A natureza em György
Lukács e Alfred Schmidt: reflexões marxistas no início do Antropoceno
Nature in György Lukács and Alfred Schmidt: Marxist reflections on the
beginning of the Anthropocene
Murillo van der LAAN
https://orcid.org/0000-0002-7613-4051
Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia,
Programa de Pesquisador de
Pós-Doutorado, Campinas, SP, Brasil
e-mail: murillovanderlaan@hotmail.com
Resumo: O
artigo apresenta uma contraposição crítica de duas interpretações sobre as
reflexões marxianas acerca da natureza nos anos 1960, feitas por György Lukács e Alfred Schmidt. Argumenta que as posições
de Schmidt sobre a natureza incorrem, em última instância, em um construtivismo
literal que a perspectiva ontológica de Lukács foi capaz de evitar. Por outro
lado, o texto argumenta que Lukács faz uma generalização da teoria do valor
marxiana que obstaculiza a cognição histórica dos diversos metabolismos
sociais, diferentemente da interpretação mais historicizada do valor feita por
Schmidt, que tece importantes considerações sobre a relação capitalista com a
natureza. Argumenta ainda que ambas as posições, ao voltarem-se para a
perspectiva marxiana de uma sociedade emancipada, não apenas se afastam das
colocações de Marx, mas incorrem no que a sociologia ambiental classificou como
“isencionalismo”. Por fim, busca mostrar como as
teorizações de István Mészáros e da chamada Escola da
Ruptura Metabólica reenquadram proficuamente os aspectos positivos e as
limitações das interpretações de Schmidt e Lukács.
Palavras-chave:
Marxismo. Ontologia. Natureza.
Abstract:
This paper critically contrasts György Lukács’ and Alfred Schmidt’s 1960s
interpretations of Marxist reflections on nature. It argues that Schmidt’s
position on nature produces a literal constructivism that Lukács’ ontological
perspective avoids. It also argues that Lukács generalises Marx’s theory of
value in a way that hinders the historical analyses of different social
metabolisms, in contrast to Schmidt's more historicised interpretation of
value, which draws out important considerations regarding capitalism’s
relationship with nature. It further argues that both positions, in analysing
the Marxist perspective of an emancipated society, not only depart from Marx’s
positions but also fall into what environmental sociology has termed exemptionalism. Finally, it demonstrates how the
theorising of István Mészáros and the so-called Metabolic Rift School skilfully
reframe the positive aspects and limitations of Schmidt and Lukács’
interpretations.
Keywords: Marxism. Ontology. Nature.
Introdução
A |
no a ano, eventos climáticos extremos e
outras catástrofes ambientais chegam às manchetes de jornais e, mais importante
ainda, ao cotidiano de um número cada vez maior de pessoas, sobretudo no Sul
Global. Isso ocorre em meio a uma profusão de dados científicos, acumulados e
refinados por mais de duas décadas, que insistem reiteradamente no caráter
antropogênico de tais calamidades. Contudo, a despeito dessa insistência e de
mobilizações diversas para conter as alterações climáticas e a destruição
ambiental, o curso dos acontecimentos aponta para um aprofundamento do impacto
humano sobre o planeta, impulsionado por uma produção capitalista globalizada.
Nesse período das relações entre seres
humanos e natureza, que as ciências naturais chamaram de Antropoceno, as
diversas perspectivas no interior da filosofia e das ciências humanas buscam um
enquadramento teórico que possa dar conta do atual estado de coisas. No âmbito
do marxismo, as correntes que reivindicam um ecossocialismo
retomam polêmicas históricas sobre a própria ideia de natureza e sobre sua
relação com os seres humanos. À luz desses desenvolvimentos recentes, esse
texto volta-se para uma dessas polêmicas: a breve correspondência, nos anos
1960, entre Alfred Schmidt, expoente do Instituto para Pesquisa Social de
Frankfurt, autor de um livro clássico sobre a ideia de natureza em Marx, e o
filósofo húngaro György Lukács que, na década de
1960, empenhava-se em seu derradeiro esforço de construção de uma ontologia
marxista.
O argumento que apresentamos aqui é que
Schmidt e Lukács têm concepções teóricas distintas sobre a natureza, com
alcances e limites que, em certa medida, complementam-se. Ao passo que a
perspectiva ontológica lukácsiana sobre a natureza é
profícua ao propor um movimento substantivo da natureza, representado a partir
da proposta de um diálogo crítico com as ciências naturais, a teorização de
Schmidt incorre, em última instância, em um construtivismo que perde de vista a
objetividade própria do mundo natural.
Por outro lado, Lukács avança uma
generalização da teoria do valor marxiana para todo o ser social que compromete
uma compreensão da historicidade das diversas formas de realização do
metabolismo entre seres humanos e natureza. Schmidt, diferentemente, apresenta
uma interpretação da teoria do valor de Marx que ressalta seu enraizamento no
capitalismo e retira daí reflexões importantes sobre as interações com a
natureza sob o comando do capital.
Os dois autores, no entanto, ao
refletirem sobre uma sociedade comunista a partir da teorização marxiana,
projetam um desenvolvimento do trabalho e uma imposição sobre o mundo natural
que perde de vista a dimensão de limites naturais e de crise ambiental. Isso
mina os aspectos positivos de cada uma das teorizações e desvela, nos termos da
sociologia ambiental, o isencionalismo [exemptionalism] de ambas. Isto é, como, em última
instância, elas veem a interação humana como isenta dos constrangimentos
e impactos de sua atuação sobre o mundo natural extra-humano.
Por fim, procuramos argumentar como
István Mészáros e, posteriormente, a chamada escola
da ruptura metabólica, reenquadram os aspectos positivos tanto de Schmidt
quanto de Lukács para uma perspectiva mais profícua tanto da crise ambiental
contemporânea, quanto para a reflexão sobre uma sociedade emancipada que
estabeleça uma relação qualitativamente distinta e sustentável com o mundo
natural extra-humano.
Ontologia, natureza e metabolismo
Pouco depois da
publicação de sua tese de doutorado em formato de livro, intitulado O
Conceito de Natureza em Marx, em 1962, Alfred Schmidt (2014) a enviou ao
filósofo húngaro György Lukács. Como era evidente
pelo título da obra, Schmidt buscava compreender o modo em que a natureza
aparece no pensamento marxiano. Em 1963, ele recebeu de Lukács uma resposta
elogiosa da pesquisa, dizendo que ela representava um
avanço científico importante, especialmente porque se empenhava em uma
interpretação processual da reflexão marxiana, e não se tratava apenas de uma
contraposição entre um jovem e um velho Marx (Lukács, 1963).[1]
No entanto,
impossibilitado na ocasião de adentrar nos detalhes da argumentação de Schmidt,
Lukács limitou-se a apenas uma observação “de princípio [prinzipielle]”:
[...] por
mais que você [Schmidt] enfatize em diversos lugares a objetividade da
realidade, a análise do metabolismo entre sociedade e natureza tem, em várias
partes, uma semelhança fatal [fatale Aehnlichkeit] com História
e Consciência de Classe. Isso aparece de maneira particularmente acentuada
quando você censura o velho Engels por considerar a natureza de maneira
ontologicamente objetiva – supostamente em oposição ao método de Marx. Eu, no
entanto, considero que o conceito de metabolismo com a natureza, que tem
importância central, é baseado na objetividade ontológica da própria natureza independentemente da sociedade [grifos
de Lukács]. Apenas a partir disso, o trabalho, a atividade social e a própria
sociedade podem ser consistentemente compreendidos do ponto de vista
filosófico. Todas as considerações de Marx são baseadas nesse método. Uma vez
que eu, com História e Consciência de
Classe, sou o principal culpado pelo método errado, considero como meu
dever expressar essa concepção de maneira bem nítida (Lukács, 1963, não
paginado).
A questão de princípio
colocada por Lukács dizia respeito, portanto, ao cerne das preocupações de
Schmidt, isso é, ao lugar da natureza no pensamento marxiano e, em termos mais
gerais, no materialismo histórico-dialético. Lukács (2003) fazia referência crítica
em sua carta ao modo como ele próprio, quarenta anos antes, em História e Consciência de Classe, havia
em grande medida colapsado o mundo natural extra-humano no interior da
sociedade, ao reduzir a natureza a uma “categoria social” cuja forma e conteúdo
seriam sempre, de diversas maneiras, determinados socialmente (Haug, 2021, p.
108-113).
A posição de Schmidt
que Lukács criticava, no entanto, era menos radical do que a de História e Consciência de Classe. N’O conceito de natureza em Marx, Schmidt
(2014) indicava de modo mais claro a existência de um mundo natural extra-social, isto é, de um ser para além das determinações
sociais. Contudo, ressaltava que seria possível falar dessa dimensão
extra-humana, apenas do ponto de vista da relação social e historicamente
determinada que estabelecemos com ela, sobretudo por meio do trabalho, sem
extrapolá-la para um discurso sobre o ser que teria existência
independentemente da sociedade.
Não obstante, a
aproximação das posições de Schmidt e de Lukács em História e Consciência de Classe estaria na recusa de uma
perspectiva ontológica realista sobre a natureza. A cognição e a atuação humana
sobre o mundo natural seriam sempre permeadas pelas determinações sociais, o
que implicaria tomá-las sempre a partir o prisma social. Ambas as abordagens
contrastavam com a de Engels (2020), na medida em que este se engajou em um
projeto teórico que buscava realizar uma conexão entre as diversas ciências
naturais para teorizar sobre uma dialética da natureza, suas leis de movimento,
o desenvolvimento do ser, etc., que teriam existência independente e para além
das determinações sociais.
Para Schmidt (2014),
esse esforço de Engels incorreria em um “realismo ingênuo” que, ademais,
assumiria uma posição a-histórica e antidialética, ao
buscar a construção de uma ontologia da natureza. Isso seria problemático
porque, segundo Schmidt, implicaria uma abordagem supra-histórica;
tanto por buscar apreender de maneira realista a existência de uma natureza sem
a mediação humana, quanto por resultar em uma visão de mundo com dimensões
a-históricas, que terminaria por naturalizar também o mundo social, reduzindo-o
a uma suposta lei geral objetiva de desenvolvimento.
Uma perspectiva
genuinamente dialética, diferentemente, não deveria se ocupar, segundo Schmidt
(2014), com uma explicação positiva da estrutura do ser, mas assumiria uma
função crítica, dentro da história, de pensar as contradições entre os seres
humanos na sua práxis, no seu fazer histórico.
Marx teria se
posicionado de maneira distinta de Engels, na interpretação de Schmidt (2014).
Não teria recorrido a uma visão de mundo, a um princípio positivo para explicar
ontologicamente a realidade não-humana. Pelo contrário, a natureza apareceria
em seu pensamento sempre mediada pela interação com os seres humanos, apenas
através das “formas do trabalho social” e, portanto, enraizada historicamente.
Essa interpretação
colocaria Schmidt diante de alguns problemas. O primeiro remete às tentativas
de separar as reflexões de Marx e Engels no que dizem respeito a uma tomada de
posição ontológica e realista sobre a natureza, que se chocam com os registros
em cartas e livros onde o posicionamento de ambos convergem sobre a questão
(Foster, 2020).
Ligado a isso, e mais
importante, a interpretação de Schmidt se choca com os momentos em que o
próprio Marx, remeteria a um discurso ontológico ao tratar da natureza. Diante
desse segundo problema, a saída de Schmidt (2014) é indicar que, a despeito de
Marx, em alguns momentos de sua teorização, apontar para uma relação para além
da interação entre seres humanos e natureza, ele não o faz de maneira positiva,
não teoriza abstrata e a-historicamente essa relação. Em Marx haveria o que
Schmidt (2014) chama de “ontologia negativa”, momentos da produção marxiana em
que há um reconhecimento de determinações “supra-históricas”,
mas que não são teorizados positivamente.
Essa interpretação de
Schmidt também o colocaria, por outro lado, em uma posição de maior ceticismo e
distanciamento com relação às ciências naturais, o que seria particularmente
problemático quando ele se volta à análise da ideia de metabolismo no pensamento
marxiano. A despeito de reconhecer o interesse de Marx pelas ciências naturais,
Schmidt (2014) entende que sua utilização do termo é predominantemente
analógica e especulativa, um mero recurso heurístico para pensar as relações
sociais e para a reflexão crítica sobre a economia política (Saito, 2021, p.
105-114).
O afastamento de
Schmidt tanto de uma perspectiva ontológica, quanto da importância substantiva
das ciências naturais, incorreria em problemas também em sua interpretação do
pensamento marxiano sobre os contornos de uma sociedade emancipada. Schmidt
(2014) entende que o pensamento do Marx da maturidade assume uma posição sóbria
e instrumental com relação à natureza, que projetaria no comunismo um
desenvolvimento tecnológico voltado cada vez mais à dominação externa dela, com
reflexos também sobre a natureza interna dos indivíduos. O mundo natural
extra-humano permaneceria sempre um momento não-idêntico do social, mas sua
capacidade de “vingança” sobre os seres humanos, nos termos de Engels (2020),
seria minada cada vez mais por uma crescente tendência de dominação humana.
O problema com essa
interpretação de Schmidt é que, ao recusar uma exposição ontológica positiva da
natureza, assentada nas ciências naturais; negligenciar as pesquisas de Marx
sobre metabolismo também em um sentido científico; e remeter a uma perspectiva
de dominação humana crescente sobre a natureza, ele assume uma posição que se
aproximaria do que Anna Petterson (1999; Malm, 2018,
p. 35) chamou de um construtivismo literalista: a ideia de que a práxis humana
constrói a natureza (Haug, 2021, p. 107).
No caso de Schmidt,
isso ocorre de maneira mais nuançada, no sentido de que a própria natureza, em
última instância, figura em seu quadro teórico em grande medida subsumida à
práxis humana. Isso é, mesmo que sua perspectiva, derivada de uma interpretação
particular de Marx, reconheça uma insuprimível
“não-identidade” do mundo natural extra-humano, tal mundo natural estaria
diante de um avanço unilateral do trabalho e da produção humana. Em última
instância, a natureza extra-humana não figuraria com sua dimensão objetiva
própria na interpretação de Schmidt, também impactando, ela mesma, o mundo
social.
Anos depois da
publicação de O Conceito de Natureza em
Marx, ao refletir sobre a possibilidade de um “materialismo ecológico”, o
próprio Schmidt reconheceria esse problema. No prefácio de 1993 à sua obra, ele
indicaria a necessidade de reconhecer mais substantivamente a atuação do mundo
natural extra-humano sobre o social (Haug, 2021, p. 107; Saito, 2021, p.
113).
Essas observações de
Schmidt jogam luz à importância, desde um ponto de vista ecológico, de uma
materialidade substantiva e autônoma da natureza extra-humana. Teorizações que
assumem um construtivismo literalista, ao negligenciarem uma atuação substantiva
do mundo natural extra-humano sobre o social, podem perder de vista a ideia de
limites naturais e de consequências imprevistas da práxis humana. Mais
recentemente, esse construtivismo literalista aparece em teorizações que, ao
reivindicarem um imbricamento inseparável entre natureza e sociedade, acabam
por defender a ideia mesma de um “fim da natureza”, subsumida à práxis humana,
ou de uma “produção da natureza” avançada pelo capitalismo (Malm,
2018, p. 29–37).
Ao lado dessa concepção
mais literal da construção da natureza extra-humana, há outras teorizações que
assumem um construtivismo idealista – ainda seguindo a classificação de
Petterson – que reduzem o mundo natural às ideias ou à linguagem. Uma vez que o
pensamento e o discurso compõem uma dimensão inescapável de nossa cognição da
natureza, e que são múltiplas as comunidades epistêmicas sobre ela, o mundo
natural seria ele mesmo resultado das ideias e das narrativas que apresentamos
sobre ele. Obliterando um referente ontológico próprio e autônomo do mundo
natural, essas perspectivas, de maneira ainda mais radical, podem abrir um
flanco perigoso para os negacionismos diversos do grave momento ambiental em
que vivemos (Malm, 2018, p. 21-28).
Há algum tempo, um
outro movimento teórico emergiu opondo-se às perspectivas construtivistas com
relação à natureza, mas trazendo consigo, ao mesmo tempo, problemas
significativos. Chamado de Novo Materialismo, tal movimento critica a
centralidade que as diversas teorias, entre elas o marxismo, dão à práxis ou às
ideias e discursos humanos, e negligenciam a agência dos múltiplos seres
envolvidos nas interações sociais. Na contramão dessa centralidade
humana/social, o que esse Novo Materialismo propõe é algo caracterizado como
uma “ontologia plana”, que indica que todos os objetos têm agência, sejam eles orgânicos ou inorgânicos (Malm,
2018, 78-118).
Ao pensar problemas
ambientais contemporâneos como a mudança climática, por exemplo, as
perspectivas que reivindicam o Novo Materialismo insistem no deslocamento do
foco da análise, de relações sociais que organizam a
particularidade de nosso metabolismo, como o capital, para que se reconheça as
agências dos diversos seres nesse processo: o carvão, o petróleo, o dióxido de
carbono, o metano, os oceanos, etc. (Malm, 2018, 78-118)
Dentro da
tradição marxista, essa atribuição de agência
a objetos inorgânicos é caracterizada como fetichismo (Malm,
2018, p. 110; Hornborg, 2019, p. 177-192). Ela se
torna particularmente problemática porque há uma ligação intrínseca entre
agência e responsabilidade, o que é crucial para o diagnóstico dos problemas
ecológicos contemporâneos. Contudo, ao invés de jogar luz à especificidade da
dimensão antropogênica, sob relações capitalistas, dos profundos problemas
ambientais que experimentamos contemporaneamente, o Novo Materialismo
reivindica como fundamental a distribuição de agência por redes de humanos e
não-humanos (Malm, 2018, p. 110-112).
Diante
dessas diversas perspectivas sobre a natureza, a breve troca de Schmidt e
Lukács assume contornos interessantes. A recusa de Schmidt do projeto engelsiano de uma ontologia objetiva da natureza, concebida
independentemente da sociedade, chocava-se com o próprio projeto lukácsiano de elaboração de uma ontologia do ser social,
que ocupou a década final de sua vida.
Nesse
projeto, como Lukács explica na carta, ele se distancia da influente posição
que havia avançado em História e
Consciência de Classe, quarenta anos antes, que reduzia a natureza a uma
categoria social. Como Lukács (2013, p. 14-28) iria notar também no prefácio de
1967 da obra, a correta compreensão do trabalho e do ser social como um todo
depende de um fundamento ontológico independente e para além do mundo social.
O objetivo
de Lukács com sua ontologia era, através de um retorno a Marx, elaborar uma
interpretação que pudesse contribuir com um renascimento do marxismo, em meio
às distorções sobretudo do pensamento stalinista. Esse retorno a Marx era
também, em grande medida e particularmente com o que nos ocupamos aqui, um
retorno a Engels.
Ainda que
Lukács tenha criticado, também em suas elaborações dos anos 1960, as
generalizações engelsianas sobre a dialética, sua
ontologia tem como base uma perspectiva de desenvolvimento imanente do ser que
em muito se aproxima do projeto de uma dialética da natureza. É possível dizer
que, em certo sentido, a ontologia lukácsiana tem seu
“início” aí. Em um delineamento de uma objetividade natural, caracterizada como
um “automovimento que repousa sobre si mesmo”. Um
metabolismo universal, dinâmico, que se complexifica, em interações marcadas
também pela contingência, e composta por três grandes esferas que se
interpenetram: o ser inorgânico, ser orgânico e o ser social (Lukács, 2012;
2013).
Lukács se
reconhece como um diletante em ciências naturais (Lukács, 1969, p. 19). No
entanto, como Engels o fizera antes, ele aponta para a possibilidade de um
diálogo crítico com as mais diversas ciências para, filosoficamente, traçar as
determinações, os imbricamentos e as complexificações do ser. Indica, dessa
forma, os processos de continuidade e descontinuidade ontológicos: as
interações particulares entre ser inorgânico que vão dar lugar ao surgimento da
vida, do ser orgânico, e, mais tarde, de germes de consciência de onde,
finalmente, emergirá o ser social. O surgimento de cada nova esfera representa
um salto qualitativo que traz continuidades e descontinuidades com as esferas
precedentes e uma necessária relação entre elas (Lukács, 2012; 2013).
A novidade
inaugurada pelo ser social segundo a ontologia lukácsiana
está no surgimento de uma consciência qualitativamente distinta, capaz de
iniciar processos teleológicos de uma complexidade sem paralelos no ser orgânico. Fazendo novamente referência a Engels,
Lukács destaca o papel do trabalho na realização do metabolismo entre seres
humanos e natureza. Daqui ele retira as categorias básicas da práxis humana,
sempre em contato com uma objetividade que é tanto modificada pelos atos
teleológicos quanto modifica e determina a subjetividade humana e o ser social
como um todo (Lukács, 2013).
Há uma
unidade de consciência e objetividade nesses processos, mas que não se traduz
em uma identidade. Os seres humanos agem sempre constrangidos por essa
objetividade do mundo extra-humano, tem a capacidade de afetar a natureza como
um todo e de, a partir dessa objetividade, criar objetos inteiramente novos,
mas esse mundo extra-humano permanece sempre um “[...] automovimento
que repousa sobre si mesmo [...]” (Lukács, 2013, p. 48), nunca é completamente
subsumido pelo ser social.
A atuação
humana sobre tal objetividade, ademais, é sempre limitada. No complexo
emaranhado de causalidades e contingências que constituem o real, a intervenção
do ser social é sempre finita, incapaz de apreender todas as consequências de
sua ação. Há sempre, portanto, um “período de consequências”, em que é preciso
lidar com os resultados imprevistos da atuação humana sobre o mundo (Lukács,
2013, p. 70-75). Sobre esses fundamentos, Lukács apresenta em sua ontologia o
processo de desenvolvimento do ser social, que apontaria para um contínuo
“afastamento das barreiras naturais”, base de uma crescente “socialização do
ser social”, uma superação dos constrangimentos imediatamente colocados pelo
mundo natural extra-humano (Lukács, 2013, p. 159).
Nesse
processo de desenvolvimento do ser social, como veremos, Lukács não estava
particularmente interessado em um “materialismo ecológico”, e negligencia a questão da destruição ambiental e seus
impactos sobre o ser social. No entanto, ao retomar o projeto engelsiano — este sim, marcado por traços ecológicos
(Foster, 2020) —, como base para sua reflexão sobre o ser social, Lukács abre o
caminho para um materialismo que consegue escapar dos problemas de outras
teorizações que apontamos acima.
Por um
lado, essa perspectiva tem a potencialidade – frustrada, como veremos – de não
incorrer em um construtivismo literal, seja na versão mais radical avançada por
ele mesmo em História e Consciência de
Classe, ou na mais nuançada perspectiva de uma ontologia negativa e de dominação da natureza de Schmidt. Ao propor
uma ontologia realista, assentada em um diálogo crítico com as ciências
naturais, Lukács toma também a ideia de metabolismo em um sentido substantivo e
não apenas analógico, ainda que reconheça suas limitações aqui. Ademais, ao
propor uma perspectiva geral dos desdobramentos do ser inorgânico, orgânico e
social, e as especificidades de cada uma dessas esferas, Lukács remete à
materialidade substantiva do real, sem, no entanto, incorrer nas posições
fetichistas do novo materialismo.
Com isso,
poderíamos encontrar na perspectiva lukácsiana um
enquadramento teórico profícuo para o diagnóstico das crises ambientais
contemporâneas. Ao propor uma ontologia realista, que pensa a unidade e o
imbricamento entre as diversas dimensões do ser, sem perder a especificidade de
cada uma de suas esferas, a proposta lukácsiana
poderia desviar-se do que a sociologia ambiental caracterizou como isencionalismo – a crítica de que diversas concepções sobre
o mundo social entendem-no, em última instância, como
isento do impacto que exercem sobre o meio ambiente (Catton;
Dunlap, 1978, p. 42-43).
Contudo, a
proposta de Lukács acaba incorrendo nesse problema, por uma via, em certa
medida, surpreendente: sua análise da teoria do valor marxiana como um
sustentáculo do “afastamento das barreiras naturais” e do desenvolvimento do
ser social. Nesse ponto, especificamente, as colocações de Schmidt são mais
interessantes, ainda que ambos acabem incorrendo no isencionalismo.
Valor,
natureza e emancipação
Sobre a base objetiva do “automovimento que repousa sobre si mesmo” extra-humano,
Lukács pensa o desenvolvimento do ser social apoiado, sobretudo, no processo de
“afastamento das barreiras naturais”. No entanto, a partir de uma tentativa de
retomada das reflexões marxianas, ele constrói seu argumento baseado em uma
peculiar generalização da teoria do valor. Com isso, ele avança uma articulação
problemática entre trabalho e as formas sociais que o organizam, o que
contrasta com a própria teorização de Marx.
Em mais de
uma ocasião, em suas reflexões no final da década de 1960, Lukács (2012, p.
359; 2012, p. 421; 2008, p. 138) se posicionou sobre essa generalização da
teoria do valor-trabalho como presente “implicitamente” já nos trabalhos
pré-capitalistas produtores de valores de uso e também
no comunismo, mesmo quando cessadas a produção e circulação de mercadorias (Mészáros, 2002; Hudis, 2012; Van
Der Laan, 2020).
Isso
contrasta com a historicidade atribuída por Marx (1985a, p. 56; 2012) e Engels
(1987, p. 294-295) à teoria do valor. No entanto, Lukács é teoricamente
consequente com tal generalização, que acaba por ocupar um lugar importante em
sua ontologia, “animando” o desenvolvimento do ser social. Haveria neste uma
lei trans-histórica de redução do tempo de trabalho socialmente necessário, que
se realizaria pelo encontro dos diversos atos teleológicos na produção, mesmo
que os diversos indivíduos envolvidos nesse processo não tenham consciência
desse resultado. Uma lei à qual os indivíduos deveriam se adequar “sob pena de
ruína”, independentemente mesmo do que eles pensem sobre ela. Ainda que desvios
possam ocorrer frente a tal legalidade, ela acabaria por se impor
necessariamente (Lukács, 2013, p. 113-114).
Com isso,
Lukács acaba generalizando explicitamente um conjunto de categorias que seriam
típicas do capitalismo: uma compulsoriedade da redução do tempo de trabalho, a
produção indiretamente social do capitalismo, a opacidade das valorações
econômicas e o próprio tempo de trabalho socialmente necessário (Van Der Laan,
2020, p. 104-134). Todas essas categorias são específicas do movimento
incontrolável do capital, mas na teoria lukácsiana
são, em conjunto, transpostas para todo o ser social.
Lukács
enxerga nesse movimento os múltiplos processos de estranhamento dos indivíduos,
nos mais distintos complexos sociais. Contudo, em certo sentido, ele insere no
âmbito econômico uma visão otimista dessa lei. A despeito dela se realizar por
meio do aviltamento, e até mesmo pelo sacrifício dos indivíduos, em última
instância ela é responsável por um desenvolvimento e um enriquecimento dos
indivíduos e mesmo do gênero humano como um todo (Lukács, 2013, p. 580-581).
Schmidt
(2014), diferentemente, é mais preciso na delimitação histórica da teoria do
valor-trabalho de Marx e, a partir daí, consegue extrair consequências
importantes sobre a organização capitalista do metabolismo entre seres humanos
e natureza (Burkett, 1997, p. 166-168). A separação
entre produtores diretos e meios de produção, a generalização da forma
mercadoria, o trabalho realizado privadamente que se confirma post festum no
processo de troca no mercado, inauguram uma forma peculiar de relação com a natureza,
quando comparada com as sociedades pré-capitalistas.
Nesse
quadro, a forma valor que orienta a produção capitalista, pautada
predominantemente pelo trabalho abstrato enquanto substância do valor, não leva
em conta a dimensão natural extra-humana. Por certo, obviamente, como todo modo
de produção, o capitalista não pode prescindir da natureza e, de fato, toma-a
como um pré-requisito. Contudo, o mundo natural não figura, em sua concretude,
dinâmica e finitude na relação abstrata da forma-valor (Schmidt, 2014).
Isso se
complexifica ainda mais com a dimensão fetichizante e
reificante da produção capitalista. Elas estabelecem um duplo processo de
mistificação: tanto as relações sociais entre os seres humanos como as relações
desses com a natureza não aparecem como relações diretas, mas subsumidas à
distorção da forma-mercadoria e do mercado capitalista (Schmidt, 2014). O
resultado é uma legalidade, especificamente capitalista, compulsória, de
redução do tempo de trabalho socialmente necessário, organizado em torno de um
processo de acumulação supostamente infinito e que, nos termos de Schmidt
(2014), se impõe sobre uma natureza extra-humana não-idêntica, mas, em última
instância, passiva.
A despeito
das diferenças entre Lukács e Schmidt, as interpretações de ambos, em certa
medida, tocam-se quando tratam da perspectiva de emancipação humana em Marx.
Aqui o isencionalismo dos dois autores aparece de
maneira mais explícita e, consequentemente, os limites de suas abordagens sobre
a natureza.
Um ponto
privilegiado para se pensar essa convergência está nas passagens de Marx, no
terceiro volume d’O Capital, que
tratam brevemente de uma sociedade emancipada. Nelas está a famosa distinção
entre um “reino da necessidade” e um “reino da liberdade”, que destaca a
importância insuprimível do metabolismo entre seres
humanos e natureza.
Marx (1986)
afirma que o
reino da liberdade “[...] de fato só começa onde cessa o ato de trabalhar, que
é determinado pela necessidade e pela utilidade exterior; portanto, pela
natureza da coisa, ele se situa além da esfera da produção propriamente
material” (Marx, 1986, p. 272-273). Já no reino da necessidade,
[...] a liberdade só
pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem
racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, trazendo-o para seu controle
comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega;
que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e
adequadas à sua natureza humana. Além dele é que começa o desenvolvimento das
forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da
liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua
base. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental (Marx, 1986, p.
273).
Lukács e
Schmidt reconhecem aqui uma insuprimível alteridade
da natureza extra-humana, como já mencionamos anteriormente. Uma sociedade
emancipada não subsumiria completamente o mundo natural ao social. Pelo
contrário, a dimensão da liberdade nela dependeria de um processo de
reorganização comunista do metabolismo entre seres humanos e natureza. No
entanto, os dois autores interpretam a liberdade no reino da necessidade a
partir de uma concepção estreita do que Marx designou como regulação racional
do metabolismo.
Lukács
(2013, p. 531) utiliza a passagem de Marx para reafirmar sua projeção
a-histórica da lei do valor-trabalho para toda a sociabilidade humana. A
regulação racional do metabolismo, assim como o “controle comunitário” e o
“menor esforço possível” estariam na “pura linguagem da economia”, cuja
essência é uma constante pressão para a redução do tempo de trabalho
socialmente necessário — que continuaria a existir em uma sociedade comunal.
Ao invés de
um princípio organizador da produção em uma sociedade comunista, as “condições
mais dignas e mais adequadas da natureza humana” mencionadas por Marx, são
interpretadas por Lukács como a introdução de uma “fissura” na economia, que
continuaria a ser regida pela constante “pressão” pelo aumento da
produtividade. Sobre a natureza extra-humana em uma sociedade emancipada, além
da indicação de sua alteridade, Lukács não diz mais que “[...] a enorme
expansão do conhecimento da natureza por meio do trabalho e das ciências
oriundas dele só pode intensificar o metabolismo entre ambos, elevá-lo a
píncaros não imaginados” (Lukács, 2013, p. 530).
Por sua vez, a
interpretação de Marx feita por Schmidt (2014) sobre uma sociedade emancipada
se aproxima da lukácsiana, uma vez que sua
mobilização da ideia de uma ontologia negativa também reivindica uma insuprimível alteridade da natureza extra-humana. Marx,
segundo Schmidt (2014), argumenta que o comunismo intensificaria a tendência trans-histórica, acelerada no capitalismo, de dominação
humana sobre a natureza, que isso seria feito em detrimento do mundo natural
extra-humano para o benefício apenas dos seres humanos, com a ajuda de imensos
recursos tecnológicos, e com o menor dispêndio de tempo possível e um imenso e
diverso consumo (Burkett, 1997, p. 170-173).
O que Lukács valora
positivamente, Schmidt lamenta pelo aspecto de dominação sobre a natureza
extra-humana. Ambos se encontram, no entanto, na caracterização, supostamente
apoiada em Marx, de uma crescente imposição sobre uma natureza, em última
instância, passiva. E Schmidt adiciona um tom a mais de pessimismo: em diálogo
com a psicanálise, ele argumenta que a dominação da natureza externa, implica
em uma supressão da natureza “interna” dos seres humanos.
O que Lukács e Schmidt
perdem de vista em suas interpretações sobre as reflexões marxianas é,
sobretudo, a ideia de “ruptura metabólica” (Marx, 2013, p. 572-573). O
reiterado diálogo de Marx e Engels com as ciências naturais, particularmente em
sua luta contra o malthusianismo, levou-os não apenas a uma apologia do
desenvolvimento tecnológico e científico, mas também ao reconhecimento de
limites naturais e do potencial destrutividade do trabalho para o próprio mundo
humano. As pesquisas de Marx sobre a agricultura capitalista apontaram para a
possibilidade do estabelecimento de uma “ruptura irremediável” no metabolismo
entre seres humanos e natureza. Os estudos marxianos sobre o metabolismo no
decênio final de sua vida referiram-se ainda às mudanças climáticas, aos
horrores da criação de animais e ao desmatamento resultante do impacto da
produção humana em diversos períodos históricos, mas especialmente aquele que
ocorreu sob o capitalismo, com sua demanda de um tempo cada vez menor de
rotação do capital (Saito, 2021; 2023).
Por outro
lado, Marx ocupou-se, também nos decênios finais de sua vida, com o estudo de
sociedades pré-capitalistas e de outros modos de organização do metabolismo
entre sociedade e natureza, acenando para possibilidades de resistência ao
capital e de transição revolucionária baseadas na propriedade comunal
pré-capitalista. Há indícios de que o estudo das ciências naturais com uma
perspectiva ecológica e a investigação das sociedades pré-capitalistas se
conectem, no sentido de uma formação social emancipada e sustentável (Saito,
2021, p. 326-329; Saito 2023).
Seja como
for, o que nos parece evidente é que a posição marxiana de transição e de
emancipação foge de um produtivismo “cego” e aponta para a possibilidade da
mobilização da ciência e das forças produtivas em uma direção em tudo distinta
daquela que se efetivou sob a lei do valor-trabalho. É interessante notar, por
exemplo, como em um dos rascunhos da conhecida carta à Vera Zasulich,
na qual Marx alude à possibilidade de as comunas aldeãs russas fazerem a
transição ao socialismo sem passar pelo capitalismo, ele indique que a crise
capitalista “[...] terminará com sua própria eliminação, com o retorno das sociedades modernas a uma forma superior de tipo ‘arcaico’ de
propriedade e produção coletiva” (Marx, 1881, não paginado). A nosso ver, tal
colocação não indica nem uma volta romantizada a uma vida pré-capitalista, nem
uma crença cega no desenvolvimento das forças produtivas.
A questão fundamental
aqui, contudo, é que a ideia de uma “regulação racional do metabolismo” entre
seres humanos e natureza mencionada por Marx é um contraponto ao seu
diagnóstico de uma “ruptura metabólica”. Isso significa que não há na
perspectiva de uma sociedade emancipada marxiana uma racionalidade estreita que
subsume tudo a uma expansão “cega” da produtividade e
do consumo. Marx (1985b, p. 265) insistiu na necessidade de preservação das
condições do metabolismo para as gerações futuras. O caráter qualitativo das
transformações em uma sociedade comunista, portanto, não tem como cerne uma
redução meramente quantitativista do tempo de
trabalho e uma expansão do consumo por meios tecnológicos, mas traz a
necessidade de uma outra relação com a natureza extra-humana.
Ao negligenciarem essas
questões, os aspectos frutíferos das teorizações tanto de Lukács quanto de
Schmidt, que mencionamos acima, são perdidos.
Por um lado, a
materialidade substantiva da ontologia da natureza extra-humana em Lukács, que
aponta para o movimento próprio dessa, para as limitações da intervenção do
trabalho, o período de consequências, etc., termina
por incorrer, em última instância, em um isencionalismo
por indicar apenas uma intensificação da atuação do trabalho, da ciência e da
tecnologia sobre a natureza, negligenciando a destrutividade sobre ela,
inclusive para o mundo humano. Por outro lado, a frutífera teorização de
Schmidt sobre a relação entre a forma-valor e a natureza, mais enraizada
historicamente que a generalização de Lukács, é, em última instância, minada,
porque também Schmidt acaba por projetar uma tendência unilateral de imposição
do trabalho sobre o mundo natural extra-humano que termina por mimetizar o
produtivismo capitalista.
Considerações Finais
A troca de Schmidt e
Lukács e as reflexões de ambos que tratamos aqui emergiram em um momento que,
décadas mais tarde, seria classificado como a Grande Aceleração. Um período que
teria início nos anos 1950, no qual a produção do capital dá um salto vertiginoso,
evidenciado por números diversos de crescimento econômico, populacional, de
produção, consumo de energia, etc., mas também de
impacto humano sobre a natureza: emissões de dióxido de carbono, redução da
camada de ozônio, aceleração de extinção de espécies, do desmatamento, etc.
Esse seria o período chamado informalmente pelas ciências naturais de
Antropoceno, um momento em que a atividade do capital se tornaria ela mesma uma
força de um impacto tão grande sobre o planeta, que rivalizaria com as demais
forças naturais, desestabilizando as interações do Sistema Terra (Angus, 2023).
Não surpreende, portanto, que Lukács e Schmidt, ainda que com valorações
opostas, projetem um avanço unilateral da ciência, da tecnologia e do trabalho
sobre a natureza extra-humana.
Contudo, os anos 1960 marcam também o
surgimento do moderno movimento ambientalista. Ao lado, portanto, desse imenso
crescimento da produção do capital, o seu impacto sobre o mundo natural vai se
tornando cada vez mais evidente, em sua dimensão planetária e seus limites
naturais.
É nesse contexto que István Mészáros
avança um outro retorno a Marx que reenquadra de maneira profícua os problemas
que tratamos aqui em Schmidt e Lukács. Considerado como o grande herdeiro
intelectual de Lukács, Mészáros (2006), em 1970,
publica A Teoria da Alienação em Marx. Nele,
destaca os diversos processos de estranhamento, desde seu enraizamento no
trabalho, ressaltando também, brevemente, o estranhamento da própria relação
com a natureza: as ciências e as tecnologias, subsumidas aos imperativos do capital,
atuariam no sentido da destruição da natureza extra-humana.
Nas décadas seguintes, essas considerações de Mészáros (1987; 2002) irão se aprofundar e compor um quadro
importante de sua teorização. Ele irá retomar explicitamente uma abordagem
ontológica para argumentar sobre o que chamou de mediações de primeira e de
segunda ordem. De um lado, o imperativo concreto do metabolismo entre seres
humanos e natureza, presente em qualquer sociedade; de outro, as mediações de
segunda ordem, impostas pelo capital — da separação dos produtores diretos do
controle da produção, ao Estado, passando pelo dinheiro, pelo mercado mundial, etc. —, e que levam à organização de um sistema
hierárquico, que se expande de maneira compulsória, incontrolada e
incontrolável.
O diagnóstico de Mészáros
(2002) é que essa ordem sociometabólica inaugurada
pelo capital estaria ativando limites absolutos e que, não obstante, sua
dimensão de um expansionismo “cego” não poderia ser contida dentro dos próprios
parâmetros do sistema do capital. Ponto fundamental é que Mészáros
(2002) afirma a presença das mediações de segunda ordem impostas pelo capital
também nas sociedades pós-capitalistas que se propuseram socialistas. E, passo
importante, como contraponto a isso, inspirado nas colocações marxianas, ele
defende uma perspectiva de emancipação humana que retoma substantivamente o
controle da produção social para os produtores associados e uma organização
social tal que respeite tanto a autonomia dos indivíduos quanto a
sustentabilidade na relação com mundo natural extra-humano — uma
sustentabilidade, por certo, impossível sob a ordem sociometabólica
do capital (Mészáros, 2002).
Por essa via, Mészáros
elabora um importante e pioneiro reenquadramento tanto do movimento
compulsório, incontrolável e destrutivo do capital, quanto da necessidade de
uma sociedade emancipada romper substantivamente com tais determinações.
No começo dos anos 2000, a chamada escola da
ruptura metabólica, inaugurada por Paul Burkett
(2016) e John Bellamy Foster (2000), irá reconhecer o pioneirismo de Mészáros na abordagem do sociometabolismo
inaugurado pelo capital e sua destrutividade do mundo natural extra-humano. Nas
suas mais de duas décadas de existência, essa escola dará também passos adiante
que, a seu próprio modo, concretizarão as considerações de Mészáros.
Por um lado, por exemplo, irá realizar uma aproximação muito mais substantiva, ainda
que crítica, das ciências naturais do que aquela aludida por Mészáros (Angus, 2023). Por outro, irá mostrar, de maneira
mais detalhada, o modo como o próprio materialismo marxiano esteve próximo das
ciências naturais e, mais ainda, a importância que tanto Marx quanto Engels
atribuíram aos perigos da destrutividade do capital sobre o mundo natural
extra-humano (Foster 2000; Burkett, 2016).
Assim, de maneira ainda mais concreta que Mészáros, a escola da ruptura metabólica conseguirá tanto
salvar os aspectos fecundos das teorizações de Lukács e de Schmidt, quanto
desviar-se de seus problemas. A dimensão frutífera de uma ontologia substantiva
do mundo natural, defendida por Lukács, é retomada sobre as bases mais sólidas
dos diálogos críticos com os avanços contemporâneos das ciências naturais. Por
sua vez, a historicidade da teoria do valor e sua relação com o mundo natural
extra-humano, teorizada de maneira fecunda mas
incipiente por Schmidt, é desenvolvida de maneira muito mais profunda, diversa
e ampla por Mészáros e pela escola da ruptura
metabólica (Burkett, 1997).
Essas duas dimensões, ontologia substantiva da
natureza extra-humana e historicidade da lei do valor, encontram-se na
indicação de limites naturais ao expansionismo incontrolável do capital, o que
permite, ademais, que Mészáros e a escola da ruptura
metabólica não incorram no isencionalismo que tanto
Schmidt quanto Lukács incorreram. Isso tudo, por fim, tem como contraponto o
projeto de uma sociedade emancipada, distinta de uma imposição quantitativista da ciência, do trabalho e da tecnologia
sobre a natureza, que se orienta por uma mudança qualitativa na forma como o
metabolismo entre seres humanos e natureza se realiza.
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(Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Campinas, 2020.
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Murillo
van der LAAN
Possui
graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (2010). Mestrado
e doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Durante o doutorado foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp). Em 2017, foi pesquisador visitante na Universidade de Oldemburgo, Alemanha. Atualmente é pós-doutorando
pelo programa de sociologia da Unicamp. É também integrante do grupo de
pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses e do conselho editorial do selo
Mundo do Trabalho, da editora Boitempo, ambos sob a coordenação do prof.
Ricardo Antunes.
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Editoras responsáveis
Ana Targina Ferraz –
Editora-chefe
Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática
Submetido em: 23/9/2024. Aceito em: 23/10/2024.
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Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original
seja corretamente citado. |
[1] Essa correspondência é mencionada por
Tertulian (2005, p. 211) e foi retomada recentemente por Haug (2021) para as
reflexões sobre um materialismo ecológico em Lukács, das quais nos aproximamos
aqui.