Questão étnico-racial, serviço social e política social

 

Maria Helena ELPÍDIO*

Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Serviço Social, 

Curso de Serviço Social, Vitória, ES, Brasil.

e-mail: lenaabreu@gmail.com

 https://orcid.org/0000-0001-8243-5427

 

A Revista Argumentum tem se constituído como um dos veículos com reconhecida relevância e importância para o fortalecimento da produção e publicação na área do serviço social brasileiro com alcance internacional, trazendo debates candentes e atuais que atravessam o vasto campo das políticas sociais na direção da profissão em seu compromisso ético-político e coerência com a direção social de um horizonte emancipatório de sociedade.

 

A presente edição chega com todos estes atributos e, mais uma vez, se alinha aos desafios colocados na dinâmica social ao apresentar o tema Questão étnico-racial, serviço social e política social. Tem-se o intuito de contribuir com o aprofundamento de debates em torno da compreensão da questão étnico-racial como elemento estrutural das relações sociais na sociedade de classes. Vale destacar que o racismo moderno é uma das chaves analíticas para a compreensão do processo de acumulação, desenvolvimento capitalista e exploração da força viva do trabalho nesta sociabilidade.

 

Um acerto de contas histórico e o desenho de uma agenda para o presente e o futuro das classes trabalhadoras pode ser redefinido na medida em que avançarmos no campo da esquerda neste debate, considerando a necessidade de superação do tardio reconhecimento do racismo estrutural e do engajamento na práxis negra para superar os velhos e novos grilhões que nos aprisionam. Nessa direção, falar de antirracismo é falar de anticapitalismo. E o inverso, é absolutamente verdadeiro!

 

Portanto, a questão racial é inerente para a conformação questão social, cujos desdobramentos incidem diretamente no cotidiano das classes trabalhadoras em sua diversidade de gênero, raça e território sob as mais perversas faces da violência, das desigualdades sociais e econômicas, condições precárias de vida e de trabalho, levando a este contingente da classe uma vida permanente em Quartos de Despejos. 

 

Em um trajeto que recupera elementos do escravismo, colonialismo, racismo e imperialismo na formação social brasileira e sua inserção na dinâmica de economias dependentes,  temos em mãos textos importantes desenvolvidos por pesquisadoras/es maduros e de gerações recentes  que abordam de forma consistente debates e interlocuções teóricas sobre categorias que fundamentam a compreensão e análise da questão étnico-racial no bojo das relações sociais em diferentes contextos históricos, seus rebatimentos na vida de negros/as, nas políticas sociais e no serviço social.

 

Temos neste volume artigos que fazem interlocuções dos autores/as com as contribuições de clássicos no campo do marxismo, como J. Gorender, C. Moura, Lélia Gonzalez dentre outros.    Nesta esteira, a resenha do livro de Clóvis Moura Sociologia do negro no Brasil apresentada por João Paulo da S. Valdo trás além de uma contribuição textual, a representação de inúmeros grupos de estudos que emergem neste contexto do serviço social brasileiro no exercício coletivo de apreensão do debate na tradição marxista, recuperando por exemplo, obras de Moura.

 

Desse modo, destaca-se nas análises a perspectiva de totalidade, que engendra racismo e capitalismo como parte das determinações no processo de produção e reprodução social, bem como não se dissociam raça e classe (e seus componentes de gênero/sexualidade e território). Estas afirmações nos permitem contrariar e expor as fragilidades de abordagens e tendências liberais, culturalistas, identitaristas que crescem em torno da temática racial sob a influência do irracionalismo - estruturalista e pós-moderno (Coutinho, 2010). Além de apontar para os riscos do reducionismo neoliberal da questão negra circunscrita à condição de minorias/diversidades e público alvo de políticas seletivas e focalizadas nos ditos, vulneráveis, o que despolitiza o debate em torno da luta de classes e do enfrentamento da questão social. Para enfrentar este debate na ótica dos trabalhadores/as temos artigos que evidenciam as formas de lutas e resistências negras de mulheres, quilombolas, movimentos sociais e outras formas de organização que envolvem ainda, o crescimento do debate das relações étnico-raciais no serviço social brasileiro nesta quadra histórica.

 

Estudos presentes neste volume conseguem também dimensionar impactos do investimento da categoria e suas entidades organizativas (CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO), na formação graduada e pós-graduada, em pesquisas e produção do conhecimento na área que já demonstram os avanços e desafios para o serviço social na incorporação e aprofundamento do debate das relações étnico-raciais norteado no campo da radicalidade crítica e dos fundamentos do serviço social no trabalho e formação profissional.

 

As análises e sínteses em tela apontam para a urgência da disputa entre e a tradição marxista e o ideário burguês e neoliberal que reacende a pauta racial nas mídias, isento de criticidade e da busca radical de superação do racismo e capitalismo em suas estruturas. Se por um lado aumentam as ofensivas mais violentas e letais impetradas pela sociedade e Estado contra a população negra diante do agravamento da questão social em tempos de crise do capital revelando as suas principais mazelas; de outro, discursos e narrativas idealistas levam a ao integracionismo e busca individual da promoção social dentro da ordem, inspiradas no mito da democracia racial e do pacto da branquitute que tentam tecer cortinas de fumaça para escamotear o estopim nas lutas de classes radicalizadas quando [...] o morro descer e não for carnaval” (Neves, 1997).

 

Temos nesta edição ainda, contribuições inestimáveis na seção debates com pesquisadoras/es, militantes e intelectuais negras/os como Cristiane Sabino (UFSC), Márcio Farias (PUC/SP), Iara Vanessa Fraga de Santana (UECE) Tales Fornazier (UNIFESP). Nos termos das provocações e reflexões de Cristiane, interessa entender o racismo a partir da história do trabalho e da classe trabalhadora no Brasil, considerando a disputa ideológica em torno do debate racial na atualidade, contribuam para apreensão da complexidade do racismo nas relações sociais, sua conexão com a acumulação de capital e com a luta de classes e como este processo resulta no aviltamento das condições de vida e de trabalho sob a radicalização neoliberal e acelera  o aprofundamento das tendências históricas da reprodução do capital na América Latina - as quais guardam vínculos com o escravismo colonial e toda a desigualdade estrutural que funda o capitalismo dependente. Explicitar como tais tendências históricas manifestam-se nas facetas contemporâneas da superexploração da força de trabalho; e como o racismo e o sexismo, indissociáveis da reprodução do capital, dão dinamismo e são dinamizados, dialeticamente, nesse processo.

Deixo aqui meu registro como mulher negra, professora, pesquisadora, militante e parte do curso de serviço social da Ufes e do PPGPS a satisfação de junto com as professoras Ana Targina e Lúcia Garcia (editoras da revista) trazer esta Edição da Revista Argumentum, voltada para reafirmar o compromisso com um projeto que fortalece a pauta da Formação Antirracista no Serviço Social.  Ao logo de mais de uma década tenho dedicado energia vital nesta empreitada de luta e resistência ancestral e coletiva no âmbito do serviço social brasileiro e da universidade pública travando muitas batalhas cotidianas para o enfrentamento do racismo e sexismo dentro e fora do espaço de formação. Mas, tem sido em especial, na representação em sucessivas gestões da ABEPSS que vejo se materializar os frutos desta exaustiva e necessária busca por estancar as dores e as gotas de suor e sangue derramados por negros e negras, indígenas e outros segmentos aviltados e oprimidos, ao longo de séculos marcados pela desumanização. Que na quilombagem se faça ecoar a nossa voz em um canto novo, da real liberdade!

 

Referências

 

Neves, W. da. O dia em que o morro descer e não for carnaval. Compositores: Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro. Álbum: O Som Sagrado de Wilson das Neves (1997). Canal de Guilherme Fäzil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mr0ZUETRnJk. Acesso em: 18 abr. 2024.



*  © A(s) Autora(s)/O(s) Autor(es). 2024. Acesso Aberto. Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material para qualquer fim, mesmo que comercial.  O licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos da licença.