Natureza, tecnologia e decomposição da ordem
capitalista
Nature,
technology, and the breakdown of the capitalist order
Evaldo GOMES JÚNIOR
https://orcid.org/0000-0002-0987-1895
Univesidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa),
Instituto de Estudos em
Desenvolvimento Agrário e Regional (IEDAR), Curso de
Ciências Econômicas, Marabá, PA, Brasil
e-mail: evaldo.gomes@unifesspa.edu.br.
INTRODUÇÃO
M |
étodos reducionistas de observação da realidade,
assim como ocorre em outros temas das ciências sociais, são recorrentes para a
discussão sobre a crise climática. E, por isso, o esforço de debate também já
vem sendo acumulado pelo mainstream.
Em seu texto, o professor Eduardo Sá Barreto se preocupou em citar e analisar
os limites das proposições nos termos da ordem liberal, previstas no princípio
do poluidor pagador, da análise do custo-benefício e do cálculo de valoração
econômica para serviços ambientais. Também fez alusão a formas contemporâneas
de vinculação destes princípios. É notável a introdução de novas modalidades de
contrato para incentivar a produção sustentável e o conservacionismo florestal,
sempre por medidas que envolvem práticas padronizadas de manejo e uso de
recursos naturais para a produção, em estratégias de marketing e operações em
mercados futuros, como são os casos dos certificados de origem – terroir, na sua expressão francesa – os
mercados de carbono e as estratégias ESG – do inglês Environmental, Social and Governance.
Propomos dialogar com o professor Barreto a partir
da ênfase ao aspecto tecnológico e político que se estabelece em torno das
soluções para a assim chamada crise climática. Buscaremos incorporar elementos
para dar prosseguimento em nossa análise sobre a relação entre degradação
ambiental e crise capitalista, refletindo sobre os resultados desses fenômenos
para os povos da América Latina, com especial atenção ao Brasil. Cabe deixar
evidente que este diálogo se vincula a diversos autores da crítica da economia
política na América Latina, que nos ensinaram ao longo de décadas a importância
da análise a partir da realidade concreta, obedecendo ao estudo das
regularidades do capitalismo, mas especialmente do capitalismo dependente,
incluindo suas especificidades.
GEOPOLÍTICA DO
CONTROLE TECNOLÓGICO
Por conta de mudanças das práticas de organização
das grandes empresas ou do Estado, o ambiente estabelecido na quadra atual do
capitalismo neoliberal[1]
para lidar com a crise climática se caracteriza pela tentativa de adequação das
formas institucionais precedendo a consolidação ou formação de novas
trajetórias tecnológicas, ou até mesmo novos paradigmas. Pode parecer estranho
que isto ocorra justamente no neoliberalismo, caracterizado pela rejeição ao
planejamento estruturante. Importa destacar que o desencadeamento do processo
de crise climática, chamado pelo Secretário-geral da Organização das Nações
Unidas (ONU), António Guterres, de ebulição
global[2],
coloca a reorganização do plano institucional antes das mudanças tecnológicas
como um imperativo que retoma formulações políticas no sentido de fortalecer em
primeiro plano a institucionalidade multilateral e transnacional.
Produtos com certificados de origem, embalagens
recicláveis, publicização de processos produtivos verdes, ecológicos ou
sustentáveis passou a gerar ganhos sobre investimentos. Foram produzidas
normativas em vários países[3]
que passaram a regulamentar mercados, orientados para metas de desenvolvimento
sustentável. No plano das políticas públicas, no âmbito do planejamento
institucional, a nível de Estado nacional e suas subunidades, por mais que
também tenha um sentido, ou tendência à padronização, passam a articular
ambientes de promoção de inovações em produtos e processos que garantam ganhos
de sustentabilidade, seja pela substituição de combustíveis fósseis, seja pela
introdução de ganhos de eficiência na utilização de outras fontes de energia ou
de insumos, seja, até mesmo, por meio de alterações nas preferências de
consumidores ou grupos específicos de consumidores.
Em termos geopolíticos percebemos um movimento
amplo de avanço em busca do novo paradigma energético, setor central para a
entender a crise climática. É também no setor energético que se alteram as
condições de produção nos demais setores de infraestrutura de comunicação,
transportes, construção civil e serviços de demanda coletiva. Há variação dos
percursos tecnológicos, e consequentemente variação de percursos distintos da
produção social, com consequências também distintas na organização das sociedades,
especialmente seus efeitos nas relações sociais de produção e na difusão destas
“inovações”. Damos destaque às estratégias de carros elétricos padronizados
pelo modelo americano de vida, projetado na empresa Tesla, controlada pelo
bilionário Elon Musk, e o exemplo oposto de estratégias de transição energética
estruturais que colocam a China como vanguarda do novo paradigma tecnológico.
Interessante que anos de abertura econômica na
China, especialmente por conta das reformas de Deng Xiaoping, a partir da
segunda metade da década de 70, fez parecer que o desenvolvimento chinês esteve
nos moldes da ordem neoliberal. Ocorre que autores do campo crítico já
apresentam extensivamente o equívoco em aproximar o modelo de desenvolvimento
chinês do modelo ocidental (Jabbour; Dantas, 2021; Pautasso, 2022). De imediato, aquele processo deve ser
reconhecido mais pela aceleração da incorporação tecnológica ocidental por
parte do país asiático que simplesmente um processo de abertura econômica.
Darcy Ribeiro (1975) define em sua teoria das
civilizações que a humanidade passou a compartilhar o mesmo futuro no momento
da primeira revolução tecnológica na era da expansão mercantil-capitalista. E
que, sua sequência, a revolução industrial, leva inexoravelmente a humanidade a
um dilema: conformar a nova sociedade capitalista, ou superá-la. A despeito da
mesma revolução tecnológica, os povos se comportam e são confrontados em acordo
com formações econômico-social – o modelo de organização do modo de produção,
de seu ordenamento social e de seu conteúdo ideológico – que se adaptam ou por
aceleração evolutiva – com maior autonomia de dirigir as consequências dos
padrões tecnológicos por toda a sociedade – ou por atualização histórica – onde
se situam os povos atrasados em termos de incorporação tecnológica e que são
levados à produção de excedentes para o centro por seu contato reflexo com os
padrões tecnológicos (Tonin et al., 2022).
A intermediação entre revoluções tecnológicas e
suas consequências sobre as diversas formações econômico-social é o processo
civilizatório. Conforme Ribeiro (1975), a difusão dos sistemas adaptativos nas
formações econômico-sociais, pode ocorrer de maneira desigual. Hoje, assim como
nas demais revoluções industriais, o setor energético se estabeleceu como
principal fonte de salto de paradigma tecnológico, com níveis diversos de
transição até a possiblidade de descarbonização líquida total. Desde o pós-Segunda
Guerra, Ribeiro (1975) concebe que a revolução
termonuclear gerou o paradigma tecnológico vigente.
A transição energética dialoga exatamente com as
revoluções tecnológicas na esteira dos processos de industrialização. Hoje, com
a recorrência institucional da reorganização dos ciclos de reprodução do
capital para que possam ser direcionados à sustentabilidade, evidencia-se
novamente a centralidade da geração e consumo de energia para as sociedades
nacionais complexas. Mas estas mudanças institucionais apontam para duas
soluções antagônicas: i) ocidental vinculadas ao processo civilizatório vigente
desde o domínio inglês da indústria nascente, e que apontam para o
aprofundamento da institucionalidade atual, especificamente neoliberal e de
governança financeira; ii) o projeto socialista
chinês que aponta para uma transição estrutural de sua matriz energética com
perspectiva de alcançar completamente a descarbonização, aliada a esforços de
laços de cooperação e complementariedade com outros países, especialmente do
chamado Sul global, e desenvolvimento de uma sociedade interna ao mesmo tempo
dinâmica, com processo também estrutural de redução das desigualdades[4] e
onde a institucionalidade política afeta de maneira centralizada
setores-chaves, como o sistema financeiro nacional, a saúde, educação e
habitação.
Como se percebe no XIV Plano Quinquenal Chinês,
aprovado em outubro de 2020, para o período de 2021 a 2025, as metas de
descarbonização, redução das emissões de poluentes no ar e nas água – derivados
da produção agroindustrial e da expansão das cidades – o reflorestamento, a
institucionalização em várias áreas de metas de promoção de desenvolvimento
sustentável, estão presentes em diversos momentos do texto, mas mereceu também
três capítulo contidos na sexta parte do documento Desenvolvimento verde e
coexistência harmoniosa entre humanidade e natureza, numa tradução livre do
texto em inglês[5].
As metas de alcançar o pico das emissões de dióxido de carbono já foram
antecipadas para antes de 2030, e até 2060 o Governo Chinês
pretende alcançar a neutralidade de emissões de carbono[6].
Compreender o papel milenar de modelos de produção – zìzhǔ chuàngxīn, ou inovação autóctone – e o princípio de
governança tianxia
– tudo sob o céu – permite perceber que a estabilidade é um bem coletivo
buscado permanentemente como forma de organização da governança social e das
relações sociais de produção daquele país.
Já são disponibilizados no sítio eletrônico do National Bureau of Statistics of China – NBS,
uma gama de informações sobre produção e consumo de energia, produção de acordo
com tipos de fontes primárias, além de dados sobre recursos naturais e meio
ambiente, que apresentam números de reflorestamento, redução de emissões de
poluentes no ar e nas águas, investimentos em sustentabilidade urbana e rural.
A título de exemplo, a China tem o carvão como fonte primária de energia
majoritária. O pico, nos últimos 20 anos, da participação relativa desta fonte
de energia no total foi em 2007 (77,8%). Hoje está num patamar de 67,4, cedendo
espaço continuadamente para fontes primárias de eletricidade e outras energias
renováveis (20,4% em 2022). Em termos de geração de energia solar, o país
lidera a nível mundial a expansão no setor, com uma previsão de adição de 210
gigawatts em 2024[7].
Nos EUA e União Europeia há também investimentos em
novas matrizes tecnológicas, especialmente em infraestrutura energética. No
entanto, as mudanças não obedecem a novas estruturas econômicas e
institucionais. No sítio eletrônico <energy.gov> do Governo dos EUA, por
exemplo, são apresentados sistematicamente modelos de governança para
introdução de tecnologas de energias limpas para
governos locais e comunidades, criando soluções e prestando assistência técnica
gratuita. No mês de abril de 2024 o governo lançou um programa isca de
investimentos no tema no valor de US$ 20 bilhões, com expectativa de atrair
investimentos privados na ordem de US$ 140 bilhões.
Percebam como a estratégia é sempre do nível
corporativo para o local, atribuindo ao governo central tão somente a
capacidade de incentivar ou mediar soluções entre grandes empresas, pequenas
empresas, comunidades e governos locais. Trata-se de uma trajetória
institucional, em que a demanda por planos de médio e longo prazo, com
alterações sistêmicas na ordem social, não estão presentes na gramática do
governo e das empresas. Este é o tipo de esforço máximo que os governos
ocidentais podem alcançar frente à crise climática e aos objetivos de
descarbonização. Enquanto o Estado chinês orienta para uma transição não só
energética, mas uma outra transição mais longa, vinculada à fragilização do
esquema de reprodução com controle mercantil, especialmente financeiro.
ATUALIZAÇÃO
HISTÓRICA DE LONGA DATA NA AMÉRICA LATINA
Mariátegui (2007)
considera que a base norteadora da dinâmica capitalista da América Latina diz
respeito à apropriação fundiária concentrada, de uso do solo lastreado pela
demanda internacional, e sua relação com a organização do trabalho. Dados da
iniciativa global Oxfam sobre concentração fundiária no continente dão conta de
que a concentração de terras na América Latina é maior agora que nos anos de
1960 (Oxfam Internacional, 2016). Ainda, 1% dos latifúndios na região controlam
mais terras que 99%[8].
Osório (2012) define que, no neoliberalismo, há consolidação do padrão
exportador de especialização produtiva, com economias nacionais em que seus
centros dinâmicos reafirmam a condição secularmente determinada (Ribeiro, 1977)
de vínculo setor externo especializado em matérias-primas e alimentos.
Percebendo melhor esta relação entre uso da terra e
inserção da força de trabalho nos diversos ciclos de reprodução do capital na
América Latina, e apontando o seu caráter eminentemente articulador de
economias de exportação de base primária (Cano, 1999) fica evidente perceber
que a dominação mercantil de base financeira transnacional permanece como
referência para sua organização no período neoliberal de Pax Americana, nos termos de Batista (1994). Hoje já é possível
fundos de investimentos estrangeiros participar de processos de compra e venda
de terras sem muitas dificuldades, dentre outros expedientes, por meio de
vínculos financeiros de arrendamento e endividamento. No mercado de terras
brasileiro, em regiões de expansão agrícola ou mineral, são necessário anos de
trabalho para este equivaler ao valor de um hectare ou alqueire de terra[9].
Mais que um elemento conjuntural, a forma de adequação de populações expulsas
de territórios comuns secularmente, como ainda ocorre com as populações
originárias, e a transumância permanente em territórios nacionais como o
Brasil, dão mostras que o acesso à terra é elemento de (não) formação nacional.
Diante deste cenário é importante superar os
conteúdos ideológicos das soluções atuais para percebermos que novos caminhos
de planejamento e hegemonia possam ser traçados, especialmente a nível de
nação. O tecnicismo como forma atualizada de implantação política dos modelos
econômicos (neo)liberais (Prado, 2021) passou a gerir os diagnósticos e soluções dos problemas
ambientais derivados da produção e circulação das mercadorias. A gestão
enquanto estratégias de riscos diante de portifólios de investimentos financeiros
organiza não só o território, mas os planos de bioeconomia que surgem nos
governos nacionais e regionais. No exemplo do PlanBio
do Estado do Pará (Pará, 2022), para citarmos o contexto amazônico, percebemos
a indicação de gestão territorial e de projetos territorializados
a partir de grupos controladores de cadeias produtivas, como é o caso da
outorga para manejo de produtos madeireiros de áreas de reserva ambiental
estadual a empresas.
As formulações políticas e os debates acadêmicos
sobre a bioeconomia dão mostras da abrangência global e nacional deste
processo. E, neste caso, mais emblemático ainda é a centralidade que a Amazônia
adquire enquanto vitrine de experimentações e experiências. Autores que são
referência em estudos interdisciplinares, como Carlos Nobre et al.
(2023) e Francisco de Assis Costa et al. (2022) uniram esforços, em uma
ampla mobilização acadêmica com outras e outros pesquisadoras/es, na busca de
uma crítica aos modelos simplificadores de organização do desenvolvimento
sustentável na região. A forma que se discute tecnologia da bioeconomia por
estes autores dá margem para se avançar sobre o dilema entre neoliberalismo e
sua superação a nível estrutural.
Costa (2023) defende que não importa a estratégia
de aumento da produtividade física da pecuária no Brasil e, especificamente, na
Amazônia, como a recomposição de áreas degradas, desde que a precificação de
novas terras permaneça atrativa para investimento, dado seu preço relativo no
mercado mundial e a dinâmica crescente da demanda por commodities também a nível mundial. Esquecem as soluções liberais
que a terra é também um ativo, e mais que em outros momentos, um ativo
financeiro. A demarcação de terras indígenas, quilombolas e de populações
tradicionais e assentadas é talvez o principal entrave deste processo, e por isso a violência das elites ao se reagir contra estas
propostas.
Se apresenta para o Sul global, especificamente
para a América Latina, uma possibilidade de aprofundamento da estratégia
neoliberal a partir dos novos expedientes da economia de base sustentável, ou
da bioeconomia baseada no desenvolvimento de tecnologias e economia de recursos
de fontes não-renováveis. De igual forma o esforço de dar sustentabilidade ao
modelo vigente de expansão da produção de commodities
se limita a seu próprio impulso externo. O ambiente de governança nacional e
regional destas cadeias de valor consolidou a estruturação mercantil da
produção de commodities, dependente
dos preços globais e da manutenção da demanda chinesa. Internamente, como os
casos da mineração e do agronegócio no Brasil, a alavancagem financeira cresce
sem muitas preocupações com seu lastro nos ativos tangíveis das empresas, ainda
que se verifique o crescimento do quantum exportado ao longo dos anos. O caso
dos fundos de investimentos do agronegócio, o Fiagro,
aprovados no congresso nacional em 2021, são relevadores[10].
GEOPOLÍTICA DA
ÚLTIMA ORDEM CAPITALISTA
Por força das consequências da estruturação da
hegemonia dos EUA no ocidente, por um lado, e pela reorganização constante do
estado chinês após o período de guerra civil no país, que o vinculou a um
modelo nacional de socialismo, nos leva a considerar que existem dois projetos
civilizatórios em curso: o aprofundamento da ordem capitalista sob a égide do
fascismo, ou a governança socialista com características chinesa a partir do
oriente e do Sul global. Tornam-se soluções antagônicas na medida que são as únicas
que se apresentam com força suficiente para alterar os percursos das mais
diversas formações socioeconômicas que coexistem no mundo atual.
Como não temos condições, por questões de rigor
metodológico, de apresentar o futuro como algo determinado, especialmente para
pensarmos o mundo a partir do lugar da América Latina no sistema de gestação do
processo civilizatório, de imediato já nos afastamos da forma fatalista de
analisá-lo. Neste mesmo sentido cumpre a nós, críticos da economia política,
pensarmos a viabilização de novas trajetórias sociais por meio da determinação
de condições técnicas e de suas consequências sobre a organização das sociedades.
Tratamos todo o tempo dos aspectos institucionais do desenvolvimento das forças
produtivas, especialmente da necessidade de planejamento para além da taxa de
lucro que desconsidera medidas ambientais, ou medidas de descarbonização.
Barreto (2024) finaliza seu texto reafirmando as
consequências que a ordem neoliberal impõe à agenda ambiental: “[...]
imperialismo ecológico, ecofascismo, zonas de
sacrifício, geoengenharia, genocídio, guerra” (Barreto, 2024, p. 20). Se a
crítica à economia sustentável, ou à bioeconomia, é um processo já em andamento
nos círculos acadêmicos e na mobilização social, é possível, portanto, partir
dela para desafiar a ordem neoliberal e garantir a projeção de uma sociedade
que assuma forma superior aos limites da Pax
Americana e do neofascismo. Planejar para superar a ordem social vigente é um debate que foi
desenvolvido nas lutas pela emancipação dos povos já sob o contexto de expansão
da ordem capitalista.
Na América, apresentada como novo mundo, os
elementos de ancestralidade das populações originárias e das populações
oriundas de diversas porções do continente africano são permanentemente
negados. Por isso Darcy Ribeiro em seus vários escritos, inclusive aqueles
citados aqui, trata da constituição de povos
novos sob o expediente da violência mercantil e racial. Lidar com esta
condição no debate sobre a da relação entre natureza, cultura e tecnologia só é
possível quando se percebe que a desterritorialização é o sentido dado aos
subalternizados, e que os territórios e sua organização social são centrais
para se pensar organização nos dias atuais. Da favela
à floresta não existe projeto que complexifique a configuração sociocultural
desta sociedade sem pensar como o território é estruturado.
Cabe também aos críticos das ideias liberais e
reacionárias reconhecer que totalidades coexistem para além da totalidade do
capital, e que a relação entre homem e natureza deve ser formulada a partir
deste princípio, o que já nos leva a assumir um terreno de maior articulação
nas proposições sobre a crise climática. Na Amazônia, por exemplo, fez surgir
uma agricultura de baixa densidade, ao longo de milênios e por meios distintos
em sociedades que ocupavam territórios diversos da floresta (Clement, 2019). A
produção da floresta passa agora a dar lugar a formas simples – com receitas,
padrões globais – de organização dos territórios, como o garimpo, a monocultura
de grãos e de pastagens. A despeito disso, a simplificação dá lugar a
consequências não previstas, com eventos climáticos extremos cada vez mais
frequentes.
A tese do Marco Temporal, debatida nos três poderes
da república e rechaçada pelos diversos povos indígenas do país traz uma
evidência política incômoda, ao desmascarar o aspecto colonial da atual
expansão agromineral brasileira. Mas traz também
elementos de negação da formação de uma nação intercultural com capacidade de
apropriação da nova fase de revolução tecnológica com soberania. Porém, esta
solução atinge completamente a organização social da economia dependente. No
limite, reacionários e liberais se unem quando o assunto é apropriação
fundiária, especificamente em termos do modelo de apropriação fundiária,
atrelado a um caráter eminentemente especulativo da ocupação produtiva agromineral nas bordas espaciais do capitalismo brasileiro.
É justamente nesta sociedade, cujo neoliberalismo
busca permanentemente a simplificação da relação entre territórios, trabalho e
mercados, que o planejamento se reestabelece como o contrário ao fatalismo. O
fatalismo é resultado de crises, das variadas totalidades que se estabelecem na
realidade, seja ela cíclica ou sistêmica. É o exemplo típico da aproximação
cronológica do apocalipse previsto pelas igrejas cristãs. Mas temos também
processos bem definidos de reorganização social e projeção de uma nova economia
popular com incorporação técnica. Fiquemos com o exemplo histórico do consórcio
entre Universidade Agrícola da China (CAU), Associação Internacional para a
Cooperação Popular (AICP), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Associação de Fabricantes de Máquinas Agrícolas, Consórcio Interestadual de
Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste) e Governo Federal,
para viabilização de máquinas agrícolas para a produção familiar em pequenas
propriedades, geridas a partir de cooperativas vinculadas ao MST, em estados
nordestinos[11].
A inovação da organicidade deste processo pode gerar capacidades coletivas e
força política para encaminhar outros contratos sociais, superiores ao
neoliberalismo e ao racismo das elites caribenhas e sul-americanas. Talvez
estes novos processos, que também se vinculam a projetos de reforma agrária e
de luta pela terra em seu sentido mais amplo, gestado à revelia do modelo
falido do estado brasileiro, tenha força para acompanhar outras tantas
experiências de soberania territorial no país e reorganizar toda sociedade.
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Evaldo GOMES JÚNIOR
Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp.
Professor do IEDAR/ Univesidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará (Unifesspa).
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Editoras responsáveis
Ana Targina Ferraz –
Editora-chefe
Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática
Este é um artigo publicado em acesso
aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons
Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original
seja corretamente citado. |
[1]
Marcelo Carcanholo (2017) vai definir neoliberalismo
como um nível mais alto de abstração, para além dos modelos de políticas
econômicas. É uma estratégia também ideológica. Batista (1994) chama atenção para um tipo de Pax Americana própria do neoliberalismo,
em alusão ao longo período de liberalismo sob domínio inglês ao longo do século
XIX.
[2] Coletiva de imprensa do secretário-geral da
ONU sobre o clima. 27 jul. 2023. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/240543-coletiva-de-imprensa-do-secret%C3%A1rio-geral-da-onu-sobre-o-clima.
Acesso em: 5 abr. 2024.
[3] A
Lei Europeia do Clima, que se discute no Parlamento Europeu desde 2021 e
aprovada em abril de 2024 é um ótimo exemplo.
[7] Espera-se de forma inédita que em 2024 o incremento de fontes de energia de
baixo carbono supra toda demanda por eletricidade adicional no ano. Ver China’s derailed carbon reduction goals to get
back on track in 2024: report. Disponível em: https://www.scmp.com/business/china-business/article/3241259/chinas-carbon-emissions-set-structural-decline-2024-fresh-renewable-capacity-despite-third-quarter. 13 nov. 2023. Acesso em: 3 maio 2024.
[8]
Resultados escritos por Arantxa Guereña para a Oxfam
Internacional (2016). Importante ressaltar que este estudo sistematizou bases de dados díspares
quanto a fontes, anos de aferição e metodologia. O caso venezuelano é
emblemático. Com dados sobre distribuição de terras de 1997, o arranjo
normativo sobre a questão agrária no país fora totalmente alterado com a Revolução
Bolivariana.
[9] Nascimento e Frederico (2022) e
Nascimento, Spadotto e Frederico (2023) apresentam
ótimas investigações acerca da transformação de terras no Brasil em ativos
financeiros por meio de movimentações corporativas a nível nacional e global.
[10] Ver
Fundos do agro impulsionam empresas com
histórico de desmatamento, escravidão e grilagem. Disponível em: <https://mst.org.br/2023/07/20/fundos-do-agro-impulsionam-empresas-com-historico-de-desmatamento-escravidao-e-grilagem/>.
Acesso em: junho/2024.
[11] Ver
Máquinas chinesas destinadas à
agricultura familiar serão lançadas nesta sexta (2) no RN. Disponível em: https://mst.org.br/2024/02/01/maquinas-chinesas-destinadas-a-agricultura-familiar-serao-lancadas-nesta-sexta-2-no-rn/.
Acesso em: 4 maio 2024.