Capitalismo
catástrofe e o fatalismo à espreita
Catastrophe,
capitalism, and a lurking fatalism
Eduardo Sá BARRETO
https://orcid.org/0000-0003-4431-2607
Universidade
Federal Fluminense, Faculdade de Economia, Departamento de Economia, Programa
de
Pós-graduação
em Economia, Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o
Marxismo,
Niterói,
RJ, Brasil
e-mail: eduardobarreto@id.uff.br
INTRODUÇÃO
A |
literatura a respeito de temas candentes para
a humanidade não costuma economizar na caracterização de seus objetos de debate
como crises: crise cíclica, estrutural, financeira, geopolítica, de
representação, ideológica, ambiental, ecológica, climática etc. O mundo
contemporâneo tem sido pródigo em multiplicar as razões para este hábito. Em
meio a essas múltiplas crises, duas sobressaem e conformam o sentido do que
denomino de capitalismo catástrofe no
título deste artigo. Primeiro, porque no caso delas o próprio significado de
crise deve ser colocado em questão. Segundo, porque ambas incidem sobre
estruturas basilares críticas: a assim chamada crise climática implica a erosão
progressiva das bases materiais da vida no planeta e a assim chamada crise estrutural
do capitalismo implica a erosão progressiva das bases sociais do modo vigente
de vida em sociedade.
O
texto a seguir percorrerá um caminho inusitado. Ao longo das seções, um quadro
bastante sombrio será delineado, um quadro que não deixa margens para
visualizar saídas. Mas o faremos apenas para, ao final, rejeitar qualquer forma
de fatalismo. De certa maneira, adota-se aqui como princípio norteador algo
semelhante à fórmula de Safatle (2024), segundo a qual o pressuposto para criar
uma saída é reconhecer que não há saída.
Frequentemente,
contornamos esse tipo de impasse e tentamos afastar o fatalismo reivindicando
outra fórmula: o pessimismo da razão combinado ao otimismo da vontade. Mas ela
vira puro truque retórico se o otimismo da vontade que se adota é incompatível
com a realidade que a razão nos mostra. Não é o que faremos aqui. Na segunda e
terceira seções, mapeia-se a gravidade dos processos de desmoronamento
climático e socioeconômico. Na quarta seção, mostra-se a insuficiência crônica
das vias de ação que vêm sendo adotadas no interior dos marcos institucionais e
políticos da ordem estabelecida. A quinta seção apresenta uma crítica àquela
que tem figurado como a grande agenda ambiciosa da vontade otimista. A seção conclusiva, por fim, procura localizar
onde deve estar situada, e por quais fins deve estar
motivada, a nossa rejeição ao fatalismo.
A QUESTÃO CLIMÁTICA: CRISE OU COLAPSO?
Numa
coletiva à imprensa em julho de 2023, o secretário geral da ONU declarou que a
“[...] era do aquecimento global acabou; a era da ‘ebulição global’ chegou”
(Guterres, 2023). A afirmação do português veio ao final daquele que viria a
ser, naquela ocasião, o mês mais quente já registrado na história
da humanidade. A linguagem aparentemente hiperbólica demonstrou-se
perfeitamente adequada nos meses que sucederam. Depois do mês mais quente da
história, tivemos o agosto, o setembro, o outubro, o novembro e o dezembro mais
quentes e, enfim, o ano mais quente já registrado. Janeiro e fevereiro de 2024
mantiveram a sequência de recordes. Não só isso, mas o próprio ritmo de piora
de indicadores decisivos mudou de padrão, apresentando recordes negativos por
amplíssimas margens e por dezenas de dias consecutivos, algo sem precedentes no
registro observacional (Ripple et al., 2023).
Pelos
mesmos motivos, o uso do termo crise climática, que já vinha ganhando
tração, consolidou-se no debate público. No entanto, a ideia de que as mudanças
climáticas avançavam para um quadro geral de crise já vinha sendo veiculada há
mais tempo e devido a tendências mais persistentes e estruturais. Alguns dos
sinais vitais do planeta há muito já ultrapassaram os patamares observados ao
longo do Holoceno, justamente a época geológica de relativa estabilidade
climática que proporcionou as bases materiais ecológicas para o desenvolvimento
da humanidade ao longo dos últimos 12 mil anos (Veiga, 2019).
À
primeira vista, portanto, crise – um
desvio pronunciado e abrupto da normalidade até então vigente – parece ser um
termo adequado para descrever a realidade atual. Contudo, uma pequena (mas
significativa) imprecisão espreita seu uso: crise
remete à ideia de um desvio que pode ser mais ou menos grave, mais ou menos
duradouro, mas sempre temporário. Não é isso, porém, que caracteriza o conjunto
de desestabilizações planetárias desatadas pelos impactos da atividade humana.
Não só o desvio não é temporário como, além disso, ele tende a se propagar por
séculos e até milênios (IPCC, 2023). Admitindo que a espécie não seja varrida
pela extinção, por dezenas de gerações a humanidade será confrontada por uma
natureza cada vez mais convulsiva e desafiadora. Consequentemente, a palavra
mais adequada, desde já, é colapso.
Encontramo-nos em meio a um processo de colapso que em muitos sentidos não pode
mais ser evitado (embora ainda possa ser dramaticamente acelerado/piorado,
dependendo dos cursos de ação que serão ou não tomados daqui em diante).
Naturalmente,
colapso não é uma palavra que costume ser pronunciada com tranquilidade e, em
parte por isso, é raramente utilizada fora de alguns poucos espaços de agitação
política. Há, inclusive, um sedutor meio de evitá-la.
De
acordo com o entendimento científico corrente, a trajetória de elevação da
temperatura média do planeta responderia rapidamente ao zeramento das emissões
de CO2 e à estabilização das emissões de demais gases de efeito
estufa (GEE). O padrão específico estimado para tal resposta pode ser observado
na seguinte figura.
Figura 1: Emissões
cumulativas de CO2 e futura forçante
radiativa não-CO2 determinam a probabilidade de limitar o
aquecimento a 1,5°C
Fonte: (IPCC, 2019, p. 9)
Isso
dá margem para uma espécie de dissonância cognitiva que renuncia ao rigor
científico em troca de um discurso arbitrariamente comedido. Alguns cientistas
do clima, como o eminente professor Michael E. Mann, apoiam-se nesta modelagem
para se situarem, com ares de sobriedade, entre os negacionismos e um suposto
catastrofismo.
Em
um de seus últimos livros, por exemplo, Mann insiste que a “[...] ciência mais
recente nos informa, com bom nível de precisão, que o quanto a superfície do
planeta se aquece é uma função do quanto de carbono nós queimamos até aquele ponto” (Mann, 2021, posição
3037, grifo nosso). A ideia que se procura, com isso, veicular, é que sempre
haverá tempo para evitar os piores impactos de qualquer ponto em diante, porque
o aquecimento seria interrompido tão logo as emissões antrópicas de GEE fossem
interrompidas.
A
intenção de Mann e de outros como ele parece ser a de evitar o imobilismo que
se instalaria, em seu entendimento, diante de um quadro de colapso iminente sem
saídas. Na verdade, Mann e tantos outros que adotam posições semelhantes se
debatem com o mesmo complexo de problemas sobre o qual este texto se debruça:
como rejeitar o fatalismo? O que eles omitem, no entanto, está longe de ser
insignificativo.
Mesmo
que as simulações dos melhores modelos indiquem que a elevação da temperatura
média do planeta se interrompe quando as emissões são zeradas, o caminho para
alcançar o nível de emissões líquidas nulas [net zero] exige êxitos
tão monumentais e sem precedentes que o esforço científico de investigar suas
condições de realização não pode ser dispensado. Na quinta seção, retornarei a
essa problemática.
Ainda
mais importante, mesmo admitindo o zeramento das emissões e a estabilização da
temperatura, os impactos do aquecimento não estariam estabilizados. Um mundo
1.5ºC mais quente que o período-base (1850-1900) é um mundo mais instável e
extremo que o atual. Mais que isso, sabemos que “[...] para qualquer nível de
aquecimento futuro, os riscos relacionados ao clima são maiores do que os
avaliados na AR5 e os impactos de longo prazo previstos são múltiplas vezes maiores daquilo que é
atualmente observado” (IPCC, 2023, p. 15, grifo nosso).
Em
suma, aquilo que aparece como ponderado, comedido, rigoroso é, na verdade,
cientificamente impreciso e insuficiente. E aquilo que aparece como hiperbólico
e alarmista é a caracterização mais cientificamente aderente à realidade.
Portanto, colapso, não crise.
CRISE CRÔNICA DO CAPITALISMO
Pelos
mesmos critérios da seção anterior, aqui também deveríamos falar de colapso.
Mas no caso da tradição marxista, essa palavra vem carregada de muita
controvérsia, porque envolve toda uma série de discussões ainda em aberto a
respeito de determinismo, agência histórica e organização da classe
trabalhadora. Esse ruído que seria herdado do debate me leva, aqui, a evitar seu
uso. Ademais, diferentemente do que vimos na seção anterior, aqui não seremos
obrigados a renunciar ao exame de processos significativos. Ao contrário, ao
destacarmos as tendências constitutivas da assim chamada crise estrutural da
sociedade capitalista, estaremos em condições de demonstrar seu caráter crônico
e progressivo e, com isso, ampliar nossa compreensão a respeito das
impossibilidades ecológicas que povoam tal desmoronamento.
A
literatura marxista recente já demonstrou, para além de qualquer dúvida
razoável, que mesmo sob condições normais de reprodução, o metabolismo próprio
desta sociedade é gerador e multiplicador de tendências ecologicamente
destrutivas. A compulsão expansiva do capital lança a humanidade como um todo
ao esforço permanente e crescente da acumulação, cobrando o direcionamento de
nossos esforços para a ampliação cega da produção e do consumo e a mobilização
de qualquer proeza tecnológica para viabilizar essa finalidade estreita (Sá
Barreto, 2022).
Em
condições de perturbação cíclica dessa normalidade, poderíamos ser tentados a
supor que a marcha ecologicamente destrutiva é ao menos temporariamente
amenizada. A crise da dívida em diversas nações na Europa em 2012, por exemplo,
provocou tamanha desorganização e retração da atividade econômica que o nível
global de emissões de GEE apresentou um pequeno decrescimento. Os primeiros
meses da pandemia de COVID-19 trouxeram resultado semelhante, acompanhado de
alguns outros tímidos sinais de que a pressão humana sobre a natureza afrouxara
um pouco. Tais pontuais e temporárias desacelerações da marcha destrutiva da
acumulação não podem, contudo, ser tomadas como o efeito geral da crise e,
especialmente, da crise estrutural.
Desde
o final dos anos 80, quando O’Connor (1988; 1991) primeiro formula sua tese
sobre a segunda contradição do capitalismo, esse tem sido um coringa
teórico para afirmar que antes de destruir o planeta, o capitalismo se autodestruiria
ao esbarrar em seus limites ecológicos. O’Connor está correto em sublinhar que,
em seu movimento, o capital pressiona os ecossistemas e a disponibilidade
física e econômica de recursos materiais e energéticos fundamentais para seu
processo de acumulação. Por um lado, a degradação ecossistêmica diminui a
contribuição dos free gifts (Burkett, 1999; Marx, 2013) para a lucratividade e, por
outro, o exaurimento de reservas e/ou da oferta de recursos materiais e
energéticos encarece a produção, comprimindo o lucro. Quanto a isso, no
entanto, sua formulação apresenta duas zonas cegas.
A
primeira é que, embora a exuberância natural possa fornecer contribuições
gratuitas ao capital, não são as condições ecológicas absolutas que desempenham
o papel mais decisivo. Como diz Marx (2013), a pátria do capital não é aquela
que proporciona condições abundantes de satisfazer plenamente as necessidades
humanas, mas aquela que empurra o ser humano a buscar ativamente o domínio
sobre a natureza conforme a mais estreita racionalidade econômica. Ao contrário
do que poderia parecer à primeira vista, a deterioração ecológica não funciona
como um freio para o capital, mas cria a necessidade e as condições para que
ele sempre dobre a aposta, explorando segundo sua própria lógica as
mazelas, destruições e carecimentos deixados em seu rastro. Desnecessário dizer
que isso vem acompanhado de uma série de novas disfuncionalidades e barreiras
para a acumulação, mas a resposta do sistema como um todo é sempre
acelerar.
A
segunda é que o encarecimento dos elementos do capital constante tampouco
representa um obstáculo intransponível à acumulação ou um limite ao qual o
capital possa se acomodar. Moore (2017) demonstra este ponto cristalinamente
com seu conceito de natureza barata,
que ilumina as inúmeras alternativas ao alcance do capital para fazer frente ao
escasseamento físico e/ou econômico de recursos materiais e energéticos:
substituição, ampliação da prospecção, aumento de produtividade na extração,
aumento de eficiência no consumo, redução do controle de impactos ambientais
etc. De novo, ao contrário de paralisar
o capital, a compressão da lucratividade o lança em uma corrida ainda mais
ensandecida para executar sua lógica expansiva.
Ao
passarmos às considerações sobre a crise estrutural, a tendência a acelerar
fica ainda mais visível. O capital cronicamente superacumulado
encontra dificuldades crescentes de extrair mais-trabalho porque a base de
trabalho vivo que pode ser produtivamente empregada – dado o nível das forças
produtivas – é estreita demais diante do capital que deve ser valorizado.[1]
No que tange ao tema deste artigo, dois complexos de problemas daí emergem.
Em
primeiro lugar, mantendo o que já foi comentado acima, a compressão dos lucros
a um nível que paralise a acumulação exige respostas tanto intensivamente
quanto extensivamente. Do ponto de vista intensivo, a ampliação da exploração
segue sendo impulsionada pela corrida (jamais afrouxada) por elevação da
produtividade, eficiência e intensidade no processo de trabalho e pelo
acirramento de outras vias de barateamento da força de trabalho, como a
precarização das relações trabalhistas e das condições de trabalho, por
exemplo. Do ponto de vista extensivo, uma torrente de capital excedente é
despejada no sistema de crédito, onde vai tanto participar do butim do
mais-valor produzido ao lado do capital realmente ativo quanto vai alimentar-se
de mais-valor futuro, por meio de mecanismos de valorização típicos do capital
fictício (Marx, 2017). Por essa via, ora de modo mais mediado, ora menos, o
capital excedente financia a escala crescente de consumo produtivo e
improdutivo.
Em
todos esses casos, o resultado que temos é o aprofundamento dos padrões de
demanda material e energética sobre o planeta. Ou seja, a despeito das
oscilações típicas observadas a partir de métricas puramente econômicas (como o
PIB, p.ex.), do ponto de vista físico os padrões de extração e consumo são
muito mais persistentemente crescentes.
A título de ilustração, estudos da Circle
Economy Foundation estimam uma trajetória exponencial no consumo material da
humanidade. Em seu relatório mais recente, lemos que a
[...] economia
moderna é sustentada por práticas lineares que impulsionaram o crescimento
exponencial do consumo de materiais, da poluição e da produção de resíduos.
Entre 2016 e 2021, a economia global consumiu 582 bilhões de toneladas de
materiais – quase tanto quanto os 740 bilhões consumidos em todo o século XX
(Circle Economy Foundation, 2024).
Em
segundo lugar, o caráter crônico da crise estrutural e o esfacelamento da URSS
exigiram, por um lado, e criaram condições que facilitaram politicamente, por
outro, a reconfiguração do Estado burguês nos moldes neoliberais. Além de todas
as conhecidas tragédias sociais que acompanham a hegemonia neoliberal, do ponto
de vista climático, ela representa a dilapidação progressiva da capacidade de
intervenção do Estado. O Estado que, por um curto período na história e em
poucas nações do centro, um dia foi capaz de em alguma medida administrar com
políticas públicas as mazelas sociais e ambientais locais não existe mais, nem
mesmo no centro.
Dito
de outro modo, e lembrando da crítica ecológica da sociedade capitalista,
aquela capacidade, que já era de antemão insuficiente, torna-se ainda mais
débil, virtualmente inexistente. Não é difícil perceber que dessa incapacidade
crescente e da consequente fuga para a frente à qual se lançam as
nações, não se deve esperar a grande concertação global que vem sendo prometida
há décadas nos fóruns internacionais de debates e negociações sobre o clima e
outros tópicos ecológicos candentes.
UM DESCOMPASSO ABISSAL
Em
1992, na Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, Fidel Castro já discursava
afirmando que um “[...] importante espécie biológica está em risco de
desaparecer pela rápida e progressiva liquidação de suas condições naturais de
vida: o homem [sic]. Agora estamos
cientes deste problema, quando quase é
tarde para impedi-lo” (Castro, 2021[1992]). Ou seja, naquele que se tornou
o espaço de encontro entre ciência climática e política por excelência,
afirma-se há décadas que temos pouco tempo. Desde a primeira Conferência
das Partes da UNFCCC em 1995, assistimos à maioria das nações do globo
reunirem-se em outras vinte e sete dessas conferências anuais, com promessas e
acordos cada vez mais ambiciosos, motivados por um discurso persistente de
urgência.
Se
o tempo é tão curto e a situação é tão grave, se governos do mundo todo sabem
disso e selam acordos para reverter tal quadro, então seria razoável esperar
que estivéssemos a caminho de equacionar ao menos os principais riscos. Mas não
temos sido sequer capazes de interromper o crescimento
do nível global de emissões. Estima-se que 58% de todas as nossas emissões
desde 1850 ocorreram entre 1850 e 1989, um intervalo de 139 anos. Nos 29 anos
seguintes, entre 1990 e 2019, situam-se os 42% restantes (IPCC, 2023). Diante
de tudo que sabemos, de toda a exortação e de tudo que fizemos, chamar isso
apenas de fracasso é uma forma de elogio.
Tal
resultado é certamente fruto de uma substancial
insuficiência de ação, mas não deve ser considerado como fruto de pouca ou
nenhuma ação. O próprio IPCC relata como a UNFCCC, o Protocolo de Quioto e o
Acordo de Paris vêm impulsionando as ambições nacionais e como a implementação
bem-sucedida de medidas econômicas e regulatórias já tem sido capaz de obter
avanços em eficiência energética, contenção de desmatamento e disseminação de
novas tecnologias. Em outros termos, há esforço considerável e algum êxito
nesse esforço, mas que é coroado com um fracasso geral. Isso deveria ser
suficiente para suspeitarmos que o déficit de ação não é estritamente de
natureza quantitativa. A pergunta “qual ação?” importa mais que a pergunta
“quanta ação?”. Abaixo, exploraremos a primeira dessas perguntas. Antes disso,
observemos rapidamente o que o IPCC tem a dizer sobre a segunda.
De
acordo com o AR6, caso todos os compromissos nacionalmente determinados (NDCs) de mitigação sejam integralmente implementados, ainda
assim estaríamos aquém do volume e ritmo necessários de declínio das emissões
para garantir alguma chance de limitarmos o aquecimento a 1,5ºC. Na verdade,
esse hiato existe até mesmo se pretendermos limitar o aquecimento a 2ºC (IPCC,
2023). Não bastasse a lacuna entre o prometido e o necessário, também somos
informados pelo documento que há uma lacuna entre os compromissos e aquilo que
vem sendo efetivamente implementado.
O
que se promete é, de saída, insuficiente. E mesmo o insuficiente não se cumpre.
As razões para isso não devem ser buscadas apenas em determinantes
conjunturais, como a vontade política, as pressões populares ou o equilíbrio de
forças sociais. No que tange às nossas respostas à emergência climática, o
“mínimo necessário” situa-se em um terreno em que a sociedade capitalista não é capaz de operar.
As
mazelas ambientais multiplicadas no rastro do desenvolvimento da sociedade
capitalista não são uma novidade de nossa época, embora a gravidade do colapso
em curso o seja. Há muito tempo a consciência científica burguesa dirige
esforços na tentativa de remediá-las. Algumas das proposições resultantes
desses esforços são mais facilmente descartáveis enquanto outras trazem
aspectos sedutores, embora devessem ser igualmente descartadas. A seguir,
abordaremos muito sucintamente três faces típicas do capitalismo verde.
A
face mais conhecida é aquela que continua invocando a capacidade superior dos
mercados de automaticamente harmonizar interesses privados e necessidades
sociais. Se houver liberdade de mercado, diz-se, a flutuação dos preços
impedirá o esgotamento de recursos naturais. Se houver livre concorrência,
afirma-se, a inovação tecnológica terá impulso para dar conta de compatibilizar
crescimento econômico perpétuo com os limites planetários. Se houver direitos
de propriedade bem definidos sobre as coisas do mundo, cada proprietário
tenderá a cuidar melhor daquilo que é seu, ao invés de superexplorar
o que é de propriedade comum. A crítica marxista da sociedade capitalista
permite demonstrar com facilidade que nenhuma dessas alegações tem qualquer
possibilidade de se concretizar de fato (Sá Barreto, 2022).
A
segunda face é a das medidas paliativas. Aqui encontramos um amplo conjunto de
instrumentos propostos com o objetivo de moderar eventuais impactos danosos da
atividade econômica. Três exemplos são emblemáticos: o princípio do poluidor
pagador, a análise de custo-benefício e a valoração ambiental. O princípio do
poluidor pagador tem como objetivo básico criar um desincentivo econômico ao
despejo poluente de resíduos ao cobrar um tributo sobre o volume efetivamente
despejado. A análise de custo-benefício propõe comparar os custos do dano
ambiental aos benefícios da atividade econômica, supostamente restringindo a
escala dessa atividade ao nível em que os benefícios superam os custos. Por
fim, a valoração ambiental sugere que atribuir um valor monetário à natureza
funcionaria como um freio aos padrões predatórios de consumo de recursos,
biomas, paisagens etc. Como se pode notar, não há em nenhuma dessas propostas a
pretensão de solucionar integralmente (ou em definitivo) os problemas aos quais
se dirigem. O diabo, porém, mora exatamente nesse detalhe.
As
pretensões meramente paliativas, ao que parece, ativam o mecanismo “melhor que
nada” até mesmo nas consciências críticas. Outro agravante é que esses
instrumentos, apesar de sua relativa variedade, pressupõem algum envolvimento
do Estado. Assim, por estarem (supostamente) imunes ao puro interesse econômico
do capital e por (supostamente) proporcionarem algum efeito positivo, tais
instrumentos contam, não raras vezes, com a adesão parcial e relutante de
pensadores marxistas. É o que vemos, por exemplo, em Löwy
(2005): “[...] certos tipos de impostos ecológicos poderiam ser úteis, desde
que fossem baseados numa lógica social igualitária (os poluidores pagam, e não
o público)” (Löwy, 2005, p. 20). A mesma crítica
capaz de demonstrar a inviabilidade ecológica do capitalismo, no entanto,
também é capaz de demonstrar a inefetividade desses instrumentos e a ausência
de autonomia do Estado em relação à lógica e aos interesses do capital. Sob o
pretexto do melhor que nada, o tempo precioso é desperdiçado e nem o pouco
prometido se obtém.
A
terceira face é a das medidas que se pretendem mais abrangentes, eventualmente
até sistêmicas. Entre elas, vale mencionar os mercados de carbono e as ideias
em torno de uma sustentabilidade impulsionada por acionistas. A arquitetura dos
mercados de carbono vem sendo desenvolvida e implementada de maneira bastante
acidentada ao menos desde 1997, com o Protocolo
de Quioto. Supondo seu funcionamento ideal, o mecanismo de compra e venda
de permissões de emissão de GEE limitaria o nível global de emissões a um teto
predeterminado por meio dos incentivos que ele daria à disseminação de
tecnologias limpas. Sem poder apresentar os detalhes dessa mágica neste texto,
limito-me a insistir: a crítica marxista permite mostrar que o melhor resultado
possível desse arranjo é um tipo de eficiência econômica incompatível com
qualquer noção de sustentabilidade ecológica (Sá Barreto, 2022).
O
segundo caso é fruto de uma transfiguração do já envelhecido investimento
socialmente responsável (SRI) em um renovado investimento em governança
ambiental, social e corporativa (ESG). A promessa é que se o fluxo de dinheiro
começar a dirigir-se predominantemente para papeis de empresas compromissadas
com metas ambientais e sociais, essa forma de operação tenderia a predominar
(seja pelo crescimento dessas empresas, seja pela multiplicação de empresas
adotando os mesmos compromissos). A coisa toda seria idêntica à primeira face
do capitalismo verde discutida acima, não fosse a necessidade de atestar as
tais condutas de alguma forma que não se limite à autodeclaração. Mesmo
abstraindo dos conhecidos problemas de aferição (desde as métricas usadas até a
falta de independência das instituições responsáveis) e mesmo admitindo que os
novos padrões de conduta efetivamente se generalizem, o resultado geral não é a sustentabilidade.
Há
quase 30 anos, Mészáros (2002[1995]) já demonstrou
como a máxima racionalidade no âmbito de operação do capital individual se
traduz necessariamente como máxima perdularidade no
âmbito geral da sociedade capitalista. Ainda que admitamos as melhores
hipóteses a respeito dos efeitos da racionalidade econômica (quando exposta aos
incentivos ditos corretos), os efeitos gerais continuam apresentando os padrões
ecologicamente destrutivos do capital.
O QUE (NÃO) FAZER?
Tudo
isso posto, e defendida a necessidade de rejeitarmos o capitalismo verde em
suas diversas nuances, é preciso reconhecer que não escolhemos as condições que
nos defrontam e em que lutamos. E como predominam as respostas do capital às mazelas do capital,
frequentemente encontramo-nos emaranhados na lógica, nas práticas e nos fins
que são próprios do capitalismo verde. Isso explica, em parte, a persistência
que o melhor que nada tem até mesmo na política que se reivindica
revolucionária. Cientes das impossibilidades do capitalismo verde, porém atados
e limitados por seus parâmetros, nos desdobramos apenas para impor barreiras ao
avanço de seus efeitos destrutivos.
Sabemos
que cada pequena vitória, na melhor das hipóteses freia temporariamente o
avanço da destruição, e, na pior, sequer evita acelerações dos danos. Sabemos
que cada pequena vitória dessas será tanto mais alvo para revogação quanto mais
significativo for seu potencial em frear o rolo compressor do capital. Mas não
temos conseguido fazer mais do que defender esse insuficiente possível.
Mais
grave que isso, o politicamente viável nesta sociedade não é apenas
insuficiente. É crônica e crescentemente insuficiente. Por isso, é
cada vez mais evidente que apenas um processo histórico de ruptura com esta
sociedade recolocaria ao nosso alcance a chance de disputar rumos realmente
capazes de garantir uma coevolução sustentável entre humanidade e natureza.
Entretanto, é prática corrente afirmar a necessidade da revolução para ato
contínuo, remetê-la a um futuro indeterminado.
Presos
entre o possível insuficiente e o necessário fora do alcance, temos
apostado nossas fichas e mobilizado nossos melhores esforços na defesa por
transições. O apelo é inegável. Trata-se de buscar imprimir um ritmo maior e
mais estrutural de mudanças decisivas nos sistemas energético, industrial,
urbano, agrícola, de transportes etc. Não há dúvida que se encontra no debate e
nos esforços de transição muito mais ambição do que nos precários instrumentos
de remediação do capitalismo verde.
Assim
como ocorre com aqueles instrumentos, contudo, as transições não são
propriamente concebidas com qualquer perspectiva para além do capital.
Pretendem-se transições do sistema,
não de sistema. A esmagadora maior
parte da literatura sobre Green New Deal tem esse caráter. Todas as iniciativas legislativas inspiradas nessa literatura e a
defesa que o IPCC (2023) faz das múltiplas transições têm esse caráter.
Mesmo
que o engajamento de marxistas nesses esforços não tenha o mesmo caráter, supor
que tais transições sejam possíveis ainda nos marcos da sociedade capitalista
nos posiciona num rol de limitações semelhantes às do capitalismo verde. Essa pseudo-alternativa também precisa ser rejeitada, porque a
transição no capitalismo é tão
impossível quanto o próprio capitalismo verde.
Para
ilustrar mais detidamente este ponto, retomemos os posicionamentos de Mann a respeito
do zeramento de emissões e da esperada estabilização do aquecimento do planeta.
Uma pergunta se impõe: como interromper as emissões antrópicas de GEE? Os
detalhes da resposta são razoavelmente conhecidos, mas nunca examinados em seus
detalhes mais perturbadores.
A
trajetória preconizada para redução do nível global de emissões envolve um
declínio de 45% entre 2010 e 2030 e o zeramento das emissões líquidas até 2050
(IPCC, 2019). Tomando essa recomendação como referência, o que temos é a
necessidade de operar reduções anuais entre 7% e 8% no nível global de emissões
por 30 anos consecutivos. Assim
enunciada, a tarefa já parece monumental. Mas as dificuldades ficam ainda mais
evidentes quando lembramos que apenas em 2020 foi observada uma redução no
nível de emissões próxima ao patamar de 7-8%. Ou seja, apenas uma pandemia e a
consequente profunda disrupção econômica, social e
sanitária foi suficiente para gerar um resultado que precisaria ser obtido
anualmente ao longo de outras três décadas. Para piorar esse quadro, a
trajetória preconizada pelo IPCC pressupunha que o pico histórico de emissões
ocorresse em 2019. No entanto, depois da queda de 2020, o padrão de crescimento
foi retomado com toda força.
Percorrer
esse caminho com sucesso exigiria uma rápida e profunda descarbonização da
maneira como a humanidade se reproduz em sociedade. A descarbonização, por sua
vez, envolveria transições profundas nos sistemas energético, alimentar,
urbano, de transportes etc. Entre essas transições decisivas, a que vem sendo
enfatizada e perseguida com maior mobilização de esforços é a energética.
A
política energética orientada para metas climáticas tem apostado em duas vias
fundamentais de ação: estímulo aos ganhos de eficiência energética, para
moderar o consumo de energia, e estímulo às fontes renováveis, para tornar a
matriz energética menos intensiva em combustíveis fósseis. Entre elas, a
segunda é a que está relacionada à transição energética. Espera-se que, à
medida que as fontes renováveis ocupem uma proporção cada vez maior da matriz
energética, ela se torne progressivamente mais limpa. Mas é isso mesmo que
ocorre?
Em
1965, 37% do consumo primário mundial de energia provinha do carvão. Outros
42%, do petróleo, e 15%, do gás natural. Entre as não-fósseis, apenas a de
origem hídrica apresentava participação não desprezível, com 6,3%. Em 2022, a
participação do carvão havia caído para 27% e a do petróleo para 32%. Entre as
fósseis, apenas o gás natural expandiu sua participação de 15% para 24%. Por
outro lado, a participação das não-fósseis (nuclear, hidro, eólica e solar)
avançou para além dos 16%.[2]
Um exame superficial desses dados poderia levar à conclusão de que a matriz de
2022 é mais limpa que a matriz de 1965. Tal conclusão seria, contudo, um grave
erro.
O
erro consiste em lidar apenas com grandezas relativas para extrair conclusões a
respeito de grandeza absolutas. Certamente, 37% é proporcionalmente mais carvão do que 27%. Mas se o consumo primário
energético total em 1965 é diferente do total em 2022, apenas essas grandezas
relativas não nos informam nada em
relação à escala de consumo de carvão. Em 1965, os 37% de carvão
representavam um consumo primário de 16.140,18TWh de energia. Já os 27% de 2022
representaram um consumo primário quase três vezes maior, chegando a 44.864TWh.
O mesmo padrão se observa para o petróleo e, especialmente, para o gás natural,
cujo consumo primário foi multiplicado por seis.
Em
suma, a despeito dos avanços em tecnologias renováveis e da maior presença
dessas fontes no consumo primário de energia, a descarbonização da matriz
energética mundial é tão-somente uma miragem, uma ilusão. A matriz atual é substancialmente mais suja, porque o
processo de descarbonização está invariavelmente situado no domínio da escala, não das proporções.
Observando
o comportamento das grandezas absolutas, uma conclusão é incontornável: a
suposta transição energética em curso não está impulsionando descarbonização
alguma. Não se trata de afirmar que a descarbonização tem sido insuficiente,
mas que, ao contrário, a dependência de fontes intensivas em emissões de
carbono tem sido crescente.
Por
isso, o esforço de Mann em sublinhar caminhos que proporcionem esperança e
propulsionem ação assenta-se, na melhor das hipóteses, em terreno movediço.
Segundo o autor, não é “construtivo descartar o progresso real que está sendo
feito, pois isso contribui para a agenda dos inativistas
[...]. Eles não desejariam nada mais do que nos ver levantar as mãos em derrota
e declarar as negociações climáticas internacionais como mortas” (Mann, 2021,
posição 3655). É óbvio que a agenda dos inativistas é
a que nos leva mais rapidamente para a catástrofe. Por outro lado, o curto
exercício apresentado acima (facilmente ampliável) nos mostra que aquilo que
Mann chama de “progresso real” nem é progresso nem é real. Além disso, nos
mostra que o antídoto para a inação deve ser um curso de ação que não dependa
de investir ainda mais tempo e esforço na concertação encenada dos grandes
acordos internacionais e compromissos nacionais.
A
única maneira de incorporar as transições à nossa práxis de maneira consequente
com a crítica ecológica marxista desta sociedade é tomá-las com um grande
programa de transição que, por um lado, pode proporcionar alguns primeiros
passos importantes nas direções almejadas e, por outro, ser um vetor de
elevação da consciência, uma forma de fustigar a brasa insurrecional para que a
humanidade possa enfim tomar os rumos de seu futuro em suas mãos (Fernandes,
2022).
NOTAS CONTRA O FASCÍNIO IMPOTENTE
DIANTE DO COLAPSO
A
própria ideia de “primeiros passos”, porém, precisa ser tomada com cautela.
Numa primeira aproximação, poderia parecer que avançamos, mas em escala e ritmo
insuficientes. Na realidade, não é isso que ocorre. Conforme visto acima, não
há nenhum processo (nem mesmo lento) de descarbonização em curso. O que pode
ser apontado a título de primeiros passos é a instalação de infraestrutura
(especialmente energética) de baixo impacto que viria a ser útil em uma
eventual sociedade pós-capitalista. Mesmo isso, no entanto, é pouco quando se
leva em consideração as dimensões tempo e escala.
Quanto
ao tempo, bons primeiros passos poderiam ser sucessos parciais a comemorar se
houvesse prazo para desenrolar um longo processo de transição. Não há. Do ponto
de vista da escala, encontramos uma limitação que sequer é arranhada por
pequenos passos. Caso a humanidade pretendesse depender apenas de sua
capacidade atual de gerar energia a partir de fontes não-fósseis (oferta
primária de 29351,81 TWh, em 2022), estaria em
condições de atender a demanda energética do ano de 1950 (28564 TWh). Mas em 1950, a população mundial era de 2,54 bilhões
de pessoas. Hoje, somos quase 8 bilhões. Contando apenas com as fontes
não-fósseis, o consumo per capita
hoje seria de 3,67MWh, muito abaixo do valor estimado para o ano de 1800
(5,73MWh/ pessoa).[3]
Todos
esses limites e atrasos crescentes em meio aos pequenos avanços pontuais nos
obrigam a conclusões muito duras. Hansen et
al. (2023), por exemplo, examinando as tendências climáticas atuais, o
aquecimento já contratado por emissões passadas e as emissões futuras já
contratadas pelas políticas atuais e pelo contínuo avanço da
infraestrutura de exploração e consumo de combustíveis fósseis, declaram que a
meta do Acordo de Paris está morta. Destaque-se que os autores não se
referem à meta de 1,5ºC, mas à de 2ºC, um aquecimento que toda a comunidade
científica considera catastrófico. Um mundo 2ºC mais quente é um mundo
extraordinariamente mais hostil e convulsivo do que o que vivemos hoje, mesmo
se tomarmos como referência 2023, o pior dos anos do registro histórico (Ripple et al.,
2023).
Assim,
seríamos deixados com a segunda expectativa em torno do programa de transição,
a elevação do nível geral de consciência da classe trabalhadora e o desatar de
um processo revolucionário de ruptura com a sociedade capitalista. Mesmo ela,
porém, não deixa de ser eclipsada pela exiguidade do tempo e a magnitude da
escala das transformações necessárias. Em linha com isso, Saito (2022, posição
3220, grifo nosso) adverte que a “[...] perspectiva pessimista sobre a crise
climática deve-se à enormidade do problema. [...] Mas se desistirmos aqui, iríamos direto para a
barbárie”.
O
alerta de Saito (2022) fornece um bom gancho para encaminharmos as observações
finais deste texto. Primeiramente, o fatalismo derrotista paralisante não é –
embora assim possa parecer – a simples aceitação conformada de um futuro
inevitável. Na verdade, é a opção, mesmo que inconsciente, pelo pior futuro entre os futuros possíveis.
Em segundo lugar, por ora, o colapso do qual falamos não se constitui ainda
como um desmoronamento da vida cotidiana (embora a vida cotidiana venha sendo
cada vez mais povoada por inegáveis tendências de deterioração). O sentido de
colapso neste momento é o da destruição acelerada de futuros possíveis. Quanto
mais avança a erosão das condições materiais de vida no planeta, maior é o
número de futuros antes possíveis que deixa, objetivamente, de estar ao nosso
alcance.
Isto
posto, a rejeição do fatalismo implica uma dupla via de ação. Por um lado,
entre os futuros ainda possíveis, haverá aqueles pelos quais vale a pena lutar, mesmo que uma sociedade de
abundância material, emancipada do trabalho, capaz de universalizar o tempo
livre, já esteja fora do alcance. Por outro lado, há futuros que, além de
possíveis, são mais prováveis. Um
exame realista das circunstâncias e tendências atuais só permite visualizar
futuros distópicos entre esses prováveis. Contra eles devemos lutar e para eles devemos nos preparar.
A
importância dessa segunda via de ação fica particularmente clara quando lemos
com atenção o melhor da ciência disponível. Em um dos destaques do relatório
mais recente do IPCC (2023, p. 25), lê-se: “Há uma janela de oportunidade
rapidamente se fechando para assegurar um futuro habitável e sustentável para
todos”. Para além do já conhecido teor de urgência, algo mais chama a atenção: para
todos. Somos obrigados a concluir, ainda que o relatório não o diga, que
uma vez fechada a janela de oportunidade para resguardar um planeta habitável para todos, certamente ainda restará uma
janela de oportunidade para resguardar um planeta habitável para alguns; e
depois para alguns poucos etc. Se juntarmos aqui outros dois destaques
contundentes, temos uma imagem distópica que o IPCC
desenha de maneira impressionista.
Primeiramente,
conforme trecho já citado na seção 2, sabemos que “[...] para qualquer nível de
aquecimento futuro, [...] os impactos de longo prazo previstos são múltiplas vezes maiores daquilo que é
atualmente observado” (IPCC, 2023, p. 15, grifo nosso). Naturalmente, isso
implica a necessidade de que o esforço de mitigação seja o mais monumental
possível, de modo a garantir que o nível de aquecimento futuro seja o menor
possível. Contudo, em dois momentos na sequência do documento, é dito que
“[...] trajetórias ambiciosas de mitigação implicam transformações abrangentes
e por vezes disruptivas em estruturas econômicas existentes, com consequências distributivas
significativas nos e entre países” (IPCC, 2023, p. 27 e 33, grifo nosso).
Enquanto
a humanidade estiver submetida à lógica cega do capital, o futuro mais provável
que podemos extrair dessas duas passagens é um em que, tendo se fechado as
janelas de oportunidade para todos e para alguns, a multiplicação
acelerada de impactos tende a impulsionar lutas desesperadas para garantir um
planeta habitável para uns poucos, com todas as implicações trágicas
previsíveis. Por trás do inexpressivo termo consequências distributivas,
devemos ser capazes de ler a ampla variedade de reais consequências que ele
realmente indica quando combinado à erosão acelerada das condições de
habitabilidade do planeta: imperialismo ecológico, ecofascismo,
zonas de sacrifício, geoengenharia, genocídio, guerra. Em outros termos, a
multiplicação de conflitos, não a concertação universal dos povos.
O
temos pouco tempo que ouvimos recorrentemente há 30 anos não se refere
mais ao tempo para evitarmos um conjunto bastante dramático de impactos da
crise climática. Esse tempo já acabou, é o que nos informa o melhor
conhecimento científico atualmente disponível. O pouco tempo que ainda nos
resta diz respeito à tarefa histórica de livrar a humanidade do capital e,
assim, recolocar ao nosso alcance as possibilidades de efetiva mitigação e de
nos adaptarmos a um mundo mais hostil por caminhos que ainda sejam capazes de
contemplar o conjunto da humanidade.
REFERÊNCIAS
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Eduardo Sá Barreto
Doutor em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Professor adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e pesquisador Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e
o Marxismo da Universidade Federal Fluminense (NIEP-Marx/UFF).
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Editoras responsáveis
Ana Targina Ferraz –
Editora-chefe
Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática
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reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original
seja corretamente citado. |
[1] Marx não
lida diretamente (e nem poderia) com essa questão. Mas sua discussão sobre
superacumulação absoluta de capital pode funcionar como um fundamento teórico
interessante para a discussão sobre crise estrutural e sua cronicidade (Marx, 2017).