Questão étnico-racial, serviço social e política
social
Maria Helena ELPÍDIO*
Universidade Federal do
Espírito Santo, Departamento de Serviço Social,
Curso de Serviço
Social, Vitória, ES, Brasil.
e-mail: lenaabreu@gmail.com
A Revista Argumentum tem se constituído como um
dos veículos com reconhecida relevância e importância para o fortalecimento da
produção e publicação na área do serviço social brasileiro com alcance
internacional, trazendo debates candentes e atuais que atravessam o vasto campo
das políticas sociais na direção da profissão em seu compromisso ético-político
e coerência com a direção social de um horizonte emancipatório de sociedade.
A presente edição chega com todos estes atributos
e, mais uma vez, se alinha aos desafios colocados na dinâmica social ao
apresentar o tema Questão étnico-racial, serviço social e política
social. Tem-se o intuito de contribuir com o aprofundamento de
debates em torno da compreensão da questão étnico-racial como elemento
estrutural das relações sociais na sociedade de classes. Vale destacar que o
racismo moderno é uma das chaves analíticas para a compreensão do processo de
acumulação, desenvolvimento capitalista e exploração da força viva do trabalho
nesta sociabilidade.
Um acerto de contas
histórico e o desenho de uma agenda para o presente e o futuro das classes
trabalhadoras pode ser redefinido na medida em que avançarmos no campo da
esquerda neste debate, considerando a necessidade de superação do tardio
reconhecimento do racismo estrutural e do engajamento na práxis negra para
superar os velhos e novos grilhões que nos aprisionam. Nessa direção, falar de
antirracismo é falar de anticapitalismo. E o inverso, é absolutamente
verdadeiro!
Portanto, a questão
racial é inerente para a conformação questão social, cujos desdobramentos
incidem diretamente no cotidiano das classes trabalhadoras em sua diversidade
de gênero, raça e território sob as mais perversas faces da violência, das
desigualdades sociais e econômicas, condições precárias de vida e de trabalho,
levando a este contingente da classe uma vida permanente em Quartos de
Despejos.
Em um trajeto que
recupera elementos do escravismo, colonialismo, racismo e imperialismo na
formação social brasileira e sua inserção na dinâmica de economias
dependentes, temos em mãos textos
importantes desenvolvidos por pesquisadoras/es maduros e de gerações
recentes que abordam de forma
consistente debates e interlocuções teóricas sobre categorias que fundamentam a
compreensão e análise da questão étnico-racial no bojo das relações sociais em
diferentes contextos históricos, seus rebatimentos na vida de negros/as, nas
políticas sociais e no serviço social.
Temos neste volume
artigos que fazem interlocuções dos autores/as com as contribuições de
clássicos no campo do marxismo, como J. Gorender, C. Moura, Lélia Gonzalez
dentre outros. Nesta esteira, a
resenha do livro de Clóvis Moura Sociologia do negro no Brasil
apresentada por João Paulo da S. Valdo trás além de uma contribuição textual, a
representação de inúmeros grupos de estudos que emergem neste contexto do
serviço social brasileiro no exercício coletivo de apreensão do debate na
tradição marxista, recuperando por exemplo, obras de Moura.
Desse modo, destaca-se
nas análises a perspectiva de totalidade, que engendra racismo e capitalismo
como parte das determinações no processo de produção e reprodução social, bem
como não se dissociam raça e classe (e seus componentes de gênero/sexualidade e
território). Estas afirmações nos permitem contrariar e expor as fragilidades
de abordagens e tendências liberais, culturalistas, identitaristas que crescem
em torno da temática racial sob a influência do irracionalismo - estruturalista
e pós-moderno (Coutinho, 2010). Além de apontar para os riscos do reducionismo
neoliberal da questão negra circunscrita à condição de minorias/diversidades
e público alvo de políticas seletivas e focalizadas nos ditos,
vulneráveis, o que despolitiza o debate em torno da luta de classes e do
enfrentamento da questão social. Para enfrentar este debate na ótica dos
trabalhadores/as temos artigos que evidenciam as formas de lutas e resistências
negras de mulheres, quilombolas, movimentos sociais e outras formas de
organização que envolvem ainda, o crescimento do debate das relações
étnico-raciais no serviço social brasileiro nesta quadra histórica.
Estudos presentes neste
volume conseguem também dimensionar impactos do investimento da categoria e
suas entidades organizativas (CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO), na formação
graduada e pós-graduada, em pesquisas e produção do conhecimento na área que já
demonstram os avanços e desafios para o serviço social na incorporação e
aprofundamento do debate das relações étnico-raciais norteado no campo da
radicalidade crítica e dos fundamentos do serviço social no trabalho e formação
profissional.
As análises e sínteses
em tela apontam para a urgência da disputa entre e a tradição marxista e o
ideário burguês e neoliberal que reacende a pauta racial nas mídias,
isento de criticidade e da busca radical de superação do racismo e capitalismo
em suas estruturas. Se por um lado aumentam as ofensivas mais violentas e
letais impetradas pela sociedade e Estado contra a população negra diante do
agravamento da questão social em tempos de crise do capital revelando as suas
principais mazelas; de outro, discursos e narrativas idealistas levam a ao
integracionismo e busca individual da promoção social dentro da ordem,
inspiradas no mito da democracia racial e do pacto da branquitute que tentam
tecer cortinas de fumaça para escamotear o estopim nas lutas de classes
radicalizadas quando [...] o morro descer e não for carnaval” (Neves, 1997).
Temos nesta edição ainda, contribuições
inestimáveis na seção debates com pesquisadoras/es, militantes e intelectuais
negras/os como Cristiane Sabino (UFSC), Márcio Farias (PUC/SP), Iara Vanessa Fraga de Santana (UECE) Tales Fornazier (UNIFESP). Nos termos das provocações e reflexões
de Cristiane, interessa entender o racismo a partir da história do trabalho e da classe trabalhadora no Brasil, considerando a
disputa ideológica em torno do debate racial na atualidade, contribuam para
apreensão da complexidade do racismo nas relações sociais, sua conexão com a
acumulação de capital e com a luta de classes e como este processo resulta no
aviltamento das condições de vida e de trabalho sob a radicalização neoliberal
e acelera o aprofundamento das tendências históricas da reprodução do
capital na América Latina - as quais guardam vínculos com o escravismo colonial
e toda a desigualdade estrutural que funda o capitalismo dependente. Explicitar
como tais tendências históricas manifestam-se nas facetas contemporâneas da
superexploração da força de trabalho; e como o racismo e o sexismo,
indissociáveis da reprodução do capital, dão dinamismo e são dinamizados,
dialeticamente, nesse processo.
Deixo aqui meu registro como mulher negra,
professora, pesquisadora, militante e parte do curso de serviço social da Ufes
e do PPGPS a satisfação de junto com as professoras Ana Targina e Lúcia Garcia
(editoras da revista) trazer esta Edição da Revista Argumentum, voltada para
reafirmar o compromisso com um projeto que fortalece
a pauta da Formação Antirracista no Serviço Social. Ao logo de mais de uma década tenho dedicado
energia vital nesta empreitada de luta e resistência ancestral e coletiva no
âmbito do serviço social brasileiro e da universidade pública travando muitas
batalhas cotidianas para o enfrentamento do racismo e sexismo dentro e fora do
espaço de formação. Mas, tem sido em especial, na representação em sucessivas
gestões da ABEPSS que vejo se materializar os frutos desta exaustiva e
necessária busca por estancar as dores e as gotas de suor e sangue derramados
por negros e negras, indígenas e outros segmentos aviltados e oprimidos, ao
longo de séculos marcados pela desumanização. Que na quilombagem se faça ecoar a nossa voz em um canto novo, da real
liberdade!
Referências
Neves, W. da. O dia em que o morro descer e
não for carnaval. Compositores: Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro.
Álbum: O Som Sagrado de Wilson das Neves (1997). Canal de Guilherme Fäzil.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mr0ZUETRnJk. Acesso em: 18 abr.
2024.
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