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A natureza em György Lukács e Alfred Schmidt: reflexões marxistas no início do Antropoceno

 

Nature in György Lukács and Alfred Schmidt: Marxist reflections on the

beginning of the Anthropocene

 

Murillo van der LAAN

Descrição: Ícone

Descrição gerada automaticamente https://orcid.org/0000-0002-7613-4051

Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia,

Programa de Pesquisador de Pós-Doutorado, Campinas, SP, Brasil

e-mail: murillovanderlaan@hotmail.com

 

Resumo: O artigo apresenta uma contraposição crítica de duas interpretações sobre as reflexões marxianas acerca da natureza nos anos 1960, feitas por György Lukács e Alfred Schmidt. Argumenta que as posições de Schmidt sobre a natureza incorrem, em última instância, em um construtivismo literal que a perspectiva ontológica de Lukács foi capaz de evitar. Por outro lado, o texto argumenta que Lukács faz uma generalização da teoria do valor marxiana que obstaculiza a cognição histórica dos diversos metabolismos sociais, diferentemente da interpretação mais historicizada do valor feita por Schmidt, que tece importantes considerações sobre a relação capitalista com a natureza. Argumenta ainda que ambas as posições, ao voltarem-se para a perspectiva marxiana de uma sociedade emancipada, não apenas se afastam das colocações de Marx, mas incorrem no que a sociologia ambiental classificou como “isencionalismo”. Por fim, busca mostrar como as teorizações de István Mészáros e da chamada Escola da Ruptura Metabólica reenquadram proficuamente os aspectos positivos e as limitações das interpretações de Schmidt e Lukács.

Palavras-chave: Marxismo. Ontologia. Natureza.

 

Abstract: This paper critically contrasts György Lukács’ and Alfred Schmidt’s 1960s interpretations of Marxist reflections on nature. It argues that Schmidt’s position on nature produces a literal constructivism that Lukács’ ontological perspective avoids. It also argues that Lukács generalises Marx’s theory of value in a way that hinders the historical analyses of different social metabolisms, in contrast to Schmidt's more historicised interpretation of value, which draws out important considerations regarding capitalism’s relationship with nature. It further argues that both positions, in analysing the Marxist perspective of an emancipated society, not only depart from Marx’s positions but also fall into what environmental sociology has termed exemptionalism. Finally, it demonstrates how the theorising of István Mészáros and the so-called Metabolic Rift School skilfully reframe the positive aspects and limitations of Schmidt and Lukács’ interpretations.

Keywords: Marxism. Ontology. Nature.

 

Introdução

 

A

no a ano, eventos climáticos extremos e outras catástrofes ambientais chegam às manchetes de jornais e, mais importante ainda, ao cotidiano de um número cada vez maior de pessoas, sobretudo no Sul Global. Isso ocorre em meio a uma profusão de dados científicos, acumulados e refinados por mais de duas décadas, que insistem reiteradamente no caráter antropogênico de tais calamidades. Contudo, a despeito dessa insistência e de mobilizações diversas para conter as alterações climáticas e a destruição ambiental, o curso dos acontecimentos aponta para um aprofundamento do impacto humano sobre o planeta, impulsionado por uma produção capitalista globalizada.

 

 

Nesse período das relações entre seres humanos e natureza, que as ciências naturais chamaram de Antropoceno, as diversas perspectivas no interior da filosofia e das ciências humanas buscam um enquadramento teórico que possa dar conta do atual estado de coisas. No âmbito do marxismo, as correntes que reivindicam um ecossocialismo retomam polêmicas históricas sobre a própria ideia de natureza e sobre sua relação com os seres humanos. À luz desses desenvolvimentos recentes, esse texto volta-se para uma dessas polêmicas: a breve correspondência, nos anos 1960, entre Alfred Schmidt, expoente do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, autor de um livro clássico sobre a ideia de natureza em Marx, e o filósofo húngaro György Lukács que, na década de 1960, empenhava-se em seu derradeiro esforço de construção de uma ontologia marxista.    

 

O argumento que apresentamos aqui é que Schmidt e Lukács têm concepções teóricas distintas sobre a natureza, com alcances e limites que, em certa medida, complementam-se. Ao passo que a perspectiva ontológica lukácsiana sobre a natureza é profícua ao propor um movimento substantivo da natureza, representado a partir da proposta de um diálogo crítico com as ciências naturais, a teorização de Schmidt incorre, em última instância, em um construtivismo que perde de vista a objetividade própria do mundo natural.

 

Por outro lado, Lukács avança uma generalização da teoria do valor marxiana para todo o ser social que compromete uma compreensão da historicidade das diversas formas de realização do metabolismo entre seres humanos e natureza. Schmidt, diferentemente, apresenta uma interpretação da teoria do valor de Marx que ressalta seu enraizamento no capitalismo e retira daí reflexões importantes sobre as interações com a natureza sob o comando do capital.

 

Os dois autores, no entanto, ao refletirem sobre uma sociedade comunista a partir da teorização marxiana, projetam um desenvolvimento do trabalho e uma imposição sobre o mundo natural que perde de vista a dimensão de limites naturais e de crise ambiental. Isso mina os aspectos positivos de cada uma das teorizações e desvela, nos termos da sociologia ambiental, o isencionalismo [exemptionalism] de ambas. Isto é, como, em última instância, elas veem a interação humana como isenta dos constrangimentos e impactos de sua atuação sobre o mundo natural extra-humano.

 

Por fim, procuramos argumentar como István Mészáros e, posteriormente, a chamada escola da ruptura metabólica, reenquadram os aspectos positivos tanto de Schmidt quanto de Lukács para uma perspectiva mais profícua tanto da crise ambiental contemporânea, quanto para a reflexão sobre uma sociedade emancipada que estabeleça uma relação qualitativamente distinta e sustentável com o mundo natural extra-humano.

 

Ontologia, natureza e metabolismo

 

Pouco depois da publicação de sua tese de doutorado em formato de livro, intitulado O Conceito de Natureza em Marx, em 1962, Alfred Schmidt (2014) a enviou ao filósofo húngaro György Lukács. Como era evidente pelo título da obra, Schmidt buscava compreender o modo em que a natureza aparece no pensamento marxiano. Em 1963, ele recebeu de Lukács uma resposta elogiosa da pesquisa, dizendo que ela representava um avanço científico importante, especialmente porque se empenhava em uma interpretação processual da reflexão marxiana, e não se tratava apenas de uma contraposição entre um jovem e um velho Marx (Lukács, 1963).[1]

No entanto, impossibilitado na ocasião de adentrar nos detalhes da argumentação de Schmidt, Lukács limitou-se a apenas uma observação “de princípio [prinzipielle]”:

 

[...] por mais que você [Schmidt] enfatize em diversos lugares a objetividade da realidade, a análise do metabolismo entre sociedade e natureza tem, em várias partes, uma semelhança fatal [fatale Aehnlichkeit] com História e Consciência de Classe. Isso aparece de maneira particularmente acentuada quando você censura o velho Engels por considerar a natureza de maneira ontologicamente objetiva – supostamente em oposição ao método de Marx. Eu, no entanto, considero que o conceito de metabolismo com a natureza, que tem importância central, é baseado na objetividade ontológica da própria natureza independentemente da sociedade [grifos de Lukács]. Apenas a partir disso, o trabalho, a atividade social e a própria sociedade podem ser consistentemente compreendidos do ponto de vista filosófico. Todas as considerações de Marx são baseadas nesse método. Uma vez que eu, com História e Consciência de Classe, sou o principal culpado pelo método errado, considero como meu dever expressar essa concepção de maneira bem nítida (Lukács, 1963, não paginado).

 

A questão de princípio colocada por Lukács dizia respeito, portanto, ao cerne das preocupações de Schmidt, isso é, ao lugar da natureza no pensamento marxiano e, em termos mais gerais, no materialismo histórico-dialético. Lukács (2003) fazia referência crítica em sua carta ao modo como ele próprio, quarenta anos antes, em História e Consciência de Classe, havia em grande medida colapsado o mundo natural extra-humano no interior da sociedade, ao reduzir a natureza a uma “categoria social” cuja forma e conteúdo seriam sempre, de diversas maneiras, determinados socialmente (Haug, 2021, p. 108-113).

 

A posição de Schmidt que Lukács criticava, no entanto, era menos radical do que a de História e Consciência de Classe. N’O conceito de natureza em Marx, Schmidt (2014) indicava de modo mais claro a existência de um mundo natural extra-social, isto é, de um ser para além das determinações sociais. Contudo, ressaltava que seria possível falar dessa dimensão extra-humana, apenas do ponto de vista da relação social e historicamente determinada que estabelecemos com ela, sobretudo por meio do trabalho, sem extrapolá-la para um discurso sobre o ser que teria existência independentemente da sociedade.

 

Não obstante, a aproximação das posições de Schmidt e de Lukács em História e Consciência de Classe estaria na recusa de uma perspectiva ontológica realista sobre a natureza. A cognição e a atuação humana sobre o mundo natural seriam sempre permeadas pelas determinações sociais, o que implicaria tomá-las sempre a partir o prisma social. Ambas as abordagens contrastavam com a de Engels (2020), na medida em que este se engajou em um projeto teórico que buscava realizar uma conexão entre as diversas ciências naturais para teorizar sobre uma dialética da natureza, suas leis de movimento, o desenvolvimento do ser, etc., que teriam existência independente e para além das determinações sociais.

 

Para Schmidt (2014), esse esforço de Engels incorreria em um “realismo ingênuo” que, ademais, assumiria uma posição a-histórica e antidialética, ao buscar a construção de uma ontologia da natureza. Isso seria problemático porque, segundo Schmidt, implicaria uma abordagem supra-histórica; tanto por buscar apreender de maneira realista a existência de uma natureza sem a mediação humana, quanto por resultar em uma visão de mundo com dimensões a-históricas, que terminaria por naturalizar também o mundo social, reduzindo-o a uma suposta lei geral objetiva de desenvolvimento.

 

 

Uma perspectiva genuinamente dialética, diferentemente, não deveria se ocupar, segundo Schmidt (2014), com uma explicação positiva da estrutura do ser, mas assumiria uma função crítica, dentro da história, de pensar as contradições entre os seres humanos na sua práxis, no seu fazer histórico.

 

Marx teria se posicionado de maneira distinta de Engels, na interpretação de Schmidt (2014). Não teria recorrido a uma visão de mundo, a um princípio positivo para explicar ontologicamente a realidade não-humana. Pelo contrário, a natureza apareceria em seu pensamento sempre mediada pela interação com os seres humanos, apenas através das “formas do trabalho social” e, portanto, enraizada historicamente.

 

Essa interpretação colocaria Schmidt diante de alguns problemas. O primeiro remete às tentativas de separar as reflexões de Marx e Engels no que dizem respeito a uma tomada de posição ontológica e realista sobre a natureza, que se chocam com os registros em cartas e livros onde o posicionamento de ambos convergem sobre a questão (Foster, 2020).

 

Ligado a isso, e mais importante, a interpretação de Schmidt se choca com os momentos em que o próprio Marx, remeteria a um discurso ontológico ao tratar da natureza. Diante desse segundo problema, a saída de Schmidt (2014) é indicar que, a despeito de Marx, em alguns momentos de sua teorização, apontar para uma relação para além da interação entre seres humanos e natureza, ele não o faz de maneira positiva, não teoriza abstrata e a-historicamente essa relação. Em Marx haveria o que Schmidt (2014) chama de “ontologia negativa”, momentos da produção marxiana em que há um reconhecimento de determinações “supra-históricas”, mas que não são teorizados positivamente.

 

Essa interpretação de Schmidt também o colocaria, por outro lado, em uma posição de maior ceticismo e distanciamento com relação às ciências naturais, o que seria particularmente problemático quando ele se volta à análise da ideia de metabolismo no pensamento marxiano. A despeito de reconhecer o interesse de Marx pelas ciências naturais, Schmidt (2014) entende que sua utilização do termo é predominantemente analógica e especulativa, um mero recurso heurístico para pensar as relações sociais e para a reflexão crítica sobre a economia política (Saito, 2021, p. 105-114).

 

O afastamento de Schmidt tanto de uma perspectiva ontológica, quanto da importância substantiva das ciências naturais, incorreria em problemas também em sua interpretação do pensamento marxiano sobre os contornos de uma sociedade emancipada. Schmidt (2014) entende que o pensamento do Marx da maturidade assume uma posição sóbria e instrumental com relação à natureza, que projetaria no comunismo um desenvolvimento tecnológico voltado cada vez mais à dominação externa dela, com reflexos também sobre a natureza interna dos indivíduos. O mundo natural extra-humano permaneceria sempre um momento não-idêntico do social, mas sua capacidade de “vingança” sobre os seres humanos, nos termos de Engels (2020), seria minada cada vez mais por uma crescente tendência de dominação humana.

 

O problema com essa interpretação de Schmidt é que, ao recusar uma exposição ontológica positiva da natureza, assentada nas ciências naturais; negligenciar as pesquisas de Marx sobre metabolismo também em um sentido científico; e remeter a uma perspectiva de dominação humana crescente sobre a natureza, ele assume uma posição que se aproximaria do que Anna Petterson (1999; Malm, 2018, p. 35) chamou de um construtivismo literalista: a ideia de que a práxis humana constrói a natureza (Haug, 2021, p. 107).

 

No caso de Schmidt, isso ocorre de maneira mais nuançada, no sentido de que a própria natureza, em última instância, figura em seu quadro teórico em grande medida subsumida à práxis humana. Isso é, mesmo que sua perspectiva, derivada de uma interpretação particular de Marx, reconheça uma insuprimível “não-identidade” do mundo natural extra-humano, tal mundo natural estaria diante de um avanço unilateral do trabalho e da produção humana. Em última instância, a natureza extra-humana não figuraria com sua dimensão objetiva própria na interpretação de Schmidt, também impactando, ela mesma, o mundo social.

 

Anos depois da publicação de O Conceito de Natureza em Marx, ao refletir sobre a possibilidade de um “materialismo ecológico”, o próprio Schmidt reconheceria esse problema. No prefácio de 1993 à sua obra, ele indicaria a necessidade de reconhecer mais substantivamente a atuação do mundo natural extra-humano sobre o social (Haug, 2021, p. 107; Saito, 2021, p. 113).  

 

Essas observações de Schmidt jogam luz à importância, desde um ponto de vista ecológico, de uma materialidade substantiva e autônoma da natureza extra-humana. Teorizações que assumem um construtivismo literalista, ao negligenciarem uma atuação substantiva do mundo natural extra-humano sobre o social, podem perder de vista a ideia de limites naturais e de consequências imprevistas da práxis humana. Mais recentemente, esse construtivismo literalista aparece em teorizações que, ao reivindicarem um imbricamento inseparável entre natureza e sociedade, acabam por defender a ideia mesma de um “fim da natureza”, subsumida à práxis humana, ou de uma “produção da natureza” avançada pelo capitalismo (Malm, 2018, p. 29–37).

 

Ao lado dessa concepção mais literal da construção da natureza extra-humana, há outras teorizações que assumem um construtivismo idealista – ainda seguindo a classificação de Petterson – que reduzem o mundo natural às ideias ou à linguagem. Uma vez que o pensamento e o discurso compõem uma dimensão inescapável de nossa cognição da natureza, e que são múltiplas as comunidades epistêmicas sobre ela, o mundo natural seria ele mesmo resultado das ideias e das narrativas que apresentamos sobre ele. Obliterando um referente ontológico próprio e autônomo do mundo natural, essas perspectivas, de maneira ainda mais radical, podem abrir um flanco perigoso para os negacionismos diversos do grave momento ambiental em que vivemos (Malm, 2018, p. 21-28).

 

Há algum tempo, um outro movimento teórico emergiu opondo-se às perspectivas construtivistas com relação à natureza, mas trazendo consigo, ao mesmo tempo, problemas significativos. Chamado de Novo Materialismo, tal movimento critica a centralidade que as diversas teorias, entre elas o marxismo, dão à práxis ou às ideias e discursos humanos, e negligenciam a agência dos múltiplos seres envolvidos nas interações sociais. Na contramão dessa centralidade humana/social, o que esse Novo Materialismo propõe é algo caracterizado como uma “ontologia plana”, que indica que todos os objetos têm agência, sejam eles orgânicos ou inorgânicos (Malm, 2018, 78-118).

 

Ao pensar problemas ambientais contemporâneos como a mudança climática, por exemplo, as perspectivas que reivindicam o Novo Materialismo insistem no deslocamento do foco da análise, de relações sociais que organizam a particularidade de nosso metabolismo, como o capital, para que se reconheça as agências dos diversos seres nesse processo: o carvão, o petróleo, o dióxido de carbono, o metano, os oceanos, etc. (Malm, 2018, 78-118)

 

Dentro da tradição marxista, essa atribuição de agência a objetos inorgânicos é caracterizada como fetichismo (Malm, 2018, p. 110; Hornborg, 2019, p. 177-192). Ela se torna particularmente problemática porque há uma ligação intrínseca entre agência e responsabilidade, o que é crucial para o diagnóstico dos problemas ecológicos contemporâneos. Contudo, ao invés de jogar luz à especificidade da dimensão antropogênica, sob relações capitalistas, dos profundos problemas ambientais que experimentamos contemporaneamente, o Novo Materialismo reivindica como fundamental a distribuição de agência por redes de humanos e não-humanos (Malm, 2018, p. 110-112).

 

Diante dessas diversas perspectivas sobre a natureza, a breve troca de Schmidt e Lukács assume contornos interessantes. A recusa de Schmidt do projeto engelsiano de uma ontologia objetiva da natureza, concebida independentemente da sociedade, chocava-se com o próprio projeto lukácsiano de elaboração de uma ontologia do ser social, que ocupou a década final de sua vida. 

 

Nesse projeto, como Lukács explica na carta, ele se distancia da influente posição que havia avançado em História e Consciência de Classe, quarenta anos antes, que reduzia a natureza a uma categoria social. Como Lukács (2013, p. 14-28) iria notar também no prefácio de 1967 da obra, a correta compreensão do trabalho e do ser social como um todo depende de um fundamento ontológico independente e para além do mundo social.

 

O objetivo de Lukács com sua ontologia era, através de um retorno a Marx, elaborar uma interpretação que pudesse contribuir com um renascimento do marxismo, em meio às distorções sobretudo do pensamento stalinista. Esse retorno a Marx era também, em grande medida e particularmente com o que nos ocupamos aqui, um retorno a Engels.

 

Ainda que Lukács tenha criticado, também em suas elaborações dos anos 1960, as generalizações engelsianas sobre a dialética, sua ontologia tem como base uma perspectiva de desenvolvimento imanente do ser que em muito se aproxima do projeto de uma dialética da natureza. É possível dizer que, em certo sentido, a ontologia lukácsiana tem seu “início” aí. Em um delineamento de uma objetividade natural, caracterizada como um “automovimento que repousa sobre si mesmo”. Um metabolismo universal, dinâmico, que se complexifica, em interações marcadas também pela contingência, e composta por três grandes esferas que se interpenetram: o ser inorgânico, ser orgânico e o ser social (Lukács, 2012; 2013).

 

Lukács se reconhece como um diletante em ciências naturais (Lukács, 1969, p. 19). No entanto, como Engels o fizera antes, ele aponta para a possibilidade de um diálogo crítico com as mais diversas ciências para, filosoficamente, traçar as determinações, os imbricamentos e as complexificações do ser. Indica, dessa forma, os processos de continuidade e descontinuidade ontológicos: as interações particulares entre ser inorgânico que vão dar lugar ao surgimento da vida, do ser orgânico, e, mais tarde, de germes de consciência de onde, finalmente, emergirá o ser social. O surgimento de cada nova esfera representa um salto qualitativo que traz continuidades e descontinuidades com as esferas precedentes e uma necessária relação entre elas (Lukács, 2012; 2013).

 

A novidade inaugurada pelo ser social segundo a ontologia lukácsiana está no surgimento de uma consciência qualitativamente distinta, capaz de iniciar processos teleológicos de uma complexidade sem paralelos no ser orgânico. Fazendo novamente referência a Engels, Lukács destaca o papel do trabalho na realização do metabolismo entre seres humanos e natureza. Daqui ele retira as categorias básicas da práxis humana, sempre em contato com uma objetividade que é tanto modificada pelos atos teleológicos quanto modifica e determina a subjetividade humana e o ser social como um todo (Lukács, 2013).

 

Há uma unidade de consciência e objetividade nesses processos, mas que não se traduz em uma identidade. Os seres humanos agem sempre constrangidos por essa objetividade do mundo extra-humano, tem a capacidade de afetar a natureza como um todo e de, a partir dessa objetividade, criar objetos inteiramente novos, mas esse mundo extra-humano permanece sempre um “[...] automovimento que repousa sobre si mesmo [...]” (Lukács, 2013, p. 48), nunca é completamente subsumido pelo ser social.

 

A atuação humana sobre tal objetividade, ademais, é sempre limitada. No complexo emaranhado de causalidades e contingências que constituem o real, a intervenção do ser social é sempre finita, incapaz de apreender todas as consequências de sua ação. Há sempre, portanto, um “período de consequências”, em que é preciso lidar com os resultados imprevistos da atuação humana sobre o mundo (Lukács, 2013, p. 70-75). Sobre esses fundamentos, Lukács apresenta em sua ontologia o processo de desenvolvimento do ser social, que apontaria para um contínuo “afastamento das barreiras naturais”, base de uma crescente “socialização do ser social”, uma superação dos constrangimentos imediatamente colocados pelo mundo natural extra-humano (Lukács, 2013, p. 159).

 

Nesse processo de desenvolvimento do ser social, como veremos, Lukács não estava particularmente interessado em um “materialismo ecológico”, e negligencia a questão da destruição ambiental e seus impactos sobre o ser social. No entanto, ao retomar o projeto engelsiano — este sim, marcado por traços ecológicos (Foster, 2020) —, como base para sua reflexão sobre o ser social, Lukács abre o caminho para um materialismo que consegue escapar dos problemas de outras teorizações que apontamos acima.

 

Por um lado, essa perspectiva tem a potencialidade – frustrada, como veremos – de não incorrer em um construtivismo literal, seja na versão mais radical avançada por ele mesmo em História e Consciência de Classe, ou na mais nuançada perspectiva de uma ontologia negativa e de dominação da natureza de Schmidt. Ao propor uma ontologia realista, assentada em um diálogo crítico com as ciências naturais, Lukács toma também a ideia de metabolismo em um sentido substantivo e não apenas analógico, ainda que reconheça suas limitações aqui. Ademais, ao propor uma perspectiva geral dos desdobramentos do ser inorgânico, orgânico e social, e as especificidades de cada uma dessas esferas, Lukács remete à materialidade substantiva do real, sem, no entanto, incorrer nas posições fetichistas do novo materialismo.

 

Com isso, poderíamos encontrar na perspectiva lukácsiana um enquadramento teórico profícuo para o diagnóstico das crises ambientais contemporâneas. Ao propor uma ontologia realista, que pensa a unidade e o imbricamento entre as diversas dimensões do ser, sem perder a especificidade de cada uma de suas esferas, a proposta lukácsiana poderia desviar-se do que a sociologia ambiental caracterizou como isencionalismo – a crítica de que diversas concepções sobre o mundo social entendem-no, em última instância, como isento do impacto que exercem sobre o meio ambiente (Catton; Dunlap, 1978, p. 42-43).

Contudo, a proposta de Lukács acaba incorrendo nesse problema, por uma via, em certa medida, surpreendente: sua análise da teoria do valor marxiana como um sustentáculo do “afastamento das barreiras naturais” e do desenvolvimento do ser social. Nesse ponto, especificamente, as colocações de Schmidt são mais interessantes, ainda que ambos acabem incorrendo no isencionalismo.

 

Valor, natureza e emancipação

 

Sobre a base objetiva do “automovimento que repousa sobre si mesmo” extra-humano, Lukács pensa o desenvolvimento do ser social apoiado, sobretudo, no processo de “afastamento das barreiras naturais”. No entanto, a partir de uma tentativa de retomada das reflexões marxianas, ele constrói seu argumento baseado em uma peculiar generalização da teoria do valor. Com isso, ele avança uma articulação problemática entre trabalho e as formas sociais que o organizam, o que contrasta com a própria teorização de Marx.

 

Em mais de uma ocasião, em suas reflexões no final da década de 1960, Lukács (2012, p. 359; 2012, p. 421; 2008, p. 138) se posicionou sobre essa generalização da teoria do valor-trabalho como presente “implicitamente” já nos trabalhos pré-capitalistas produtores de valores de uso e também no comunismo, mesmo quando cessadas a produção e circulação de mercadorias (Mészáros, 2002; Hudis, 2012; Van Der Laan, 2020).

 

Isso contrasta com a historicidade atribuída por Marx (1985a, p. 56; 2012) e Engels (1987, p. 294-295) à teoria do valor. No entanto, Lukács é teoricamente consequente com tal generalização, que acaba por ocupar um lugar importante em sua ontologia, “animando” o desenvolvimento do ser social. Haveria neste uma lei trans-histórica de redução do tempo de trabalho socialmente necessário, que se realizaria pelo encontro dos diversos atos teleológicos na produção, mesmo que os diversos indivíduos envolvidos nesse processo não tenham consciência desse resultado. Uma lei à qual os indivíduos deveriam se adequar “sob pena de ruína”, independentemente mesmo do que eles pensem sobre ela. Ainda que desvios possam ocorrer frente a tal legalidade, ela acabaria por se impor necessariamente (Lukács, 2013, p. 113-114).  

 

Com isso, Lukács acaba generalizando explicitamente um conjunto de categorias que seriam típicas do capitalismo: uma compulsoriedade da redução do tempo de trabalho, a produção indiretamente social do capitalismo, a opacidade das valorações econômicas e o próprio tempo de trabalho socialmente necessário (Van Der Laan, 2020, p. 104-134). Todas essas categorias são específicas do movimento incontrolável do capital, mas na teoria lukácsiana são, em conjunto, transpostas para todo o ser social. 

 

Lukács enxerga nesse movimento os múltiplos processos de estranhamento dos indivíduos, nos mais distintos complexos sociais. Contudo, em certo sentido, ele insere no âmbito econômico uma visão otimista dessa lei. A despeito dela se realizar por meio do aviltamento, e até mesmo pelo sacrifício dos indivíduos, em última instância ela é responsável por um desenvolvimento e um enriquecimento dos indivíduos e mesmo do gênero humano como um todo (Lukács, 2013, p. 580-581).

 

Schmidt (2014), diferentemente, é mais preciso na delimitação histórica da teoria do valor-trabalho de Marx e, a partir daí, consegue extrair consequências importantes sobre a organização capitalista do metabolismo entre seres humanos e natureza (Burkett, 1997, p. 166-168). A separação entre produtores diretos e meios de produção, a generalização da forma mercadoria, o trabalho realizado privadamente que se confirma post festum no processo de troca no mercado, inauguram uma forma peculiar de relação com a natureza, quando comparada com as sociedades pré-capitalistas.

 

Nesse quadro, a forma valor que orienta a produção capitalista, pautada predominantemente pelo trabalho abstrato enquanto substância do valor, não leva em conta a dimensão natural extra-humana. Por certo, obviamente, como todo modo de produção, o capitalista não pode prescindir da natureza e, de fato, toma-a como um pré-requisito. Contudo, o mundo natural não figura, em sua concretude, dinâmica e finitude na relação abstrata da forma-valor (Schmidt, 2014).

 

Isso se complexifica ainda mais com a dimensão fetichizante e reificante da produção capitalista. Elas estabelecem um duplo processo de mistificação: tanto as relações sociais entre os seres humanos como as relações desses com a natureza não aparecem como relações diretas, mas subsumidas à distorção da forma-mercadoria e do mercado capitalista (Schmidt, 2014). O resultado é uma legalidade, especificamente capitalista, compulsória, de redução do tempo de trabalho socialmente necessário, organizado em torno de um processo de acumulação supostamente infinito e que, nos termos de Schmidt (2014), se impõe sobre uma natureza extra-humana não-idêntica, mas, em última instância, passiva.

 

A despeito das diferenças entre Lukács e Schmidt, as interpretações de ambos, em certa medida, tocam-se quando tratam da perspectiva de emancipação humana em Marx. Aqui o isencionalismo dos dois autores aparece de maneira mais explícita e, consequentemente, os limites de suas abordagens sobre a natureza.

 

Um ponto privilegiado para se pensar essa convergência está nas passagens de Marx, no terceiro volume d’O Capital, que tratam brevemente de uma sociedade emancipada. Nelas está a famosa distinção entre um “reino da necessidade” e um “reino da liberdade”, que destaca a importância insuprimível do metabolismo entre seres humanos e natureza.

 

Marx (1986) afirma que o reino da liberdade “[...] de fato só começa onde cessa o ato de trabalhar, que é determinado pela necessidade e pela utilidade exterior; portanto, pela natureza da coisa, ele se situa além da esfera da produção propriamente material” (Marx, 1986, p. 272-273). Já no reino da necessidade,

 

[...] a liberdade só pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental (Marx, 1986, p. 273).

 

Lukács e Schmidt reconhecem aqui uma insuprimível alteridade da natureza extra-humana, como já mencionamos anteriormente. Uma sociedade emancipada não subsumiria completamente o mundo natural ao social. Pelo contrário, a dimensão da liberdade nela dependeria de um processo de reorganização comunista do metabolismo entre seres humanos e natureza. No entanto, os dois autores interpretam a liberdade no reino da necessidade a partir de uma concepção estreita do que Marx designou como regulação racional do metabolismo.

 

Lukács (2013, p. 531) utiliza a passagem de Marx para reafirmar sua projeção a-histórica da lei do valor-trabalho para toda a sociabilidade humana. A regulação racional do metabolismo, assim como o “controle comunitário” e o “menor esforço possível” estariam na “pura linguagem da economia”, cuja essência é uma constante pressão para a redução do tempo de trabalho socialmente necessário — que continuaria a existir em uma sociedade comunal.

 

Ao invés de um princípio organizador da produção em uma sociedade comunista, as “condições mais dignas e mais adequadas da natureza humana” mencionadas por Marx, são interpretadas por Lukács como a introdução de uma “fissura” na economia, que continuaria a ser regida pela constante “pressão” pelo aumento da produtividade. Sobre a natureza extra-humana em uma sociedade emancipada, além da indicação de sua alteridade, Lukács não diz mais que “[...] a enorme expansão do conhecimento da natureza por meio do trabalho e das ciências oriundas dele só pode intensificar o metabolismo entre ambos, elevá-lo a píncaros não imaginados” (Lukács, 2013, p. 530).

 

Por sua vez, a interpretação de Marx feita por Schmidt (2014) sobre uma sociedade emancipada se aproxima da lukácsiana, uma vez que sua mobilização da ideia de uma ontologia negativa também reivindica uma insuprimível alteridade da natureza extra-humana. Marx, segundo Schmidt (2014), argumenta que o comunismo intensificaria a tendência trans-histórica, acelerada no capitalismo, de dominação humana sobre a natureza, que isso seria feito em detrimento do mundo natural extra-humano para o benefício apenas dos seres humanos, com a ajuda de imensos recursos tecnológicos, e com o menor dispêndio de tempo possível e um imenso e diverso consumo (Burkett, 1997, p. 170-173).

 

O que Lukács valora positivamente, Schmidt lamenta pelo aspecto de dominação sobre a natureza extra-humana. Ambos se encontram, no entanto, na caracterização, supostamente apoiada em Marx, de uma crescente imposição sobre uma natureza, em última instância, passiva. E Schmidt adiciona um tom a mais de pessimismo: em diálogo com a psicanálise, ele argumenta que a dominação da natureza externa, implica em uma supressão da natureza “interna” dos seres humanos.

 

O que Lukács e Schmidt perdem de vista em suas interpretações sobre as reflexões marxianas é, sobretudo, a ideia de “ruptura metabólica” (Marx, 2013, p. 572-573). O reiterado diálogo de Marx e Engels com as ciências naturais, particularmente em sua luta contra o malthusianismo, levou-os não apenas a uma apologia do desenvolvimento tecnológico e científico, mas também ao reconhecimento de limites naturais e do potencial destrutividade do trabalho para o próprio mundo humano. As pesquisas de Marx sobre a agricultura capitalista apontaram para a possibilidade do estabelecimento de uma “ruptura irremediável” no metabolismo entre seres humanos e natureza. Os estudos marxianos sobre o metabolismo no decênio final de sua vida referiram-se ainda às mudanças climáticas, aos horrores da criação de animais e ao desmatamento resultante do impacto da produção humana em diversos períodos históricos, mas especialmente aquele que ocorreu sob o capitalismo, com sua demanda de um tempo cada vez menor de rotação do capital (Saito, 2021; 2023).

 

 

Por outro lado, Marx ocupou-se, também nos decênios finais de sua vida, com o estudo de sociedades pré-capitalistas e de outros modos de organização do metabolismo entre sociedade e natureza, acenando para possibilidades de resistência ao capital e de transição revolucionária baseadas na propriedade comunal pré-capitalista. Há indícios de que o estudo das ciências naturais com uma perspectiva ecológica e a investigação das sociedades pré-capitalistas se conectem, no sentido de uma formação social emancipada e sustentável (Saito, 2021, p. 326-329; Saito 2023).

 

Seja como for, o que nos parece evidente é que a posição marxiana de transição e de emancipação foge de um produtivismo “cego” e aponta para a possibilidade da mobilização da ciência e das forças produtivas em uma direção em tudo distinta daquela que se efetivou sob a lei do valor-trabalho. É interessante notar, por exemplo, como em um dos rascunhos da conhecida carta à Vera Zasulich, na qual Marx alude à possibilidade de as comunas aldeãs russas fazerem a transição ao socialismo sem passar pelo capitalismo, ele indique que a crise capitalista “[...] terminará com sua própria eliminação, com o retorno das sociedades modernas a uma forma superior de tipo ‘arcaico’ de propriedade e produção coletiva” (Marx, 1881, não paginado). A nosso ver, tal colocação não indica nem uma volta romantizada a uma vida pré-capitalista, nem uma crença cega no desenvolvimento das forças produtivas.

 

A questão fundamental aqui, contudo, é que a ideia de uma “regulação racional do metabolismo” entre seres humanos e natureza mencionada por Marx é um contraponto ao seu diagnóstico de uma “ruptura metabólica”. Isso significa que não há na perspectiva de uma sociedade emancipada marxiana uma racionalidade estreita que subsume tudo a uma expansão “cega” da produtividade e do consumo. Marx (1985b, p. 265) insistiu na necessidade de preservação das condições do metabolismo para as gerações futuras. O caráter qualitativo das transformações em uma sociedade comunista, portanto, não tem como cerne uma redução meramente quantitativista do tempo de trabalho e uma expansão do consumo por meios tecnológicos, mas traz a necessidade de uma outra relação com a natureza extra-humana.

 

Ao negligenciarem essas questões, os aspectos frutíferos das teorizações tanto de Lukács quanto de Schmidt, que mencionamos acima, são perdidos.

 

Por um lado, a materialidade substantiva da ontologia da natureza extra-humana em Lukács, que aponta para o movimento próprio dessa, para as limitações da intervenção do trabalho, o período de consequências, etc., termina por incorrer, em última instância, em um isencionalismo por indicar apenas uma intensificação da atuação do trabalho, da ciência e da tecnologia sobre a natureza, negligenciando a destrutividade sobre ela, inclusive para o mundo humano. Por outro lado, a frutífera teorização de Schmidt sobre a relação entre a forma-valor e a natureza, mais enraizada historicamente que a generalização de Lukács, é, em última instância, minada, porque também Schmidt acaba por projetar uma tendência unilateral de imposição do trabalho sobre o mundo natural extra-humano que termina por mimetizar o produtivismo capitalista.

 

Considerações Finais

 

A troca de Schmidt e Lukács e as reflexões de ambos que tratamos aqui emergiram em um momento que, décadas mais tarde, seria classificado como a Grande Aceleração. Um período que teria início nos anos 1950, no qual a produção do capital dá um salto vertiginoso, evidenciado por números diversos de crescimento econômico, populacional, de produção, consumo de energia, etc., mas também de impacto humano sobre a natureza: emissões de dióxido de carbono, redução da camada de ozônio, aceleração de extinção de espécies, do desmatamento, etc. Esse seria o período chamado informalmente pelas ciências naturais de Antropoceno, um momento em que a atividade do capital se tornaria ela mesma uma força de um impacto tão grande sobre o planeta, que rivalizaria com as demais forças naturais, desestabilizando as interações do Sistema Terra (Angus, 2023). Não surpreende, portanto, que Lukács e Schmidt, ainda que com valorações opostas, projetem um avanço unilateral da ciência, da tecnologia e do trabalho sobre a natureza extra-humana.

 

Contudo, os anos 1960 marcam também o surgimento do moderno movimento ambientalista. Ao lado, portanto, desse imenso crescimento da produção do capital, o seu impacto sobre o mundo natural vai se tornando cada vez mais evidente, em sua dimensão planetária e seus limites naturais.

 

É nesse contexto que István Mészáros avança um outro retorno a Marx que reenquadra de maneira profícua os problemas que tratamos aqui em Schmidt e Lukács. Considerado como o grande herdeiro intelectual de Lukács, Mészáros (2006), em 1970, publica A Teoria da Alienação em Marx. Nele, destaca os diversos processos de estranhamento, desde seu enraizamento no trabalho, ressaltando também, brevemente, o estranhamento da própria relação com a natureza: as ciências e as tecnologias, subsumidas aos imperativos do capital, atuariam no sentido da destruição da natureza extra-humana. 

 

Nas décadas seguintes, essas considerações de Mészáros (1987; 2002) irão se aprofundar e compor um quadro importante de sua teorização. Ele irá retomar explicitamente uma abordagem ontológica para argumentar sobre o que chamou de mediações de primeira e de segunda ordem. De um lado, o imperativo concreto do metabolismo entre seres humanos e natureza, presente em qualquer sociedade; de outro, as mediações de segunda ordem, impostas pelo capital — da separação dos produtores diretos do controle da produção, ao Estado, passando pelo dinheiro, pelo mercado mundial, etc. —, e que levam à organização de um sistema hierárquico, que se expande de maneira compulsória, incontrolada e incontrolável.

 

O diagnóstico de Mészáros (2002) é que essa ordem sociometabólica inaugurada pelo capital estaria ativando limites absolutos e que, não obstante, sua dimensão de um expansionismo “cego” não poderia ser contida dentro dos próprios parâmetros do sistema do capital. Ponto fundamental é que Mészáros (2002) afirma a presença das mediações de segunda ordem impostas pelo capital também nas sociedades pós-capitalistas que se propuseram socialistas. E, passo importante, como contraponto a isso, inspirado nas colocações marxianas, ele defende uma perspectiva de emancipação humana que retoma substantivamente o controle da produção social para os produtores associados e uma organização social tal que respeite tanto a autonomia dos indivíduos quanto a sustentabilidade na relação com mundo natural extra-humano — uma sustentabilidade, por certo, impossível sob a ordem sociometabólica do capital (Mészáros, 2002).

 

Por essa via, Mészáros elabora um importante e pioneiro reenquadramento tanto do movimento compulsório, incontrolável e destrutivo do capital, quanto da necessidade de uma sociedade emancipada romper substantivamente com tais determinações.

No começo dos anos 2000, a chamada escola da ruptura metabólica, inaugurada por Paul Burkett (2016) e John Bellamy Foster (2000), irá reconhecer o pioneirismo de Mészáros na abordagem do sociometabolismo inaugurado pelo capital e sua destrutividade do mundo natural extra-humano. Nas suas mais de duas décadas de existência, essa escola dará também passos adiante que, a seu próprio modo, concretizarão as considerações de Mészáros. Por um lado, por exemplo, irá realizar uma aproximação muito mais substantiva, ainda que crítica, das ciências naturais do que aquela aludida por Mészáros (Angus, 2023). Por outro, irá mostrar, de maneira mais detalhada, o modo como o próprio materialismo marxiano esteve próximo das ciências naturais e, mais ainda, a importância que tanto Marx quanto Engels atribuíram aos perigos da destrutividade do capital sobre o mundo natural extra-humano (Foster 2000; Burkett, 2016).

 

Assim, de maneira ainda mais concreta que Mészáros, a escola da ruptura metabólica conseguirá tanto salvar os aspectos fecundos das teorizações de Lukács e de Schmidt, quanto desviar-se de seus problemas. A dimensão frutífera de uma ontologia substantiva do mundo natural, defendida por Lukács, é retomada sobre as bases mais sólidas dos diálogos críticos com os avanços contemporâneos das ciências naturais. Por sua vez, a historicidade da teoria do valor e sua relação com o mundo natural extra-humano, teorizada de maneira fecunda mas incipiente por Schmidt, é desenvolvida de maneira muito mais profunda, diversa e ampla por Mészáros e pela escola da ruptura metabólica (Burkett, 1997).

 

Essas duas dimensões, ontologia substantiva da natureza extra-humana e historicidade da lei do valor, encontram-se na indicação de limites naturais ao expansionismo incontrolável do capital, o que permite, ademais, que Mészáros e a escola da ruptura metabólica não incorram no isencionalismo que tanto Schmidt quanto Lukács incorreram. Isso tudo, por fim, tem como contraponto o projeto de uma sociedade emancipada, distinta de uma imposição quantitativista da ciência, do trabalho e da tecnologia sobre a natureza, que se orienta por uma mudança qualitativa na forma como o metabolismo entre seres humanos e natureza se realiza.

 

Referências

 

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Murillo van der LAAN

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (2010). Mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Durante o doutorado foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Em 2017, foi pesquisador visitante na Universidade de Oldemburgo, Alemanha. Atualmente é pós-doutorando pelo programa de sociologia da Unicamp. É também integrante do grupo de pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses e do conselho editorial do selo Mundo do Trabalho, da editora Boitempo, ambos sob a coordenação do prof. Ricardo Antunes.

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Editoras responsáveis

Ana Targina Ferraz – Editora-chefe

Camilla dos Santos Nogueira – Editora Temática

 

 

 

Submetido em: 23/9/2024. Aceito em: 23/10/2024.

 

 

 

 

 

 

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[1] Essa correspondência é mencionada por Tertulian (2005, p. 211) e foi retomada recentemente por Haug (2021) para as reflexões sobre um materialismo ecológico em Lukács, das quais nos aproximamos aqui.