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Natureza, tecnologia e decomposição da ordem capitalista

 

Nature, technology, and the breakdown of the capitalist order

 

Evaldo GOMES JÚNIOR

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Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-0987-1895

Univesidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Instituto de Estudos em

Desenvolvimento Agrário e Regional (IEDAR), Curso de Ciências Econômicas, Marabá, PA, Brasil

e-mail: evaldo.gomes@unifesspa.edu.br.

 

INTRODUÇÃO

 

M

étodos reducionistas de observação da realidade, assim como ocorre em outros temas das ciências sociais, são recorrentes para a discussão sobre a crise climática. E, por isso, o esforço de debate também já vem sendo acumulado pelo mainstream. Em seu texto, o professor Eduardo Sá Barreto se preocupou em citar e analisar os limites das proposições nos termos da ordem liberal, previstas no princípio do poluidor pagador, da análise do custo-benefício e do cálculo de valoração econômica para serviços ambientais. Também fez alusão a formas contemporâneas de vinculação destes princípios. É notável a introdução de novas modalidades de contrato para incentivar a produção sustentável e o conservacionismo florestal, sempre por medidas que envolvem práticas padronizadas de manejo e uso de recursos naturais para a produção, em estratégias de marketing e operações em mercados futuros, como são os casos dos certificados de origem – terroir, na sua expressão francesa – os mercados de carbono e as estratégias ESG – do inglês Environmental, Social and Governance.

 

Propomos dialogar com o professor Barreto a partir da ênfase ao aspecto tecnológico e político que se estabelece em torno das soluções para a assim chamada crise climática. Buscaremos incorporar elementos para dar prosseguimento em nossa análise sobre a relação entre degradação ambiental e crise capitalista, refletindo sobre os resultados desses fenômenos para os povos da América Latina, com especial atenção ao Brasil. Cabe deixar evidente que este diálogo se vincula a diversos autores da crítica da economia política na América Latina, que nos ensinaram ao longo de décadas a importância da análise a partir da realidade concreta, obedecendo ao estudo das regularidades do capitalismo, mas especialmente do capitalismo dependente, incluindo suas especificidades.

 

GEOPOLÍTICA DO CONTROLE TECNOLÓGICO

 

Por conta de mudanças das práticas de organização das grandes empresas ou do Estado, o ambiente estabelecido na quadra atual do capitalismo neoliberal[1] para lidar com a crise climática se caracteriza pela tentativa de adequação das formas institucionais precedendo a consolidação ou formação de novas trajetórias tecnológicas, ou até mesmo novos paradigmas. Pode parecer estranho que isto ocorra justamente no neoliberalismo, caracterizado pela rejeição ao planejamento estruturante. Importa destacar que o desencadeamento do processo de crise climática, chamado pelo Secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, de ebulição global[2], coloca a reorganização do plano institucional antes das mudanças tecnológicas como um imperativo que retoma formulações políticas no sentido de fortalecer em primeiro plano a institucionalidade multilateral e transnacional.

 

Produtos com certificados de origem, embalagens recicláveis, publicização de processos produtivos verdes, ecológicos ou sustentáveis passou a gerar ganhos sobre investimentos. Foram produzidas normativas em vários países[3] que passaram a regulamentar mercados, orientados para metas de desenvolvimento sustentável. No plano das políticas públicas, no âmbito do planejamento institucional, a nível de Estado nacional e suas subunidades, por mais que também tenha um sentido, ou tendência à padronização, passam a articular ambientes de promoção de inovações em produtos e processos que garantam ganhos de sustentabilidade, seja pela substituição de combustíveis fósseis, seja pela introdução de ganhos de eficiência na utilização de outras fontes de energia ou de insumos, seja, até mesmo, por meio de alterações nas preferências de consumidores ou grupos específicos de consumidores.

 

Em termos geopolíticos percebemos um movimento amplo de avanço em busca do novo paradigma energético, setor central para a entender a crise climática. É também no setor energético que se alteram as condições de produção nos demais setores de infraestrutura de comunicação, transportes, construção civil e serviços de demanda coletiva. Há variação dos percursos tecnológicos, e consequentemente variação de percursos distintos da produção social, com consequências também distintas na organização das sociedades, especialmente seus efeitos nas relações sociais de produção e na difusão destas “inovações”. Damos destaque às estratégias de carros elétricos padronizados pelo modelo americano de vida, projetado na empresa Tesla, controlada pelo bilionário Elon Musk, e o exemplo oposto de estratégias de transição energética estruturais que colocam a China como vanguarda do novo paradigma tecnológico.

 

Interessante que anos de abertura econômica na China, especialmente por conta das reformas de Deng Xiaoping, a partir da segunda metade da década de 70, fez parecer que o desenvolvimento chinês esteve nos moldes da ordem neoliberal. Ocorre que autores do campo crítico já apresentam extensivamente o equívoco em aproximar o modelo de desenvolvimento chinês do modelo ocidental (Jabbour; Dantas, 2021; Pautasso, 2022). De imediato, aquele processo deve ser reconhecido mais pela aceleração da incorporação tecnológica ocidental por parte do país asiático que simplesmente um processo de abertura econômica.

 

Darcy Ribeiro (1975) define em sua teoria das civilizações que a humanidade passou a compartilhar o mesmo futuro no momento da primeira revolução tecnológica na era da expansão mercantil-capitalista. E que, sua sequência, a revolução industrial, leva inexoravelmente a humanidade a um dilema: conformar a nova sociedade capitalista, ou superá-la. A despeito da mesma revolução tecnológica, os povos se comportam e são confrontados em acordo com formações econômico-social – o modelo de organização do modo de produção, de seu ordenamento social e de seu conteúdo ideológico – que se adaptam ou por aceleração evolutiva – com maior autonomia de dirigir as consequências dos padrões tecnológicos por toda a sociedade – ou por atualização histórica – onde se situam os povos atrasados em termos de incorporação tecnológica e que são levados à produção de excedentes para o centro por seu contato reflexo com os padrões tecnológicos (Tonin et al., 2022).

 

A intermediação entre revoluções tecnológicas e suas consequências sobre as diversas formações econômico-social é o processo civilizatório. Conforme Ribeiro (1975), a difusão dos sistemas adaptativos nas formações econômico-sociais, pode ocorrer de maneira desigual. Hoje, assim como nas demais revoluções industriais, o setor energético se estabeleceu como principal fonte de salto de paradigma tecnológico, com níveis diversos de transição até a possiblidade de descarbonização líquida total. Desde o pós-Segunda Guerra, Ribeiro (1975) concebe que a revolução termonuclear gerou o paradigma tecnológico vigente.

 

A transição energética dialoga exatamente com as revoluções tecnológicas na esteira dos processos de industrialização. Hoje, com a recorrência institucional da reorganização dos ciclos de reprodução do capital para que possam ser direcionados à sustentabilidade, evidencia-se novamente a centralidade da geração e consumo de energia para as sociedades nacionais complexas. Mas estas mudanças institucionais apontam para duas soluções antagônicas: i) ocidental vinculadas ao processo civilizatório vigente desde o domínio inglês da indústria nascente, e que apontam para o aprofundamento da institucionalidade atual, especificamente neoliberal e de governança financeira; ii) o projeto socialista chinês que aponta para uma transição estrutural de sua matriz energética com perspectiva de alcançar completamente a descarbonização, aliada a esforços de laços de cooperação e complementariedade com outros países, especialmente do chamado Sul global, e desenvolvimento de uma sociedade interna ao mesmo tempo dinâmica, com processo também estrutural de redução das desigualdades[4] e onde a institucionalidade política afeta de maneira centralizada setores-chaves, como o sistema financeiro nacional, a saúde, educação e habitação.

 

Como se percebe no XIV Plano Quinquenal Chinês, aprovado em outubro de 2020, para o período de 2021 a 2025, as metas de descarbonização, redução das emissões de poluentes no ar e nas água – derivados da produção agroindustrial e da expansão das cidades – o reflorestamento, a institucionalização em várias áreas de metas de promoção de desenvolvimento sustentável, estão presentes em diversos momentos do texto, mas mereceu também três capítulo contidos na sexta parte do documento Desenvolvimento verde e coexistência harmoniosa entre humanidade e natureza, numa tradução livre do texto em inglês[5]. As metas de alcançar o pico das emissões de dióxido de carbono já foram antecipadas para antes de 2030, e até 2060 o Governo Chinês pretende alcançar a neutralidade de emissões de carbono[6]. Compreender o papel milenar de modelos de produção – zìzhǔ chuàngxīn, ou inovação autóctone – e o princípio de governança tianxia – tudo sob o céu – permite perceber que a estabilidade é um bem coletivo buscado permanentemente como forma de organização da governança social e das relações sociais de produção daquele país.

 

Já são disponibilizados no sítio eletrônico do National Bureau of Statistics of China – NBS, uma gama de informações sobre produção e consumo de energia, produção de acordo com tipos de fontes primárias, além de dados sobre recursos naturais e meio ambiente, que apresentam números de reflorestamento, redução de emissões de poluentes no ar e nas águas, investimentos em sustentabilidade urbana e rural. A título de exemplo, a China tem o carvão como fonte primária de energia majoritária. O pico, nos últimos 20 anos, da participação relativa desta fonte de energia no total foi em 2007 (77,8%). Hoje está num patamar de 67,4, cedendo espaço continuadamente para fontes primárias de eletricidade e outras energias renováveis (20,4% em 2022). Em termos de geração de energia solar, o país lidera a nível mundial a expansão no setor, com uma previsão de adição de 210 gigawatts em 2024[7].

 

Nos EUA e União Europeia há também investimentos em novas matrizes tecnológicas, especialmente em infraestrutura energética. No entanto, as mudanças não obedecem a novas estruturas econômicas e institucionais. No sítio eletrônico <energy.gov> do Governo dos EUA, por exemplo, são apresentados sistematicamente modelos de governança para introdução de tecnologas de energias limpas para governos locais e comunidades, criando soluções e prestando assistência técnica gratuita. No mês de abril de 2024 o governo lançou um programa isca de investimentos no tema no valor de US$ 20 bilhões, com expectativa de atrair investimentos privados na ordem de US$ 140 bilhões.

 

Percebam como a estratégia é sempre do nível corporativo para o local, atribuindo ao governo central tão somente a capacidade de incentivar ou mediar soluções entre grandes empresas, pequenas empresas, comunidades e governos locais. Trata-se de uma trajetória institucional, em que a demanda por planos de médio e longo prazo, com alterações sistêmicas na ordem social, não estão presentes na gramática do governo e das empresas. Este é o tipo de esforço máximo que os governos ocidentais podem alcançar frente à crise climática e aos objetivos de descarbonização. Enquanto o Estado chinês orienta para uma transição não só energética, mas uma outra transição mais longa, vinculada à fragilização do esquema de reprodução com controle mercantil, especialmente financeiro.

 

ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE LONGA DATA NA AMÉRICA LATINA

 

Mariátegui (2007) considera que a base norteadora da dinâmica capitalista da América Latina diz respeito à apropriação fundiária concentrada, de uso do solo lastreado pela demanda internacional, e sua relação com a organização do trabalho. Dados da iniciativa global Oxfam sobre concentração fundiária no continente dão conta de que a concentração de terras na América Latina é maior agora que nos anos de 1960 (Oxfam Internacional, 2016). Ainda, 1% dos latifúndios na região controlam mais terras que 99%[8]. Osório (2012) define que, no neoliberalismo, há consolidação do padrão exportador de especialização produtiva, com economias nacionais em que seus centros dinâmicos reafirmam a condição secularmente determinada (Ribeiro, 1977) de vínculo setor externo especializado em matérias-primas e alimentos.

 

Percebendo melhor esta relação entre uso da terra e inserção da força de trabalho nos diversos ciclos de reprodução do capital na América Latina, e apontando o seu caráter eminentemente articulador de economias de exportação de base primária (Cano, 1999) fica evidente perceber que a dominação mercantil de base financeira transnacional permanece como referência para sua organização no período neoliberal de Pax Americana, nos termos de Batista (1994). Hoje já é possível fundos de investimentos estrangeiros participar de processos de compra e venda de terras sem muitas dificuldades, dentre outros expedientes, por meio de vínculos financeiros de arrendamento e endividamento. No mercado de terras brasileiro, em regiões de expansão agrícola ou mineral, são necessário anos de trabalho para este equivaler ao valor de um hectare ou alqueire de terra[9]. Mais que um elemento conjuntural, a forma de adequação de populações expulsas de territórios comuns secularmente, como ainda ocorre com as populações originárias, e a transumância permanente em territórios nacionais como o Brasil, dão mostras que o acesso à terra é elemento de (não) formação nacional.

 

Diante deste cenário é importante superar os conteúdos ideológicos das soluções atuais para percebermos que novos caminhos de planejamento e hegemonia possam ser traçados, especialmente a nível de nação. O tecnicismo como forma atualizada de implantação política dos modelos econômicos (neo)liberais (Prado, 2021) passou a gerir os diagnósticos e soluções dos problemas ambientais derivados da produção e circulação das mercadorias. A gestão enquanto estratégias de riscos diante de portifólios de investimentos financeiros organiza não só o território, mas os planos de bioeconomia que surgem nos governos nacionais e regionais. No exemplo do PlanBio do Estado do Pará (Pará, 2022), para citarmos o contexto amazônico, percebemos a indicação de gestão territorial e de projetos territorializados a partir de grupos controladores de cadeias produtivas, como é o caso da outorga para manejo de produtos madeireiros de áreas de reserva ambiental estadual a empresas.

 

As formulações políticas e os debates acadêmicos sobre a bioeconomia dão mostras da abrangência global e nacional deste processo. E, neste caso, mais emblemático ainda é a centralidade que a Amazônia adquire enquanto vitrine de experimentações e experiências. Autores que são referência em estudos interdisciplinares, como Carlos Nobre et al. (2023) e Francisco de Assis Costa et al. (2022) uniram esforços, em uma ampla mobilização acadêmica com outras e outros pesquisadoras/es, na busca de uma crítica aos modelos simplificadores de organização do desenvolvimento sustentável na região. A forma que se discute tecnologia da bioeconomia por estes autores dá margem para se avançar sobre o dilema entre neoliberalismo e sua superação a nível estrutural.

 

Costa (2023) defende que não importa a estratégia de aumento da produtividade física da pecuária no Brasil e, especificamente, na Amazônia, como a recomposição de áreas degradas, desde que a precificação de novas terras permaneça atrativa para investimento, dado seu preço relativo no mercado mundial e a dinâmica crescente da demanda por commodities também a nível mundial. Esquecem as soluções liberais que a terra é também um ativo, e mais que em outros momentos, um ativo financeiro. A demarcação de terras indígenas, quilombolas e de populações tradicionais e assentadas é talvez o principal entrave deste processo, e por isso a violência das elites ao se reagir contra estas propostas.

 

Se apresenta para o Sul global, especificamente para a América Latina, uma possibilidade de aprofundamento da estratégia neoliberal a partir dos novos expedientes da economia de base sustentável, ou da bioeconomia baseada no desenvolvimento de tecnologias e economia de recursos de fontes não-renováveis. De igual forma o esforço de dar sustentabilidade ao modelo vigente de expansão da produção de commodities se limita a seu próprio impulso externo. O ambiente de governança nacional e regional destas cadeias de valor consolidou a estruturação mercantil da produção de commodities, dependente dos preços globais e da manutenção da demanda chinesa. Internamente, como os casos da mineração e do agronegócio no Brasil, a alavancagem financeira cresce sem muitas preocupações com seu lastro nos ativos tangíveis das empresas, ainda que se verifique o crescimento do quantum exportado ao longo dos anos. O caso dos fundos de investimentos do agronegócio, o Fiagro, aprovados no congresso nacional em 2021, são relevadores[10].

 

GEOPOLÍTICA DA ÚLTIMA ORDEM CAPITALISTA

 

Por força das consequências da estruturação da hegemonia dos EUA no ocidente, por um lado, e pela reorganização constante do estado chinês após o período de guerra civil no país, que o vinculou a um modelo nacional de socialismo, nos leva a considerar que existem dois projetos civilizatórios em curso: o aprofundamento da ordem capitalista sob a égide do fascismo, ou a governança socialista com características chinesa a partir do oriente e do Sul global. Tornam-se soluções antagônicas na medida que são as únicas que se apresentam com força suficiente para alterar os percursos das mais diversas formações socioeconômicas que coexistem no mundo atual.

 

Como não temos condições, por questões de rigor metodológico, de apresentar o futuro como algo determinado, especialmente para pensarmos o mundo a partir do lugar da América Latina no sistema de gestação do processo civilizatório, de imediato já nos afastamos da forma fatalista de analisá-lo. Neste mesmo sentido cumpre a nós, críticos da economia política, pensarmos a viabilização de novas trajetórias sociais por meio da determinação de condições técnicas e de suas consequências sobre a organização das sociedades. Tratamos todo o tempo dos aspectos institucionais do desenvolvimento das forças produtivas, especialmente da necessidade de planejamento para além da taxa de lucro que desconsidera medidas ambientais, ou medidas de descarbonização.

 

Barreto (2024) finaliza seu texto reafirmando as consequências que a ordem neoliberal impõe à agenda ambiental: “[...] imperialismo ecológico, ecofascismo, zonas de sacrifício, geoengenharia, genocídio, guerra” (Barreto, 2024, p. 20). Se a crítica à economia sustentável, ou à bioeconomia, é um processo já em andamento nos círculos acadêmicos e na mobilização social, é possível, portanto, partir dela para desafiar a ordem neoliberal e garantir a projeção de uma sociedade que assuma forma superior aos limites da Pax Americana e do neofascismo. Planejar para superar a ordem social vigente é um debate que foi desenvolvido nas lutas pela emancipação dos povos já sob o contexto de expansão da ordem capitalista.

 

Na América, apresentada como novo mundo, os elementos de ancestralidade das populações originárias e das populações oriundas de diversas porções do continente africano são permanentemente negados. Por isso Darcy Ribeiro em seus vários escritos, inclusive aqueles citados aqui, trata da constituição de povos novos sob o expediente da violência mercantil e racial. Lidar com esta condição no debate sobre a da relação entre natureza, cultura e tecnologia só é possível quando se percebe que a desterritorialização é o sentido dado aos subalternizados, e que os territórios e sua organização social são centrais para se pensar organização nos dias atuais. Da favela à floresta não existe projeto que complexifique a configuração sociocultural desta sociedade sem pensar como o território é estruturado.

 

Cabe também aos críticos das ideias liberais e reacionárias reconhecer que totalidades coexistem para além da totalidade do capital, e que a relação entre homem e natureza deve ser formulada a partir deste princípio, o que já nos leva a assumir um terreno de maior articulação nas proposições sobre a crise climática. Na Amazônia, por exemplo, fez surgir uma agricultura de baixa densidade, ao longo de milênios e por meios distintos em sociedades que ocupavam territórios diversos da floresta (Clement, 2019). A produção da floresta passa agora a dar lugar a formas simples – com receitas, padrões globais – de organização dos territórios, como o garimpo, a monocultura de grãos e de pastagens. A despeito disso, a simplificação dá lugar a consequências não previstas, com eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.

 

A tese do Marco Temporal, debatida nos três poderes da república e rechaçada pelos diversos povos indígenas do país traz uma evidência política incômoda, ao desmascarar o aspecto colonial da atual expansão agromineral brasileira. Mas traz também elementos de negação da formação de uma nação intercultural com capacidade de apropriação da nova fase de revolução tecnológica com soberania. Porém, esta solução atinge completamente a organização social da economia dependente. No limite, reacionários e liberais se unem quando o assunto é apropriação fundiária, especificamente em termos do modelo de apropriação fundiária, atrelado a um caráter eminentemente especulativo da ocupação produtiva agromineral nas bordas espaciais do capitalismo brasileiro.

 

É justamente nesta sociedade, cujo neoliberalismo busca permanentemente a simplificação da relação entre territórios, trabalho e mercados, que o planejamento se reestabelece como o contrário ao fatalismo. O fatalismo é resultado de crises, das variadas totalidades que se estabelecem na realidade, seja ela cíclica ou sistêmica. É o exemplo típico da aproximação cronológica do apocalipse previsto pelas igrejas cristãs. Mas temos também processos bem definidos de reorganização social e projeção de uma nova economia popular com incorporação técnica. Fiquemos com o exemplo histórico do consórcio entre Universidade Agrícola da China (CAU), Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Associação de Fabricantes de Máquinas Agrícolas, Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste) e Governo Federal, para viabilização de máquinas agrícolas para a produção familiar em pequenas propriedades, geridas a partir de cooperativas vinculadas ao MST, em estados nordestinos[11]. A inovação da organicidade deste processo pode gerar capacidades coletivas e força política para encaminhar outros contratos sociais, superiores ao neoliberalismo e ao racismo das elites caribenhas e sul-americanas. Talvez estes novos processos, que também se vinculam a projetos de reforma agrária e de luta pela terra em seu sentido mais amplo, gestado à revelia do modelo falido do estado brasileiro, tenha força para acompanhar outras tantas experiências de soberania territorial no país e reorganizar toda sociedade.

 

REFERÊNCIAS

 

Barreto, E. S. Capitalismo Catástrofe e fatalismo à espreita. Argumentum, Vitória, v. 16, n. 3, p. 8-22, 2024.

 

Batista, P. N. O consenso de Washington. A visão neoliberal dos problemas latino-americanos, 1994.

 

Cano, W. América Latina: do desenvolvimento ao neoliberalismo. In: Fiori, J. L. Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 287-326.

 

Carcanholo, M. Dependencia, super-explotación del trabajo y crisis: una interpretación desde Marx. Madrid: Maia Ediciones, 2017.

 

Clement, C. R. Da domesticação da floresta ao subdesenvolvimento da Amazônia. Cadernos de Debate, Manaus: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, v.14, p. 11-52, 2019.

 

Costa, F. de A. Intensificação da agropecuária aumenta ao invés de reduzir a pressão sobre a floresta amazônica: Paradoxo de Jevons impera nos casos da soja e do gado no Brasil (2001-2021). São Paulo: MADE/USP, 2023. (Working Paper nº 20).

 

Costa, F. de A. et al. Uma bioeconomia inovadora para a Amazônia: conceitos, limites e tendências para uma definição apropriada ao bioma floresta tropical. São Paulo: WRI Brasil, 2022. (Texto para discussão). Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/publicacoes/uma-bioeconomia-inovadora-para-amazonia-conceitos-limites-e-tendencias-para-uma. Acesso em: 6 abr. 2024.

 

Jabbour, E.; Dantas, Alexis. Ignacio Rangel na China e a “Nova Economia do Projetamento”. Economia e Sociedade, v. 30, n. 2, p. 287–310, maio 2021. Doi:10.1590/1982-3533.2021v30n2art01. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecos/a/jtzRs3jDcK5gGBzSqcrWzMn/?lang=pt. Acesso em: 6 abr. 2024.

 

Mariátegui, J. C. 7 ensayos de interprestación de la realidade peruana. Caracas: Fundación Bilioteca Ayacucho, 2007. (Colección Clásica n. 69).

 

Nascimento, R. C. do; Frederico, S. Imobiliárias Agrícolas Financeirizadas e land grabbing: a atuação das empresas agrícolas controladas pelo capital financeiro no mercado fundiário brasileiro. GEOUSP: espaço e tempo, São Paulo, v. 26, p. 1, 2022.

 

Nascimento, R. C. do; Spadotto, B. R.; Frederico, S. Do imobiliário urbano ao mercado de terras agrícolas: o fundo de investimento imobiliário Riza Terrax. In: Encontro Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR), 20., Belém, 2023. Anais [...]. Belém, 2023.

 

Nobre, C. A. et al. Nova Economia da Amazônia. Relatório, 2023. São Paulo: WRI Brasil, 2023. Doi: 10.46830/wrirpt.22.00034. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/nova-economia-da-amazonia. Acesso em: 6 abr. 2024.

 

Oxfam Internacional. Unearthed: land, power and inequalitu in Latin America. [S.l.]: Oxfam, 2016.

Pará (Estado). Plano da Bioeconomia do estado do Pará. Belém, out. 2022.

 

Pautasso, D. China’s global power and development: the made in China 2025 Policy. Austral: Brazilian Journal of Strategy & International Relations, Porto Alegre, v. 8, n. 16, p. 183-198, 2022. https://doi.org/10.22456/2238-6912.88779. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/austral/article/view/88779. 6 abr. 2024.

 

Prado, E. Para a crítica da economia tecnocrática. Blog Economia e Complexidade, [S.l.], 22 fev. 2021. Disponível em: https://eleuterioprado.blog/2021/02/22/para-a-critica-da-economia-tecnocratica/. Acesso em: 10 abr. 2024.

 

Ribeiro, D. O processo civilizatório: etapas da evolução cultural. 3. ed. São Paulo: Civilização brasileira, 1975.

 

Ribeiro, D. As Américas e a Civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.

 

Osorio, J. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva – estudo de cinco economias da região. In: Osorio, J. et al. (Org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 103-133.

 

Tonin, V. H.; Breda, D. M.; Gomes Júnior, E.; Aruto, P. C. O dilema latino-americano atual. Reoriente, Rio de Janeiro, v. 2 n. 1, p. 30-59, 2022.

 

 

 

 

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Evaldo GOMES JÚNIOR

Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp. Professor do IEDAR/ Univesidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 



[1] Marcelo Carcanholo (2017) vai definir neoliberalismo como um nível mais alto de abstração, para além dos modelos de políticas econômicas. É uma estratégia também ideológica. Batista (1994) chama atenção para um tipo de Pax Americana própria do neoliberalismo, em alusão ao longo período de liberalismo sob domínio inglês ao longo do século XIX.

[2] Coletiva de imprensa do secretário-geral da ONU sobre o clima. 27 jul. 2023. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/240543-coletiva-de-imprensa-do-secret%C3%A1rio-geral-da-onu-sobre-o-clima. Acesso em: 5 abr. 2024.

[3] A Lei Europeia do Clima, que se discute no Parlamento Europeu desde 2021 e aprovada em abril de 2024 é um ótimo exemplo.

[4] Ver Outline of the 14th Five-Year Plan (2021-2025) for National Economic and Social Development and Vision 2035 of the People's Republic of China. 9 ago. 2021. Disponível em:  https://www.fujian.gov.cn/english/news/202108/t20210809_5665713.htm#C22. 9 ago. 2021. Acesso em: 6 abr. 2024.

[5] Ver Outline of the 14th Five-Year Plan (2021-2025) for National Economic and Social Development and Vision 2035 of the People's Republic of China. 9 ago. 2021. Disponível em:  https://www.fujian.gov.cn/english/news/202108/t20210809_5665713.htm#C22. 9 ago. 2021. Acesso em: 6 abr. 2024.

[6] Ver China's new five-year blueprint paves way for 2060 carbon-neutrality. Disponível em: https://english.www.gov.cn/news/topnews/202103/09/content_WS6046cf92c6d0719374afa6a5.html. 9 ago.  2021. Acesso em: 8 abr. 2024.

[7] Espera-se de forma inédita que em 2024 o incremento de fontes de energia de baixo carbono supra toda demanda por eletricidade adicional no ano. Ver China’s derailed carbon reduction goals to get back on track in 2024: report. Disponível em: https://www.scmp.com/business/china-business/article/3241259/chinas-carbon-emissions-set-structural-decline-2024-fresh-renewable-capacity-despite-third-quarter. 13 nov. 2023. Acesso em: 3 maio 2024.

[8] Resultados escritos por Arantxa Guereña para a Oxfam Internacional (2016). Importante ressaltar que este estudo sistematizou bases de dados díspares quanto a fontes, anos de aferição e metodologia. O caso venezuelano é emblemático. Com dados sobre distribuição de terras de 1997, o arranjo normativo sobre a questão agrária no país fora totalmente alterado com a Revolução Bolivariana.

[9] Nascimento e Frederico (2022) e Nascimento, Spadotto e Frederico (2023) apresentam ótimas investigações acerca da transformação de terras no Brasil em ativos financeiros por meio de movimentações corporativas a nível nacional e global.

[10] Ver Fundos do agro impulsionam empresas com histórico de desmatamento, escravidão e grilagem. Disponível em: <https://mst.org.br/2023/07/20/fundos-do-agro-impulsionam-empresas-com-historico-de-desmatamento-escravidao-e-grilagem/>. Acesso em: junho/2024.

[11] Ver Máquinas chinesas destinadas à agricultura familiar serão lançadas nesta sexta (2) no RN. Disponível em: https://mst.org.br/2024/02/01/maquinas-chinesas-destinadas-a-agricultura-familiar-serao-lancadas-nesta-sexta-2-no-rn/. Acesso em: 4 maio 2024.