Crise capitalista, degradação ambiental e lutas dos povos
originários na América Latina
Universidade Federal do
Espírito Santo, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas,
Programa de
Pós-Graduação em Política Social, Vitória, ES, Brasil
Bolsista Fundação
de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES)
e-mail: camilladossantosnogueira@gmail.com
A |
Revista Argumentum, reconhecida por seu papel de destaque na
difusão de conhecimento científico, encerra este ano com uma edição especial
que traz à tona uma questão de enorme relevância para os tempos atuais. A
edição, intitulada Crise capitalista, degradação ambiental e lutas dos povos
originários na América Latina é um tema particularmente urgente no contexto
atual, marcado pela crescente crise ambiental global e recrudescimento da
questão social.
Os impactos negativos sobre o meio ambiente, intensificados
ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista, não são uma novidade,
embora, no cenário do capitalismo contemporâneo, a destruição ambiental seja
uma tendência cada vez mais acentuada. O processo de degradação da natureza em
níveis alarmantes é resultado da exploração predatória dos recursos naturais,
que sustenta o sistema econômico global, portanto, intimamente relacionada ao
modo de produção capitalista. Esse fenômeno, descrito por Karl Marx como “[...]
ruptura metabólica [...]” (Marx, 2013), revela a insustentabilidade do modelo
capitalista, fundamentado no uso intensivo e descontrolado dos recursos
naturais.
Apesar dessa “ruptura metabólica”, o capitalismo busca
incessantemente formas de ampliar sua reprodução. O crescimento da produção
global se torna uma necessidade intrínseca para o aumento do mais-valor, o que
está diretamente vinculado à valorização do capital e ao aumento dos lucros. No
entanto, os sinais dessa destruição são cada vez mais evidentes: a escassez de
recursos naturais, o aumento do aquecimento global, a poluição e destruição de
ecossistemas e a produção excessiva de mercadorias descartáveis revelam uma
crescente contradição entre a expansão da produção e as capacidades do planeta
para sustentar esse crescimento.
Embora as consequências da destruição ambiental afetem o
mundo todo, é necessário estabelecer duas distinções importantes. A primeira
diz respeito aos impactos da questão ambiental nos países periféricos. Esses
países, historicamente subordinados ao sistema capitalista mundial, enfrentam
uma pressão ainda maior, devido à exploração de seus recursos naturais por
grandes cadeias globais de valor, e à falta de mecanismos eficazes de proteção
ambiental, e, portanto, são os mais impactados no contexto global de destruição
ambiental.
Outra particularidade é o impacto devastador nas populações
tradicionais que dependem diretamente desses recursos para sobrevivência.
Exemplos disso são os indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores
artesanais, entre outros povos que estruturam seus modos de vida e formas de
produção em harmonia com a natureza. No entanto, diante de desastres
ambientais, esses povos são forçados a abandonar seus territórios, o que agrava
as desigualdades sociais e cria uma espiral de expulsões (Sassen,2016)
pobreza, degradação e racismo ambiental (Acselrad;
Mello; Bezerra, 2009). Podemos afirmar que os grupos considerados mais pobres,
especialmente as pessoas negras, indígenas e povos tradicionais, são atingidos
com maior intensidade, mesmo quando o desastre ambiental, em princípio, parece
afetar a todos. Um exemplo claro disso são as comunidades indígenas e
quilombolas do Espírito Santo, que, além dos desafios já enfrentados, agora se
veem expostas a riscos ainda maiores devido à contaminação do rio Doce e do
mar, resultado do crime ambiental cometido pela mineradora Samarco, em 2015.
Evento que, no próximo ano, completará 10 anos sem que tenha ocorrido a
reparação integral das populações atingidas.
Embora haja um reconhecimento crescente da crise ambiental
em nível mundial, as medidas para mitigar a degradação ainda são incipientes e
frequentemente insuficientes. No caso brasileiro, tais medidas foram
sistematicamente boicotadas pelo governo de Jair Bolsonaro e pela bancada
ruralista consolidada na Câmara e Senado Federal. A maior parte das ações
adotadas busca apenas mitigar os efeitos da degradação ambiental, em vez de
enfrentá-la de maneira profunda e estrutural.
Entre as ações mais recorrentes para lidar com a crise
ambiental, destacam-se os mercados de carbono, os esforços para promover a
sustentabilidade e os investimentos socialmente responsáveis (SRI -Socially Responsible Investing), além de um foco crescente na governança
ambiental, social e corporativa (ESG- Environmental, Social and
Governance). No entanto, a maior parte dessas iniciativas não aborda de forma
ampla e profunda os problemas ambientais. Frequentemente, elas acabam por
integrar a crise ambiental ao modelo capitalista, sem questionar as bases
estruturais desse sistema. É impossível alcançar a verdadeira sustentabilidade
em um sistema fundamentado na acumulação desigual de riquezas, sustentada pela
exploração intensiva da natureza e da força de trabalho. O capitalismo, por sua
essência, não é sustentável!
Neste sentido, a presente edição da Revista Argumentum reúne artigos que analisam as interconexões
entre a crise econômica capitalista, os impactos da degradação ambiental e as
resistências dos povos originários latino-americanos.
Na Seção Temática, os artigos abordam debates teóricos sobre
categorias essenciais para a compreensão da questão ambiental, além de
examinarem os fenômenos dessa problemática à luz da relação entre o avanço do
capitalismo, os desastres ambientais, as políticas conservadoras e os povos
tradicionais. Neste sentido o artigo de Laan apresenta uma análise crítica de
interpretações sobre as reflexões de Marx acerca da natureza. Em seguida, o
artigo de Pinho aborda o crime socioambiental resultante da mineração de
sal-gema em Maceió, Alagoas, um dos maiores desastres ambientais recentes no
Brasil. Há também uma série de trabalhos que exploram os impactos sobre os
povos indígenas, como o artigo de Miani e Akamatsu que discute a problemática da demarcação de terras
indígenas no Brasil, analisando a produção cartográfica de Carlos Latuff; o trabalho de Dalmonego,
Oliveira, Junior e Reis que investiga o fenômeno da Corrida do Ouro na Terra
Indígena Yanomami, seus desdobramentos e as consequências para os povos
indígenas; e o texto de Vieira, Silva e Nunes que analisa o avanço do
agronegócio na reserva indígena Potiguara, na Paraíba, e sua relação com a
desproteção social nos territórios indígenas e o desenvolvimento socioeconômico
capitalista. Por fim, o artigo de Nunes e Pereira reflete sobre as intervenções
do governo Bolsonaro na gestão ambiental, no contexto do aprofundamento da
decadência ideológica burguesa.
A ecologia marxista oferece importantes ferramentas para
entender como o capitalismo, em momentos de crise, pode levar a desastres
ambientais de grandes proporções, e a presente edição conta, na Seção Debate,
com texto singular do professor Eduardo Sá Barreto, expoente na elaboração
teórica sobre Ecologia Marxista, e que discute como o colapso climático e a
crise estrutural do capitalismo estão interligados, evidenciando a incapacidade
do sistema capitalista em fornecer respostas aos riscos e impactos decorrentes.
Em diálogo, contamos com a colaboração da professora Simone Raquel Batista
Ferreira, cujo texto reflete sobre os “futuros possíveis” e uma mudança de
paradigma, onde o desenvolvimento baseado na transformação da natureza em
mercadoria seja substituído por novas formas de sociabilidade que vejam a
natureza como sujeito. Finalmente, também na seção debate, contamos com o
trabalho do professor Evaldo Gomes Junior, cuja reflexão aponta os elementos
que compõem a disputa geopolítica, em torno das tecnologias de menor impacto
ambiental, e destaca a urgência de alternativas ao modelo neoliberal, propondo
um planejamento integrado que contemple tanto as questões ambientais quanto a
justiça social, e processos de reorganização social que visam a construção de
uma nova economia popular.
Na Seção de Temas Livres, esta edição apresenta artigos
essenciais para compressão das diversas questões, econômicas, políticas e
sociais, que conformam o cenário do capitalismo contemporâneo.
Com este arsenal teórico a edição da Revista Argumenta
busca, além de discutir as consequências da exploração capitalista sobre o meio
ambiente, dar visibilidade às formas de resistência dos povos indígenas e
comunidades tradicionais, que enfrentam, desde o período colonial, os impactos
da destruição ambiental e as ameaças à sua sobrevivência cultural e
territorial. Desta forma a Revista reafirma seu compromisso com o avanço do
conhecimento científico, crítico, ampliando os horizontes do debate acadêmico e
trazendo à tona questões urgentes para a construção de uma sociedade mais justa
e ambientalmente responsável.
Agradeço a oportunidade de ter colaborado como editora desta
edição temática e espero que a leitura proporcione reflexões enriquecedoras.
Referências
Acselrad, H.; Mello, C. C. do A.; Bezerra, G. das N. O que é justiça ambiental? 1. ed. Rio
de Janeiro: Garamond, 2009.
Marx, K. O Capital:
para a crítica da economia política. Livro
I. São Paulo: Boitempo, 2013.
Sassen, S. Expulsões:
brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2016.
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