A cegueira como metáfora do estranhamento social capitalista: um diálogo entre Karl Marx e José Saramago

Blindness as a metaphor for estrangement capitalist social: A dialogue between Karl Marx and José Saramago

Prof. Dr. Vinícius dos Santos

Departamento de Filosofia/UFBA

E-mail: vsantos1985@gmail.com

 

RESUMO

O artigo visa retratar como o romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, pode ilustrar de modo significativo a crítica de Marx à sociabilidade específica do capitalismo, bem como a seu correspondente procedimento de formação de subjetividades, condensada no conceito de alienação ou estranhamento (Entfremdung). Em linhas gerais, a partir de uma análise sobre a pertinência da aproximação da narrativa fantástica de Saramago com o realismo estético advogado por Marx, o propósito é avançar em como aquele romance capta literariamente o sentido de alguns traços basilares do conceito marxiano de estranhamento. Particularmente, como este fenômeno sócio-histórico, tal como a cegueira em Saramago, representa um processo de desumanização, de violento embrutecimento dos sentidos e de niilismo existencial, decorrentes imperativo de luta pela sobrevivência imposto aos indivíduos sob a égide do capital. Se essa hipótese é válida, a doença que mobiliza o romance poderia ser apreendida como uma metáfora artística fantástica de uma sociedade inteiramente dominada por uma potência autônoma irrefreável – o binômio capital/mercado, tal como denunciado por Marx.

PALAVRAS-CHAVE: Alienação; Literatura Fantástica; Marxismo; Realismo.

ABSTRACT

The article aims to portray how José Saramago's novel Essay on blindness can significantly illustrate Marx's critique of the specific sociability of capitalism, as well as its corresponding procedure for the formation of subjectivities, condensed in the concept of alienation or estrangement (Entfremdung). In general, from an analysis about the relevance of the approximation of Saramago's fantastic narrative with the aesthetic realism advocated by Marx, the purpose is to advance in how that novel literarily captures the meaning of some basic features of the Marxian concept of estrangement. Particularly, how this socio-historical phenomenon, such as blindness in Saramago, represents a process of dehumanization, of violent obtuseness of the senses and existential nihilism, resulting from the imperative of struggle for survival imposed on individuals under the aegis of capital. If this hypothesis is valid, the disease that mobilizes the novel could be apprehended as a fantastic artistic metaphor for a society entirely dominated by an irrepressible autonomous power - the capital / market binomial, as denounced by Marx.

KEY-WORDS: Alienation; Fantastic Literature; Marxism; Realism.

 

Publicado em 1995, Ensaio sobre a cegueira figura entre os mais importantes romances do escritor português, Nobel de Literatura, José Saramago. À parte sua relevância estética, cuja valoração extrapola as pretensões deste texto, Ensaio sobre a cegueira é também uma obra eivada de profundas questões filosóficas. A mais evidente, por óbvio, é aquela que serve de pano de fundo do romance, qual seja, a do jogo dicotômico entre visão e sua ausência, luz e escuridão – pares conceituais elementares do repertório da filosofia ocidental pelo menos desde Platão. Porém, o romance todo é ainda temperado por reflexões existenciais típicas, como a morte, a religiosidade, a existência de Deus e o sentido da vida; por ponderações éticas acerca da natureza humana e de nossas ações; e, ainda, por discussões políticas tais como a legitimidade do poder, a dominação, o machismo e a violência contra a mulher.

Apenas este elenco justificaria uma apreciação filosófica do referido romance. Contudo, enxergamos nele também, ainda que de modo subterrâneo, uma expressão literária significativa da crítica de Marx à sociabilidade específica do capitalismo, bem como a seu correspondente procedimento de formação de subjetividades, condensado no conceito de alienação ou estranhamento (Entfremdung) [1].

Nesse sentido, tendo em mente a impossibilidade de uma investigação exaustiva no espaço de um artigo, nosso propósito aqui é perscrutar como o romance de Saramago capta literariamente o sentido de alguns traços basilares do conceito marxiano de estranhamento, particularmente, como este fenômeno sócio-histórico, tal como a cegueira no romance, representa um movimento de desumanização, de violento embrutecimento dos sentidos e de niilismo existencial, decorrentes imperativo de luta pela sobrevivência imposto aos indivíduos pelo capital[2].

Se essa hipótese é válida, a patologia que mobiliza o romance poderia ser apreendida como uma metáfora artística fantástica de uma sociedade inteiramente dominada por uma potência autônoma irrefreável – o binômio capital/mercado que, mediando objetivamente a vida de todos os indivíduos, impõe-se de modo irresistível e fulgurante. Logo, ensejando uma sociedade tornada cega para si mesma, incapaz de enxergar sua própria falta de visão, isto é, “o caráter desumanizado e desumanizante” das relações que a sustentam (cf. LUKÁCS, 2003, p. 209), tal como Marx denunciara. Numa palavra, uma sociedade estranha ou alienada de si mesma.

 

I

 

Ensaio sobre a cegueira narra a história fictícia de uma localidade na qual as pessoas repentinamente tornam-se vítimas de contágio por uma inusitada “epidemia de cegueira” – não menos inusitado, uma cegueira “branca”, causada por um excesso de luz: uma “brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis” (SARAMAGO, 2002, p. 16 – grifos nossos). Pouco a pouco, os infelizes acometidos pelo mal súbito e inexplicável são isolados pelo poder público e postos em quarentena, confinados no prédio de um antigo manicômio. Praticamente abandonados à própria sorte, porém, os cegos encontram-se constrangidos a encontrar meios para sobreviver diante da inoperância do Estado, supostamente responsável por lhes garantir alimentos e os cuidados mínimos enquanto padecem ou enquanto a cura não vem[3].

Como se nota, a cegueira descrita por Saramago distingue-se fortemente do habitual. Primeiro, porque se trata de uma cegueira “contagiosa”, isto é, que se capilariza de modo “pandêmico”. Depois, porque igualmente distinta da compreensão usual, os cegos, como dito, não se encontram mergulhados em trevas: “Para estes, a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa” (SARAMAGO, 2002, p. 94).

Ora, essa “glória luminosa” não apenas embaralha a impressão sobre o que é estar cego, como, rigorosamente falando, é apresentada por Saramago como fruto de um excesso, internalizado a contragosto (ninguém adoeceu por vontade própria, e a única personagem que o desejava em algum momento, a mulher do médico, foi precisamente a única a manter-se enxergando): “já tinham uma luz dentro das cabeças, tão forte que os cegara” (SARAMAGO, 2002, p. 240). Por isso, como destacado na citação acima, o mundo aqui aparece como “duplamente invisível”.

Em face dessa ideia central, nota-se que o Ensaio caracteriza-se por uma narrativa de tipo fantástica (cf. TEIXEIRA, 1999, p. 144). O que a distingue de outros gêneros literários, com efeito, é que aqui o escritor empreende uma crítica ao real através da subversão das leis naturais de seu contexto narrativo, causando hesitação no leitor em relação diante da nova realidade que tem diante dos olhos. Como explica Todorov: “Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, [...] se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar” (TODOROV, 1992, p. 34) [4].

Essa observação é relevante, porque a forma narrativa adotada por Saramago no Ensaio sobre a cegueira poderia impor algumas dificuldades do ponto de vista estético-formal em relação à concepção marxiana de arte, diretamente ligada à valorização do realismo, que é preciso enfrentar. Pois, embora eventualmente eclipsadas pelas longas e profundas análises acerca da economia política ou da história, preocupações estéticas estiveram presentes durante todo o percurso intelectual de Marx e Engels (cf. MARX e ENGELS, 1974) [5]. Do ponto de vista literário, tais preocupações se revelam de modo mais aprofundado no debate epistolar travado com Ferdinand Lassalle, quando da publicação da peça deste último, Franz von Sickingen, em 1859. É a esse debate que vamos recorrer para abalizar essa discussão.

 

II

 

Em Franz von Sickingen, Lassalle aborda o tema da tragédia revolucionária, tendo como cenário a insurreição dos cavaleiros renanos em 1522 e 1523, liderada por von Sickingen, chefe militar e político da nobreza, e pelo teórico humanista Ulrich von Hutten. A ideia motriz da obra é a de que toda revolução possuiria, por assim dizer, um caráter contraditório insuperável entre ideal e ação, isto é, “entre a ideia revolucionária que se pretende realizar e a ação prática que dará vida a essa ideia” (VÁSQUEZ, 2011, p. 119) [6]. O resultado desta contradição, aponta Lassalle, é que toda concretização revolucionária é uma degradação: a consumação dos fins exige a adoção de uma política “realista”, calcada na percepção de que os “fins revolucionários só podem ser alcançados por meios não propriamente revolucionários, isto é, diplomáticos: eis aqui a tragédia de toda revolução, o conflito que sempre a devora” (VÁSQUEZ, 2011, p. 120). Nessa linha, os dois personagens principais da peça operam como porta-vozes dessa concepção trágica da revolução, que sempre se rebaixa a um compromisso – em outras palavras: que sempre fracassa. Hutten é o portador do entusiasmo insurrecional, fiel aos princípios revolucionários, ao passo que Sickingen representa o político astuto, realista ou, como se diria hoje, pragmático.

Não obstante o reconhecimento dos méritos da obra lassalliana, Marx e Engels censuram Lassalle precisamente por conta desse movimento abstrativo, que faz com que os personagens sejam meros reflexos de ideias pré-concebidas, retirados do tempo histórico concreto. Em correspondência de 19 de abril de 1859, por exemplo, Marx assinala, contrariamente à proposta lassalliana: “Sickingen (e, com ele, Hutten, em maior ou menor grau) não sucumbiu por sua esperteza. Ele sucumbiu por ter se sublevado contra o estabelecido ou, antes, contra a nova forma do estabelecido, e por tê-lo feito na condição de cavaleiro e de representante de uma classe em declínio” (MARX apud LUKÁCS, 2016, p. 208). Na leitura marxiana, a luta inglória de Sickingen contra os príncipes, sempre de olhos presos ao passado e à luz da precariedade de suas forças, tornaram-no apenas um “Dom Quixote historicamente justificado”. Para obter sucesso, analisa Marx, “ele teria de apelar diretamente e logo de início às cidades e aos camponeses, isto é, exatamente às classes cujo desenvolvimento = negação da cavalaria” (MARX apud LUKÁCS, 2016, p. 208) [7].

O referido desprezo aos interesses reais das classes em combate, à correlação de forças entre elas, em suma, a adoção de uma perspectiva idealista da revolução, terá repercussões estéticas fundamentais. Não apenas a análise do período histórico teria sido prejudicada, como, no que mais importa aqui, esse idealismo teórico converteu-se também em um idealismo estético. Na já referida epístola, Marx aponta este erro estético capital: “Deverias, então, por tua conta, ter shakespearizado mais, ao passo que ponho na tua conta, como teu equívoco mais significativo, o schillerizar, ou seja, a transformação de indivíduos em meros alto-falantes do espírito da época” (MARX apud LUKÁCS, 2016, p. 206). Ainda em carta ao mesmo Lassalle, datada de 18 de maio de 1859, Engels, por sua vez, explicará:

 

Na minha visão do drama, que insiste em não esquecer o aspecto realista diante do idealista, Shakespeare diante de Schiller, a inclusão das esferas sociais plebeias tão maravilhosamente diversificadas daquela época teria fornecido um material bem diferente para dar vivacidade ao drama, teria proporcionado um pano de fundo impagável para o movimento nacional da nobreza, encenado em primeiro plano no palco, e teria lançado sobre esse movimento a luz apropriada (ENGELS apud LUKÁCS, 2016, p. 217).

 

As referências a Shakespeare e a Schiller não são casuais. Implicam, na verdade, “uma diferente valorização das tradições do drama histórico e uma clara indicação do legado que, segundo Marx, é mais fecundo para a tragédia histórica revolucionária” (VÁSQUEZ, 2011, p. 126). Na visão dos autores, Lassalle se inscreve na tradição do drama histórico alemão representada pelo idealismo de Schiller – uma tradição que perderia a dialética concreta entre universal e particular pela subsunção de personagens ao estatuto de mensageiros do espírito universal, reduzindo o embate histórico a uma luta de ideias.

Por outro lado, Marx e Engels ressaltam que a exigência de um drama histórico realista, como pretendia Lassalle, seria mais bem encontrada no caráter vivo das personagens de Shakespeare, nos quais não importam apenas as ideias, mas também as paixões e interesses que se abrigam por atrás delas. Engels, nesse sentido, defende que “uma pessoa não se caracteriza apenas pelo que faz, mas também por como ela o faz; e nesse aspecto, creio que não teria prejudicado em nada o conteúdo ideal do drama se alguns personagens tivessem sido diferenciados uns dos outros de modo mais antagônico” (ENGELS apud LUKÁCS, 2016, p. 215-216).

Como mencionado anteriormente, a visão literária acima poderia conduzir a um impasse no diálogo proposto por este artigo. Para Marx e Engels, o privilégio ao realismo se baseia na concepção de que a arte é um tipo de atividade ou trabalho humano que, assim como o trabalho material produtivo, serve (também) a nosso autoconhecimento. Naturalmente, esse autoconhecimento não se confunde com o conhecimento de tipo científico (cf. KONDER, 2009, p. 163-164), baseado em conceitos e leis universais, porquanto a obra de arte só pode exprimir o universal através de sua singularidade. Tampouco, se limita ao exercício de mímesis do real, pois em sua própria forma, a atividade artística prefigura necessariamente um trabalho de criação, o que é o mesmo que dizer, ela confere sentido humano àquilo que pretende revelar.

De fato, nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx atestava que “assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem, assim como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, é nenhum objeto, pois o meu objeto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais” (MARX, 2004, p. 110). Desde essa perspectiva, aponta Leandro Konder,

 

podemos fizer que as fugas e cantatas de Bach, o Requiem de Mozart e os quartetos de Beethoven, por exemplo, trouxeram aos homens um conhecimento mais aprofundado das potencialidades de seus respectivos ouvidos e, com isso, contribuíram para o desenvolvimento de uma audição especificamente humana. [...]. Na literatura, os elementos sensíveis se apresentam mais permeados de elementos intelectuais e conceituais, mas o fenômeno é o mesmo: cada grande escritor, cada grande livro acrescenta alguma coisa ao autoconhecimento do homem e permite á humanidade avançar um pouco mais no sentido da humanização do mundo (KONDER, 2009, p. 162).

 

Isso posto, importa questionar: poderia uma narrativa de tipo fantástico, como o Ensaio sobre a cegueira, cumprir as exigências de uma obra realista, tal como defendem Marx e Engels? Isto é, a aproximação que pretendemos esboçar pode ser esteticamente justificada, inclusive conforme a concepção de autoconhecimento e “humanização do mundo” inerente ao fazer artístico? Dito de outro modo, qual o alcance estético da concepção de realismo de Marx?

 

III

 

Os imprescindíveis questionamentos elencados acima exigem uma digressão um pouco mais demorada. Não por acaso, o debate filosófico sobre o estatuto do realismo talvez seja o mais importante travado no interior do marxismo, no que diz respeito à arte, ao longo do século XX. Lukács, por exemplo – sem dúvida um dos autores que mais se dedicou ao exame da estética de um ponto de vista marxista coerente –, afirmaria a esse respeito:

 

pela aplicação do materialismo dialético aos problemas literários, [Engels] e Marx descobriram e elaboraram a linha de desenvolvimento proletário da literatura, levada adiante depois deles pelos seus grandes discípulos Lenin e Stalin, que a defenderam contra toda deformação e distorção oportunistas, aprimorando-a e concretizando-a. A luta de Engels por um grande realismo – enriquecida pelo trabalho teórico leninista – é levada adiante e concretizada no período do proletariado já vitorioso, da construção socialista, pela palavra de ordem stalinista do “realismo socialista” (LUKÁCS, 2016, p. 96).

 

Como se nota, à parte as referências sabidamente de ocasião a Stalin, Lukács assimila toda grande arte ao realismo, na medida em que se compreende esse realismo como “reflexo” (estético, não científico) da realidade (cf. VÁSQUEZ, 2011, p. 37). Assim, por exemplo, o estabelecimento do realismo como régua de valoração estética levaria o filósofo húngaro, na década de 1930, a enxergar com extrema desconfiança as vanguardas artísticas do século passado, sobretudo na medida em que se valiam de símbolos, alegorias, ou recorriam a aspectos oníricos e surreais em seu conteúdo. Manifestações pequeno-burguesas de um período de crise do capitalismo, na visão de Lukács, aquelas vanguardas se distanciariam do realismo em favor do irracionalismo e de um extremo subjetivismo concentrado na figura do artista, carregando, do ponto de vista estético, os mesmos traços da decadência burguesa que, mais tarde, o autor enxergaria filosoficamente em correntes como o existencialismo de Sartre:

 

Quando a literatura decadente passa a eliminar da estética literária, com intensidade crescente a ação, a fábula, por considerá-la “antiquada”, isso é uma autodefesa das tendências decadentes. Pois a configuração de uma fábula, de uma ação efetiva, inevitavelmente leva a testar os sentimentos e vivências no mundo exterior, a ponderá-los em sua interação viva com a realidade social e a considerá-los leves ou pesados, autênticos ou inautênticos, ao passo que a introspecção psicológica ou surrealista dos decadentes (pouco importa se se trata de Bourget ou de Joyce) oferece à superficialidade da vida interior um espaço de manobra que nada pode limitar ou criticar (LUKÁCS, 2016, p. 133).

 

Assim, por exemplo, em face da maior e mais importante vanguarda do século XX, o surrealismo (cuja influência, diga-se, poderá se fazer sentir indiretamente nas formas de narrativa fantástica), Lukács argumentava:

 

quando a sociedade extingue o amor à vida [traço marcante da sociedade burguesa industrializada – V.S.], a arte se toma autônoma em relação à vida de um modo funesto; arte e vida se separam e se confrontam de maneira hostil. A autonomia é a atmosfera indispensável para a existência da arte. No entanto, há autonomia e “autonomia”. Uma é um momento da vida, o aumento de sua riqueza e a intensificação de sua unidade cheia de contradições; a outra é um enrijecer, um estéril fechamento em si mesma, um isolar-se do contexto global dinâmico (LUKÁCS, 2016, p. 180) [8].

 

Se o realismo retrata o mundo, as formas de “arte decadente”, expressas pelo modernismo “subjetivista”, ligam-se “ao ‘idealismo subjetivo’ em filosofia, ou pior ainda, ao seu filho bastardo: o intuicionismo romântico. É ele o correlativo artístico daquela queda progressiva no desespero, cujas estações são assinaladas pelos nomes de Schelling, Kierkegaard, Nietzsche e Dostoievski” (LICHTHEIM, 1973, p. 102). Ao deslocar o centro de gravidade estético para a subjetividade do artista, movimentos tais como o surrealismo, tanto quando Schiller e os românticos, assumiriam “uma atitude ‘aristocrática’ que reservava a percepção da verdade para uma elite auto-instituída” (LICHTHEIM, 1973, p. 102). Logo, a despeito da intenção (inclusive política) dos artistas, o surrealismo e as demais vanguardas europeias, teria ajudado, “em termos objetivos [...], a burguesia em sua luta contra o realismo autêntico” (LUKÁCS, 2016, p. 155), ao se somarem a forças do irracionalismo, do subjetivismo e do misticismo.

Posição antagônica a de por Lukács será adotada por nomes como Walter Benjamin. A despeito da crítica de “falta de dialética” aos surrealistas, o filósofo alemão reforçará constantemente o caráter revolucionário – estético, mas também político – daquele movimento. Por exemplo, no surrealismo, assinala Benjamin, “o campo da literatura [é] rompido de dentro para fora, pela prática da ‘vida literária’”, através de uma concepção radical de liberdade que “empenha-se em conquistar as forças do êxtase para a revolução” (BENJAMIN, 1983, p. 83).

Não por acaso, o grupo de Breton, Éluard e Aragon era visto com extrema antipatia pelos círculos burgueses:

 

Desde Bakunin, observa Benjamin, não existiu na Europa um conceito radical de liberdade. Os surrealistas, entretanto, o cultivam. São os primeiros a acabar com o esclerosado ideal de liberdade, liberal, moral e humanista [o que] por sua vez, lhes prova “que a luta de libertação da humanidade na sua forma revolucionária mais simples (que é, afinal, a libertação em todos os sentidos) é a única causa digna de ser vivida” [9] (BENJAMIN, 1983, p. 83).

 

Contudo, ao contrário do que a leitura lukácsiana sugere, para Benjamin, aquele êxtase não se confunde com qualquer tipo de apelo ao misticismo ou ao irracionalismo (cf. LÖWY, 2018, p. 39). No caso dos surrealistas, as “experiências mágicas”, as “iluminações”, o “acaso objetivo” e mesmo o método da “escrita automática”, servem a um reencantamento do mundo: a redescoberta do poder da liberdade, do sonho e da imaginação para além de uma realidade totalmente reificada, desencantada (como tão bem investigou o próprio Lukács em História e consciência de classe, sob auspiciosa influência da sociologia de Max Weber).

Mais ainda, Benjamin acreditava ter “encontrado no surrealismo elementos que o permitiriam pensar a história de modo mais concreto” (ROCHLITZ, 1996, p. 129). Com efeito, um romance como Nadja revela, aos olhos do filósofo, que o surrealismo foi o primeiro a se dar conta das energias revolucionárias, contidas naquilo que é “obsoleto”, nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas fotografias mais antigas, nos objetos que começam a desaparecer de circulação, nos pianos de cauda, nos vestidos de cinco anos atrás, nos locais mundanos de reunião, quando a moda principia a considerá-los ultrapassados (BENJAMIN, 1983, p. 78).

De fato, antes desses “videntes”, complementa Benjamin, “ninguém percebeu até que ponto a miséria, não apenas a miséria social, mas da mesma forma a arquitetônica, a miséria dos interiores, as coisas escravizadas ou escravizantes são capazes de se transformar em niilismo revolucionário” (BENJAMIN, 1983, p. 78) [10].

Como se nota, enquanto Benjamin se abre às possibilidades revolucionárias de manifestações artísticas que, em um primeiro momento, parecem tensionar o realismo, a estética lukácsiana, “ao erigir em critério de valor as condições que só o realismo pode satisfazer, converte-se numa estética fechada e normativa” (VÁSQUEZ, 2011, p. 37).

 

IV

 

A nosso ver, sem jamais desprezar a importância essencial de Lukács para o desenvolvimento da estética marxista no último século, o entendimento benjaminiano parece mais adequado a uma posição que pretende evitar os riscos de dissolução da arte em um movimento de transposição mecânica, ainda que esteticamente formatada, do real para o plano artístico. Se retomarmos a censura de Marx e Engels ao idealismo schilleriano adotado por Lassalle, cumpre lembrar que, em termos estéticos, ela se assenta no fato de que as personagens de Sickingen parecem pouco reais porque pouco diferenciados entre si, como dizia Engels. Ou seja, porque não carregam as contradições inerentes aos dramas humanos, não apenas coletivos, mas individuais. Isso é o que tornava a tragédia shakespeariana mais rica, mais realista, “mais humana” (cf. TROTSKY, 1969, p. 206) [11].

Trotsky pode ainda auxiliar no entendimento de que, em uma leitura coerente com a posição de Marx – e, porque não, do próprio Benjamin –, o realismo se aplica filosoficamente a toda arte com,

 

Certo interesse, não sem importância, por tudo o que diz respeito ao mundo, pela vida tal como é. Longe de fugir da realidade elas a aceitam, na sua estabilidade concreta ou na sua variabilidade. Esforçam-se para pintar a vida tal como é ou para fazê-la o ápice da criação artística, seja para justificá-la ou para condená-la, seja para fotografá-la, generalizá-la ou simbolizá-la (TROTSKY, 1969, p. 200-201 – grifos nossos).

 

A nosso ver, a definição do revolucionário russo, em compatibilidade com os apontamentos de Benjamin, autoriza alargar o realismo de tipo marxista como um realismo ampliado, no qual o recurso a elementos fantásticos ou a liberação da imaginação rumo ao surreal, tanto quanto a gravidade posta em aspectos subjetivos e psíquicos, poderiam coexistir pacificamente com a aderência ao concreto que o realismo demanda, na medida em que também exprimem aspectos da “vida tal como ela é”. Por isso, autores como Goethe, Pushkin e Dostoievski, além do próprio Shakespeare, não obstante seus recursos estéticos que, tomando a risca a leitura de lukácsiana, poderiam afastá-los de uma concepção estritamente realista, “não-subjetivista” e plenamente “racional”, fornecem, através de sua arte, “a imagem mais complexa da personalidade, de suas paixões e sentimentos, uma percepção mais nítida de seu subconsciente etc.” (TROTSKY, 1969, p. 192). Na mesma direção também se encaminha Ernst Fischer, notável pesquisador da estética marxista, para quem a “rotina estúpida da vida cotidiana, elevada ao nível de sátira fantástica por Gogol ou Kafka, nos revela mais acerca da realidade do que as descrições naturalistas” (FISCHER, 1983, p. 123). Em última instância, é a grandeza do trabalho do artista que, afinal, tornará ou não essa conjunção relevante enquanto possibilidade de autoconhecimento e humanização do mundo via obra de arte.

A perspectiva aqui esboçada de realismo ampliado se coaduna ainda com a posição de Irène Barrière, para quem o recurso ao insólito, no gênero literário fantástico, nunca se dá sem aderência ao real. Na verdade, ele é sempre dúbio, porquanto “representa o possível desejo livre, ao mesmo tempo em que o inscreve na lei. Narração sempre dupla, o fantástico instaura o estranho para melhor efetuar sua censura” (BARRIÈRE. In: ALAZRAKI et al., 2001, p. 86). Quer dizer, o fantástico não se assimila pura e simplesmente ao irracional (cf. BARRIÈRE. In: ALAZRAKI et al., 2001, p. 103); tampouco, a alegoria representa um descolamento irracionalista e subjetivista, uma simples fantasmagoria. Pelo contrário, o fantástico,

 

nasce do diálogo do sujeito com suas próprias crenças e suas inconsequências. Símbolo de um questionamento cultural, governa formas de narração particulares, sempre ligadas aos elementos e ao argumento das discussões – fechadas historicamente – sobre o estatuto do sujeito e do real. Não contradiz as leis do realismo literário, mas mostra que essas leis se convertem nas leis de um irrealismo quando o presente é visto como problemático (BARRIÈRE. In: ALAZRAKI et al., 2001, p. 86) [12].

 

Em face dessa discussão, torna-se legítimo enquadrar uma obra como Ensaio sobre a cegueira dentro dos referenciais acima destacados, sem que isso conduza a algum tipo de fetichização estética, respeitando o caráter multifacetado e contraditório do real (isto é, sua dialética), como o drama do indivíduo vivo, tanto em sua dimensão psíquica, inclusive inconsciente, como em sua posição no bojo das relações sociais às quais está submetido, tal como Marx e Engels propunham.

 

V

 

Feita esta longa, conquanto indispensável digressão estética, é possível prosseguir. Recuperando a trama do Ensaio, nota-se que, uma vez iniciado o bizarro surto de cegueira, toda a vida dos doentes, então, passa a ser determinada por essa força estranha, este mal que, uma vez instalado, parece insuperável. Tudo aquilo que eram antes da patologia será perdido. Não por acaso, toda narrativa é construída sem qualquer menção aos nomes das personagens, tão somente identificados por caracteres contingentes do enredo: o primeiro cego, o médico, a mulher do médico, a rapariga de óculos escuros, o rapazinho estrábico etc. “Os cegos não precisam de nome, eu sou esta voz que tenho, o resto não é importante” (SARAMAGO, 2002, p. 276).

Aquilo que eram antes da internação, de fato, não tem mais qualquer importância dentro do confinamento: “Ó doutorzinho, rosnou o ladrão, olhe que aqui somos todos iguais, a mim o senhor não me dá ordens” (SARAMAGO, 2002, p. 55), exclama um dos primeiros personagens a ser acometido pelo mal súbito ao médico – uma reconhecida autoridade sanitária no mundo pré-cegueira. Uma nova identidade é ali construída, mediada por este fenômeno externo, contingente, mas forte o suficiente para igualá-los impositivamente nessa situação de padecimento.

Ora, essa determinação por uma força alheia, exterior e irresistível, aproxima-se notoriamente da forma como Marx descreve os mecanismos da sociabilidade capitalista, particularmente, como esse modo de vida (Lebensweise) [13] impõe-se de modo a segregar completamente o indivíduo do mundo (que ele mesmo ajuda a criar, no caso de Marx) – ou seja, se caracteriza por um processo de estranhamento ou alienação.

De modo não exaustivo, o capitalismo pode ser brevemente definido, na esteira de Marx, como um sistema de mercantilização universal porque, diferentemente de outras formações sociais, torna todo e qualquer produto do trabalho humano um bem para ser trocado, negociado na esfera da circulação (mercado), por um valor expresso monetariamente.

Inicialmente, convém observar, trabalho diz respeito a todo processo de exteriorização (Entäusserung) de si do ser humano no mundo, e de apropriação dessa mesma objetivação (Vergegenständlichung). Trata-se da própria relação metabólica que o ser humano, enquanto ser de necessidades e carências, desejos e pulsões, ser objetivo, corpo, estabelece com a natureza a fim de satisfazê-las. Nesse metabolismo (Stoffwechsel), o trabalho modifica a natureza, tanto quanto o próprio agente humano – criando modos de vida, criando culturas.

 

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX e ENGELS, 1991, p. 27-28).

 

De acordo com Marx, o trabalho assalariado – a forma paradigmática do trabalho estranhado contemporâneo (o mesmo vale para o trabalho precarizado que hoje prolifera nos grandes centros) – é a subversão, a patologização histórica desse caráter positivo e humanizante, do trabalho, agora reduzido a uma atividade produtora de mercadorias – ou seja, objetos destinados prioritariamente à troca mercantil, à produção de valor, e não à satisfação e à realização das necessidades, desejos e aspirações humanas[14].

Marx sustenta que esse processo de transmutação do caráter do trabalho resulta de um processo social objetivo de abstração, de posição da generalidade biológica sobre a concretude dos indivíduos e seus trabalhos singulares (cf. FAUSTO, 2015, p. 130-131), logo, de esvaziamento da própria subjetividade. Na lógica capitalista, o trabalho concreto é calculado pela homogeneidade do tempo a ele dispendido. Assim, o valor de uma mercadoria, seu valor de troca, “é determinado pela quantidade de trabalho despendido durante sua produção [...]. O trabalho [...] o qual constitui a substância dos valores, é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho do homem” (MARX, 1988, p. 47). É, em suma, um trabalho abstrato, que “aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho, [como] trabalho humano geral” (MARX, 1999, p. 60).

Há aqui, portanto, um procedimento abstrativo que denota uma inversão do próprio sentido do trabalho, inversão essa que é típica do estranhamento: de atividade criadora e humanizante por excelência, “o trabalho mesmo se torna um objeto” (MARX, 2004, p. 81), e a força de trabalho converte-se em mercadoria. Ou seja, torna-se simples meio para obtenção de dinheiro e, consequentemente, aquisição dos produtos necessários, primeiramente, à mera conservação do corpo orgânico[15].

Esse é o cerne do que Marx qualifica como estranhamento: um processo de cisão social generalizada e de inversão de meios e fins. Clivagem entre indivíduos e suas relações sociais, entre os seres humanos e os meios pelos quais produzem e reproduzem sua vida material e espiritual, transmutando completamente sua finalidade última, entre o humano, sua espécie e a própria natureza. Nesse sentido, Marx explica que a captura da sociedade pela lógica do capital aparta os trabalhadores dos produtos de seu próprio labor, dos meios de trabalhar (os meios de produção) e, por conseguinte, também do caráter social de sua vida e de uma relação de reconhecimento pleno dos demais indivíduos. Aparta-os, numa palavra, das possibilidades de uma humanização plena, rica em determinações, constrangendo-os a seu “ser-trabalhador”, à racionalidade do cálculo econômico frio e abstrato, cujo fim “só pode ser o enriquecimento, i.e., a expansão, o aumento de si mesmo [do capital]” (MARX, 2011, p. 210).

Nesta conjuntura, o mercado, esfera de realização da troca dos produtos do trabalho por meio do dinheiro, portanto, de realização do capital, torna-se o denominador comum de uma vida na qual “a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX. 2004, p. 80). O excesso de luz da cegueira desenhada por Saramago é o correlato metafórico-fantástico da capilaridade mercantil dominante em nossa era, e de seu processo ardiloso de desumanização[16], que se inicia pelo desvirtuamento do trabalho e se consagra pelo “excesso de civilização” que a burguesia impõe ao mundo ao plasmar “um mundo à sua imagem” (MARX e ENGELS, 2001, p. 31). O sistema totalizante do capital é o manicômio fantástico do romance.

 

VI

 

Assim, do ponto de vista de suas implicações subjetivas, que mais interessa aqui, o estranhamento materializa-se pela mediação de uma esfera determinante para a formação das subjetividades necessárias ao funcionamento desse modo de produção: o mercado. Em um primeiro momento, o mercado é o locus no qual cada indivíduo aparece[17] como igual a todos os outros enquanto proprietário de algo: da própria força de trabalho, do dinheiro/capital, ou dos meios de produção. Contudo, essa igualdade unilateralmente determinada, formal, opera duas cisões fundamentais. Primeiro, que as relações interindividuais entre os proprietários não são (mais) diretas, relações entre pessoas, mas ocorrem pela mediação das coisas, do “objeto” que possuem e que será negociado no mercado. As relações são reificadas (cf. MARX, 1988, p. 75).

Segundo, que essa clivagem entre os indivíduos e suas próprias relações é também internalizada na conexão do indivíduo consigo mesmo. Para aparecer como proprietário na sociabilidade mercantil, o indivíduo é abstraído das qualidades concretas de seu ser, de sua personalidade, desejos e necessidades próprias e singulares. Opera-se uma verdadeira dicotomia entre seu ser e seu fazer (cf. FISCHBACH, 2009, p. 170-1). O indivíduo produzido pelo modo de produção capitalista é um indivíduo abstrato, tal como os cegos sem nome de Saramago, que tinham se tornado “simples contornos sem sexo, manchas imprecisas, sombras a perderem-se na sombra” (SARAMAGO, 2002, p. 260).

Para Marx, o efeito mais nocivo desse processo de abstração objetiva (enquanto um agenciamento social), ou despersonalização, é reduzir o trabalhador a seu estatuto animal mais imediato: um ser vivo cuja existência é devorada pela necessidade física de sobreviver. Constrangido a regras e determinações alheias a sua vontade, às quais se vê forçado a obedecer em face de sua urgência vital, sua existência converte-se em um existir-para-o-mercado, que a todos iguala abstratamente – isto é, como “fantasmas” [18] ou “homens apagados” (cf. MARX, 2009, p. 67-8), formatados por uma “subjetividade às avessas” (cf. ALVES, 2012, p. 120).

De fato, essa última dimensão da sociabilidade tipicamente mercantil é a que aparece de modo mais fulgurante no Ensaio sobre a cegueira. Tal como no mercado capitalista, a doença esvaziou todos os indivíduos, despersonalizou-os, limitando-os a corpos em busca de sobrevivência, a proprietários de nada, senão de si mesmos: “nós, os cegos, por assim dizer, não temos praticamente nada a que possamos chamar de nosso, a não ser o que levamos no corpo” (SARAMAGO, 2002, p. 216).

A narrativa de Saramago, nesse sentido, desenlaça um notório processo de homogeneização, de abstração, no sentido marxiano aludido anteriormente. É verdade que, diante da aludida brutalização, alguns tentam resistir, como o velho do rádio, que busca salvar um vínculo com o mundo exterior perdido, sentir-se parte dele, a partir da audiência do noticiário. Também a rapariga de óculos escuros, que pede ao dono do rádio, sem sucesso diante da necessidade de economia das pilhas, para eventualmente ouvirem música, resgatando um pouco de sua identidade e de sua humanidade[19]. Implacável, porém, tal como a mercantilização universal capitalista, o processo de internamento terminará por finalmente limitá-los àquela determinação mais natural, de animais na expectativa de sua próxima refeição, desmanchando toda e qualquer outra determinação que antes parecia sólida em seu denso ar luminoso.

Na aurora da modernidade, Shakespeare, pela boca de Hamlet, antecipava o sentido da contraditória desumanização dos novos tempos: “O que é um homem, se seu mais alto bem e seu uso do tempo é dormir e comer? Um bicho, apenas isso” (SHEAKESPEARE, 2015, p. 151, Ato IV, Cena IV). Bichos: é nisso que se convertem os cegos da novela de Saramago, bestas cujo horizonte existencial restringe-se à preservação vital iminente. Assim, quando, diante da chantagem dos ladrões de comida, por exemplo, o primeiro cego recusa-se a aceitar que sua mulher se entregue ao estupro daqueles, lembra que “a dignidade não tem preço” e “que uma pessoa começa por ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida” (SARAMAGO, 2002, p. 167). Contudo, logo é retrucado pelo pragmático realismo do médico, que “perguntou-lhe então que sentido da vida via ele na situação em que todos ali se encontravam, famintos, cobertos de porcaria até às orelhas, roídos de piolhos, comidos de percevejos, espicaçados de pulgas (SARAMAGO, 2002, p. 167).

Não é outro o sentido – ou falta dele, isto é, da possibilidade de construí-lo significativamente – que o estranhamento capitalista, na visão de Marx, prepara impiedosa e contraditoriamente para a maior parte dos indivíduos: “as lágrimas que sentido têm quando o mundo perdeu todo o sentido” (SARAMAGO, 2002, p. 238), indaga Saramago.

Refreando a riqueza da vida humana e de seus múltiplos processos aculturação, à dimensão biológica imediata, em nome da expansão ilimitada da “riqueza abstrata” apropriada por uns poucos, o modo de produção capitalista determina a formatação de uma sensibilidade truncada, mutilada, amparada por um limiar existencial rigidamente estreitado pelo imperativo da acumulação e da possibilidade de desenvolvimento e realização pessoal apenas para alguns.

 

Em parte, este estranhamento se mostra na medida em que produz, por um lado, o refinamento das carências e dos seus meios; por outro, a degradação brutal, a completa simplicidade rude abstrata da carência [...]. Mesmo a carência de ar livre deixa de ser, para o trabalhador, carência; o homem retorna à caverna, que está agora, porém, infectada pelo mefítico [ar] pestilento da civilização, e que ele habita apenas muito precariamente, como um poder estranho que diariamente se lhe subtrai, do qual ele pode ser diariamente expulso, se não pagar. [...]. Luz, ar etc., a mais elementar limpeza animal cessam de ser, para o homem, uma carência. A imundície, esta corrupção, apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto (isto compreendido à risca) da civilização torna-se para ele um elemento vital. O completo abandono não natural, a natureza apodrecida, tornam-se seu elemento vital. Nenhum de seus sentidos existe mais, não apenas em seu modo humano, mas também num modo não humano, por isto mesmo nem sequer num modo animal. [...] [Isto quer dizer] não apenas que o homem deixa de ter quaisquer carências humanas, [mas que] mesmo as carências animais desaparecem. O irlandês apenas conhece a carência do comer e efetivamente [conhece a necessidade] do comer batatas e, naturalmente, apenas batatas Lumper, a pior espécie de batatas (MARX, 2004, p. 140).

 

Aliás, o padecimento aludido por Marx, nessas e em diversas outras passagens de sua obra, é intensamente retratado por Saramago. Na medida em que a narrativa avança, o aprofundamento da doença enquanto determinante exclusivo daquelas vidas modifica as sensibilidades, os valores e expectativas de modo inevitável – e apavorante.

Lembremos que, no momento em que já se encontravam fora do manicômio, e o grupo protagonista da narrativa se depara com alguns alimentos velhos, Saramago reforça como qualquer sentido prévio de olfato e paladar tinha sido pervertido pela imperiosa necessidade de comer: “Nem tudo cheirava ao que continha, mas o perfume de uma bucha de pão duro já seria, falando elevadamente, a própria essência da vida” (SARAMAGO, 2002, p. 227). A mulher do médico sintetiza o sentido da citação de Marx acima destacada: “uma pessoa se habitua a tudo, sobretudo se já deixou de ser pessoa” (SARAMAGO, 2002, p. 218).

Não surpreende, portanto, que, para alguns dos internos, mesmo a situação degradante do manicômio comece a aparecer como vantajosa depois de algum tempo, dado o deflacionamento forçado de suas perspectivas de vida e o conformismo decorrente da impotência em alterar aquela situação: “Que isto, meus senhores, é comer e dormir. Bem vistas as coisas, nem se está mal de todo. Desde que a comida não venha a faltar, sem ela é que não se pode viver, é como estar num hotel” (SARAMAGO, 2002, p. 109) [20].

Importa reforçar que, em Marx, uma das consequências mais impactantes do processo de reprodução do Lebensweise capitalista é justamente o da completa perda de sentido para o existir, na medida em que este encontra-se totalmente condicionado aos ditames reificados de reprodução ilimitada do capital. Quer dizer, poucos sintomas subjetivos são mais notáveis de nossa era como o da gratuidade absurda da vida, o niilismo existencial.

Em Salário, preço e lucro, Marx observava que,

 

[um ser humano] cuja vida – afora as interrupções puramente físicas, do sono, das refeições etc. – esteja toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e brutalizada intelectualmente, para produzir riqueza para outrem (MARX, 2010, p. 130).

 

Não é outro o efeito ao qual aludimos aqui. Tal como a cegueira de Saramago, capital e mercado condicionam inteiramente a vida daqueles a cair sob seus auspícios, esvaziando completamente qualquer sentido significativo do existir, roubando o tempo de vida para a expansão do capital alheio e mortificando os espíritos: “E quando é que é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo” (SARAMAGO, 2002, p. 189) [21].

 

VII

 

Como se pode supor, esse panorama de despersonalização, reificação e embrutecimento não se limita à relação com as coisas e com sua própria existência, mas atinge diretamente, e de modo igualmente significativo, a relação entre os próprios indivíduos.

Primeiro, porque a clivagem operada pelo capital cinde irremediavelmente a sociedade em polos antagônicos: os proprietários e os não proprietários dos meios de produção. Nas célebres passagens iniciais do Manifesto comunista (cf. MARX e ENGELS, 2001, p. 23 e ss.), Marx e Engels apontam para o caráter conflituoso entre classes sociais antagônicas que atravessa a história ocidental, culminando na moderna oposição entre burgueses, proprietários dos atuais meios de produção, e proletários, os trabalhadores assalariados, detentores exclusivamente de sua força de trabalho. Esse antagonismo, assinalam os autores, ao mesmo tempo em que ameaça a coesão social necessária à manutenção da ordem capitalista, é fundamentalmente assegurada por uma esfera que, universalmente reconhecida pelos indivíduos como equidistante, pode mobilizar sua força em nome daquele desafio: o Estado.

Ocorre que, observa Marx, embora aparentemente[22] dotado de uma racionalidade própria e autônoma, o Estado moderno absorve e, capturado pela força econômica, tende a dissimular os conflitos de classe, processando-os de modo tal que os pilares do ordenamento capitalista sejam sempre conservados. Inclusive, valendo-se da força e da repressão. Ontogeneticamente, o Estado seria “um comitê que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e ENGELS, 2001, p. 27).

Esse estatuto violento do Estado aparece, no Ensaio, na tensa relação entre cegos e os guardas do manicômio, apresentada na primeira parte do romance. Diante das circunstâncias do confinamento, os guardas tornam-se os responsáveis por controlar a vida e a morte dos presos. São eles que, mediando os confinados com o mundo exterior, devem fornecer os meios mínimos necessários à subsistência, isto é, alimentos, remédios, produtos de higiene. Contudo, esses itens jamais chegam aos doentes de modo satisfatório: a comida vem em porções sempre insuficientes e os itens de saúde nunca são fornecidos – basta recorda o episódio da morte do cego assediador devido à falta de cuidados básicos, que tornou fatal uma ferida na perna, devidamente provocada pela rapariga de óculos escuros diante do assédio sofrido.

Para piorar, qualquer protesto é estéril. Cumprindo ordens e temerosos de um contágio iminente, o comportamento dos soldados é, na melhor das hipóteses, de total indiferença em relação à sorte dos confinados:

 

O motorista ofereceu-se para ir reclamar a comida que faltava, e foi sozinho, não quis companhia, Que não somos cinco, somos onze, gritou para os soldados, e o mesmo sargento respondeu de lá, Descansem, que hão-de ser muitos mais, disse-o num tom que devia ter parecido chocarreiro ao motorista, se tivermos em conta as palavras que este disse quando voltou para a camarata, Era como se estivesse a gozar comigo (SARAMAGO, 2002, p. 71-2).

 

Quando a situação se agrava, no entanto, a resposta é a violência. Em mais de uma oportunidade, a reclamação dos doentes reivindicando aquele mínimo é reprimida a tiros, com uma chacina chegando a ocorrer.

 

A ofuscação produzida pela forte luz do exterior e a transição brusca para a penumbra do átrio impediram-nos, no primeiro momento, de ver o grupo de cegos. Viram-nos logo a seguir. Soltando berros de medo, largaram as caixas no chão e saíram como loucos pela porta fora. Os dois soldados da escolta, que esperavam no patamar, reagiram exemplarmente perante o perigo. Dominando, só Deus sabe como e porquê, um legítimo medo, avançaram até ao limiar da porta e despejaram os carregadores. Os cegos começaram a cair uns sobre os outros, caindo recebiam ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição, foi tudo tão incrivelmente lento, um corpo, outro corpo, parecia que nunca mais acabavam de cair, como às vezes se vê nos filmes e na televisão (SARAMAGO, 2002, p. 88).

 

A repressão, porém, não ocorre quando, dentre os próprios internos, um grupo decide roubar a comida dos demais. Ou seja, quando a desordem vai ao encontro dos interesses dos representantes do Estado.

 

Não faltavam ao quadro os protestos indignados, os gritos furiosos, Exigimos a nossa comida, Reclamamos o direito ao pão, Malandros, O que isto é, é uma grande sacanagem, Parece impossível [...]. Impelida pela esperança absurda de uma autoridade que viesse restaurar no manicómio a paz perdida, fortalecer a justiça, devolver a tranquilidade, uma cega chegou-se conforme pôde à porta principal e gritou para os ares, Ajudem-nos, que estes estão a querer roubar-nos a comida. Os soldados fizeram de conta que não tinham ouvido, as ordens que o sargento recebera de um capitão que por ali havia passado em visita de inspecção eram peremptórias, claríssimas, Se eles se matarem uns aos outros, melhor, menos ficam (SARAMAGO, 2002, p. 139).

 

Como se nota, o ente supostamente dotado de uma racionalidade universal revela, quando importunado, seu “outro lado”. Impotentes diante da força física e simbólica dos guardas, os presos arrefecem sua disposição a ponto de, em determinado momento, sequer perceberem que o prédio no qual estavam já não contava com a vigilância militar, posto que todos os guardas já tinham se contaminado. A conformação já estava internalizada.

 

VIII

 

Se, por um lado, o conflito é inerente à divisão social entre classes antagônicas promovida pelo estranhamento capitalista, por outro, mesmo dentro de cada classe, ele também se faz notar. Assim, a dominação e a luta entre opressores e oprimidos é também interiorizada perante a urgência da vida. Pois, ao mesmo tempo em que iguala objetivamente os indivíduos em uma mesma posição de classe, fragmenta seus laços, colocando-os em concorrência direta, realçando ímpetos egoístas, dificultando, eventualmente inviabilizando, ações coletivas que pudessem superar este cenário.

Não se trata, convém sublinhar, de uma constatação oriunda de algum pessimismo filosófico a priori. Tampouco, uma definição de corte moral acerca da “natureza humana”. Marx observava que não há “essência humana”, mas que aquilo que se poderia definir nesses termos é construída historicamente pelo “conjunto das relações sociais” (cf. MARX e ENGELS, 1991, p. 13). Por isso, o tom das relações inter-humanas está diretamente ligado ao contexto em que as mesmas se desenrolam. “Os cépticos acerca da natureza humana, que são muitos e teimosos, vêm sustentando que se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo que o ajuda muito” (SARAMAGO, 2002, p. 25), reflete Saramago literariamente.

Ocorre que, na visão marxiana, a alienação tensiona o caráter naturalmente gregário, político, do ser humano (cf. MARX, 2011, p. 40), justamente na medida em que o confina à luta por sobrevivência, uma tarefa iminentemente individual. Na sociedade burguesa, nota o filósofo, o ser humano torna-se, de um ponto de vista objetivo, cada vez mais socializado, pois dependente do trabalho de uma multidão de outros indivíduos; contudo, surge igualmente mais apartado de si mesmo e de todos os outros em sua percepção subjetiva.

Esse estranhamento é classificado por Marx como perda da dimensão genérica (ou social) da existência humana. O que está em jogo, aqui, é a invalidação do sentido social, universal, que a ação, o existir, a vida humana possui, na medida em que somos mediados por um mundo comum e coabitado. Contudo, se, de um lado, este mundo nos unifica enquanto gênero, de outro, essa unidade foi obliterada pela “conduta meramente atomística dos homens” (MARX, 1988, p. 71), imposta pela produção privada de tipo capitalista. Consequentemente, pela forma como a individualidade se molda hodiernamente.

Sempre de acordo com Marx, o estranhamento aparta o indivíduo da necessária dimensão coletiva de seu trabalho; logo, de sua própria existência, fundamentalmente porque aquele se tornou apenas meio de conservação mecânica dessa. Isto é, meio de sobrevivência física, tal como na atividade vital dos animais, e não produtor de uma riqueza compartilhada, na qual os seres humanos se veem refletidos como indivíduos sociais que são. Como qualquer outro animal, e por trás de qualquer outra aparência discursiva, no modo de produção capitalista, o ser humano age apenas para preservar-se enquanto organismo – meta que é logicamente individual. Não surpreende que os ideólogos burgueses, notadamente os economistas, ao negligenciar os meandros dessa formação social, incorram sempre em “robisonadas” para explicar as ações econômicas.

Neste cenário de ensimesmamento e reificação das relações, cada indivíduo não é diretamente posto em cooperação com o outro, ainda que, concretamente, seu vínculo de dependência cresça permanentemente pelo aprofundamento da divisão social do trabalho. Pelo contrário, cria-se uma situação de acirramento e embate com todos os demais, uma lei da selva à segunda potência.

 

O que é produto da relação do homem com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem. Em geral, a questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência humana. O estranhamento do homem, em geral toda a relação na qual o homem está diante de si mesmo, é primeiramente efetivado, se expressa, na relação em que o homem está para com o outro homem. Na relação do trabalho estranhado cada homem considera, portanto, o outro segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra como trabalhador (MARX, 2004, p. 86).

 

Em outras palavras, cada um acaba por “medir o outro por sua própria régua” – não por vontade própria, mas por imposição da circunstância na qual está fatalmente inserido. Nasce, aqui, uma base de relações sociais iminentemente conflituosa, atravessada por afetos reciprocamente estranhados. Uma competição permanente, na qual cada um é, acima de tudo, percebido como concorrente ou adversário em uma violenta (física e/ou simbólica) luta por recursos escassos.

Daí a contradição inevitável, fartamente explorada ao longo do romance de Saramago, entre o individual e o coletivo, entre o eu e o outro. Se é verdade que os cegos frequentemente se recordavam que “as vontades, em geral apenas adicionáveis umas às outras, também são muito capazes, em certas circunstâncias, de multiplicar-se entre si, até ao infinito” (SARAMAGO, 2002, p. 161), mediante uma ação coletiva, também poderá sê-lo que, ao menos em nossa era, “ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo” (SARAMAGO, 2002, p. 169).

Destarte, se, por um lado, são muitas as menções à necessidade de solidariedade para que pudessem superar as hostilidades, por outro, o mandatório da fome frequentemente afrouxa esse altruísmo, criando desconfiança, atritos e incompatibilidades constantes (cf., por exemplo, SARAMAGO, 2002, p. 103). O cume dessa contradição se revela na chegada do grupo de cegos malvados, que à força decide roubar comida, estocá-la e vendê-la, inclusive em troca do sacrifício da dignidade das mulheres presas no manicômio[23] – em contraste com a ação conjunta dos oprimidos da primeira camarata que termina por libertá-los de seus algozes e do próprio manicômio.

 

IX

 

É verdade que, essa liberdade ainda é insuficiente – a cegueira persiste, e a vida na cidade é, em certos aspectos, ainda mais cruel que na interação compulsória. O desespero da mulher do médico diante dos mortos no supermercado é aterrador. Mas, ela marca o primeiro movimento em direção ao futuro, ainda que totalmente incerto.

Também é fato que a dominação capitalista parece inquebrantável. Tal como a cegueira do romance português, ela parece frustrar qualquer expectativa acerca de outro modo de vida: “a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (SARAMAGO, 2002, p. 204). Eis aí, inclusive, parte considerável da força do capital e do mercado, segundo a concepção de Marx: a elasticidade com que é capaz de “naturalizar-se” como única forma possível de sociabilidade. Assim, o capital, tanto quanto a patologia, embotam a consciência com seu brilho intenso, tão intenso que é capaz de cegar para qualquer coisa além de si mesmo. Sabiamente dirá o médico, ao final do romance, exprimindo essa contradição: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem (SARAMAGO, 2002, p. 310).

Mas, como nem tudo são espinhos, é possível que a cegueira, do mesmo jeito que chegou sem prévio aviso, um dia também desapareça. István Mészáros lembrava que a “atividade alienada não produz só a ‘consciência alienada’, mas também a ‘consciência de ser alienado’” (MÉSZÁROS, 2010, p. 166). Esse é o sentido da luta política, da luta de classes, no diapasão marxiano[24].

Com efeito, assim como a história humana culminou na dominação capitalista, Marx sugere que a possibilidade de sua superação positiva encontra-se entranhada no seio das próprias contradições emergentes de nosso modo de produção. Por exemplo, alforriados das amarras do capital, o saber acumulado e o desenvolvimento científico, técnico-tecnológico das forças produtivas – o “intelecto geral” ou “cérebro social”, como Marx classifica nos Grundrisse –, permitiriam uma liberação crescente do tempo necessário à produção de bens[25]. Do mesmo modo, poderiam conformar uma diretriz racionalmente orientada, não destrutiva, mas solidária, em nossa relação com o meio ambiente, “uma existência em harmonia com as leis da natureza conhecidas” (ENGELS, 2015, p. 146) e atenta às suas necessidades.

Assim, a forte luz da cegueira jamais foi capaz de apagar completamente os traços de expectativa de uma nova vida.

 

Haverá um governo, disse o primeiro cego, Não creio, mas, no caso de o haver, será um governo de cegos a quererem governar cegos, isto é, o nada a pretender organizar o nada, Então não há futuro, disse o velho da venda preta, Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente, Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse (SARAMAGO, 2002, p. 244).

 

É a esperança no futuro, mesmo frágil e intangível – uma esperança às vezes desesperançosa de si mesma, como sói acontecer com todos, mas ainda resiliente de sua força – que, afinal, alimenta a disposição dos cegos em sobreviver:

 

Enquanto puder, disse a rapariga dos óculos escuros, manterei a esperança, a esperança de vir a encontrar os meus pais, a esperança de que a mãe deste rapaz apareça, Esqueceste-te de falar da esperança de todos, Qual, A de recuperar a vista, Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida (SARAMAGO, 2012, p. 290).

 

A esperança é, em suma, o contraste definitivo com o medo provocado pelos grilhões da morte que sempre se encontram à espreita no caos daquelas vidas[26]: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos,” (SARAMAGO, 2002, p. 131).

Nesse sentido, vale por fim lembrar que o intento marxiano sempre foi o de investigar as engrenagens de funcionamento do modo de produção, mapeando as contradições a partir das quais se tornaria exequível sua superação positiva. “A partir de Marx superou-se o caráter abstrato das utopias; a melhora do mundo acontece como trabalho em e com a correlação dialética das leis do mundo objetivo, com a dialética material de uma história compreendida e conscientemente produzida” (BLOCH, 2006, p. 138). Uma elevação a um nível qualitativamente superior dos meios de emancipação humana que o capital preparou – isto é, de reunificação do ser humano consigo mesmo, com seu gênero e com a natureza, em uma relação de unidade dialética superior[27]. Uma retirada do puro e simples reino da necessidade em favor da construção dialética, política e coletiva, do reino da liberdade, no qual a incontornável finitude da existência humana seria compensada pela possibilidade de construção e desfrute significativo da mesma. Um mundo no qual a produção e a reprodução da vida se regulem pelo princípio: “de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades” (SARAMAGO, 2002, p. 142) [28].

 

Com efeito, o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza das coisas, portanto, é algo que transcende a esfera da produção material propriamente dita. Do mesmo modo como o selvagem precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, também tem de fazê-lo o civilizado – e tem de fazê-lo em todas as formas da sociedade e sob todos os modos possíveis de produção. À medida de seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, porquanto se multiplicam as necessidades; ao mesmo tempo, aumentam as forças produtivas que as satisfazem. Aqui, a liberdade não pode ser mais do que o fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o mínimo emprego de forças possível e sob as condições mais dignas e em conformidade com sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é que tem início o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tendo como base aquele reino da necessidade (MARX, 2017, p. 883).

 

Para Marx, tanto quanto para Saramago, no dia em que “o corpo se encontrar liberto das brutidões egoístas que resultam da simples, porém imperiosa, necessidade de manter-se” (SARAMAGO, 2002, p. 87), há de “[começar] a parecer uma história doutro mundo aquela em que se disse, Estou cego” (SARAMAGO, 2002, p. 310).

 

Referências

 

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[1] Usaremos aqui a tradução de Entfremdung tanto como estranhamento, seguindo a sugestão de Jesus Ranieri (cf. MARX, 2004), quanto, por motivos estilísticos, do consagrado termo alienação. Reservamos ao vocábulo Entäusserung, oposto da Entfremdung no léxico marxiano, a tradução por “exteriorização”.

[2] Não se trata, é verdade, de uma ideia original, embora não tratada de modo filosoficamente mais atento. Para além das simpatias do próprio Saramago em relação ao marxismo, Daniela Vieira, por exemplo, observa: “A cegueira das personagens principais (o primeiro cego, o ladrão, o médico, a rapariga de óculos escuros, o garotinho estrábico, o velho da venda preta) e das secundárias é uma cegueira metafórica, denunciadora do mal-estar representativo de nossa época, tradutora da alienação, do medo, da ignorância e da indiferença que abrem espaço para a barbárie irromper no cotidiano” (VIEIRA, 2009, p. 22). Ver também: TEIXEIRA, 1999.

[3] À semelhança, impossível não notar, do que ocorre com a Covid-19 em nossas terras.

[4] Ou conforme as palavras de Barrière: “O relato fantástico utiliza os marcos sociológicos e as formas do entendimento que definem os domínios do natural e do sobrenatural, do trivial e do estranho, não para inferir alguma certeza metafísica, mas para organizar a confrontação dos elementos de uma civilização relativos aos fenômenos que escapam à economia do real e do ‘surreal’, cuja concepção varia de acordo com as épocas” (BARRIÈRE. In: ALAZRAKI et al., 2001, p. 86). Também cf. TEIXEIRA, 2009, p. 148.

[5] Desde um de seus escritos seminais, por exemplo, os chamados Manuscritos econômico-filosóficos, Marx notava que o trabalho (Arbeit), insígnia da wesentilcher Unterschied do ser humano em relação aos demais seres vivos, não apenas se limitava à esfera produtiva, econômica, porquanto “o homem também forma [...] segundo as leis da beleza” (MARX, 2004, p. 85).

[6] Em anexo à Carta de 6 de março de 1859 endereçada a Marx, na qual o autor envia seu texto para este último, Lassalle se explica: “A força da revolução consiste em seu entusiasmo, nesta fé direta da ideia em sua própria força e em seu caráter ilimitado. Mas o entusiasmo, enquanto certeza direta da onipotência da ideia é, em primeiro lugar, um modo abstrato de ignorar os meios limitados para se chegar a uma realização efetiva, bem como as dificuldades das complicações reais. O entusiasmo deve enfrentar, portanto, as complicações reais e atuar com os meios limitados a fim de alcançar seus objetivos na realidade limitada (LASSALLE apud VÁSQUEZ, 2011, p. 119)”.

[7] Vale destacar que, tanto para Marx, quando nas respostas escritas por Engels, não há conflito revolucionário trágico se neles estão ausentes as forças propriamente revolucionárias – plebeus e camponeses, no caso em questão. Engels dirá em carta dirigida a Lassalle em 18 de maio de 1859: “parece-me que essa preterição do movimento camponês é o ponto pelo qual o senhor se permitiu levar a uma representação em parte equivocada também do movimento nacionalista da nobreza, deixando escapar ao mesmo tempo o elemento realmente trágico do destino de Sickingen. A meu ver, naquela época, a massa da nobreza diretamente ligada ao império nem sequer pensava em firmar uma aliança com os camponeses; sua dependência das receitas auferidas da opressão dos camponeses não o permitia. A possibilidade de uma aliança com as cidades era maior; mas ela tampouco aconteceu, ou aconteceu apenas parcialmente. Contudo, o êxito da revolução nacionalista da nobreza só seria possível mediante um pacto com as cidades e os camponeses, especialmente com estes últimos; e exatamente nisso reside, a meu ver, o momento trágico: que essa condição básica - a aliança com os camponeses - era impossível e que, por conseguinte, a política da nobreza era necessariamente medíocre, que, no mesmo momento em que ela quis se colocar à frente do movimento nacional, a massa da nação, o campesinato, protestou contra sua liderança e, assim, ela tinha de sucumbir” (ENGELS apud LUKÁCS, 2016, p. 217).

[8] Nesse sentido, Lukács indica ainda que, na “reflexão moderna sobre a arte, a relação entre vivência da vida e visão da forma está oculta em uma obscuridade irracional-mística” (LUKÁCS, 2016, p. 181).

[9] A passagem destacada alude a um trecho de Nadja, de André Breton, uma das obras mais importantes da literatura surrealista (cf. BRETON, 2010, p. 143).

[10] Esclarece Rochlitz: “O surrealismo tinha mostrado como a imagem poderia preencher uma função revolucionária, ao apresentar o envelhecimento acelerado das formas modernas através de uma incessante produção do arcaico, o que sintetizava o verdadeiro sentido da vida contemporânea. Pelas ruínas da modernização, ele revelava a urgência de uma virada revolucionária” (ROCHLITZ, 1996, p. 133).

[11] Em Shakespeare, explica Trotsky, “as paixões individuais, tais como o amor, a inveja, a sede de vingança, a avidez e o conflito de consciência, expulsam a fatalidade dos antigos e as paixões da Idade Média” (TROTSKY, 1969, p. 206).

[12] Na mesma linha, segue Todorov: “Vemos então por que a função social e a função literária do sobrenatural são uma mesma coisa: em ambos os casos se trata da transgressão de uma lei. Já seja dentro da vida social ou do relato, a intervenção do elemento sobrenatural constitui sempre uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas e encontra nisso sua justificação” (TODOROV, 1992, p. 174).

[13] Com efeito, ao falar em capitalismo, Marx não se refere apenas a processos ocorridos na esfera econômica strictu sensu, mas a um modo de produção e reprodução da vida humana em todos os seus aspectos ou determinações.  

[14] Com efeito: “Produzir mercadorias não o distingue de outros modos de produção, mas sim o fato de que ser mercadoria constitui o caráter dominante e determinante de seu produto” (MARX, 2017, p. 941). Por isso, o sentido de produção capitalista não é assegurar a satisfação de necessidades do próprio produtor (o conjunto da sociedade); antes, é a troca, a realização do mais-valor ou capital, a “finalidade direta e motivo determinante da produção” (MARX, 2017, p. 942).

[15] Descreve Marx que aquilo que o operário “produz para si próprio não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz para si próprio é o salário” (MARX, 2010, p. 36). Seda, ouro, palácio: tudo é reduzido a uma determinada quantidade de meios para sua subsistência, “talvez a uma roupa de algodão, a umas moedas, a um quarto no porão”, na mesma medida em que o tempo que gasta para tecer, fiar ou construir “representam unicamente o meio de ganhar o dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir ao bar, deitar-se na cama” (MARX, 2010, p. 36).

[16] Em Marx, “a degradação do indivíduo a mero trabalhador, sua subsunção ao trabalho” (MARX, 2011, p. 591), isto é, o esvaziamento de sua concretude a uma determinação particular e abstratamente tratada, faz “a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa. A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme às leis e que se desenrola independentemente da consciência e sem a influência possível de uma atividade humana, ou seja, que sem manifesta como um sistema acabado e fechado” (LUKÁCS, 2003, p. 204).

[17] Aparência em sentido dialético, isto é, como uma manifestação unilateralmente determinada.

[18] “Como está o mundo, tinha perguntado o velho da venda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre o fora e o dentro, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver, E as pessoas, como vão, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vão como fantasmas, ser fantasma deve ser isto, ter a certeza de que a vida existe, porque quatro sentidos o dizem, e não a poder ver” (SARAMAGO, 2002, p. 233).

[19] “A rapariga dos óculos escuros ainda lhe pediu que a deixasse ouvir de vez em quando um bocadinho de música, Só para não perder a lembrança, lembrança, justificou, mas ele foi inflexível, dizia que o importante era saber o que se ia passando lá fora, quem quisesse música que a ouvisse dentro da sua própria cabeça, para alguma coisa boa nos haverá de servir a memória” (SARAMAGO, 2002, p. 149).

[20] “Contentar-se com o que se vai tendo é o mais natural quando se está cego, disse a mulher do médico” (SARAMAGO, 2002, p. 277).

[21] Ou ainda: “Estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes que diga isto doutra maneira, estamos mortos por que estamos cegos, dá no mesmo” (SARAMAGO, 2002, p. 241).

[22] Cf. nota 18.

[23] Arriscamo-nos a dizer que a descrição dessa barbaridade é uma das passagens mais fortes e brilhantes da literatura contemporânea.

[24] Resta evidente, no entanto, que, diferentemente da cegueira, que simplesmente desapareceu, a superação do estranhamento é um processo político conscientemente orientado. Aqui, a aproximação entre Marx e o romance em tela não se realiza.

[25] Marx observa que o capital é responsável pela “criação de muito tempo disponível para além do tempo necessário de trabalho, para a sociedade como um todo e para cada membro dela (i.e., espaço para o desenvolvimento das forças produtivas plenas do indivíduo singular, logo também da sociedade) [...]. [Assim,] a despeito dele mesmo, ele é instrumento na criação dos meios para o tempo social disponível, na redução do tempo de trabalho de toda a sociedade a um mínimo decrescente e, com isso, na transformação do tempo de todos em tempo livre para seu próprio desenvolvimento” (MARX, 2011, p. 590).

[26] Neste ponto, convém recuperar a tese de Ernst Bloch, para quem a esperança, a utopia, “está fundada no impulso humano para a felicidade e dificilmente poderá ser destruída, e com suficiente clareza ela sempre foi um motor da história” (BLOCH, 2005, p. 430).

[27] “Todavia, como aspiração incansável pela forma universal da riqueza, o capital impele o trabalho para além dos limites de sua necessidade natural e cria assim os elementos materiais para o desenvolvimento da rica individualidade, que é tão universal em sua produção quanto em seu consumo, e cujo trabalho, em virtude disso, também não aparece mais como trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria atividade, na qual desapareceu a necessidade natural em sua forma imediata; porque uma necessidade historicamente produzida tomou o lugar da necessidade natural” (MARX, 2011, p. 256).

[28] Essa citação literal de Marx por Saramago, extraída da Crítica ao programa de Gotha, corrobora a perspectiva aqui defendida.