Revista Gestão & Conexões

Management and Connections Journal

VITÓRIA (ES), VOL. 12, N. 3, SET./DEZ. 2023.

ISSN: 2317-5087

DOI: https://doi.org/110.47456/regec.2317-5087.2023.12.3.40523.49-74

O Fazer Político nos Estudos Sobre Mulheres Negras trabalhadoras nos Estudos Organizacionais

The Political Action in Studies on Black Women Workers in Organizational Studies

Amanda Arlinda da Silva Universidade Federal de Ouro Preto amandaarlindadasilva@ymail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2526-6871

Ana Flávia Rezende Universidade Federal de Ouro Preto anaflaviarezendee@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1926-0174

Carolina Machado Saraiva Universidade Federal de Ouro Preto carolamsaraiva@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0846-1528

RESUMO

Esta pesquisa explorou as histórias de vida das pesquisadoras e pesquisadores do tema da mulher negra trabalhadora na área de Administração e compreendeu as imbricações do fazer científico com suas trajetórias, biografias e lutas pessoais e sociais. Tal proposta buscou não somente ampliar o conhecimento acerca da produção sobre a temática da mulher negra trabalhadora, mas também contribui para a compreensão dos inter- relacionamentos entre o fazer científico e as histórias de vida dos pesquisadores, enfrentando o axioma da neutralidade científica. Entender que o fazer científico encontra reverberações pessoais, para além dos princípios da racionalidade, eficiência e progresso é recolocar a questão da ciência como um fazer social, portanto, político. Os dados da pesquisa demonstram que pesquisar o tema de mulheres negras trabalhadoras compõe-se através de uma escolha social e política claramente definida pelas suas autoras e autores, tecendo uma trama de fazeres científicos que recolocam, devidamente, a questão da raça no fazer organizativo, seja acadêmico, seja social. Para alcançarmos tais resultados, foram realizadas 11 entrevistas com autoras e autores do tema, que atuam na academia de Administração. Como contribuição, o estudo desvela o silenciamento da academia e seu aporte, ainda, branquelizado de análise organizacional. Assim, reforçam-se as redes políticas de das e pesquisadores

negras/negros.

Palavras-chave: Interseccionalidade; Trabalho; Mulheres negras; Biografias.

ABSTRACT

This research explored the life stories of researchers on the subject of black women workers in the area of Administration and understood the imbrications of scientific practice with their trajectories, biographies and personal and social struggles. This proposal sought not only to expand the knowledge about the production on the theme of the black working woman, but also contributes to the understanding of the interrelationships between scientific practice and the life histories of researchers, facing the axiom of scientific neutrality. To understand that scientific doing finds personal reverberations, beyond the principles of rationality, efficiency and progress is to reposition the question of science as a social, therefore, political doing. The research data demonstrate that researching the theme of working black women is composed through a social and political choice clearly defined by its authors and authors, weaving a web of scientific actions that properly reposition the issue of race in the organizational process, whether academic or social. To achieve these results, 11 interviews were conducted with authors of the theme, who work in the Academy of Administration. As a contribution, the study unveils the silencing of the academy and its contribution, still, whitewashed organizational analysis. Thus, the political networks of action of black/black researchers are reinforced.

Keywords: Intersectionality; Work; Black women; Biographies.

ARTIGO SUBMETIDO EM: 21.04.2023 ACEITO EM: 28.06.2023 PUBLICADO EM: 08.09.2023

Introdução

O tema da mulher negra trabalhadora é pouco estudado pela área de Estudos Organizacionais que tradicionalmente versa sobre as relações de trabalho e as organizações (Silva, Rezende, & Saraiva, 2020). Conforme pesquisa de Silva, Rezende e Saraiva (2020, mimeo) dos 2.874 artigos publicados nos eventos do Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais (CBEO), do Encontro Nacional de Pós-Graduação em Administração (EnANPAD), do Encontro de Estudos Organizacionais e dos Seminários de Administração (SemeAD), entre os anos de 2012 a 2019, 88 artigos tratam do tema racial e somente 24 são pesquisas que têm a mulher negra trabalhadora como foco.

Cabe aqui destacar que os congressos acadêmicos tendem a ser espaços mais frutíferos para a publicação de temas emergentes. Apesar de Teixeira et al. (2021) afirmarem que as revistas acadêmicas em Administração possuem um importante papel no processo de discutir a temática de inclusão e diversidade e consequentemente garantir algum tipo de reparação histórica de desigualdades, os congressos são a principal porta de entrada dessas pesquisas na academia. Entretanto, a parca produção acadêmica sinaliza que esse conhecimento ainda não é considerado um saber suficientemente importante para se configurar como temática de pesquisas.

Ao considerarmos que o maior contingente de trabalhadores no Brasil é composto de mulheres negras (IPEA, 2019), por que a temática é tão pouco estudada na área de Administração? Em especial, na área de Estudos Organizacionais, cuja proposta principal é compreender os modos organizativos de uma sociedade, como não tratar, de maneira corriqueira, a temática da mulher negra trabalhadora?

O que propomos nesse artigo é contribuir para o desvelamento do silenciamento da academia de administração sobre a temática da trabalhadora negra. A baixa produção acadêmica sobre o tema revela esse silenciamento.

Há implicações políticas oriundas de nosso trabalho, principalmente, na contribuição da luta das mulheres negras ao terem suas temáticas próprias trabalhadas de maneira devida pelas organizações (prática) e pela ciência (teórica). Ao nos propormos a trabalhar a temática da mulher negra trabalhadora, estamos desvencilhando as particularidades das trabalhadoras brancas das negras, ressituando as questões e evitando repetir erros anteriores, cometidos na sociedade, da equivalência das agendas das mulheres brancas e negras, sendo que na verdade, trazia-se uma agenda da branquitude sobre a negritude.

Para contribuição na construção da marcação do lugar das mulheres negras trabalhadoras buscamos compreender o que motiva as autoras e autores da temática a conduzirem pesquisas sobre o tema.

Compreender essas motivações destacará a temática da racialização dos estudos organizacionais em uma lógica da construção de espaços políticos das pesquisadoras e pesquisadores negros na academia, ainda branquelizada, da administração.

Os dados da pesquisa revelam que há sim uma inter-relação muito íntima entre a condução das pesquisas científicas sobre o tema da mulher negra trabalhadora

e as histórias de vida de suas/seus pesquisadores. Isso traz uma questão para o campo organizativo da administração que é a necessidade de ampliação de vagas para pessoas pretas e pardas, bem como de seus espaços de poder, pois é, através deles, que tem se trazido o tema da mulher negra trabalhadora. Assim, propusemo- nos analisar as biografias das pesquisadoras e pesquisadores do tema na área de Estudos Organizacionais e compreender as imbricações do fazer científico com suas trajetórias e lutas pessoais e/ou sociais.

Tal proposta busca não somente ampliar o conhecimento acerca da produção sobre a temática da mulher negra trabalhadora, mas também contribuir para a compreensão dos inter-relacionamentos entre o fazer científico e as biografias das pesquisadoras e pesquisadores, enfrentando o axioma da neutralidade científica. Como afirma Gomes (2019), só é possível descolonizar os currículos e o conhecimento se descolonizarmos o olhar sobre os sujeitos, suas experiências, seus conhecimentos e a forma como os produzem.

Fundamentação teórica

Trabalho e a perspectiva interseccional nos Estudos Organizacionais Brasileiros Apesar de ainda haver certo eurocentrismo nos EOR, o campo é caracterizado

por sua abertura às discussões sociais e políticas, reverberando em seus estudos

lutas pelos direitos humanos e igualdade presentes em nossa sociedade (Sá et al., 2020). Dentre os temas pesquisados, estudos interseccionais aparecem como uma das possibilidades de atuação dos EOR. Para tanto, Teixeira et al. (2021) lembram que é preciso ampliar temáticas e participação de grupos historicamente marginalizados, o que demanda alterar a própria lógica do campo que coloca esses grupos em condição de objeto e não de sujeitas e sujeitos no mundo. A respeito desses grupos historicamente marginalizados, no presente estudo, nos ocupamos de versar sobre as produções acerca da temática mulheres negras trabalhadoras.

Ao longo da história, a escravização dos negros no Brasil, que perdurou até 1888, foi um componente de um projeto colonialista, deixando marcas profundas na sociabilidade dos negros, especialmente das mulheres negras. Para elas, há um processo de tríplice discriminação, envolvendo raça, classe e gênero. Essas mulheres enfrentam o ápice da opressão, uma vez que os estereótipos resultantes do racismo e do sexismo as colocam em uma posição de grande desvantagem (Gonzalez, 2020). Em uma perspectiva interseccional, compreendemos que as categorias de raça e gênero estão interligadas e operam de maneiras distintas na forma de discriminação contra as mulheres negras.

Considerando a discussão sobre trabalho, raça e gênero, Carneiro (2011) explica que é imprescindível reconhecer que o acesso ao emprego e ao trabalho é uma condição primordial para a preservação da vida, e a sua exclusão representa a negação fundamental desse direito básico de cidadania. Os negros brasileiros não apenas tiveram o acesso ao trabalho negado, mas também enfrentaram leis que oficialmente impediam homens e mulheres negras de obterem emprego durante a transição do trabalho escravizado para o assalariado (Prudente, 1988).

Embora a questão racial afete homens e mulheres negras, é crucial destacar que a intersecção do racismo com o sexismo produz uma espécie de sufocamento social às mulheres negras (Carneiro, 2011). A discrepância entre raça e gênero, especialmente no que diz respeito à subutilização da força de trabalho das mulheres negras, revela a prevalência do sexismo sobre a raça, colocando as mulheres negras e não negras em uma posição inferior aos homens negros e não negros. Para nos aprofundarmos nessa dinâmica de desigualdades que recaem sobre as mulheres negras recorremos perspectiva interseccional.

O conceito de interseccionalidade emergiu como uma abordagem de pesquisa e um campo de estudo com base nas contribuições da jurista norte-americana Kimberlé Crenshaw, que destacou a intersecção entre gênero e raça no contexto do debate sobre a violência contra as mulheres. É relevante ressaltar que ativistas e feministas negras, especialmente nos Estados Unidos, já utilizavam os princípios do pensamento interseccional desde as décadas de 1960 e 1970, embora muitas vezes sua história seja apagada. Alguns estudiosos argumentam que as premissas do pensamento interseccional remontam ao movimento abolicionista do século XIX, que já apontava as limitações de privilegiar apenas uma dimensão da experiência (Kyrillos, 2020).

Crenshaw (1994) sustenta que existem diversas maneiras pelas quais raça, gênero e outros marcadores sociais interagem para moldar as múltiplas dimensões das vivências das mulheres negras. Ao reconhecer que as formas de opressão se entrelaçam e influenciam diferentes experiências individuais, a interseccionalidade se relaciona com a compreensão crítica de que raça, classe, gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade, habilidade e idade não atuam como entidades isoladas e mutuamente exclusivas, mas como fenômenos interdependentes que moldam desigualdades sociais complexas (Collins, 2015).

Embora o termo interseccionalidade tenha sido cunhado em relação às mulheres negras e originalmente utilizado para descrever como raça e gênero podem se intersectar como formas de opressão, atualmente ele foi ampliado para abranger uma ampla gama de fatores sociais, como orientação sexual, nacionalidade, classe social, deficiência e outros. Nesse sentido, Crenshaw (2015) enfatiza que a interseccionalidade se tornou uma bandeira na qual muitas demandas por inclusão são levantadas, pois representa uma forma de pensar a identidade e sua relação com o poder. Assim, ela se estabelece como uma ferramenta analítica crucial que possibilita compreender e explicar a complexidade das experiências humanas.

De acordo com Lorde (2019), a interseccionalidade vai além de uma mera teoria, sendo uma realidade vivida por muitas mulheres. A autora ressalta a importância de dar voz às experiências e perspectivas das mulheres marginalizadas, bem como ouvir suas histórias, pois isso enriquece e amplia o movimento feminista como um todo. Nesse sentido, Collins (2022) explora como a interseccionalidade proporciona uma compreensão mais profunda das vivências daqueles que ocupam posições marginalizadas e subalternas na sociedade. A autora examina como a interseccionalidade pode ser aplicada em diversos campos, como política, educação, saúde e justiça social, com o objetivo de desafiar as estruturas de poder e promover a igualdade e a justiça.

No que tange às mulheres negras trabalhadoras, a perspectiva interseccional se apresenta como uma abordagem necessária para compreender e enfrentar as desigualdades experienciadas pelas mulheres negras no mercado de trabalho. Ao considerar as interações entre raça, gênero e outros marcadores sociais, pode-se desenvolver estratégias mais eficazes para promover a igualdade de oportunidades, a justiça e a inclusão das mulheres negras no ambiente profissional. Teixeira et al. (2021) propõem uma agenda de transformação que amplie as temáticas e a participação de grupos historicamente marginalizados no campo dos Estudos Organizacionais.

A agenda de transformação proposta pelas autoras busca ampliar a participação de grupos historicamente marginalizados no campo da Administração, desnaturalizando os elementos considerados norma e promovendo uma reconfiguração das instituições e das lógicas que as sustentam. Essa agenda abrange diversas frentes, como a desnaturalização dos elementos considerados norma, a revisão das normas de composição das instituições, o questionamento das práticas linguísticas, a ocupação efetiva de espaços por grupos marginalizados, a gestão da transversalidade, a desconstrução dos silenciamentos e a ampliação das temáticas de pesquisa. Essas ações visam promover a igualdade, inclusão e diversidade no campo da Administração, possibilitando uma transformação efetiva e sustentável (Teixeira et al., 2021).

Em sentido semelhante a Teixeira et al. (2021), autores como Silva Júnior, Severo e Aquino (2014) já sinalizaram que a discriminação, em especial a racial, no campo de EOR também pode aparecer na seleção de temas hegemônicos em detrimento de temas raciais para as pesquisas nas diversas áreas de conhecimento. Outro ponto trazido pelos autores é o baixo acesso de negras/os ao ensino superior e à pós-graduação em especial. Escondidos por trás do mito da meritocracia, muitas escolas públicas de nível superior impedem a mobilidade social dos grupos vulneráveis, em especial os das negras/os, impondo dificuldades desde o processo seletivo até a rejeição de epistemes e metodologias que ressaltam a africanidade e secularidade desses grupos.

Para Constanzi e Schneider Mesquita (2021), o espaço acadêmico tem se configurado como um “não-lugar” a ser frequentado pela população negra. Estruturado por meio de barreiras institucionais que inviabilizam a sobrevivência desses indivíduos a esse contexto. No que compete às mulheres negras, as autoras afirmam também que sua sobrevivência acadêmica parte do emprego de esforços físicos, emocionais e intelectuais, que visam ampliar suas vozes, e impedir o apagamento de suas discussões, e de seus fazeres científicos.

Em estudos mais recentes, como o de Brito, Nepomuceno e Nobre (2022) que analisaram as pesquisas publicadas nos anais do Encontro Nacional de Estudos Organizações e Encontro de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, verifica- se a ainda persistente baixa produtividade sobre pesquisas que tratem da categoria raça. Por outro lado, os autores acreditam que a ênfase em estudos interseccionais que mesclam vários eixos de opressão podem ser a saída para os EOR nacionais, a fim de pesquisarem de forma crítica e aprofundada as raízes do preconceito no Brasil.

Muito há que ser construído pelos EOR nacionais para realmente conseguirmos enfrentar a questão do preconceito racial no país. Teixeira, Oliveira e Carrieri (2020) sinalizam a importância de se falar de raça nos EOR brasileiros. Os autores discorrem sobre a dificuldade encontrada pelos pesquisadores do campo dos estudos organizacionais em manterem pautas de pesquisas relacionadas com a temática racial. Mesmo após tantos estudos que comprovam a existência do racismo estrutural no país, os autores precisam defender a agenda de pesquisas sobre a temática afrodescendente nas escolas de Administração.

Como Bernardino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2020, p. 11) já bem colocaram, a verdade é que “o racismo também será um princípio organizador daqueles que podem formular um conhecimento científico legítimo e daqueles que não o podem”. Diante disso, um caminho possível para mudar tal realidade seria a maior inserção de pessoas negras na academia, proposta essa que pode ser vista na prática por meio das políticas de ações afirmativas no ensino superior.

Formação em Administração, ações afirmativas e ensino superior: abertura de uma janela de oportunidades

É importante reconhecer que muitos cursos de graduação em administração foram historicamente construídos dentro de uma lógica colonialista e imperialista, com influências e viés neoliberal. Essa perspectiva tem raízes no desenvolvimento da teoria da administração, que foi amplamente influenciada pelos princípios do capitalismo e das práticas empresariais ocidentais. Além disso, a construção desses cursos muitas vezes reflete uma visão ocidental e eurocêntrica, com pouca consideração pelas diferentes realidades, culturas e contextos locais. Isso pode resultar em uma falta de sensibilidade e compreensão das necessidades e desafios específicos enfrentados por diferentes grupos, como o das mulheres negras, por exemplo.

Diante da realidade dos cursos de administração no Brasil, Nicolini (2003) traz à tona a influência predominante das abordagens de Weber, Taylor e Fayol, que moldaram o ensino desde os anos 1930. Essas perspectivas foram amplamente disseminadas por instituições brasileiras, resultando em um ensino que até hoje se caracteriza como uma "transferência de tecnologia desenvolvida nos Estados Unidos" (Nicolini, 2003, p. 46).

De maneira semelhante, Oliveira, Lourenço e Castro (2015) descreverem a trajetória da administração no Brasil, como fortemente influenciada pelo modelo gerencialista de sucesso dos Estados Unidos, que se disseminou globalmente após a Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, os currículos e estruturas dos cursos de administração foram influenciados pela ênfase no mercado e no internacionalismo. Essa influência euro-americana no campo da administração e na educação de modo geral permeia desde os objetivos até os conceitos e conteúdos, e molda as expectativas dos estudantes (Souza & Zambalde, 2015).

Segundo Couto, Honorato e Silva (2019), a literatura indica a existência de um pensamento predominante e uniforme nas formas de organização da vida. No que diz respeito ao conhecimento, Silva, Dias e Santos (2021) destacam também a desigualdade na produção de conhecimento nos Estudos Organizacionais.

Especificamente nos cursos de Administração no Ocidente, que seguem uma estrutura baseada em modelos euro-estadunidenses (Oliveira, Lourenço, & Castro, 2015).

Essa influência se manifesta nos objetivos, conceitos e conteúdos, e até mesmo nas expectativas dos estudantes (Souza & Zambalde, 2015). Como resultado, tem- se um descompasso epistêmico entre a teoria e a prática dos EOR no Sul global, resultante de um legado colonial. Legado esse que também mantem determinados grupos sociais, como os negros, apartados, até mesmo, do acesso a esses espaços. Munanga (2007) explica que o acesso restrito de determinados grupos sociais no ensino público universitário é fruto de grandes desigualdades sociais e raciais, sendo a raça elemento central. É exatamente por isso que as políticas de ações afirmativas que visam a inserção de grupos minorizados no ensino superior público se fazem tão necessárias. Segundo Carvalho (2020) a luta pelas cotas para negros e indígenas iniciou-se entre 1999 e 2000, sendo aprovada em 2003. Já em 2012 foi aprovada a Lei Federal n. 12.711, que generalizou as cotas para negros e indígenas em todas as universidades públicas brasileiras e nas instituições de ensino médio.

No ano de 2018, ocorreu um marco significativo no que tange o acesso de pessoas negras ao ensino superior público brasileiro: a população autodeclarada preta ou parda passou a representar 50,3% dos estudantes matriculados no ensino superior da rede pública. Essa conquista parcial é resultado das políticas de inclusão educacional, como as cotas ou ações afirmativas, que visam democratizar o acesso ao ensino superior. No entanto, é importante destacar que, apesar da aparente melhoria indicada pelos dados divulgados pelo IBGE em 2020, os estudantes pretos e pardos ainda estão sub-representados nas instituições públicas de ensino superior. Isso ocorre mesmo considerando que eles formam a maioria da população brasileira, com 55,8% de acordo com o IBGE em 2020. Além disso, quando se analisa o aspecto de gênero, observa-se que as mulheres possuem um nível de instrução superior aos homens. Entre os homens com 25 anos ou mais, apenas 15,1% possuem ensino superior completo. Já entre as mulheres brasileiras com a mesma faixa etária, o percentual é de 19,4% (IBGE, 2018). No entanto, ao analisar esses dados considerando a interseção com a raça, percebe-se que as mulheres negras não constituem a maioria dentro desse grupo de 19,4%.

Após essas conquistas, surgiram demandas por cotas na pós-graduação e na docência. Assim, veio a promulgação da Lei n.º 12.990, que estabeleceu cotas para vagas em concursos públicos da administração pública federal e suas autarquias. Seguido de várias ações de consolidação das cotas no ensino superior, em maio de 2016, é publicada a Portaria Normativa n. 12, sendo esse o marco legal do estabelecimento de cotas na pós-graduação brasileira.

A primeira universidade a adotar o sistema de cotas foi a Universidade Federal de Goiás, que em 2015, antes mesmo da promulgação da lei de cotas na pós-graduação, estabeleceu reserva de vagas. Essa iniciativa foi seguida pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a Universidade Federal do Espírito Santos (UFES), a Universidade Federal do Piauí (UFPI) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), como afirmam Cordeiro, Diallo e Cordeiro (2019).

Apesar do protagonismo dessas instituições, houve muito atraso nas diversas instituições de ensino superior na adoção do sistema de cotas, seguido de uma discriminação epistêmica e institucional, definindo o que Cavalleiro (2011) denominou de ambientes altamente higienizados, excludentes dos conhecimentos afrodescendentes. Nesse sentido, Carvalho (2020) argumenta que as discussões sobre cotas suscitaram também os debates sobre o caráter eurocêntrico das universidades brasileiras, que evidenciou que seria satisfatório implementar ações afirmativas para jovens negros e indígenas sem, paralelamente, mudar o currículo colonizado, racista e branqueado presentes nas instituições de ensino superior brasileira.

Cordeiro, Diallo e Cordeiro (2019) apontam que a exclusão racial na pós- graduação foi historicamente construída, já havendo limitação de acesso à educação de qualidade das pessoas negras e indígenas desde o ensino médio. Esse grupo também é maioria no ensino superior noturno, havendo diminuição da chance de participação em programas de iniciação científica, tão caros nas seleções da pós- graduação. Sendo assim, as ações afirmativas na pós-graduação vêm corrigir erros sociais drásticos historicamente existentes no país, o que colabora para a diminuição da desigualdade social, já que o diploma de pós-graduação é entendido como posse de capital cultural que pode ser mobilizado na busca por capital econômico.

Para além das ações de democratização do acesso de grupos minorizados no ensino superior, acreditamos que a graduação e a pós-graduação brasileira precisam se reestruturar para incluir conhecimentos de outras matrizes epistêmicas, considerando temáticas relativas a esses grupos, fazendo-se efetivas as políticas afirmativas. Carvalho (2020, p. 80), por exemplo, nos convoca a descolonizar as instituições universitárias e colocá-las nas lutas antirracistas, para tanto, é preciso “intervir na constituição desse espaço universitário em todos os níveis: no corpo discente, no corpo docente, no formato institucional, no modo de convívio e na sua conformação epistêmica geral” (cursos, disciplinas, ementas, teorias, pedagógicas, etc.).

Ademais, chamam atenção os conhecimentos advindos do Movimento Negro. Segundo Gomes (2019) os movimentos sociais atuam como pedagogos nas relações políticas e sociais. “[...] Esses movimentos indagam o conhecimento científico, fazem emergir novas temáticas, questionam conceitos e dinamizam o conhecimento” (Gomes, 2019, p. 16). Inclusive, a autora ressalta que o Movimento Negro foi o principal protagonista para que as ações afirmativas se transformassem em questões sociais, políticas, acadêmicas e jurídicas em nossa sociedade.

Mesmo diante dessa importante atuação dos movimentos sociais, Cordeiro, Diallo e Cordeiro (2019) lembram que o conhecimento advindo desses movimentos é tratado como de baixa qualidade científica, provando mais uma vez, a necessidade de descolonização de currículos para que assim sejam dadas condições reais para que as negras/os universitários sejam tratados como sujeitos de direito.

Desde o início do novo milênio, as universidades públicas brasileiras têm passado por um notável processo de transformação. De acordo com Bernardino- Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2020), as universidades, que antes eram predominantemente brancas e se autodenominavam universais, com acesso garantido a todos, agora apresentam uma diversidade étnico-racial visível, pelo

menos nos cursos de graduação. No entanto, mesmo com essa mudança, a lente decolonial nos chama a atenção para a persistente predominância de professores brancos, como destacado por Doharty, Madriaga e Joseph-Salisbury (2021).

No ensino universitário, a descolonização envolve questionar e superar a predominância do conhecimento eurocêntrico e ocidental, que foi imposto nas disciplinas e currículos. Isso requer valorizar os saberes produzidos por grupos marginalizados, incorporando suas perspectivas e conhecimentos no processo de construção do conhecimento. Além disso, a descolonização busca promover uma educação inclusiva, que reconheça a diversidade de experiências e conhecimentos presentes na sociedade brasileira. Isso implica questionar modelos hierárquicos de ensino, combater desigualdades de acesso e sucesso acadêmico, e rever currículos e metodologias para incorporar diferentes modos de conhecimento.

A lógica da colonização e a predominância do conhecimento eurocêntrico têm um impacto significativo na arena de disputas de saberes que envolvem as mulheres negras na Administração. Elas enfrentam discriminação, invisibilidade e exclusão de suas vozes e perspectivas na produção de conhecimento e na prática profissional. A falta de representatividade e inclusão nas estruturas de poder e nos espaços de produção de conhecimento da Administração perpetua desigualdades e limita a criação de saberes que abordem suas realidades. É necessário promover a descolonização da Administração, reconhecendo e valorizando os saberes das mulheres negras e outros ampliando a diversidade de referências teóricas e garantindo sua participação ativa na produção de conhecimento e na formulação de políticas e práticas organizacionais, visando a construção de um campo de conhecimento mais inclusivo e justo.

Metodologia

Esta pesquisa se classifica como pesquisa descritiva conclusiva do tipo qualitativa. Para se alcançar o objetivo proposto foram realizadas entrevistas com autoras e autores de artigos que tratavam da temática mulheres negras trabalhadoras. A escolha dos autores e autores provém da pesquisa de Silva, Rezende e Saraiva (2020, mimeo) em que as autoras desenvolveram uma bibliometria sobre o tema. Dessa bibliometria, retiramos os nomes das autoras e autores que estudavam o tema da mulher negra trabalhadora, formando, assim, a nossa listagem de pessoas a serem entrevistadas. A listagem considerava tanto autoras/es como coautoras/ es, independente da ordem de autoria e os trabalhos analisados foram os anais do CBEO, EnANPAD, EnEO e Semead dos anos de 2012 a 2019. Escolhemos esse período por ser coincidente com os primeiros temas sobre raça nos congressos analisados, tendo sido 2019 o último ano de análise, devido a ser o ano de conclusão de nossa pesquisa.

Cabe ressaltar que o objetivo da pesquisa é analisar as imbricações subjetivas das autoras e autores na temática da mulher negra trabalhadora, buscando-se compreender como o tema surge na academia da administração.

Das autoras/es identificadas/os, foram buscados dados de contato na network pessoal das pesquisadoras e/ou na internet, tendo sido enviado e-mail de contato

para convite à pesquisa a todos eles. Foram realizadas no total 12 entrevistas com duração média de 47 minutos. Todas foram gravadas, com a devida autorização dos respondentes, e posteriormente transcritas.

No intuito de preservar o anonimato das/os sujeitas/os de pesquisa utilizamos nomes fictícios para identificar as/os entrevistadas/os.

Quadro 1 - Perfil dos entrevistados

Nome

Gênero/ Raça

Vínculo com instituição de ensino

Isabela

Mulher negra

Graduada em Administração

Giovana

Mulher negra

Doutoranda em Administração

Eduarda

Mulher negra

Mestre em Administração

Camila

Mulher negra

Docente IES

Bruna

Mulher negra

Docente IES

Cristina

Mulher negra

Mestre em Gestão e Tecnologias da Educação

Júnia

Mulher branca

Docente IES

Maria

Mulher branca

Docente IES

Laura

Mulher branca

Docente IES

João

Homem negro

Docente IES

José

Homem negro

Docente IES

Miguel

Homem branco

Docente IES

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

A análise de dados deu-se por meio da construção de narrativa que se constitui em fases, princípios norteadores e perguntas, estando todos esses elementos interligados. O objetivo inicial é executar a tessitura de intrigas de Ricoeur (1995), fazendo da narrativa a construção de uma teia de relações ora lineares, ora contraditórias, sem a eliminação dos seus momentos de inércia e vazios constitutivos.

Assim, iniciamos com a fase da mimese I com o objetivo de se construir o “que” do objeto, ou seja, o que está por ser narrado. Segue-se à mimese II em que o objetivo é compreender os contextos expressivos em que o objeto se assenta. Assim, faz-se um movimento de “dentro pra fora” no sujeito, saindo de sua subjetividade constitutiva para seus entrelaçamentos sociais. Por fim, a última fase é a mimese III que busca construir as explicações para os modos como as teias são construídas, ou seja, compreender as imbricações subjetivas no fazer de si mesmo enquanto sujeito social.

As perguntas sugeridas da fase I revelam a construção de quem é a/o pesquisadora/or e como o tema da mulher negra trabalhadora entrou na sua trajetória acadêmica. Na fase II temos a enunciação por parte do respondente de como o tema da mulher negra trabalhadora relaciona-se à sua história de vida pessoal e profissional e os estímulos para se trabalhar com essa temática na academia de Administração. Importante nessa fase é não ignorar os momentos contraditórios da biografia, que ora motiva-se sob determinado princípio, ora motiva-se sob outro. As contradições nos permitem compreender que os fatos vividos não são ordenados e direcionados a um fim, mas que representam uma luta constitutiva de sentido

pessoal e social (Bourdieu, 2006). Por fim, a fase III é a que revela os momentos de tensão entre as biografias e as estruturas sociais e momentos de tensão entre a história vivida e a instrumentalidade da vida humana.

Análise e discussão

Mimese I: o objeto representado

Sob uma perspectiva interseccional, ao se adotar como critério de análise a racialidade das/os respondentes, nota-se que oito são negras e negros e quatro são brancas e brancos. Em relação ao gênero dessas/esses respondentes, nove se autodeclaram como mulheres e três se como homens. Destaca-se, portanto, que dentre as/os sujeitas/os de pesquisa, a maioria se identifica enquanto mulheres negras, em suas mais diversas orientações sexuais.

Para tratar da mulher negra, recorremos ao uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, ou seja, como as categorias de relações de poder, de raça, gênero, classe, nação e sexualidade se interconectam (Collins & Bilge, 2021). Sobre a forma como a mulher negra é vista na sociedade, Giovana afirma que “a mulher negra é majoritariamente marginalizada”. E ainda complementa:

Eu tenho um lugar de subalternidade para mulher negra, né?!? E que aí ele é atravessado por gênero, ele é atravessado por raça, ele é atravessado por classe. Mas, ainda que você alcance esses outros lugares que não foram construídos para pessoas como nós, as pessoas arrumam outras formas de te dizer que aquele lugar não é para você.

É notório a existência de uma pirâmide de opressão, em que os homens brancos se mantêm no topo, seguidos pelas mulheres brancas, em um nível abaixo estão os homens negros e por fim encontram-se as mulheres negras que formam a base dessa relação social (Carneiro, 2011), uma dinâmica que é reconhecida inclusive por alguns homens como é o caso de Miguel que explica: “a sociedade explora a mulher negra como sendo o ponto sem o qual essa sociedade não funciona”.

Nesse contexto, com os inúmeros atravessamentos que violentamente afetam a existência e sobrevivência das mulheres negras (Gonzalez, 2020), elas precisam também encarar a exclusão no mercado de trabalho, sendo que “o acesso ao emprego e ao trabalho é condição primordial para a reprodução da vida, e a sua exclusão é também a primeira forma de negação desse direito básico de cidadania” (Carneiro, 2011, p. 110).

Apesar das mulheres negras que foram entrevistadas nessa pesquisa integrarem um seleto grupo de pessoas que atingiram educação para além do ensino superior e/ou empregos que lhes garantem ascensão financeira e maior afastamento da subalternidade e do subemprego, destacamos que elas são a exceção, uma vez que, como Gonzalez (2020) afirma que as mulheres negras sofrem com um processo de tríplice discriminação (raça, classe e sexo), à medida que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo as colocam no nível mais alto de opressão, que no caso

desse estudo irão se manifestar também nas relações de trabalho das docentes e nas vivências das/os discentes.

A dimensão da expressão (mimese II) e o espetáculo de representações (mimese III)

As mulheres negras aqui entrevistadas destacam que suas vivências enquanto mulheres não brancas acabaram influenciando suas pesquisas. Cristina, conta que quando estava cursando sua graduação decidiu pesquisar sobre suas próprias inquietações. Nessa época, ela cursou uma disciplina de Gestão de Pessoas que, apesar de não aprofundar no debate racial e/ou de gênero, tinha uma docente que dava abertura para que os alunos levassem essas temáticas para a sala de aula. Foi inclusive essa professora que posteriormente orientou seu trabalho de conclusão de curso.

Apesar do apoio de sua orientadora, Cristina se deparou com uma série de dificuldades postas pelos outros docentes do curso que argumentaram que seu estudo, sobre a condição da mulher negra no mercado de trabalho, não era “coisa” da Administração. Essa experiência vivenciada por Cristina demonstra o quanto as instituições de ensino superior se consagram como ambientes higienizados e excludentes de outros saberes, inviabilizando o destaque da cultura e da historicidade de grupos marginalizados (Bernardino-Costa, Maldonado-Torres, & Grosfoguel, 2020). Mesmo diante desses embates, Cristina conseguiu desenvolver uma pesquisa sobre trabalho, mulheres negras e a intersecção de outros marcadores sociais.

Isabela explica que não poderia deixar de falar dela e de seus pares, ou seja, mulheres negras. Em seu curso de graduação, que foi realizado em uma instituição de ensino pública, ela foi a primeira pessoa a escrever sobre mulheres negras há pouco mais de cinco anos. Apesar da certeza de que queria falar sobre pessoas como ela, Isabela, encontrou várias dificuldades, como a ausência de pares para poder dialogar:

Não sei se tu conhece esse meio histórico do [nome do estado]. [...] E eu, em uma faculdade do interior, querendo propor mudanças... como assim, né? Eu tive algumas dificuldades [...], eu tive três docentes que me abraçaram. Outros professores disseram que não poderiam me ajudar e alguns indicaram que eu deveria entrar no Movimento Negro. Só que a minha família já é militante há muito tempo. Então, assim, eu disse ‘não, eu vou atrás’ e eu paguei as consequências [...] e fiquei mais um semestre, mas apresentei o meu trabalho (Isabela).

Já Eduarda, quando iniciou a pós-graduação, trabalhava em uma grande empresa que possuía poucas mulheres negras e, apesar de sempre ter sido atravessada por tais questões, em um primeiro momento, foi resistente em trazer essas discussões para a academia, pois como ela mesma diz “são muito caras para uma mulher negra”. Mesmo sendo a única mulher preta nesses espaços, Eduarda acabou despertando interesse em versar sobre a experiência de outras mulheres negras no mercado de trabalho, a partir de suas próprias vivências pessoais. Sua orientadora, apesar de ser uma mulher branca, percebeu que Eduarda conhecia histórias e tinha uma própria história de vida que poderia ser contada. Sobre essa orientadora Eduarda afirma: eu acho que ela tinha, vamos dizer, um certo olhar,

porque ela era também marginalizada dentro da [faculdade na qual fez o mestrado], né, então ela estava num outro espaço também”.

Agora já como docente, quando Eduarda atuou em uma instituição privada de ensino, ela ainda teve dificuldade em encontrar interlocutores. Diante desse cenário, acabou que a sua trajetória foi muito individual, difícil e adoecedora. Apesar de possuírem vivências diferentes, a experiência de Eduarda nos ajuda a compreender a lógica por de traz daquilo que foi dito à Isabela, quando alguns docentes sugeriram que ela entrasse no Movimento Negro para assim poder estudar a questão da mulher negra.

Gomes (2019) explica que o movimento negro permitiu uma politização da raça que, ao indagar a própria história da população negra no Brasil, desvela relações de poder, naturalizações sobre os negros, sua história, cultura, práticas e conhecimentos; retira a população negra do lugar da suposta inferioridade racial pregada pelo racismo e constrói, a partir e com ela, novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera, não somente na estrutura do Estado, mas também na vida cotidiana das suas próprias vítimas.

No Movimento Negro as pessoas negras vêm falando sobre elas mesmas e suas histórias, mas a academia ainda resiste em permitir que esses mesmos corpos tragam as suas histórias para dentro dos muros de instituições que pregam a neutralidade, no entanto, na prática, só estão negando o valor epistemológico intrínseco desses movimentos e dos corpos que os produzem (Doharty, Madriaga, & Joseph-Salisbury, 2021).

Nas experiências de Giovana, as questões ligadas ao gênero vieram antes das de raça. Durante a sua graduação, ela teve contato com a professora Bruna, em disciplina na qual a docente propunha discussões que não se restringiam às correntes dominantes de pensamento, abordagens, teorias e práticas que são amplamente aceitas e seguidas pela maioria dos profissionais e acadêmicos da área de Administração.

Diferentemente das demais entrevistadas, Giovana teve a possibilidade de se desenvolver ainda na graduação sob o amparo de uma professora negra, o que permitiu o compartilhamento de vivências. No entanto, Giovana encontrou outro desafio ao tratar do tema da mulher negra, que era a discriminação epistêmica. Os ensinamentos dominantes na Administração são eurocêntricos e pautados nas vivências da classe dominante, desprezando-se os conhecimentos de outras matrizes epistêmicas (Oliveira, Lourenço, & Castro, 2015; Souza & Zambalde, 2015).

Apesar da experiência enriquecedora que teve na graduação, à medida que pôde assistir aulas que debatiam raça, gênero e temáticas interseccionais, quando chegou ao mestrado, já em outra instituição, Giovana foi desestimulada a pesquisar sobre interseccionalidade, tema do seu interesse na época. Assim, ela acabou optando por escrever sobre outro tema. Além disso, ela se sentia constantemente deslegitimada por seus colegas e outros professores.

Tais experiências de Giovana, evidenciam os cruzamentos interseccionais de gênero e raça, que atravessam as vivências de mulheres negras a partir das

premissas de incapacidade dessas mulheres, o que exige que elas se qualifiquem duplamente para serem legitimadas (Gonzalez, 2020).

Se existem muitas dificuldades quando se é uma aluna/o negra/o, o cenário não é muito diferente para as/os docentes. Professora Camila, conta que no início de sua carreira como docente ela sofreu com a sobrecarga de encargos didáticos. Enquanto “todo mundo estava com 8 horas [aula] eu estava com 16 horas”.

Hoje, Camila, lembra que, quando estava na graduação, escreveu sobre a temática mulheres negras e, a partir de então, passou a refletir também sobre as mulheres negras no mercado de trabalho. Durante sua graduação, foram professoras da Antropologia e das Ciências Políticas que propuseram leituras obrigatórias sobre a temática racial na sala de aula. Na disciplina de Ciências Políticas, por exemplo, no final, os alunos precisavam elaborar um trabalho sobre a contribuição cultural do seu povo para a construção da região em que eles moravam. Para executar essa atividade, os alunos buscavam suas origens familiares (de qual país veio, de qual região) e Camila, como uma mulher negra da disciplina, só sabia que seus antepassados eram da África, mas sem a mínima noção de qual parte da África.

Camila acredita que antigamente era mais difícil fazer discussões sobre raça em espaços tradicionais, como as Universidades. A questão ficava mais em torno de contatos com Movimentos Sociais, o que foi o caso dela, inclusive, e menos em outros ambientes, como o acadêmico. Existem mudanças ocorridas em áreas institucionais, em especial o campo dos estudos organizacionais, no qual observa- se a possibilidade de abertura a debates raciais, inclusive com o recorte de gênero. No entanto, há um longo caminho a ser percorrido, visto que tais temáticas ainda permanecem sendo negligenciadas em debates institucionais, até mesmo na área de estudos organizacionais (Teixeira; Oliveira & Carrieri, 2020).

Por fim, a professora Bruna, teve contato com as discussões de gênero na pós-graduação. E, naquela época, ela teve certa dificuldade de se envolver com as discussões de gênero, pois temia “levantar bandeira”, uma vez que ainda estava se entendendo como uma mulher negra. Em momento futuro, Bruna foi estimulada a estudar a temática racial. , e escolheu por fazer uma pesquisa sobre mulheres, raça e mercado de trabalho.

Nota-se que as mulheres negras entrevistadas destacam como suas vivências pessoais como mulheres não brancas influenciaram suas pesquisas e trajetórias acadêmicas. Elas enfrentaram desafios e resistência ao trazerem questões de raça e gênero para a academia, pois muitas instituições de ensino superior ainda são excludentes e não valorizam outros tipos de saberes. A interseccionalidade, que reconhece as interações entre raça e gênero, é fundamental para abordar essas temáticas de forma crítica e abrangente. As entrevistadas enfrentaram dificuldades, mas conseguiram trazer suas próprias histórias e as experiências das mulheres negras para o campo de estudos organizacionais. Entretanto, as entrevistadas também ressaltam a baixa representatividade de estudantes negros na graduação e os obstáculos enfrentados para concluir seus cursos.

É perceptível a configuração do ambiente acadêmico como um não-lugar a ser frequentado por esses indivíduos (Constanzi & Schneider Mesquita, 2021). Além

de demonstrar que por muitas vezes esse espaço é hostil e perpetua estereótipos discriminatórios, que contribuem para a evasão de estudantes de grupos minorizados. Esses relatos evidenciam a necessidade de se criar um ambiente acadêmico mais inclusivo, que valorize e dê suporte às experiências e perspectivas dos outros grupos, como o das mulheres negras, tanto como estudantes quanto como docentes.

A respeito das violências sofridas pelas pessoas negras na academia, Cristina conta que em um importante congresso da área de Administração, ainda na fase de avaliação dos artigos submetidos, ela recebeu um parecer que afirmava que o texto contemplava todos os aspectos técnicos de um artigo teórico-empírico, entretanto, questionou o fato dela escrever apenas sobre os desafios das mulheres pretas no ambiente acadêmico. Para o avaliador, essa discussão não deveria ser feita sobre o recorte de mulheres pretas, pois, para ele, “qualquer pessoa que entra na pós- graduação passa por dificuldades”. O segundo avaliador também fez um comentário no mesmo sentido ao afirmar que a pesquisa de Cristina deveria considerar todas as mulheres e não apenas as mulheres negras.

Há um equívoco por parte dos avaliadores do artigo de Cristina, ao negarem as dificuldades encontradas por mulheres pretas em adentrar em programas de pós-graduação. Ainda que se valha de argumentos favoráveis à meritocracia e ao paradigma de cordialidade o discurso de que a cor de pele não deveria ser uma categoria a ser considerada quando se versa sobre gênero se mostra infundado diante das evidências empíricas, além de ignorar as questões propostas pela teoria interseccional. Ao mesmo tempo em que Cristina tece críticas a determinados eventos, ela também cita o Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais (CBEO) como um exemplo a ser seguido. Para ela, esse evento é mais receptivo às temáticas ditas emergentes com discussões de alto valor.

Esse contexto de violência que as discentes e docentes vivenciam cotidianamente evidencia que as instituições de ensino se configuram como lugares pouco favoráveis para as mulheres negras, no qual suas estruturas se apresentam como uma ferramenta de opressão e discriminação. Para sobreviverem academicamente, essas mulheres precisam provar diariamente suas capacidades. Uma professora negra, por exemplo, precisa publicar muito mais do que seus pares brancos para conseguir se legitimar, “a gente se mata um pouquinho a cada dia para existir nesse lugar da academia” (Bruna).

Os esforços necessários para equiparar-se a seus pares brancos demonstrados por Bruna demonstram as manobras intelectuais desempenhadas por mulheres negras para sobreviverem ao contexto acadêmico por elas vivenciado (Constanzi & Schneider Mesquita, 2021).

Bruna traz outra perspectiva sobre as violências sofridas pelas/os negras/os ao adentrarem o ambiente acadêmico. Segundo ela, as violências para com as pessoas negras começam à medida que elas terão de ser orientadas e avaliadas, na maior parte das vezes, por pessoas brancas, docentes brancos que são a maioria. São esses os responsáveis por definirem a capacidade de pessoas negras, ou são eles os responsáveis por validar ou não, para a comunidade científica, pessoas negras.

Eu hoje tenho muita dúvida se escolhi a carreira certa para minha vida, assim. Por que eu gosto muito do que faço, mas a violência que eu preciso

enfrentar nos bastidores para continuar nesse espaço, não sei se vale a pena, sabe? Então eu já estou com professora [...], mas continuo vivenciando violências. Então isso me frustrou muito, muito (Bruna).

Cristina e Bruna concluem que a mulher negra trabalhadora é violentada o tempo todo, até mesmo por conta dos dividendos da escravização que veem a mulher trabalhadora neste lugar de exploração racial, ou seja, “trabalhar com mulher negra pressupõe que você tem autorização para explorá-la” (Cristina) ao mesmo tempo em que essa mulher precisa “lidar com uma necessidade imediata de busca de uma materialidade de sobrevivência, sem possibilidade de, por exemplo, se falar de construção de carreira à medida que carreira é um privilégio da branquitude” (Bruna). Cabe aqui lembrar que Carneiro (2011) nos alerta sobre como a interseção do racismo e do sexismo resulta em uma opressão social que afeta as mulheres negras, causando uma sensação de sufocamento que tem impactos negativos em todas as áreas de suas vidas.

Em relação aos marcadores que configuram as desigualdades vivenciadas por essas mulheres, Camila afirma que se a mulher branca sofre com a exploração de gênero, a mulher negra sofre com a exploração de gênero, a de classe, de sexualidade, entre outras. E tal dinâmica também se repete na academia, “no sentido de que em alguma medida sempre vai recair os trabalhos desta dimensão da exploração de alguma forma, seja na forma de distribuição de aulas, distribuição de turmas, distribuição de cargas de trabalho” (Camila).

A partir dos relatos acerca das violências sofridas por essas mulheres negras, percebe-se que em congressos acadêmicos, críticas são direcionadas às pesquisas que abordam as dificuldades específicas dessas mulheres, com avaliadores ignorando as evidências empíricas. As instituições de ensino são espaços hostis, em que as mulheres negras precisam constantemente provar suas capacidades. Métricas e regras são usadas para limitar a progressão de docentes negros. As mulheres negras são violentadas e exploradas, enfrentando obstáculos para construir uma carreira. A interseção do racismo e do sexismo as asfixias socialmente. Desigualdades de gênero e raciais são agravadas na academia, refletindo na distribuição desigual de trabalho, por exemplo.

Apesar dessa dinâmica que subjuga e violenta mulheres pretas, Camila reconhece que hoje ocupa um lugar de privilégio enquanto docente e, estando nesse lugar, acredita que possui muitas responsabilidades enquanto profissional diante de um estudante que fala que ela é a primeira professora negra que ele já teve. Ela assume a responsabilidade de mostrar para os alunos do curso de Administração, que serão futuros gestores, que não se pode mais naturalizar a exploração do trabalho da mulher negra. Outra responsabilidade dela enquanto docente é levar para dentro da sala de aula textos, autorias e atividades de pessoas negras, além de citar, durante as aulas, profissionais negros e negras. Para Camila é importante fazer uso do seu lugar de privilégio para “comprar a briga da pessoa negra para protegê-la e para que avanços possam acontecer”.

No mesmo sentido, Bruna entende que é importante fazer uso do seu espaço social dentro da academia de Administração para tratar de temas que incomodam.

Além de propor debates que permitam a construção e viabilização de outras narrativas muito pautadas na ideia de que “não é só a gente chegar né? Mas a gente chegar juntos”, fazendo com que o espaço da academia não seja tão distante das realidades sociais (Couto, Honorato, & Silva, 2019). Ademais, é importante que as/os pesquisadoras/es negras/os brasileiras/os reivindiquem para si o lugar da experiência para não serem deixados de lado.

Giovana afirma que o processo não precisa ser solitário e que o fato de outras mulheres negras, como Conceição Evaristo, por exemplo, já terem trilhado esse caminho torna a caminhada um pouco menos difícil para quem está chegando agora. A mesma dinâmica se repete na área de Estudos Organizacionais, também foram criados espaços nos quais pudessem ser debatidas temáticas raciais e interseccionais, sem ter que provar que esses estudos também são acadêmicos.

Já em relação aos homens negros entrevistados (José e João), embora suas experiências se diferenciem das mulheres, elas possuem alguns pontos em comum. Apesar de ter tido contato com as temáticas de raça e gênero ainda na graduação, João só se aprofundou no debate depois. Na pós-graduação, ele pesquisou sobre a relação entre gênero e raça no trabalho. José, por sua vez, aproximou da temática também na pós-graduação quando pesquisou comunidades tradicionais. Atualmente, José optou por pesquisar comunidades marginalizadas, o que ele acredita que acabará chegando até a discussão de gênero e raça novamente, pois, tradicionalmente, as atividades laborais presentes na realidade de comunidades marginalizadas são majoritariamente executadas por mulheres negras.

Apesar de ser filho de uma mulher negra e ter vivenciado episódios de racismo, por ser um homem negro, José não acredita que, pelo menos conscientemente, o interesse dele pela temática veio por conta de suas vivências. Ele se recorda que durante a pós-graduação, quando chegou em uma comunidade tradicional, ele observou um grande protagonismo feminino naquele lugar, fazendo com que ele não pudesse fugir de tais discussões. Em congruência, João não acredita que todas as pesquisas que um professor ou aluno desenvolve possuem relação com a sua trajetória de vida, pois às vezes surgem oportunidades de estudos e o pesquisador acaba aproveitando. Mas, ao mesmo tempo, ele pondera que, a respeito da temática racial, ele não foi levado (responsabilidade do acaso) para essa discussão.

Para João falar sobre mulher negra no mercado de trabalho é se atentar para os dividendos da escravização “reconhecendo os avanços, mas entendendo as necessidades de continuar problematizando esse assunto”. No mesmo sentido, José reforça que a mulher negra sofre um duplo problema. Primeiro por ser mulher e aí receber os dividendos da discriminação de gênero e segundo por ser negra, “a gente pode falar que é inferior, decidido como inferior, inferior porque é inferior ao homem por ser mulher e quando comparada à mulher branca é inferior a mulher branca porque ela é negra, então é uma dupla problemática aí que a mulher precisa lidar, infelizmente, a mulher negra na verdade” (José).

Mesmo acreditando que a área de Estudos Organizacionais é mais aberta ao debate racial João, teve certa dificuldade, por parte de algumas avaliadoras de seus artigos, derivada de sua pesquisa sobre mulheres negras, que o questionaram sobre

o fato de um homem estar pesquisando sobre gênero. Por outro lado, João acredita que ninguém precisa fazer parte de um determinado grupo para poder discutir a temática, mas isso implica em se reconhecer como diferente e consequentemente limitado no aspecto das vivências e experiências.

Sendo professor, João busca incorporar essa temática em suas aulas, levando para os alunos exemplos reais, como o programa de trainee, exclusivo para pessoas negras, da Magazine Luiza, uma vez que ele acredita que “a própria realidade já nos proporciona essa discussão”. José propõe aos alunos uma reflexão para além dos donos das grandes empresas que em geral são homens brancos. Ele convida os alunos a pensarem em outros tipos de negócios e para isso traz dados de seus próprios estudos para dialogar com os discentes. José lembra também sobre a relevância da política de cotas nos concursos para docentes de nível superior. Nota- se que nesse contexto, a política de cotas atua como um mecanismo de redução de erros históricos, promulgados em vista da exclusão de mulheres negras e homens negros em espaços educacionais. Destaca-se aqui o importante espaço ocupado pela política de cotas (Carvalho, 2020) na trajetória das mulheres e homens negros. Embora envolta inúmeras dificuldades, o acesso a espaços institucionais, mesmo que ainda restrito ao nível de graduação, possibilitou a abertura para que outras mulheres negras pudessem adentrar espaços estranhos ao seu cotidiano social.

No que diz respeito as/aos entrevistadas/os brancas/os, chamamos atenção para que todas/os são docentes de instituições de ensino do nível superior, característica relevante à medida que Júnia e Laura só começaram a pesquisar a temática mulher negra trabalhadora a partir do interesse de alunas de graduação negras que as procuraram com o objetivo de pesquisar sobre mulheres negras. O fato das docentes Júnia e Laura pesquisarem a temática de mulheres negras trabalhadoras a partir do interesse de alunas de graduação está em consonância com o que Bernardino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2020) defendem quando argumentam que as universidades públicas brasileiras estão passando por um notável processo de transformação, tornando-se mais visivelmente diversas em termos étnico-raciais.

Por outro lado, a dinâmica com Maria foi muito diferente, pois ela é a única docente do gênero feminino e branca que se interessou por essa temática a partir de motivações pessoais, quando ela participou de um curso que buscava a popularização dos debates das relações raciais na sala de aula. Maria, não começou a pesquisar sobre raça e gênero devido ao interesse de orientadas(os), uma vez, que ela já havia realizado uma pesquisa sobre mulheres negras em momento anterior.

Apesar de Maria afirmar que nos cursos de Administração, em geral, a temática diversidade e consequentemente a temática racial fica restrita a poucas aulas, ela, fazendo uso do seu espaço social privilegiado, enquanto professora de uma instituição de ensino do nível superior, ofertou cursos diversos de formação na área. que se propôs discutir a questão racial dentro da Administração.

Já Miguel, único homem branco entre os entrevistados, se descreve como um pesquisador que pesquisa diferenças. Ele explica que trabalhar com as temáticas gênero e raça é algo que aconteceu, primeiro por conta do projeto que pesquisa que

ele coordena, e por conta dos orientandos negros ou não brancos que demonstraram interesse de estudar a temática racial. Nota-se que assim como as professoras Júnia e Laura, os temas das pesquisas de Miguel também foram impactados pela chegada de alunos que se distanciam do padrão racial do branco.

Para além de ser fundamental que homens e mulheres negros vejam a Universidade como um lugar possível para elas/eles, Miguel também acredita que existe uma responsabilidade social da Universidade e dos docentes em responder a uma demanda legítima da sociedade. A esse respeito ele diz:

A nossa sociedade é tão cínica e tão racista, que isso só aparece como um problema, se tem uma pessoa negra pesquisando, por exemplo. Porque, para uma pessoa branca ele [o negro] é apenas um objeto, um tema de pesquisa, uma coisa que eu poderia escolher numa prateleira de temas, enquanto para essas pessoas [pessoas negras] é a vida dela (Miguel).

A percepção de Miguel converge com as provações de Teixeira et al. (2021) quando eles ressaltam a necessidade de ampliar as temáticas e a participação de grupos historicamente marginalizados, o que requer uma alteração na lógica do campo que coloca esses grupos como objeto e não como sujeitos no mundo. Ainda nesse sentido, apesar de todos os entrevistados reconhecerem a situação (marginal) das pessoas negras na sociedade (em especial a mulher negra), Júnia e Maria lembram que alguns avanços podem ser percebidos. “Existe uma mudança no perfil dos alunos que acaba pressionando as mudanças das temáticas pesquisadas”. Maria explica que essa mudança do perfil de alunos deve ser relacionada a pressões do Movimento Negro (Gomes, 2019), que sempre cobrou por mais inclusão, bem como as políticas de ações afirmativas e ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Movimentos e ações concretas que permitiram mais pessoas não brancas acessarem o ensino superior e posteriormente os cursos de pós-graduação. Como Gomes (2019) nos lembra, o Movimento Negro conquistou um lugar de existência afirmativa no Brasil ao trazer o debate sobre o racismo para a cena pública e indagar as políticas e seu compromisso com a superação das desigualdades raciais.

Apesar de poder existir uma relação entre esse novo perfil de aluno no ensino superior e o aumento das pesquisas relacionadas à temática racial, Júnia é enfática ao dizer que “mulheres negras não precisam necessariamente versar sobre essa temática”. Miguel faz coro à Júnia, ao dizer que “é contra a ideia de que gay só pode estudar gay, lésbica só pode estudar lésbica…”. Para ele, todo mundo pode estudar o que quiser, desde que não se ignore o protagonismo de uma pessoa que tem a vivência sobre aquilo que se está pesquisando ou sobre determinado tema. É um processo de reconhecer que uma pessoa branca é limitada, e sendo ela um homem, é ainda mais limitado, ao pesquisar temáticas vinculadas à raça e gênero, pois eles não possuem as vivências.

Em outra direção, mas ainda sobre quem pode/deve pesquisar tais temáticas, Laura conta que já foi questionada se possui algum parentesco com pessoas não brancas, pois muitos acreditam que uma pessoa branca só poderia se interessar por trabalhar com essa temática, se ela fosse diretamente afetada por ela. Laura

vai além ao afirmar que acredita que existe um mito de que as pessoas só irão pesquisar temáticas que lhe atingem, como por exemplo, “pessoa com deficiência estudar sobre deficiência, pessoa negra pesquisar sobre raça”. Em seu caso, o interesse em trabalhar com discussão racial e gênero advém do seu próprio olhar para a sociedade.

Mesmo podendo haver esse interesse genuíno, Júnia alerta que quando uma pessoa não-negra vai trabalhar com essas temáticas, ela, inevitavelmente, encontrará limitações. Tal dinâmica acaba demandando mais sensibilidade e compromisso desse pesquisador branco, que precisará utilizar de forma sistemática sua habilidade de escuta, além de se esforçar no processo de letramento racial.

É unanimidade entre os docentes brancos que existem desafios no processo de orientação de pessoas negras. Miguel, externaliza que é desafiador esse tipo de orientação, pois demanda estudo e sensibilidade para tratar questões emocionais de um perfil de sujeito que chega à Universidade marcado por muitas dores, sofrimentos e experiências que, ele como um homem branco, não é capaz de alcançar mesmo estudando sobre.

Conclusões

Apesar das universidades estarem cada dia mais coloridas em virtude das políticas afirmativas que acabam por democratizar o acesso à educação de nível superior, o mesmo ainda não é percebido no nível da docência, mesmo com a existência de políticas de cotas para concursos públicos de professores. Observa- se, portanto, que apesar dos avanços percebidos, as universidades ainda continuam sendo uma área dura (Sansone, 1996), isto é, sendo a cor uma importante orientação das relações de poder e relações sociais, uma/um discente ou docente negra/o está sujeita/o à hierarquização dos espaços em relação à importância da cor.

No que diz respeito especificamente em relação às mulheres negras, percebe- se que além de serem marginalizadas nas organizações, elas têm também suas histórias silenciadas, afinal, o campo dos Estudos Organizacionais é construído por pessoas e essas, por sua vez, são racializadas. Talvez seja exatamente pelo fato da maioria das pessoas que compõem esse campo serem racializadas como brancas que observamos certo silenciamento dentro da área. Nesse contexto, nos propusemos a explorar as biografias das pesquisadoras e pesquisadores do tema na área de Estudos Organizacionais e compreender as imbricações do fazer científico com suas trajetórias e lutas pessoais e/ou sociais.

Assim, como proposta de pesquisa, chegamos ao final da mesma com o entendimento de que no tema das mulheres negras trabalhadoras há uma forte presença das motivações subjetivas das pesquisadoras (em geral) e de alguns pesquisadores (em menor impacto) para tratarem do tema. Diferentemente do que se faz em outras temáticas, cujo interesse surge da discussão presente na academia, no caso das mulheres negras trabalhadoras, o desenvolvimento de pesquisas advém do fato de que muitas de suas pesquisadoras são mulheres negras trabalhadoras e que já traziam em experiências acadêmicas anteriores o interesse em discutir o tema no espaço branco das universidades.

O tema é carregado de motivações políticas e críticas, que com suas pesquisas abrem um espaço até bem pouco tempo inexistente. Essas autoras e autores não estão ‘somente’ orientando um trabalho de conclusão de curso, uma iniciação científica, um mestrado ou mesmo um doutorado, elas estão no fazer político na academia, escancarando uma realidade pouco discutida na área da administração.

A contribuição prática da pesquisa para as mulheres negras trabalhadoras é, finalmente, terem suas demandas específicas sendo trabalhadas no campo organizacional, buscando-se, não somente compreendê-las, mas estruturar sistemas organizativos mais adequados às vivências das trabalhadoras negras. Atenção especial, nesse caso, deve ser dada ao fim do silenciamento das opressões vivenciadas pelas pessoas negras nas organizações, expondo-se às violências estruturais sofridas cotidianamente e buscando-se construir ambientes mais justos de trabalho para todos. Em termos da contribuição teórica, o estudo se avoluma às escassas pesquisas sobre o tema da mulher negra trabalhadora, trazendo a necessidade da compreensão da temática racial através das histórias subjetivas, posições políticas e sociais ocupadas pelas pessoas negras na academia de administração.

Os achados de pesquisa evidenciam como as mulheres negras possuem um destacado protagonismo no que diz respeito a colocar a temática racial interseccionada com gênero dentro do ambiente acadêmico, afinal, elas acabam falando sobre elas mesmas. Recordamos Gonzalez (2020) ao afirmar que é inegável que ser negra e mulher no Brasil garante a elas os mais altos níveis de opressão, restando inúmeras injustiças. Entretanto, esta pesquisa mostra que é essa mesma mulher que luta por seus direitos, também está à frente de movimentos que buscam a melhoria de suas comunidades, não escondendo as suas histórias.

Em relação às/ao docentes/e brancas/o entrevistadas/o se destaca o fato de elas/eles, em especial às mulheres brancas, terem, em sua maioria, se sensibilizado para a temática à medida que alunas negras as procuraram para desenvolverem pesquisas, em nível graduação e/ou pós-graduação, sobre as experiências e vivências de outras mulheres negras. Apesar de existir aquilo que Bento (2002b) chamou de “pacto narcísico”, ou seja, os brancos procurarem unir-se para defender seus privilégios raciais e consequentemente se silenciarem em relação à exploração do outro (o negro), existem aqueles que mesmo usufruindo de privilégios simbólicos, subjetivos e materiais, se sensibilizam com a relevância da discussão e acolhem suas orientandas(os) negras(os), dando suporte para que eles/elas tragam o debate acerca da mulher negra para o meio acadêmico.

Diferentemente das docentes brancas, o único docente branco entrevistado afirma que sempre pesquisou sobre diferenças e que trabalhar com as temáticas de gênero e raça é algo que veio naturalmente. Entretanto, cabe destacar que sendo ele o único docente do programa de pós-graduação no qual atua que já orientou alunos cotistas, esses orientados também levaram até ele essas temáticas marginais, como a interlocução entre gênero e raça, acontecendo em alguma medida o mesmo que se observou com as docentes brancas.

Já em relação aos homens negros, apesar deles também sofrerem com o racismo, acabam se beneficiando com os dividendos do patriarcado, ou seja, essa estrutura hierárquica que coloca os homens, em especial os homens brancos, em posições de vantagem em relação às mulheres, em especial às mulheres negras. Talvez essa dinâmica nos ajude a compreender porque os dois únicos homens pretos entrevistados afirmaram não acreditar que a motivação de abordar tais temas surgiu de vivências pessoais, mas sim, de oportunidades que surgiram ao longo de suas jornadas, sendo possível questionar até que medida o pesquisador negro (homem negro) apreende a mulher negra apenas como objeto científico. Aqui cabe pensarmos também no silenciamento de vários outros autores negros e brancos (todos homens), que quando receberam o contato das pesquisadoras para poder participar deste estudo, responderam que haviam pesquisado esse tema (mulher negra trabalhadora) uma única vez em virtude de oportunidades de desenvolverem parcerias na elaboração de artigos acadêmicos.

Diante do exposto, observamos que as mulheres (discentes e docentes) negras, além de destacarem a importância de utilizar os espaços em que elas estão (as universidades) para debaterem sobre os aspectos sociais que envolvem as suas vivências, possibilitando que mais mulheres negras possam adentrar a tais espaços e se sentirem representadas. Elas também atuam do ponto de vista político ao transgredirem a ótica racista do ambiente acadêmico ao publicizar a intersecção de raça e gênero e transgredir o padrão normativo, criando espaço para uma educação pensada como prática que reconhece e dá credibilidade à experiência humana na sua diversidade. Cabe aqui destacar que como Simas e Rufino (2018) bem lembram, transgredir o cânone não é negá-lo, mas sim pensá-lo em conjunto com outras perspectivas, isto é, uma educação que busca ser emancipatória, um ato de deseducação do cânone e dos seus binarismos.

Como limitações da pesquisa encontramos a presença de autoras, coautoras, autores e coautores brancos que também tratam da temática da mulher negra trabalhadora. Isso implicou em uma ampliação da questão da raça, ao tratarmos das imbricações biográficas na pesquisa sobre a mulher negra trabalhadora. Nossos dados mostram que, em quase sua totalidade, há motivações próprias, no caso das autoras e autores negros, e que no caso das autoras e autores brancos, normalmente, a demanda de trabalhar esse tema vinha de uma orientanda ou orientando negro. De qualquer forma, a questão da racialização precisa ser discutida de forma mais interseccional ao termos encontrado pessoas brancas estudando o tema da mulher negra trabalhadora.

Como sugestão de estudos futuros indicamos a análise do tema sob a perspectiva das orientandas e orientandos, para compreender-se como a rede de pesquisa colaborativa é formada no caso dos estudos sobre a temática da mulher negra trabalhadora. Uma outra sugestão é estudar, sob a perspectiva da branquelização da academia, os estudos sobre raça ou mesmo, no caso da nossa pesquisa, as mulheres negras trabalhadoras.

Por fim, concluímos que as biografias estão sim, imbricadas com os fazeres científicos das/os pesquisadora/es, com destaque para as biografias das pesquisadoras negras, constituindo-se como esferas dialéticas da vida humana.

Questiona-se ao final o axioma de neutralidade da ciência que retira da cena científica o sujeito pesquisador. Para uma narrativa crítica, o sujeito é o que constrói sua biografia, seja por demandas individuais, seja por determinações estruturais, mas sempre em relação à tensão entre esses polos.

Referências

Bernardino-Costa, J., Maldonado-Torres, N., & Grosfoguel, R. (2018). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. (S.l.) Belo Horizonte: Autêntica.

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J.; PORTELLI,

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