Alguns artigos da Lei 13.964/19 (Brasil, 2029) foram aprovados; outros, vetados pela comissão designada para sua aprovação definitiva; e outros, não sancionados pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, como também, após a sua entrada em vigor, certos artigos tiveram sua eficácia suspensa por tempo indeterminado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como o que trata da criação do juiz das garantias.

Tais modificações surgiram como pressuposto de diminuir a grande insegurança que vive a sociedade brasileira e abrir espaço para uma imprescindível reforma no Código Penal Brasileiro. A violência no Brasil é um problema histórico, que atinge diversas classes sociais, e são vários os fatores responsáveis por esta mazela (sociais, econômicos, políticos e culturais), atrelados à corrupção, o que deixa a população vulnerável, amedrontada e até mesmo desacreditada no próprio Estado - o qual, nos termos do Art.  144, caput da Constituição Federal de 1988 (CF/88), deveria garantir segurança a todos. Objetivando o recrudescimento das leis penais e processuais penais enquanto modo de combater o crime, sob o pretexto do combate à corrupção, houve uma intensificação sobre tipos penais associados à criminalização da pobreza, a exemplo do roubo (Art. 157 do Código Penal), incluindo hipóteses de majoração de um terço até a metade em hipóteses de utilização de arma branca.

 

Ainda sobre o supracitado crime, incluiu o parágrafo § 2º-B ao artigo 157 do Código Penal, que prevê a possibilidade de aumento do dobro da pena, ou seja, de 8 a 20 anos de reclusão, quando o crime for cometido com arma de fogo de uso restrito ou proibido, ou seja, aquelas de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas.

 

No âmbito do cumprimento das penas, alterou a Lei nº 12.850/2013 para estipular   penalidades mais severas a crimes cometidos no contexto de organizações criminosas. Neste sentido, modificou o artigo 2º, § 8º a fim de estabelecer que as lideranças de organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição deverão iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima. Além disso, previu no § 9º da referida lei que integrantes de organização criminosa ou que tenham praticado crime por meio de organização criminosa, após condenação expressa em sentença, não poderão progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional, ou outros benefícios prisionais, se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo. Por fim, o pacote anticrime altera o art. 75 do Código Penal com vistas a ampliar o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 (trinta) para 40 (quarenta) anos.

 

Em relação aos homicídios, o documento elenca Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, Bahia e Ceará como os estados que estariam apresentando piora nesse quesito, ocasião em que introduz a pauta das drogas, afirmando haver uma epidemia nos referidos estados e que, por serem governados pela esquerda, não se trataria de coincidência. Ademais, aponta ter havido uma bolsa crack, em cidades administradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no estado de São Paulo (Brasil, 2018, p. 26).

 

O projeto de governo de Bolsonaro, com um claro perfil belicista, buscou descredibilizar as informações de que a polícia brasileira é a que mais mata, suplantando os policiais como heróis nacionais, cuja corporação deveria ser nomeada “Panteão da Pátria e da Liberdade” (Brasil, p. 29, 2018).

 

O Plano de Governo partia do pressuposto de que “[...] prender e deixar na cadeia salva vidas” (Brasil, p. 30, 2018). Desse modo, o Plano apresenta oito ações que seriam destinadas à redução dos homicídios, roubos, estupros e outros crimes:

 

a) Investir fortemente em equipamentos, tecnologia, inteligência e capacidade investigativa das forças policiais; b) Prender e deixar preso! Acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias!; c) Reduzir a maioridade penal para 16 anos!; d) Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à legítima defesa sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros!; e) Policiais precisam ter certeza que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu trabalho será lembrado por todos nós! Pela Nação Brasileira! f) Tipificar como terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro; g) Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81; h) Redirecionamento da política de direitos humanos, priorizando a defesa das vítimas da violência (Brasil, 2018, p. 30).

 

Os pontos aqui destacados do Plano de governo apresentado por Jair Messias Bolsonaro foram utilizados como parâmetros para orientar as escolhas das principais legislações que, até o momento, têm orientado a incursão genocida e contribuído para a vulnerabilidade do povo negro e pobre, destinatário principal das políticas criminais.

 

Entre o discurso anticorrupção e a realidade, todavia, relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de novembro de 2019, apontam         retrocessos no combate à corrupção no Brasil. Um dos documentos, intitulado Brazil: Setbacks in the Legal and Institutional Frameworks (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 2019), revela preocupante recrudescimento da ingerência sobre os órgãos responsáveis pelo enfrentamento à corrupção, a exemplo da Polícia Federal, da Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal Federal.

 

O relatório faz menção às investigações acerca da intervenção de Bolsonaro em órgãos de controle, além de, no âmbito do Poder Judiciário, citar decisões do Supremo Tribunal Federal que seriam responsáveis por retrocessos jurisprudenciais e descrédito do tribunal constitucional que coincide com o momento de ascensão do autoritarismo no país. Os desmantelamentos das forças-tarefa e renúncias de procuradores seriam demonstrações desses retrocessos. O presidente, por seu turno, dizia ter acabado com a corrupção.

 

É perceptível, portanto, que a segurança pública não é a segurança de todos os cidadãos brasileiros. O Estado brasileiro ignora que o fracasso de suas forças repressivas decorre de outras dimensões da vida social, a exemplo, da educação, saúde, alimentação, distribuição de rendas e riquezas. A posição do governo Bolsonaro em implementar novas políticas públicas de segurança pública só vem agravar os conflitos étnico-raciais, econômicos e sociais. As ações do Estado foram, paulatinamente, conduzidas para um certo tipo de Estado reacionário ultraliberal, legitimado pelo uso da força, com o argumento de ser a única reação possível frente à desordem. Ao contrário de um Estado democrático, o conceito de ordem está diretamente vinculado ao consenso produzido por todos os atores em conflito, horizontalmente.

 

A elaboração normativa sobre como deveria ser o castigo para esses desvios são decisões contingenciais que respondem à ordem social e aos regimes de poder hegemônicos. “A dimensão do poder, a fim de alcançar as razões políticas da criminalização” (Flauzina, 2006, p. 520).

A nova política nacional de drogas

 

Tomemos como ponto de partida o Decreto n.º 9.761 de abril de 2019 (Política Nacional sobre Drogas) que altera a Lei 11.343/2006 (Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) (Brasil, 2006); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências). Na mesma direção de um supremo populismo penal e fundamentalista, houve a aprovação do PLC n.º 37 (dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas) no Senado Federal, de autoria do Ministro da Cidadania Osmar Terra, que alterou a Lei 11.343/2006, ou seja, a Política Nacional sobre Drogas. 

 

Nesta nova disposição, entre as medidas mais preocupantes implementadas pelo decreto, destacam-se: a) a substituição da redução de danos pela diretriz da abstinência; b) priorização uma atenção manicomial e hospitalar aos usuários; c) precarização e dificultação do acesso integral previsto pelo Sistema Único de Saúde (SUS); além de d) previsão de internação involuntária por até três meses (Albuquerque, 2019). Este projeto substitui a redução de danos pela diretriz da abstinência e, portanto, prioriza uma atenção manicomial e hospitalar aos usuários; desfinancia a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), precariza e dificulta o acesso dos usuários à saúde pública, na perspectiva da integralidade apontada pelo Sistema Único de Saúde (SUS); prevê internação involuntária, de até três meses, possibilitando que esse dispositivo seja utilizado para higienização das grandes cidades por meio do recolhimento em massa de pessoas em situação de rua.

 

Ainda, tal dispositivo incorpora as Comunidades Terapêuticas (CTs) no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD), cujos modelos de tratamento para o cuidado incluem isolamento social, abstinência total e trabalho forçado, além de, muitas vezes, possuírem uma fundamentação religiosa compulsória aos usuários, além de serem equipamentos privados. Note-se que a atenção aos usuários de drogas realizadas pelas CTs vai de encontro à Lei n°10.216/2001 (Brasil, 2001) (Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental).

 

Oportuno destacar que é comum que parte das CTs sejam de filiação religiosa ou médica, e que um número considerável tem sido espaço para internações compulsórias e com violações dos direitos das pessoas em tratamento. Além disso, o tema da internação compulsória aliada ao financiamento com recursos públicos às CTs, o que pode alavancar “[...] uma indústria de internações provocadas pelos interesses econômicos destas instituições, mas também pela funcionalidade política de punição e segregação dos corpos indesejáveis” (Albuquerque, 2019, p. 9-10).

 

A análise das tendências legislativas observadas durante o governo Bolsonaro, notadamente da Lei de Drogas, revela a utilização, pela direita, de um discurso baseado no combate à criminalidade e na proteção da sociedade contra a violência, sustentado na garantia da ordem social. O resultado desse modelo de atuação, diverso da esquerda no discurso, mas bastante semelhante em determinados aspectos práticos, no âmbito da justiça criminal, buscou investir no recrudescimento penal, tal qual os governos anteriores. O recrudescimento é baseado no movimento Lei e Ordem, movimento este que se deu nos Estados Unidos em meados da década de 1970, bem como a evolução histórica no ordenamento jurídico em que foi inserido à época, como um modelo a ser seguido pelo Brasil.

 

O movimento surge na força contramajoritária que se insere na sociedade pós Segunda Guerra Mundial e nasce com a perspectiva de frear os crescentes índices de criminalidade das grandes metrópoles, aumentando a atuação policial na reprimenda dos delitos praticados. Logo, advém a necessidade de repressão máxima e, com ela, a elaboração de variadas leis repressivas. Por consequência, a sociedade é dividida em dois grupos: aquele composto por pessoas do bem, as quais merecem a proteção das leis; e os delinquentes, considerados inimigos da sociedade e do Estado, que devem ser punidos de forma que não haja reincidências criminosas.

 

As taxas de criminalidade das cidades estadunidenses que adotaram políticas públicas lastreadas nos movimentos lei e ordem, em particular na tolerância zero, foram comprovadamente reduzidas porque, de forma complementar, houve significativo investimento em projetos sociais e estímulo à economia, o que não ocorre no Brasil: muito pelo contrário, há um desmantelamento em curso das políticas públicas.

 

Quanto ao perfil dos clientes, permaneceu o caráter seletivo e discriminatório do sistema de justiça criminal, eleitos, sobretudo, por meio da Lei de Drogas, uma das principais responsáveis por garantir o efeito contrário ao pretenso compromisso assumido com o desencarceramento, mediante o pacote anticrime (Lei n.º 13.840, de 5 de junho de 2019) que combateria os crimes e consequentemente o encarceramento.

 

Para mais, na análise das medidas implementadas pelo decreto, é possível verificar uma ampliação da ameaça de vulnerabilidade que compreende a questão das drogas, visto que as políticas públicas sobre drogas foram alteradas, expressando características que vão na contramão dos direitos sociais e do acesso às ações coletivas de saúde, respeito aos usuários e descriminalização. Em outras palavras, um retrocesso das conquistas da Reforma Psiquiátrica, assim como a ampliação do aspecto punitivo e do controle social das classes subalternizadas. Portanto, é notório que a criminalização permanecerá atingindo o mesmo público, através do recolhimento em massa de pessoas em situação de rua, por exemplo.

 

Diante disso, a política de enfrentamento às drogas tem se resumido à criminalização que, quando não é letal, encarcera. E para tanto, orienta a atuação legislativa, o entendimento dos magistrados e o modo como a segurança pública é gerida (Duarte; Freitas, 2019). “[...] Imaginar uma sociedade perfeita sob a bandeira da lei e da ordem é um pensamento fascista, mas fazer isso por intermédio do encarceramento é loucura” (Valois, 2017, p. 650).  Isso porque “O fim da guerra às drogas não será alcançado por intermédio do judiciário, pois este, como parte da superestrutura do Estado, instrumento conservador do status quo, tende a se movimentar mais lentamente do que a base (Valois, 2017, p. 451)”. 

 

As mãos de um presidente, sem escrúpulos ou cautela, podem ser usadas para amplificar o estado nazifascista, mesmo com os possíveis freios judiciais. Consolidaram-se normas sem comedimento presidencial.

Considerações finais

 

Ressalta-se que um dos traços mais marcantes do governo bolsonarista foi a direção de um supremo populismo penal e fundamentalista, que, notadamente em matéria penal e de segurança pública, assunto de alta complexidade, deveria ensejar maiores debates. É importante lembrar que, em uma sociedade democrática, as leis que impactam toda a sociedade devem ser debatidas pelos representantes democraticamente eleitos, incluindo o presidente, mas não se limitam a ele.

 

Um debate mais amplo sobre a questão das drogas implica reconhecer a sua determinação fundante: mercadorias inseridas na produção capitalista no contexto do proibicionismo e o mercado ilegal decorrente. Vale lembrar que na economia capitalista a dimensão determinante é a produção e não o consumo, embora tais dimensões estejam vinculadas. A criminalização das drogas alimenta e perpetua o sistema capitalista-racista-patriarcal produtor de opressão, exploração e desigualdades. Por isso, o tráfico é sustentado não pelos consumidores, mas pela produção capitalista e seu sistema de desigualdades raciais e sociais em relação direta com a proibição. Acrescenta-se que, a partir do encarceramento em massa, as redes criminosas do tráfico de drogas se expandem e surgem consequências, tais como: violência urbana, expansão de empresas de vigilância, corrupção dos operadores do Estado e outros ramos da economia ilegal como o tráfico de armas, exploração e tráfico sexual, dentre outras.

 

O avanço do reacionarismo ultraliberal ameaça os valores básicos do Estado democrático de direito, a partir de uma nova política fundada em um menos Estado social e um mais Estado penal. Por conseguinte, a criminalização da pobreza e a eliminação dos inúteis para o capitalismo trazem como consequência a radicalização da questão das drogas como questão política e pública, imposta a mais severa precarização e marginalização às classes subalternas. Neste sentido, Cohen alerta para que “[…] lo aniquilamento de lo humano en el hombre no termina con la cancelación de sus derechos jurídicos. La segunda etapa de su destrucción concierne a la persona moral y se opera a través de la separación del resto del mundo” (Cohen, 2006, p. 42).

 

Referências

 

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Foucault, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975 - 1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

Freitas, F. da S. A que será que se destina? O pacote de Moro e a escalada autoritária do Estado brasileiro. In: Rios, L. P. C.; Neves, L. G. B.; Assumpção, V. de S. (Org.). Estudos temáticos sobre o pacote anticrime. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

 

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Brazil: Setbacks in the legal and institutional anti-corruption frameworks. Paris: OCDE: 2019. Disponível em: https://www.transparency.org/en/publications/brazil-setbacks-in-the-legal-and-institutional-anti-corruption-frameworks#. Acesso em: 7 jun. 2024.

 

Ribeiro, D. S. “É no lombo das pretas”: a proposta de alteração da pensão por morte e seu impacto na vida de mulheres negras. In: Flauzina, A.L. P.; Pires, T. R. de O. (Org.). Rebelião. Brasília (DF): Brado Negro; Nirema, 2020. p. 214-220.

 

Santos, J. C. dos. A criminologia radical. 3. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2008.

 

Valois, L. C. O direito penal da guerra às drogas. 2. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: D`Plácido, 2017.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Jaqueline Carvalho QUADRADO

Doutora em Sociologia, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) e Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas (PPGCH) e professora do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja/RS/Brasil. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Violência, Gênero e Sexualidade /ATENA(Unipampa). É líder do Grupo de Pesquisa Gênero, Ética, Educação e Política-GEEP (CNPq/Unipampa).

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Editoras responsáveis

 

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Maria Lúcia Teixeira Garcia – Editora

 

 

Submetido em: 31/7/2024. Revisado em: 3/4/2025. Aceito em: 7/5/2025.

 

 

 

 

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 



[1] No Plano de Governo intitulado O caminho da prosperidade, com forte apelo patriótico, citações bíblicas, imagens que remetem ao divino cristão e atribuição das mazelas sociais brasileiras ao comunismo e aos anos de governo do Partido dos Trabalhadores, Bolsonaro apresentou uma proposta que configurava a nova forma de governar.

[2] Por pós democrático, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No Estado pós democrático a democracia permanece, não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas como um mero simulacro, um elemento apaziguador (Casara, 2017, p. 23).

[3] Pensamento penal dominante no Brasil, que tem dominância na sociedade devido ao forte apelo legitimador, sobretudo nos momentos de crise, consubstanciado pelo que Alessandro Baratta (2013) denomina o mito do Direito Penal igualitário. O populismo penal produz o que se denomina senso comum punitivo, ideia amplamente partilhada por várias dimensões da sociedade, inclusive na esquerda, de que o direito penal é capaz de resolver os conflitos sociais.