Revista Gestão & Conexões

Management and Connections Journal

VITÓRIA (ES), VOL. 13, N. 1, JAN./ABR. 2024.

ISSN: 2317-5087

DOI: https://doi.org/10.47456/regec.2317-5087.2024.13.1.42479.100-119

Territórios de Morte: Retratos de Perda e Luto em Crimes Corporativos no Brasil

Territories of Death: Pictures of Loss and Mourning in Corporate Crimes in Brazil

Cintia Rodrigues Oliveira Universidade Federal de Uberlândia cintia@ufu.br

Rodrigo Miranda

Universidade Federal de Uberlândia

rodrigomiranda@ufu.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3223-1092

RESUMO

Nosso objetivo neste artigo é analisar imagens relacionadas à morte nas organizações decorrentes de crimes corporativos, ilustrando com o caso da Vale em Brumadinho. Nós utilizamos a abordagem qualitativa, analisando imagens relacionadas a mortes ocorridas nos crimes corporativos em territórios de mineração, especificamente, o rompimento das barragens da Vale. A análise visual resultou na identificação de três grupos temáticos, que revelam a política de morte que decide quem deve viver e quem deve morrer, sinalizando para a morte como um fenômeno produzido pelas organizações. A pesquisa contribui, principalmente, por discutir a morte no campo de estudos organizacionais como um fenômeno cultural, e não um processo organizacional, dialogando com a literatura dos crimes corporativos.

Palavras-chave: Crimes corporativos; Morte; Necropolítica; Setor mineração.

ABSTRACT

Our aim in this research is to analyze images related to death in organizations resulting from corporate crimes, illustrating with the case of Vale in Brumadinho. We used a qualitative approach, analyzing images related to deaths that occurred in corporate crimes in mining territories, specifically, the collapse of Vale’s dams. The visual analysis resulted in the identification of three thematic groups, which reveal the death policy that decides who should live and who should die, signaling death as a phenomenon produced by organizations. The research contributes, mainly, by discussing death in the field of organizational studies as a cultural phenomenon, and not an organizational process, dialoguing with the literature of corporate crimes.

Keywords: Corporate crime; Death; Necropolitics; Mining sector.

ARTIGO SUBMETIDO EM: 20.09.2023 ACEITO EM: 22.11.2023 PUBLICADO EM: 02.01.2024

Introdução

No campo da Administração, tradicionalmente, a morte é estudada em uma abordagem evolucionária e funcionalista, dirigindo atenção para a mudança organizacional; o declínio e o fracasso empresarial; a estratégia de fusão de empresas; os processos de reengenharia e downsizing (Adizes, 2002; Arman, 2014; Pinhal, Ferreira, & Borges, 2018; Whetten, 1980). Essas abordagens negligenciam a ideia da morte como um fenômeno cultural, focando nos modelos de ciclo de vida, no entanto, entendê-la como tal é fundamental para a compreensão dos sentidos atribuídos ao trabalho e às organizações (Bell & Taylor, 2011; Alcadipani, 2017), contribuindo para a compreensão das respostas coletivas às mortes em contextos organizacionais (Bell & Taylor, 2011).

Em determinados tipos de organizações, a morte é um evento que faz parte do cotidiano de trabalho, como, por exemplo, hospitais, cemitérios, funerárias; e, em outros tipos, como a construção civil e as mineradoras, a morte é um evento recorrente (Dau, 2020; O Tempo, 2019). O setor de mineração é apontado como protagonista de um “sistemático e cada vez mais intenso processo de violação de direitos humanos – sociais, territoriais, ambientais, trabalhistas, culturais” (Articulação para o monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, 2017), um processo provocado pela atividade de mineração em si e pela infraestrutura necessária para que ela se desenvolva, e que, desde o final do século passado, se intensifica cada vez mais. Os impactos dessa atividade são irreparáveis para o meio ambiente e para a vida, tanto de pessoas como de animais, gerando conflitos sociais nas regiões de exploração, como a América Latina (Parrila, 2021), onde ocorre a maioria dos assassinatos de pessoas defensoras das comunidades afetadas pela mineração (Global Witness, 2020).

Limitando-se ao Brasil, têm-se os casos mais recentes dos impactos do setor, como: a contaminação por chumbo provocada pela Plumbum Mineração (Santo Amaro da Purificação, Bahia) por mais de 30 anos; o rompimento de barragem de rejeitos em Macacos (São Sebastião das Águas Claras, distrito de Nova Lima), em 2001, tendo cinco vítimas fatais reconhecidas; o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/VALE/BHP, em 2015, que resultou, entre outros danos, em 19 mortes reconhecidas; o vazamento de rejeitos da mineradora norueguesa Norsk Hydro, em Barcarena, em 2017; o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 2019, com muitas mortes computadas.

Esses eventos mostram o poder e a capacidade de as corporações decidirem sobre a vida e sobre a morte, o que Mbembe (2003, p. 11) entende ser a expressão máxima de soberania, “que faz viver ou deixa morrer”, epistemologia base da noção de necropolítica e do necropoder. Com base em Mbembe (2003), Banerjee (2008) desenvolve o conceito de necrocapitalismo para se referir às práticas de acumulação capitalista das corporações transnacionais às quais “envolvem a desapropriação, morte, tortura, suicídio, escravidão, destruição de meios de subsistência e a administração geral da violência” (Banerjee, 2008, p. 1.546). As mortes decorrentes das operações corporativas são produzidas na busca de acumulação econômica e de poder que conferem cada vez mais autoridade política sobre governos e sociedades.

Diante do contexto apresentado, a questão que orienta esta pesquisa é: como são retratadas as mortes nas organizações decorrentes de crimes corporativos? Nossa atenção concentra-se em imagens, especificamente em fotografias jornalísticas, com o objetivo de analisar imagens relacionadas à morte nas organizações decorrentes de crimes corporativos, ilustrando com o caso da Vale em Brumadinho. A cobertura jornalística desses acontecimentos tem sido intensa, trazendo reportagens e imagens que contribuem para construir uma realidade e interferem na visão que temos do mundo, pois, diante de uma foto, podemos parar, olhar e refletir sobre suas mensagens.

O que nos interessa nesta pesquisa é a morte enquanto fenômeno cultural nas organizações, mais especificamente, aquela provocada pela organização, pois, assim, colocamos como central a morte como produto das organizações e não como algo inato à condição humana (Willmott, 2000). Apesar de fazer parte das organizações, a morte é raramente considerada como foco de pesquisa no campo dos estudos organizacionais, o que justifica esta pesquisa, que amplia e estende a compreensão das corporações como espaços para o exercício da necropolítica e do necropoder. Nosso argumento principal é que as experiências relacionadas com a morte são suscetíveis de surgir nas corporações na busca por acumulação, sendo assim, as expressões de luto e perda que emergem quando a morte acontece são elementos fundamentais para a compreensão de práticas capitalistas que produzem a morte social e física.

Os procedimentos de pesquisa são de natureza qualitativa: o material empírico é originado de uma pesquisa documental em jornais, sendo nossa atenção dirigida para as dimensões visuais da cultura e da vida social. Do extenso material empírico reunido para a pesquisa, selecionamos, por conveniência, 3 imagens de 42 fotos de jornais eletrônicos (El País Brasil, BBC Brasil, Folha de S. Paulo) para análise visual. Depois desta introdução, abordamos estudos sobre a produção da morte nas organizações pelos crimes corporativos, descrevemos os procedimentos da pesquisa, apresentamos os resultados e encerramos com nossas considerações finais.

Crimes corporativos e a produção da morte nas organizações

a morte é um tema comum em diversos campos do conhecimento (filosofia, história, antropologia, sociologia etc.), incluindo o campo da administração, que focaliza a morte organizacional como um fenômeno associado ao fracasso e declínio da organização. Porém, nesse campo, a morte como uma questão essencialmente humana é pouco discutida, sendo os trabalhos de Bell e Taylor (2011, 2016) que chamam a atenção para discutir a morte como um fenômeno cultural e simbólico no âmbito das organizações.

Ao longo da história, a morte adquiriu diferentes significados, sendo um fenômeno que permeia a vida simbólica, social e historicamente (Rodrigues, 2006). Por exemplo, nas culturas ocidentais, anteriormente ao século XX, a morte não era contestada, mas sim, era aceita sem precipitações nem atrasos (Ariés, 1975). Porém, é no século XX que se observa uma transição da morte como parte inerente do ciclo de vida da pessoa (tudo) para ser tornar um tabu (nada), um evento ocultado do dia a dia e tratado com indiferença, fazendo emergir o mito da “amortalidade” humana, uma

versão moderna da imortalidade, nos dizeres de Rodrigues (2006), o sonho impossível dos homens (Bauman, 1992).

Ocupando os bastidores da vida social, a morte é encarada como algo estúpido e trivial, significando fracasso, passando então, a ser evitada, pois, se comparada a outros períodos históricos, na sociedade contemporânea, mesmo com o aumento da criminalidade, da violência e das possibilidades de tragédias e desastres, a vida tornou-se mais previsível (Elias, 2001). Apesar disso, a morte é uma ameaça constante (Rodrigues, 2006) à vida, por isso, é tarefa do homem “viver com o pavor da inevitabilidade da morte e apesar dele” (Bauman, 2006, p. 45), ainda que seja uma morte social.

Essa contradição entre a morte ocultada e a morte como ameaça constante é explicada por Kovacs (2008). Segundo a autora, ocorre uma espetacularização da morte nos meios de comunicação, mostrando-a de um modo pasteurizado e desvinculado da existência individual. Para Kovacs (2008), ao apresentar cenas e imagens fortes de acontecimentos relacionados com a morte, sem o devido tempo para reflexão do público, a mídia acaba por banalizar a morte, na tentativa de chocar o público, porém, de modo a deixar claro que a vida continua.

Acontece que não é a morte que desperta temor, mas sim, o fato de o homem ter consciência de que ela é inevitável, assim, Elias (2001) sinaliza que a morte é um problema dos vivos, e, portanto, surgem modos de lidar com a ideia de fim da vida, como a mitologização do final da vida; a crença de ser imortal ou, ainda, pode-se pensar na morte como um fato inerente à vida e ajustar-se a ela. A morte é acompanhada dos sentimentos de perda e luto experienciados pela família, amigos e as pessoas de convívio social, trazendo implicações para a saúde física e mental desses, como o estresse (social, físico metabólico), a depressão e outros distúrbios (Parkes, 1998; Bowlby, 2004), podendo até mesmo levar o enlutado à morte (Parkes, 1998).

Willmott (2000) critica o “sequestro da morte” pela teoria sociológica, argumentando que os estudos sociológicos que naturalizam a compreensão da morte como algo negativo devem ser questionados, pois a morte deve ser reconhecida como um produto social e não como um fenômeno inato à condição humana. Isso porque entendimentos possíveis para analisar a emancipação humana são suprimidos quando a morte é negligenciada nos estudos da ação social. Para Willmott (2000), a morte tem dois significados: (1) material e metafísico – que diz respeito aos medos sobre a dor da perda de entes queridos, ansiedade e incerteza; e (2) simbólico, pela perda de significados investidos nos projetos de vida, que culmina na falta de sentido pessoal.

Os ritos e cerimônias pós-morte são eventos importantes para se compreender a cultura de um grupo, visto que nesses as relações de sociabilidade são reveladas, pois é o grupo que define o que é legítimo em relação à vida e à morte (Leal, 1992). Naturalmente, o homem se orienta pela busca da sobrevivência, ou a fuga da morte, tornando a morte um evento significativo nas vidas de quem fica (Bauman, 1992). A realização desses eventos, como o velório, acontecia em casa, diferentemente dos tempos atuais, em que há uma supressão dos ritos de morte, o que pode “dificultar a vivência da perda de sentido no mundo-da-vida e sua consequente ressignificação” (Freitas, 2013, p. 102). As formas de morte e de luto dizem muito sobre uma cultura,

tanto por mostrar a universalidade dessa manifestação, bem como para indicar as variações entre culturas (Leal, 1992; Parkes, 1998).

A literatura sobre luto é vasta e comporta diversos significados para o termo. Freitas (2013, p. 98) define o luto vivido em decorrência da morte como “não somente uma experiência dura e profunda de perda, mas também a evocação de nossa condição mortal, assim como da inevitabilidade e irreversibilidade da morte”. Na modernidade, o luto é associado à baixa produtividade e falta de capacidade para lidar com sentimentos, não sendo permitido, na sociedade contemporânea, ao enlutado viver a dor da perda, visto a baixa tolerância às manifestações de emoções como a tristeza, frustração, mágoa, perda e nostalgia (Freitas, 2013). No entanto, as mortes de familiares e amigos são “eventos importantes da vida ou ‘situações críticas’ que levam a uma reflexão mais profunda sobre o valor ou a direção dos projetos de vida e a prioridade dada a compromissos concorrentes, e muitas vezes têm ramificações importantes dignas de exame sociológico” (Willmott, 2000, p. 650).

Ao proporem estudos sobre a morte em uma perspectiva cultural-simbólica no campo dos estudos organizacionais, Bell e Taylor (2016) relacionam a morte nas organizações com relações de poder; e Bell e Taylor (2011) e Bell, Hansson e Tienari (2012) chamam a atenção para estudos sobre a “morte no trabalho, incluindo suicídios de empregados, acidentes e desastres organizacionais” como potenciais contribuições para a compreensão do modo como as memórias coletivas e histórias compartilhadas são construídas e mantidas. Ao analisar as expressões relacionadas à morte de Steve Jobs, Bell e Taylor (2016) tomaram como base a noção de heterotopias de Michel Foucault para explorar os aspectos sociotemporais da memorialização da morte, identificando a construção de um “velório” com objetos para manter a presença de Steve Jobs. A análise dos autores sugere ainda que os rituais pós-morte de Jobs criados por seus admiradores contrastam com as práticas reguladas pela organização, que encorajam a interpretação de Jobs como ausente, ou seja, buscam disciplinar o luto.

A morte em organizações não ocorre apenas de maneira natural ou acidental, podendo ser ocasionada por condutas ilegais e ou criminosas na busca de alcançar interesses e objetivos corporativos, principalmente, aqueles diretamente associados com a obtenção de maiores lucros. Em 1985, o artigo “Can a Corporation commit murder?”, de autoria de E. R. Shipp, levanta a discussão, no âmbito do contexto norte-americano, sobre a possibilidade de uma corporação ser acusada de ter cometido um crime. Até então, ainda que as corporações norte-americanas fossem responsabilizadas criminalmente por violações de leis antitruste ou regulatórias, a ideia de “personalidade corporativa” não permitia a acusação de assassinato, ou seja, a morte de uma pessoa por outra.

No entanto, isso mudou, e já são vários casos em que corporações são acusadas de assassinato, como, por exemplo, o caso em que a Great Adventure Inc. e Six Flag Corporation de Chicago são acusadas de homicídio culposo na morte de oito adolescentes em um incêndio do parque de diversões, em maio de 1984; e a Film Recovery Systems também foi acusada de homicídio involuntário de um empregado que teve a morte provocada por exposição a substâncias altamente nocivas. Porém, o marco dessas questões foi a acusação interposta pelo procurador do Queen contra a Warner-Lambert Company, conseguindo acusar a empresa e quatro executivos por

homicídio por negligência criminosa pelas mortes de seis trabalhadores ocorridas pela explosão na fábrica de goma de mascar. Mesmo que a acusação tenha sido rejeitada, não houve questionamento quanto à possibilidade de levar tais acusações aos tribunais (Shipp, 1985).

No Brasil, a empresa de vigilância Ondrepsb foi condenada a pagar uma indenização por criar empecilhos para uma mãe amamentar sua filha recém-nascida que morreu por uma inflamação no cérebro (Gonsalves, 2011) e no caso dos rompimentos das barragens da Vale e Brumadinho, juristas afirmam que qualquer responsável direto pelas mortes pode ser acusado criminalmente de homicídio, no entanto, a dificuldade em atribuir a culpa direta a alguém inviabiliza a acusação e punição (Desiderio, 2019), sendo um desses motivos a tentativa de não constranger os negócios envolvidos, o que leva à erosão da base moral de nossa sociedade” (Clinard et al., 1979, p. 15).

O fato é que crimes corporativos produzem mortes, de natureza física e simbólica, entre outros tipos de danos e prejuízos sobre empregados, consumidores, ambiente de trabalho, economia e meio ambiente (Snider, 2000). Nosso entendimento sobre a noção de crime corporativo tem como base as discussões desenvolvidas por pesquisadores do tema: “uma ação ou omissão ilegal ou socialmente prejudicial e danosa contra o indivíduo ou a sociedade, produzida na interação de atores envolvidos em estruturas organizacionais e interorganizacionais na busca de objetivos corporativos de uma ou mais corporação de negócios, resultando em prejuízos imateriais ou materiais aos seres vivos e às atividades humanas” (Medeiros, 2013, p. 60).

O crime corporativo pode ser um ato voluntário e consciente, bem como o agir negativo, a negligência, o não fazer aquilo que é devido, provocando prejuízos a indivíduos e à sociedade de forma mais ampla. Essa ação ou omissão é produzida quando indivíduos, agentes e agências se envolvem em estruturas sociais, tecnológicas, financeiras e estruturais, para alcançar objetivos estabelecidos em função das estratégias e negócios de grandes empresas ou conglomerados empresariais. Os resultados dessa ação ou omissão são negativos, trazendo prejuízos sociais, físicos, financeiros, psicológicos, ecológicos, colocando a sociedade e o meio ambiente em condições de risco, dano ou perda (Medeiros, 2013).

Apesar do reconhecimento dos seus custos econômicos, crimes corporativos não são tratados como sérios ou violentos, o que é utilizado como argumento para justificar a exclusão desses dos estudos da criminologia e das regulações e controle legal. No entanto, Kramer (1984) defende que os crimes corporativos devam ser tratados com mais seriedade, visto serem esses crimes sérios, com danos econômicos, físicos, morais e financeiros mais graves do que os crimes convencionais, ou os crimes de rua. Esses danos não são facilmente identificáveis e mensuráveis, e as estatísticas oficiais são construídas socialmente (Tombs, 1999). Fazem parte dessa conta doenças provocadas pela poluição ambiental, a venda de produtos que provocam danos aos consumidores, as condições de trabalho potencialmente perigosas por exposição a produtos tóxicos, bem como os traumas psicológicos da vitimização e o chamado crime social da fábrica (alienação do trabalho), a erosão da confiança nas instituições, que provoca um processo de “deslegitimação”, e o cinismo que emerge no âmbito das instituições protagonistas dos crimes (Friedrichs, 2009).

No âmbito acadêmico, pesquisadores buscam compreender porque processos corporativos produzem mortes. Por exemplo, Whyte (2007) chama atenção para o número de mortes causadas por corporações e, principalmente, para o silêncio de criminologistas e vitimologistas sobre as “vítimas de corporações assassinas” como uma sistemática exclusão de informações sobre um problema grandioso, e não somente uma questão não funcional: “Crucial para a compreensão de como esse processo de silenciamento opera atualmente é uma apreciação da elevação moral e política de uma sociedade chamada free-enterprise e do processo de reificação de negócios” (Whyte, 2007, p. 459).

Mbembe (2003) desenvolve o termo necropolítica para explicar a subjugação da vida ao poder da morte, que denomina de necropoder, ou seja, o poder de determinar quem morre e quem vive. Esse autor discute a relação entre o estado de exceção e a soberania que resulta na distribuição da autoridade de matar, em que “armas são empregadas no interesse da destruição de pessoas e na criação de ‘mundos de morte’, novas e únicas formas de existência social nas quais populações estão sujeitas a condições de vida que conferem a elas o status de mortos vivos” (Mbembe, 2003, p. 11).

A partir da teorização de Mbembe (2033), Banerjee (2008, p. 1.544) desenvolve o termo necrocapitalismo. Nas fronteiras de territórios e nações, a despeito das noções de independência e suprema autoridade dos estados-nações, Banerjee (2008, p. 1.545), “um estado de exceção permanente, em que a soberania se torna um exercício de poder fora da lei”, em que as corporações transnacionais parecem operar com impunidade (Pearce & Tombs, 1999). E é o poder de colonização que vai permitir a exibição do poder de morte frente àqueles destinados a permanecerem vivos, sendo então, a soberania, não apenas o poder de morte sobre o colonizado, mas sim, sua derrota psicológica e moral, e sua transformação em audiência da exibição do poder de morte, uma violência física, psicológica e moral.

O necrocapitalismo “emerge da interseção da necropolítica e da necroeconomia, como práticas de acumulação em um contexto (pós)colonial, por atores econômicos específicos (Banerjee, 2008, p.1.546). Um desses atores são as corporações transnacionais “que envolvem a desapropriação, morte, tortura, suicídio, escravidão, destruição de meios de subsistência e a administração geral da violência” (Banerjee, 2008, p.1.546). Se, para Banerjee (2008), o necrocapitalismo envolve práticas realizadas por um conjunto de atores, dentre esses, a corporação multinacional, que se interlaçam para criar um processo de produção da morte, o termo necrocorporação se configura adequado para descrever um dos atores-chave desse processo, que são as corporações que cometem os crimes corporativos contra a vida.

Silveira e Medeiros (2013) exploram o conceito de antecedentes de crimes corporativos para discutir aqueles relacionados à morte de trabalhadores, com foco nos suicídios cometidos por funcionários de uma multinacional francesa. Medeiros e Alcadipani (2017) trazem para a discussão as mortes provocadas por crimes corporativos, analisando como essas são produzidas no curso das operações corporativas, como as organizações fazem manobras para ficarem impunes, as armas utilizadas, o poder, e o consentimento para que mortes aconteçam. A discussão dos autores é sustentada pelo conceito de necrocapitalismo desenvolvido por Banerjee

(2008) para se referir a práticas corporativas capitalistas que envolvem destruição e morte. Nessa perspectiva, a morte nas organizações pode ser incorporada como um fenômeno organizacional que permite a análise sobre as experiências de perda e luto das pessoas direta ou indiretamente envolvidas com esse fenômeno.

Procedimentos de pesquisa

Esta pesquisa concentra-se no material visual, especificamente, fotografias produzidas por fotojornalistas, para analisar expressões de luto e perda no contexto de crimes corporativos cometidos em territórios da mineração. A incorporação de imagens em pesquisas sociais é recomendada por Banks (2007) pela sua onipresença na sociedade para representar visualmente algum “conhecimento sociológico que não é acessível por nenhum outro meio” (Banks, 2007, p. 18). Em pesquisas visuais, as imagens podem ser instigadas pelo pesquisador (produzidas pelo pesquisador, ou produzidas ou consumidas pelos pesquisados), ou, ainda, originadas de material pré-existente (quando o pesquisador lança mão de imagens produzidas para outros fins) (Pauwels, 2011), como é o caso desta pesquisa.

Reconhecemos que a apropriação da imagem não significa chegar ao real, e que, dado seu caráter polissêmico, “as propriedades das imagens e a interpretação dos leitores não são fixas” (Manguel, 2002, p. 11). Consideramos ainda que o fotojornalismo permite contemplar as lógicas do cotidiano, pois a foto não somente captura a realidade, não se reduzindo a um momento congelado, ou seja, a foto é uma realidade fotográfica (Christmann, 2008). A seleção de fotos para comporem o corpus de pesquisa iniciou com uma pesquisa nas versões eletrônicas dos principais jornais nacionais, buscando reportagens sobre a indústria da mineração, nos casos mais recentes: o rompimento da barragem da Samarco (Vale) em Fundão, Bento Rodrigues e o rompimento da barragem, também da Vale, no município de Brumadinho, ambas as barragens no estado de Minas Gerais. Iniciamos com o buscador Google e, na primeira análise, a Folha de S. Paulo, BBC Brasil e El País Brasil foram os veículos que retornaram com maior número de notícias eletrônicas. Em seguida, prosseguimos com a busca nos três veículos, associando-a às palavras morte e luto, resultando em 18 reportagens, das quais foram selecionadas aquelas que continham fotografias, totalizando, depois de descartar as fotos com copyright, 42 imagens acompanhadas de textos que foram tratadas como documentos públicos por estarem disponíveis na internet sem nenhum aviso sobre direitos autorais. O critério de conveniência foi determinante na escolha das fotografias, visto que, para alcançar o objetivo proposto, as imagens deveriam estar associadas a luto e mortes.

Em uma primeira análise, agrupamos as 42 imagens em três grupos temáticos, de acordo com os textos das reportagens que acompanhavam as fotografias, e selecionamos três delas (uma de cada grupo), delimitando àquelas relativas ao rompimento da barragem de Brumadinho, para fins deste trabalho, considerando que cada uma pudesse condensar o grupo temático. Nessa primeira análise, nos orientamos pelo objetivo da análise, que se refere às expressões de luto e perda. Em seguida, nossa análise se respaldou em Banks (2001) e em Barthes (1977), uma abordagem clássica, cuja escolha foi determinada pelo nosso objetivo de identificar

como as imagens abarcam o fenômeno das mortes e perdas causadas por crimes corporativo, ressaltando como os elementos da imagem operam para influenciar a interpretação do fenômeno.

A morte ronda os territórios de mineração: retratos de luto e perda nos crimes corporativos

Antes de introduzir nossa análise, apresentamos breves considerações acerca do material sobre o qual nos debruçamos. O material analisado consiste em 16 fotos publicadas pelo El País Brasil, sendo 13 delas em uma reportagem intitulada “Brumadinho, as imagens de uma cidade de luto” (El País, 2019a); 1 na reportagem “O ‘luto ambíguo’ dos que esperam pelos familiares desaparecidos em Brumadinho” (El País, 2019b); 1 em “Tive sorte de poder enterrar o meu irmão”: o luto de Brumadinho chega ao sétimo dia” (El País, 2019c), e 1 em “Vale faz doações às famílias, que cobram: “Não quero dinheiro. Quero meu irmão de volta” (El País, 2019d); 22 fotos publicadas pela Folha de S. Paulo, em uma reportagem intitulada de “Em luto após 7 dias, população some das ruas de Brumadinho e se recolhe” (Folha de S. Paulo, 2019), e 4 fotos da BBC Brasil, na reportagem “‘É um arraial fantasma’: os moradores que insistem em morar nos vilarejos destruídos pela lama de Mariana” (BBC Brasil, 2017).

Fotografias representam padrões culturais, oferecendo diferentes significados, o que lhe confere o caráter polissêmico, sendo essas, portanto, sujeitas a múltiplas interpretações. Por certo, fotografias não oferecem uma visão naturalística e nem objetivista do objeto retratado, mas sim, uma compreensão subjetiva ou “imagens imaginadas” do objeto (Cristmann, 2008). Fotografias jornalísticas são disseminadoras de informação sobre importantes eventos no mundo, e fazem parte de uma complexa rede de fenômenos culturais. O editor do jornal, na maioria das vezes, seleciona as imagens para condensar a história, o que levanta questões sobre em que medida uma foto pode representar uma situação, visto que as fotos jornalísticas têm uma função retórica (Barthes, 1964), não apenas para convencer as pessoas sobre uma ideia ou para incentivar a compra de bens, mas, também para a formação de identidade e reforçar crenças e valores (Wright, 2011).

Sobre a técnica de análise visual, conforme Joly (1996, p. 176), “Não existe, bem entendido, método absoluto e cada um adaptará as suas escolhas metodológicas aos objetivos da análise”. Dentre as possibilidades de análise de material visual, nos inspiramos em Barthes (1977) para o estudo da foto jornalística como um objeto autônomo, mesmo que ela esteja relacionada com o texto, considerando dois aspectos que, embora distintos, estão associados: o conteúdo analógico (literal, denotativo) e a mensagem suplementar (simbólica, conotativa). O conteúdo conotativo da fotografia permite descrever o que a imagem mostra, sendo uma mensagem literal, icônica e continua. Já a mensagem conotativa é ideológica, cultural e histórica, portanto, depende do contexto em que ela é produzida. Reconhecendo as possibilidades de leitura de uma mesma imagem.

Os procedimentos de conotação da mensagem fotojornalística propostos por Barthes (1977) são: trucagem (sobreposição ou supressão de determinados planos ou

objetos); pose (gestos que sugerem a significação da conotação); objetos fotografados (presença deles de maneira a valorizá-los na imagem registrada, induzindo a geração de sentido ou associação de ideias); fotogenia (enquadramento, composição, iluminação e velocidade do obturador); estetismo (estética da fotografia, composição, efeitos, iluminação); e sintaxe (encadeamento das imagens em sequências, de maneira que se fossem analisadas separadamente, fora da sequência, provavelmente não seriam atribuídos os mesmos sentidos). Considerando que nenhuma das fotos selecionadas contém trucagem e sintaxe, para fins deste trabalho, nosso foco de análise recai nos procedimentos: pose, objetos, fotogenia e estetismo.

A seguir, apresentamos os três grupos temáticos a partir de uma foto representativa do conjunto:

Grupo temático 1: A incerteza, a tristeza e as perdas - O conjunto das fotos agrupadas no Grupo temático 1 referem-se à destruição material e o sentimento de tristeza, além da incerteza do que está por vir. São casas, edifícios, hortas, pastos, plantações, sítios, e muitos outros lugares destruídos pelo rompimento das barragens, territórios de morte onde corporações desenvolvem seu modelo econômico sem considerar os direitos humanos e o meio ambiente, exercendo o poder econômico e político para matar sem se importar com as consequências. Mbembe (2003) discorre sobre estruturas organizadas para provocar a destruição de grupos, em que um Estado determina quem pode viver e quem deve morrer.

Os textos que acompanham as fotos referem-se à tristeza dos moradores, pelas perdas que tiveram, fazendo com que eles se isolem em suas casas: “Não é o sol, não é o calor. Ninguém está saindo de casa é por tristeza” (Folha de S. Paulo, 2019). A destruição material causada pelo crime corporativo também é uma perda e, portanto, leva a uma experiência de luto, trazendo consequências para a saúde física e mental (Parkes, 1998; Bowlby, 2004), pois trata-se de uma ameaça aos pressupostos básicos sobre os quais a sociedade é organizada, além de expor as pessoas ao pavor da perda de significado (Willmott, 2000).

Figura 1: Lama destruiu casas e plantações na região da Horta, que fica entre

Tejuco e Parque da Cachoeira, em Brumadiho (MG). Foto: Eduardo Anizelli

Fonte: Folha de S. Paulo (2019).

A fotografia 1 não contém pessoas para analisar a pose, apenas objetos: um pequeno mercado, caixotes de produtos empilhados e vazios, um lugar devastado pela lama da barragem. A foto foi produzida uma semana depois do rompimento da barragem de Brumadinho, e o enquadramento da foto mostra ao fundo a lama tóxica que passa a fazer parte da paisagem da região da Horta, dando a ideia de que é uma região condenada à morte. A análise do estetismo também mostra a utilização de recursos de iluminação e composição que permite o observador ver a destruição provocada pela lama, o seu efeito devastador de qualquer tipo de vida, humana e não humana.

Grupo temático 2: O vazio e as mortes presumidas - As fotos agrupadas no Grupo Temático 2 referem-se a homenagens, rituais, velórios simbólicos, mensagens e outras manifestações de luto e perda de vítimas dos rompimentos das barragens que não foram identificados até o momento da reportagem. Aqui, as mortes são presumidas. Ainda assim, na abordagem da necropolítica (Mbembe, 2003), trata-se de uma população de um território de morte, ou seja, uma população que deveria morrer. A reportagem fala de um “luto ambíguo”, pois, no fundo, há pouca esperança de vida, constituindo-se em um vazio, isto é, “um espaço que não é de vida e nem de morte; a pessoa só não está lá” (El País, 2019b).

Figura 2: Moradores de Brumadinho realizam homenagem às vítimas.

Foto: Adriano Machado

Fonte: El País (2019c).

A fotografia da Figura 2 retrata os moradores de Brumadinho realizando homenagens às vítimas. As pessoas estão posicionadas em semicírculo em volta dos objetos, que são cartazes e faixas com homenagens às vítimas que ainda não foram identificadas, o que é uma expressão de luto e perda. Um homem está posicionado ao meio. A pose das pessoas remete a momentos de reflexão, as mãos entrelaçadas associadas aos cartazes de homenagens às vítimas, não em uma atitude de resignação, mas, sim, a aceitação social da morte (Willmott, 2000). Aqui também pode ser explorada

a noção de heterotopias de Foucault, como fizeram Bell e Taylor (2016), ou seja, é possível compreender essas expressões como a criação de um espaço de resistência.

Grupo temático 3: A dor e o sofrimento - Neste grupo temático, estão as fotos que retratam expressões significativas das pessoas, as faces que expressam dor e sofrimento pela perda de parentes, amigos, vizinhos, e, também, pessoas que não eram tão próximas: é um luto coletivo, que permite compreender como as memórias coletivas e histórias compartilhadas são construídas e mantidas (Bell, Hansson, & Tienari, 2012). É a dor e o sofrimento pela perda irreparável: “Da Vale eu não quero nada. Quero só meu irmão de volta” (El País, 2019d). Não existe “recompensa”, indenização ou qualquer outra maneira de reparação da perda de uma vida, mas as corporações preferem arcar com as possíveis reparações do que arcar com os custos para evitar que essas perdas aconteçam. A indústria da mineração constitui-se em territórios de morte, nos quais as práticas necrocapitalistas envolvem a desapropriação, destruição, morte e violência (Banerjee, 2008), tomando decisões que priorizam a acumulação capitalista.

Figura 3: Moradora de Brumadinho em cerimônia ecumênica nesta quarta.

Foto: Washington Alves.

Fonte: El País (2019d).

A fotografia 3 captura o gesto de uma mulher que sugere dor e sofrimento, o que poderia ser chamado de “experiência traumática”, em seu significado metafísico. A morte tem ainda significado simbólico que não está ligado à dor e incerteza atribuídas à morte dos outros, mas sim, à perda de significados investidos nos projetos de vida (Willmott, 2000). As mãos da trabalhadora tampam os olhos de quem não quer ver a

vida com a ausência de quem morreu; a ruga formada na testa marca a intensidade do sofrimento da moradora de Brumadinho pelas perdas; o braço e a mão amiga tentam confortá-la, um gesto que, mesmo estático, deixa explícito na imagem o conforto diante da ameaça de perda de sentido.

Retomando nosso argumento de que as experiências relacionadas com a morte nas corporações podem resultar da busca por acumulação, apontamos em nossa análise que as expressões de luto e perdas ‒ físicas, emocionais e simbólicas ‒, emergem de práticas capitalistas que produzem a morte social e física. Essas práticas necrocapitalistas (Banerjee, 2008) envolvem um conjunto de atores que se interlaçam para a produção da morte, decidindo sobre a vida e sobre a morte de uma população.

Os três grupos temáticos e suas imagens são representativos dos impactos causados por um crime corporativo no setor de mineração decorrente dos rompimentos das barragens da Vale em Brumadinho (2019), cujos textos mencionam morte, luto e perdas, refletindo dois significados da morte: material e simbólico. Com base nessa análise, pensamos em duas reflexões relevantes sobre a morte nas organizações.

Primeiro, as organizações causam a morte de indivíduos, merecendo atenção por parte de pesquisadores do campo de estudos organizacionais quanto ao papel das organizações capitalistas em causar a morte e permitir atrocidades assassinas, na busca incessante pela acumulação (Banerjee, 2008; Bauman, 1992). A morte é uma parte integrante da vida organizacional, não apenas em termos simbólicos, mas, também, no sentido físico (Bell, Tienari, & Hanson, 2014). As mortes e perdas objetos das imagens foram causadas no âmbito organizacional, ou seja, elas foram provocadas no curso dos processos operacionais de uma organização (Medeiros & Alcadipani, 2017), que são descritas como práticas necrocapitalistas (Banerjee, 2008). As imagens focalizam familiares e amigos das vítimas, as equipes de salvamento, a destruição material (casas e edificações) e destruição do meio ambiente, porém, não foram encontradas fotos focalizando a empresa e seus representantes, mesmo o assunto sendo a morte causada pelos rompimentos das barragens, negligenciando a responsabilidade da corporação. Uma única foto mostra a expressão “Vale assassina” escrita no monumento da entrada da cidade de Brumadinho (El País, 2019a), uma manifestação anônima da revolta pelo acontecimento e da visão do necrocapitalismo e da necropolítica, que decide sobre quem morre e quem vive (Banerjee, 2008; Mbembe, 2003).

Segundo, há uma lacuna sobre como as mortes são compreendidas nas organizações. As expressões de luto e perda são constantes nas imagens analisadas, implícita ou explicitamente aparecem como causa da dor, da tristeza, da ausência, de um vazio e do sentimento de abandono, não de forma individualizada, mas em um movimento para a manutenção de laços contínuos entre os mortos e os vivos. A ausência de corpos, que significam as mortes presumidas, foi capturada pelas fotos de diversas maneiras, dentre elas, os rituais simbólicos da morte, como o velório simbólico das mortes presumidas. Os eventos pós-morte são importantes para a cultura de um grupo e sua supressão pode dificultar a aceitação da perda, provocando uma perda de sentido para a vida daqueles que ficam (Freitas, 2013), portanto, quando

a empresa não assume sua responsabilidade pelas mortes decorrentes do crime cometido, há um rompimento com o passado dos mortos. Como sugerido por Bell, Tienari e Hansom (2014), a integração do passado dos mortos no presente deve ser negociada dentro da sociedade, nesse caso, da organização.

As mortes provocadas pelo rompimento da barragem fizeram com que a morte passasse a ser uma ameaça contínua, assim como a destruição do que já tinha sido construído pelas famílias atingidas, seja de natureza material ou efetiva. Neste caso, as mortes foram produzidas em crimes corporativos de natureza social, aqueles que ameaçam a saúde e segurança dos trabalhadores ou consumidores, bem como aqueles cometidos contra o meio ambiente, atos criminosos cujas principais vítimas são os empregados, a comunidade local e a sociedade em geral (Snider, 2000).

Embora o homem se oriente pela sobrevivência (Bauman, 1992), o luto vivido pela morte faz com que a condição mortal e a irreversibilidade da morte sejam evocadas (Freitas, 2013). As imagens produzidas relacionadas às mortes, ao serem veiculadas, podem invocar naqueles que se sentem seguros, o medo, como, também, pode gerar a união de pessoas para o enfrentamento e resistência à ocorrência de crimes corporativos. Em outros termos, aceitar a natureza inescapável da morte e como um fenômeno constituinte da vida pode contribuir para uma vida profissional mais significativa, sobretudo, no sentido de priorizar o tempo no “viver e morrer pelo trabalho”.

Considerações finais

Mortes nas organizações sempre ocorreram, não sendo um fenômeno raro, no entanto, é recente o fato de que imagens de organizações e suas vítimas passaram a entrar frequentemente na vida das pessoas, em virtude das possibilidades de disseminação da informação acompanhada por fotografias por parte da imprensa, seja impressa ou eletrônica, contribuindo para a construção e compreensão de realidades. Nossa pesquisa analisou imagens das experiências em relação às mortes como consequência de crimes corporativos em territórios de mineração, mostrando que as imagens veiculadas nas notícias para condensar as situações de crimes corporativos oferecem o ponto de vista sobre uma situação de interesse de todos nós, enquanto sociedade (Wright, 2011).

A morte como parte integrante da vida organizacional e produzida por práticas necrocapitalistas (Banerjee, 2008) é uma ideia central na nossa pesquisa, seja em termos simbólicos ou físicos. As organizações constituem por si mesmas um projeto de imortalidade, estando as questões de sobrevivência no topo das prioridades, diferentemente dos seres humanos que vivem com a consciência da inevitabilidade da própria morte (Becker, 1973). Nós caminhamos em direção a uma compreensão da morte nas organizações como um fenômeno cultural, em que a manutenção de laços contínuos entre os mortos e os vivos, no caso em análise, nos afastamos do isolamento da morte individual para compreender a morte organizacional em seus vários aspectos da vida social e cultural (Bell, Hanssons, & Tienari, 2014), particularmente quando há uma comoção pelas perdas decorrentes de práticas corporativas de acumulação.

Essas imagens fazem parte de um conjunto de milhares de outras que guardam lembranças dos danos causados por um crime corporativo que, por sua vez, é

decorrente de decisões corporativas que visam ao lucro. No todo, as fotografias carregam mais que expressões da morte e luto, sobretudo, elas registram significados dos crimes corporativos produzidos por práticas corporativas capitalistas que envolvem destruição e morte em busca da acumulação, o necrocapitalismo (Banerjee, 2008). Ao considerar a morte nas organizações como um fenômeno organizacional nos afastamos do enquadramento individualista do morrer e do luto, o que potencializa a análise sobre o exercício da necropolítica e do necropoder.

As fotografias analisadas retratam um acontecimento trágico, mas não sensacionalistas ou desvinculadas da existência individual, o que foi encontrado também por Kovacs (2008). As propriedades das imagens proveem o leitor de contexto e interpretação dos eventos reportados, ou seja, com base nas imagens, o leitor pode interpretar as expressões de perda e luto das pessoas atingidas por crimes corporativos da indústria da mineração, sensibilizando-se para o fato de que as corporações produzem a morte e, como tal, devem ter sua atuação contestada por uma forte mobilização social. As imagens nas coberturas sobre crimes corporativos contribuem para a compreensão da atuação das corporações na sociedade, despertando para as consequências para os atingidos pelo rompimento das barragens. Tais consequências são a morte, a falta de respostas, a destruição material e imaterial, entre outros, nos territórios de morte, numa perspectiva da necropolítica (Mbembe, 2003).

A morte, física ou psicológica, faz parte do contexto organizacional, no entanto, há uma lacuna nos estudos organizacionais sobre o tema. Ao situar esta pesquisa no campo dos estudos organizacionais, contribuímos com o campo duplamente: primeiro, ampliamos a discussão da perspectiva da morte como fenômeno cultural e organizacional, mostrando imagens de mortes, luto, perda e destruição produzidos por crimes corporativos, ou seja, socialmente produzidos e não como algo inato à condição humana. Com isso, nós contribuímos para enfraquecer os tabus que cercam a morte na sociedade moderna, especialmente, nas organizações, chamando atenção para um fenômeno organizacional relevante. Segundo, nós contribuímos ao pesquisar as mortes produzidas por crimes corporativos, que não são acidentais ou naturais, mas constituem em territórios de morte para as corporações que tomam decisões sobre quem pode viver e quem deve morrer.

Conforme as perspectivas críticas de crimes corporativos, que se insere no dark side das organizações, a morte, seja física ou psicológica, e a destruição (material e simbólica) são eventos que ocorrem nas formas organizacionais burocráticas, que permitem atrocidades (Bauman, 1992), como assassinatos em territórios de morte. Quando se trata de um tema sensível, como a morte, a pesquisa organizacional deve- se valer de fontes alternativas para além de entrevistar pessoas envolvidas, visto ser doloroso para o pesquisador e pesquisado retomar lembranças relacionadas ao evento. Neste estudo, contribuímos também ao estimular pesquisas considerando material visual pré-existente como objeto de pesquisa, um modo de ver os fenômenos organizacionais pouco explorado nos estudos organizacionais (Bell, 2012).

Um aspecto não explorado neste recorte é o contraste entre as práticas corporativas (da Vale) reguladoras do luto e os rituais elaborados pelos amigos, parentes, e outras pessoas, como Bell e Taylor (2016) identificaram, o que pode ser incluído em uma agenda de pesquisa sobre o tema. O campo também se beneficiaria

com pesquisas sobre os diferentes contextos organizacionais que contribuem para causar a morte de indivíduos, como a exploração de trabalhadores e as condições perigosas de trabalho, numa perspectiva das decisões tomadas sobre quem pode viver e quem pode morrer.

No decorrer da pesquisa, nos deparamos com um número significativo de vídeos produzidos pelas empresas responsáveis pelos rompimentos, pela comunidade, por movimentos sociais, e outros atores e interessados. Como sugestão para pesquisas que contribuam com o tema (morte em crimes corporativos) e com a utilização de métodos visuais, estudos que utilizem vídeos produzidos sobre crimes corporativos são promissores. Uma pesquisa sobre os limites éticos do uso de fotografias e sobre o processo e as circunstâncias decisórias para publicação das fotos no caso de temas sensíveis pode oferecer contribuições sociais. Além disso, sugerimos estudos que considerem as expressões de luto e perdas em mortes simbólicas, como a demissão em massa e os processos estratégicos de fusão/aquisição/incorporação, em direção oposta às abordagens de cunho funcionalista.

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