Por um naturalismo moderado?

For a moderate naturalism?

Dr. Saulo Moraes de Assis

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA

E-mail: sauloassis@ifba.edu.br

 

RESUMO

Neste artigo, discutiremos o naturalismo de Alvin Goldman em relação à questão da normatividade da epistemologia. Para isso, revisamos a apresentação que este autor faz do conhecimento e da justificação entendidas sob um enfoque naturalista. Pretende-se entender como Goldman incorpora elementos da epistemologia especulativa tradicional ao seu ponto de vista naturalista. Apresentamos algumas distinções, feitas pelo próprio Goldman, a fim de esclarecer as diferentes abordagens que uma postura naturalista na epistemologia pode ter e discutir sua formulação de um naturalismo moderado. No final, procuramos apresentar algumas fragilidades dessa pretensão para pensar sobre a questão de se um naturalismo moderado é necessário.

PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia Naturalizada, Normatividade, Epistemologia Tradicional, Alvin Goldman, Naturalismo Moderado

ABSTRACT

In this paper, we will discuss Alvin Goldman's naturalism in relation to the question of the normativity of epistemology. For this, we review the presentation that this author makes of knowledge and justification understood under a naturalistic approach. It is intended to understand how Goldman incorporates elements of traditional speculative epistemology to his naturalistic point of view. We present some distinctions, made by Goldman himself, in order to clarify the different approaches that a naturalist stance in epistemology can take and to discuss his formulation of a moderate naturalism. In the end, we try to present some weaknesses of this pretension to think about the question of whether a moderate naturalism is necessary.

KEYWORDS: Naturalized Epistemology, Normativity, Traditional Epistemology, Alvin Goldman, Moderate Naturalism

 

Introdução

 

O que convencionou-se chamar de naturalismo em epistemologia contemporânea são perspectivas influenciadas pelo ensaio “Epistemologia Naturalizada” (1969) de Willard van Orman Quine. Esse trabalho é bastante famoso pelo seu tom crítico ao teor fortemente especulativo dos estudos epistemológicos – ou da epistemologia tradicional, como também é referida. E nessa esteira, ganhou uma controversa visibilidade ao apresentar uma proposta de compreensão da epistemologia como “um capítulo da psicologia” (QUINE, 1969, p. 534). Controversa, pois não foram poucas as críticas feitas a tal compreensão (cf. KIM, 1988). Uma dessas críticas aponta que as posturas que defendem a naturalização da epistemologia não conseguem explicar satisfatoriamente o caráter normativo da mesma[1].

Esse tipo de crítica acentua que a naturalização da epistemologia seria um empreendimento meramente descritivo, enquanto a epistemologia tradicional um empreendimento normativo. Tal distinção é oriunda da ideia bastante ampla de que à epistemologia não caberia formular regras ou princípios que regem a crença justificada, mas apenas descrever os processos cognitivos que nos levam ao conhecimento. Assim, a epistemologia naturalizada se propõe a fazer discussões que “diriam respeito a questões de fato e não a estipulações apresentadas a priori”. (DUTRA, 2010, p. 165) Outra forma de colocar essa questão é dizendo que as questões epistemológicas devem ser orientadas pelas descobertas empíricas – portanto, a posteriori – e não pela reivindicação de princípios deduzidos por intuições racionais a priori.

Nesse artigo, nos propomos a apresentar uma formulação do naturalismo desenvolvida por Alvin Goldman. Essa formulação tem como característica principal a pretensão de mesclar elementos típicos de uma epistemologia tradicional – portanto, especulativa – com elementos de uma epistemologia naturalizada. Esse tipo de naturalismo, denominado pelo próprio autor como naturalismo moderado, distingue-se do naturalismo quineano e se pretende como alternativa aos problemas enfrentados por esse[2]. Nosso objetivo é avaliar algumas fragilidades do naturalismo moderado de Goldman, especialmente na relação estabelecida entre o tipo de colaboração existente entre a epistemologia e informações advindas das investigações científicas.

 

Normatividade em Alvin Goldman

 

Alvin Goldman desenvolveu ao longo de vários anos diversas formas de explicar noções relacionadas às teorias da justificação. Não é tarefa simples compreendê-las, em especial pelos sucessivos acréscimos e alterações que promoveu ao longo do tempo, em que tem tentado oferecer uma alternativa para os problemas enfrentados pela epistemologia tradicional. Algumas ideias centrais já aparecem em “A Causal Theory of Knowing” (1967), como a concepção de que uma análise dos significados dos termos envolvidos na concepção de conhecimento não parecem fornecer uma compreensão ostensiva do que seja o conhecimento. Essa noção será desenvolvida como um confiabilismo formulado em termos históricos (cf. GOLDMAN, 1979), uma teoria fortemente preocupada com os fundamentos da crença justificada. Posteriormente, ele a fórmula em termos de regras sobre processos cognitivos (cf. GOLDMAN, 1986, 1988), circunscrevendo uma relação direta de uma história de processos confiáveis e processos cognitivos confiáveis com a pretensão de superação da dicotomia fundacionalismo/coerentismo (cf. GOLDMAN, 1986, p. 144).

A despeito do que essas posições desenvolvidas em “A Causal Theory of Knowing” (1967) e em “What is Justified Belief?” (1979) podem sugerir sobre a teoria de Goldman, o que está posto em Epistemology and Cognition (1986), “Strong and Weak Justification” (1988) e “A priori warrant and naturalistic epistemology” (1999) mostra que a análise semântica ainda tem um papel central a desempenhar dentro do Confiabilismo, abrindo caminho para “um importante componente a priori em sua epistemologia” (KORNBLITH, 2002, p. 140 [tradução nossa]). Podemos dizer que a posição de Goldman está em larga medida conformada com o que é definido como empirismo moderado, ou seja, a posição segundo a qual nosso entendimento da noção de aprioricidade depende de convenções linguísticas ou definições estabelecidas pelas ciências (cf. BONJOUR, 2011). Por isso, essa postura afirma-se como uma possibilidade de conciliação entre naturalismo e conhecimento a priori, pois, se devidamente compreendidos, poderiam “ser reconciliadas” (BONJOUR, 2011, p. 293).

Assim, o Confiabilismo é um tipo de externalismo, que mantém que uma crença é justificada quando ela é produto de processos confiáveis que levam, na maior parte das vezes, à verdade. Goldman defende uma forma mais branda de naturalismo, ele está claramente preocupado em formular uma teoria da justificação, tarefa muitas vezes abandonada por teorias naturalistas (cf. KORNBLITH, 2002). Não seria apenas olhando para as relações lógicas entre crenças que podemos entender o que seja a justificação epistêmica. É preciso olhar para os processos causais que geram crenças. Além disso, o Confiabilismo pode ser tanto formulado como uma teoria do conhecimento como uma teoria da justificação.

O Confiabilismo de Goldman pretende trazer para o terreno epistemológico algumas intuições comuns, como a ideia de que boa parte das pessoas não possui acesso privilegiado a muitos fatos sobre as crenças que mantém, e a existência de elementos causais dando suporte a essas crenças. O sujeito não desempenharia um papel determinante no processo de justificação nem precisaria estar consciente das regras epistêmicas que governam seus processos psicológicos. Seriam as investigações empíricas as responsáveis por desnudar e trazer às claras os processos causais que justificam nossas crenças. Sob essa ótica, dizer que uma norma está governando um processo epistêmico de formar crenças verdadeiras, poderia se assemelhar a outros processos involuntários realizados pelo corpo humano e caberia às ciências correspondentes fornecer explicações (descrições) sobre isso.

A teoria causal do conhecimento é um dos primeiros sinais que colocam sua epistemologia sob o rótulo de externalista. Para Goldman, se o elemento causal – conexões externas entre as crenças do sujeito e o que as tornam verdadeiras – for incorporado na explicação sobre o conhecimento, seria possível contornar alguns problemas enfrentados pela “análise tradicional” (GOLDMAN, 1967, p. 370), especificamente, aqueles relacionados a requisitos internalistas.

Ele propõe uma definição de conhecimento como sendo: (Definição Causal do Conhecimento) S sabe que p se e somente se o fato p é causalmente conectado de uma forma apropriada com as crenças de S sobre p (GOLDMAN, 1967, p. 369 [tradução nossa]).

Interessante notar nessa definição é o modo como se prescinde da ideia de justificação para definir o conhecimento. O que produz conhecimento são fatos do mundo conectados com nossas crenças de forma causalmente adequada.

Do ponto de vista da justificação, as teorias externalistas colocam “para fora” a noção de justificação, prescindindo assim daquelas “boas razões” tão caras em muitas formulações tradicionais em epistemologia. Goldman apresenta uma versão do Confiabilismo sobre a justificação que possui vários elementos incorporados ao longo dos anos. Reproduzo na íntegra uma versão final apresentada pelo autor:

 

(N)[3] Uma crença de S em p é justificada se e somente se: (a) A crença de S em p é causada por uma história de processos confiáveis, (b) S acredita que sua crença em p é causada por uma história de processos confiáveis, e (c) Esta meta-crença é causada por uma história de processos confiáveis. (GOLDMAN, 1994, p. 133)


Um processo é um mecanismo psicológico que produz crenças sobre certas circunstâncias. A confiabilidade do processo depende de que tal mecanismo esteja apto a produzir outputs adequados para inputs correspondentes, juntamente com a capacidade do sujeito de acreditar que são os processos os causadores da sua crença. A necessidade de (c) se justifica por um requisito reflexivo sobre a avaliação que o sujeito faz sobre a formação de suas próprias crenças.

No entanto, corre-se o risco de se recair numa reivindicação infinita de mais uma meta-crença que garanta à meta-crença anterior seu estatuto ou no encerramento aleatório da cadeia de justificações. Para não haver tal recurso ad infinitum nem uma petição de princípio, uma possibilidade é recorrer à concepção de que habilidades ou virtudes intelectuais são os responsáveis pela formação adequada de uma crença. A importância em adicionar o elemento causal se deve a um compromisso em relacionar a habilidade intelectual com o mundo físico (externo), fazendo o caminho comum das teorias que pretendem superar a dicotomia internalismo/externalismo. Mas, o problema dessa formulação pode ser também uma virtude, visto que apenas pensar a justificação em termos causais parece enfraquecer excessivamente o que entendemos por conhecimento. Talvez por isso, ao final do seu texto, Goldman lança mão do conceito de protótipos virtuosos para tentar substituir requisitos de ordem superior como está pressuposto em (c).

Para Goldman são os processos confiavelmente adquiridos os causadores da crença justificada. O que parece ficar claro no trecho abaixo, quando ele se questiona:


[...] que espécies de processos de formação (ou preservação) de crenças conferem justificação? Incluem os processos perceptivos normais, a recordação, o bom raciocínio e a introspecção. O que estes processos parecem ter em comum é a confiabilidade: as crenças que produzem são geralmente verdadeiras. Portanto, a minha proposta positiva é a seguinte. O estatuto de justificabilidade de uma crença é uma função da confiabilidade do processo ou dos processos que a causam, onde (numa primeira aproximação) a confiabilidade consiste na tendência de um processo para produzir crenças que são verdadeiras ao invés de falsas. (GOLDMAN, 1979, p. 345)

 

Dessa forma, pensar o estatuto de justificabilidade em termos de “razões para” deixa lugar para pensá-la em termos de “causada por”. Além disso, uma margem é dada à possibilidade de corrigibilidade deste estatuto, visto que a confiabilidade dos processos, sejam eles quais forem, é uma tendência. Isso acaba dando conta de explicar uma gama muito mais variada de casos, pois o agente epistêmico é pensado em termos falíveis, limitados, e sem uso de qualquer recurso reflexivo ou metacognitivo – crenças de segunda ordem, por exemplo.

Se pensarmos a normatividade no seio dessas concepções que dependem de habilidades confiáveis, o foco não está sobre como um termo adquire força normativa, mas na relação que podemos estabelecer entre essas habilidades – em que pese o consequente mérito do agente em desempenhá-las – e a avaliação da crença. Isso tem a vantagem de desinflar a concepção de justificação, pois o que é requerido do sujeito na avaliação de suas próprias crenças é algo mais modesto. Por outro lado, parece enfraquecer a força normativa, pois no julgamento sobre a formação das nossas crenças não estaria em jogo uma prerrogativa forte de racionalidade, mas uma concepção modesta. Dito de outra forma, ao prescindir de razões, ficamos com as explicações sobre como se adquirem crenças causadas por processos confiáveis.

Goldman enfatiza isso quando diz que “nossas crenças sobre que processos de formação de crenças são confiáveis podem ser errôneas, mas isso não afeta a adequação da explicação” (1979, p. 349 [tradução nossa]). Além de reforçar o elemento falibilista dessa concepção, ressalta o projeto explicativo do estatuto de justificabilidade. Apesar de seu longo alcance na delimitação sobre o que seja um agente cognitivo, visto que as exigências de racionalidade são extremamente baixas, ao estabelecer critérios que substituem razões por causas, o Confiabilismo de Goldman precisa mostrar onde procurar o estatuto normativo do conhecimento. Goldman não exclui um projeto justificacional, mas o relaciona diretamente com um projeto descritivo em epistemologia

Outro ponto importante em Goldman na sua empreitada naturalista é a tentativa de ressignificar a possibilidade de um conhecimento a priori. Algumas propriedades são comumente associadas à noção de aprioricidade, e dialogam com concepções tradicionais sobre o conhecimento e a justificação. Talvez os sentidos mais fortemente enraizados da concepção de a priori, sejam características como necessário, não experimental, infalível e incorrigível.

Quando Kripke crítica a posição kantiana de relacionar o necessário com o a priori, abrindo a possibilidade do contingente a priori (cf, KRIPKE, 1980), está aberta também uma nova compreensão do apriorístico. Ele cita um exemplo bastante esclarecedor. Imagine que peguemos um bastão S e fixemos, por estipulação, como sendo a referência padrão para o metro, a partir daí diremos que um metro é o comprimento de S. Esse é exatamente o caso sobre a nossa referência de medidas. Daí para frente, quando alguém perguntar a medida de S, qualquer um que não tenha medido S pode dizer que sua medida é um metro. Existe um sentido em que isso é sabido a priori, ao mesmo tempo, é claramente contingente o fato de S medir um metro.

Esse caso já nos mostra como é possível pensar o a priori desvinculado do necessário. Por um caminho diferente, Goldman afirma ter dúvidas sobre se “algum tipo de envolvimento na necessidade é essencial para o a priori” (1999, p. 28). Com esse passo, abre-se a possibilidade de pensar a justificação a priori, buscando compatibilizá-la com os resultados contingentes advindos das ciências naturais. Goldman insere o elemento causal em todas as suas versões de uma teoria da justificação, assim como tenta substituir requisitos de ordem superior, ou por requisitos fracos naturalisticamente definidos – o requisito (c) da formulação anterior –, ou por protótipos de processos formadores de crenças – protótipos virtuosos.

Mas, o que isso nos diz sobre o tipo de normatividade presente nessa formulação? Para responder essa questão talvez tenhamos que explicitar alguns aspectos da sua epistemologia apresentados em Epistemology and Cognition (1986) e, ao menos no que toca à manutenção de análises conceituais e intuições a priori, encontrados também em “A priori warrant and naturalistic epistemology” (1999).

Logo no começo de Epistemology and Cognition (1986), Goldman divide a epistemologia em duas partes: uma individual “que precisa de ajuda das ciências cognitivas”, e uma social “que precisa de ajuda de várias ciências sociais e humanas” (GOLDMAN, 1986, p. 1 [tradução nossa]). A marca cooperativa da epistemologia se dá por uma tentativa em conciliar a confiabilidade dos processos cognitivos com sua estrutura psicológica interna, pois mesmo adicionando o elemento causal, as operações cognitivas responsáveis pela confiabilidade dos processos são “internas aos organismos” (GOLDMAN, 1979, p. 340). Por isso, estudar esses processos internos empiricamente é extremamente importante para a epistemologia – ao menos em sua faceta individual. O foco da epistemologia não é apenas entender nossa arquitetura cognitiva individual – pensando a empreitada normativa em relação à epistemologia individual –, mas usar os resultados da “ciência cognitiva e avaliar as repercussões epistêmicas desses resultados” (GOLDMAN, 1986, p.182).

A epistemologia é uma empreitada normativa, o que se manifesta pela necessidade em fazermos avaliações sobre os mais diferentes níveis de formação, aquisição, ou mesmo, processos (causais) geradores das nossas crenças. Goldman pensa a justificação como um conjunto de regras. Assim, se a justificação for correta, isso depende de “se os processos permitidos pelo sistema de regras especificadas têm realmente uma alta relação de verdade nos mundos normais” (GOLDMAN, 1986, p. 109 [tradução nossa])[4]. Portanto, uma crença é justificada quando está apropriadamente conectada à verdade, mas isso não implica que o sujeito saiba o conjunto de regras que orientam sua crença. Por isso, Goldman não usa o termo “obrigação”, mas apenas o termo “permissão” para formular essa versão da sua teoria da justificação: uma crença de S em p é justificada se e somente se “S acreditar em p, em t, for permitido por um correto sistema de regras de justificação” (GOLDMAN, 1986, p. 59). Dessa forma, o caráter normativo do conhecimento surge na explicitação das regras de justificação que indicam quais são os estados cognitivos permitidos de serem sustentados. Ou seja, aqueles estados em que apropriadamente nos é permitido selecionar os adequados processos de formação de crenças.

Como o próprio Goldman observa, essa ideia de compreender a força normativa em termos de regras de justificação contraria a visão tradicional que tende a colocar a força da justificação no “peso da evidência” (GOLDMAN, 1986, p. 89). No entanto, como Kornblith observa, Goldman “abre espaço para um importante componente a priori em sua epistemologia” (KORNBLITH, 2002, p. 139), em especial, quando se dedica a analisar o significado dos termos epistêmicos relevantes, como “justificação”, “garantia” e “racional”. Através da análise conceitual do que significam tais termos, poderíamos entender como “são usados para graduar uma crença ao longo de alguma dimensão epistêmica avaliativa” (GOLDMAN, 1986, p. 20). Ainda que Goldman rompa com as tradicionais análises do conhecimento que ancoram a força normativa na posse de uma evidência, ele continua se valendo de análise conceitual para captar o locus da normatividade e, nisso, ele não se diferencia da tradicional análise que se faz da normatividade.

 

A questão normativa e os enfoques do naturalismo

 

A compreensão sobre o que seja o naturalismo epistemológico envolve uma série de questões sobre o conceito mesmo de natural e como ele se comunica com questões (normativas) no terreno epistemológico. Como dito anteriormente, o naturalismo epistemológico não está diretamente comprometido com o debate entre internalismo e externalismo, apesar de um grande número de naturalistas adotarem alguma forma de externalismo sobre teorias da justificação – quando o epistemólogo naturalista está disposto a defender alguma teoria da justificação. Algo semelhante vale para questões relativas à possibilidade de um conhecimento a priori, pois inicialmente o naturalismo se apresentou através de uma crítica à ideia de analiticidade e também da negação de qualquer possibilidade de conhecimentos sintéticos a priori.[5] Isso, inclusive, motivou Feldman a suavizar as possíveis discordâncias entre naturalistas e epistemólogos tradicionais como sendo apenas fruto de uma “ênfase em diferentes questões” (2012, s.p. [tradução nossa]).

Segundo Goldman, os projetos naturalistas em epistemologia podem ser organizados em diferentes grupos, de acordo com algumas teses e o nível de comprometimento que se pretende com as ciências empíricas.

a) Naturalismo Meta-Epistêmico: entendido como “uma tese sobre as propriedades epistêmicas normativas tais como justificação, garantia ou racionalidade” (GOLDMAN, 1994, p. 111). Inclui também teses sobre a sobreveniência de propriedades epistêmicas a naturais ou sobre a eliminação de propriedades epistêmicas em prol das naturais.

b) Naturalismo Substantivo: entendido como um conjunto de temas que partem da compreensão de que o agente epistêmico seja um ser biologicamente constituído e que “o conhecimento é o produto de uma conexão causal entre o mundo e o sujeito que crê.” (GOLDMAN, 1994, p.114) Teses sobre a natureza do conhecimento e da justificação aludindo a algum tipo de externalismo são normalmente incluídas nesse tipo de naturalismo.

c) Naturalismo Metodológico: tem como tese principal a ideia de que “a epistemologia deveria consistir numa ciência empírica” (GOLDMAN, 1994, p. 118) ou no mínimo estar atenta aos resultados científicos. Isso levanta duas teses complementares, primeiro, sobre qual o grau de envolvimento dos resultados científicos e, segundo, sobre quais as ciências relevantes a serem consideradas.

Essas distinções são feitas para mostrar as diferentes formas como os problemas e pretensões naturalistas estão organizadas. Inicialmente estamos interessados numa questão que está subsumida ao naturalismo metodológico, definindo seu escopo ao afirmar que “a epistemologia deveria consistir numa ciência empírica ou […] ser informada pelos resultados de disciplinas científicas.” (GOLDMAN, 1994, p. 118) Isso acentua a querela principal entre naturalistas e não naturalistas em relação à possibilidade do conhecimento a priori, pois, em última instância, a questão é saber se o filósofo tem acesso a conhecimentos, garantias ou justificações que independem da experiência.

Quando Goldman afirma que caberia às ciências empíricas descrever o que são os processos confiáveis produtores de crenças, ele está debatendo uma questão subsumida ao naturalismo metodológico. No entanto, Goldman não exclui a possibilidade da justificação a priori, a depender do grau de envolvimento das ciências na explicação (conceitual) que o epistemólogo apresenta.

O mesmo poderia ser também entendido segundo a terminologia que distingue uma dimensão descritiva de outra, normativa, no naturalismo, o que seria também um debate interno sobre como se constrói o projeto naturalista para compreender, como se constitui em seu interior, o grau de envolvimento das ciências.

Ao que se segue tentarei mostrar como a formulação de Goldman está primeiramente interessadas no elemento metaepistêmico do naturalismo, isto é, nas propriedades normativas que normalmente se atribui ao conhecimento, mas para isso acabam passando por questões metodológicas – o papel das ciências na construção da epistemologia e a possibilidade do conhecimento a priori.

 

Por um naturalismo moderado?

 

Goldman acredita que não é necessário negar toda garantia a priori em epistemologia, essa consideração é baseada em dois pilares: no Confiabilismo sobre a justificação epistêmica e na ideia de que no processo de formação das nossas crenças existiria alguma “arquitetura cognitiva básica” (GOLDMAN, 1999, p. 38) que funcionaria como um tipo de garantia a priori para a confiabilidade dos processos. Isso possibilitaria pensar a justificação a priori integrada a um projeto naturalista.

Se viermos a descobrir que seres humanos possuem mecanismos cerebrais inatos que lhes conferem as habilidades cognitivas que eles possuem, então tais mecanismos podem figurar, ao mesmo tempo, como termos naturais, descrevendo a justificação e também como uma forma de conhecimento a priori.[6] Obviamente, há um enfraquecimento, para não dizer uma mudança, na explicação dos termos envolvidos. No exemplo de Kripke citado anteriormente sobre a possibilidade do contingente a priori, está clara uma alteração no sentido de “a priori”. A compreensão de que S mede um metro é um conhecimento a priori por não depender da medição (atual) da barra, mas não é a priori por independer de qualquer experiência (passada) em relação à barra S.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado às intuições de maneira geral, pois não é o objetivo de Goldman negar a possibilidade mesma de uma epistemologia especulativa. As intuições racionais sobre as explicações conceituais de um fenômeno não precisam estar comprometidas com uma linguagem não natural a priori. Melhor dizendo, uma intuição conceitual a priori – em algum sentido semelhante ao de Kripke –, não precisa estar comprometida com termos não naturais. Por isso, a postura confiabilista pode simplesmente dizer que o que legitima os princípios ou as normas de racionalidade é uma função de se eles realmente são confiáveis. Eles não precisam sequer ser conhecidos pelos agentes.

Cabe notar como a possibilidade de um naturalismo comprometido com algum arranjo conceitual está fortemente ancorada numa ressignificação dos termos envolvidos na explicação do conhecimento, mas também numa aceitação de que conhecimento deve ser mais que crença verdadeira. Assim, a formulação de um naturalismo moderado pretende resguardar ao menos duas ideias centrais: a integralidade das explicações em termos naturais e a independência dos arranjos conceituais propriamente filosóficos. Goldman (1999, p. 26) formula o Naturalismo Moderado (NM)[7] nos seguintes termos:

(A) Todas as garantias ou justificações epistêmicas são uma função dos processos psicológicos (talvez computacionais) que produzem ou preservam crenças.

(B) O empreendimento epistemológico precisa de ajuda apropriada da ciência, especialmente da ciência cognitiva.

A tese (A) elimina o compromisso com algum pressuposto metafísico sobre a natureza mesma das afirmações epistêmicas, dizendo que elas provêm de agentes epistêmicos naturais (seres biologicamente constituídos). E a tese (B) enfraquece a relação da ciência com a epistemologia, uma vez que a epistemologia precisa de ajuda, mas não precisa estar determinada pelos resultados das investigações científicas. Dessa forma, a formulação moderada do naturalismo epistemológico não exclui garantias e justificações a priori, mas ressignifica a noção mesma de a priori de forma a compatibilizá-la com as teses (A) e (B).

Quando Goldman abre a possibilidade de ajuda das ciências sem necessidade de determinação explicativa, ele está defendendo a possibilidade mesma de algum tipo de epistemologia especulativa. A descrição biológica, por exemplo, da nossa arquitetura cognitiva básica caberá aos cientistas em algum sentido detalhadamente relevante. No entanto, a explicação detalhada, redundante, dessa descrição é pouco relevante para entender os casos cotidianos de atribuição de conhecimento, ou pelo menos, ela só é necessária em casos pontuais.

Haveria um pressuposto de fundo na associação da escolha por uma epistemologia especulativa e algum nível de comprometimento com intuições a priori. Por isso, Goldman está particularmente interessado em buscar um fundamento para garantias a priori para assim compatibilizar uma possibilidade epistemológica que não seja totalmente apriorística nem totalmente científica, uma espécie de naturalismo cooperativo (cf. FELDMAN, 2012). Mais uma vez, a separação entre um naturalismo metodológico e um naturalismo substantivo, traçada por Goldman e à qual aludimos anteriormente, dão a dimensão dessa relação cooperativa entre ciência e filosofia. Se o elemento ontológico referido na versão substantiva – esclarecimento da existência de relações causais, explicação do elemento biológico produtor de crenças confiáveis etc. – forma um conteúdo comum com os temas lembrados pelos filósofos, do ponto de vista metodológico – justificação, racionalidade etc. –, a epistemologia pode afirmar sua independência normativa.

Goldman aponta um problema em aceitar que apenas fenômenos extramentais sejam considerados numa avaliação epistêmica. Os casos Gettier parecem mostrar que mais de um candidato surge na tentativa de explicar a conexão entre crença-verdade-justificação, com possibilidades causais relevantes, sem nenhum critério extramental que possa dissolver o problema. A própria ideia de tipos naturais extramentais – na qual os tipos figuram como únicas garantias para as intuições as quais lançamos mão – parece insatisfatória (cf. GOLDMAN, 1998, p. 80-81). O ponto aqui é o Problema da Circularidade, ou seja, deve haver um critério mental que possa me fornecer quais os estados extramentais são epistemologicamente relevantes.

A princípio, o naturalismo moderado de Goldman tenta evitar dois problemas inter-relacionados: (i) o problema da circularidade e (ii) o problema do argumento autoanulador.[8] O problema da circularidade aparece quando tentamos explicar a possibilidade do conhecimento empírico fazendo uso de explicações empíricas, o que parece ser o mesmo que usar como explicação exatamente aquilo que se pretende explicar, dando crédito às explicações empíricas quando são exatamente elas que se pretende creditar. No caso do problema da autoanulação, a questão é o próprio conhecimento a priori, pois quando se critica o conhecimento apriorístico, apresentando argumentos, a única forma de avaliar tais argumentos é se utilizando da metodologia intuitiva e conceitual que marca a epistemologia especulativa. Vemos como esses dois problemas são duas facetas da mesma questão, pois, se houver um elemento a priori que me permita selecionar quais ou como entender os fenômenos extramentais, evito (i) e, ao aceitar a existência de algum elemento a priori, consigo justificar porque as intuições naturalistas são melhores do ponto de vista explicativo, evitando assim (ii).

No entanto, isso também gera problemas. A defesa de uma epistemologia especulativa acaba trazendo consigo a pretensão de explicar a fonte da normatividade pela análise conceitual, o que pode ser compatível com um projeto naturalista mais amplo, mas pode gerar inconsistências com a pretensão de explicitar as normas epistêmicas em termos naturalisticamente relevantes. Vejamos a passagem de Goldman:

 

A análise epistemológica envolve a geração e o teste de hipóteses sobre conceitos epistêmicos, tais como “conhecimento ser crença justificada verdadeira”. Em princípio, há sempre indefinidamente muitas hipóteses que podem ser levantadas; e para qualquer conjunto finito de intuições sobre casos, há, em princípio, indefinidamente muitas hipóteses que seriam compatíveis com essas intuições. Pode a ciência cognitiva desempenhar um papel na escolha entre tais hipóteses? Sim. [...] Uma vez que se concede que a análise conceitual [tenha] a tarefa de desnudar as características semânticas de itens que estão “escondidos” [hidden] dentro de um sistema cognitivo – itens que não são diretamente observáveis nem diretamente acessíveis via introspecção –, deve tornar-se crível [it should become credible] que a investigação científica, em princípio, é relevante para essa tarefa. (GOLDMAN, 1999, p. 47 [tradução nossa])

 

Podemos notar, na passagem acima, que as investigações científicas surgem como relevantes para a tarefa semântica, o que numa versão naturalista meramente colaborativa pode soar suficiente. No entanto, a questão que parece realmente relevante é se a análise conceitual consegue realmente revelar itens do nosso sistema cognitivo somente com a ajuda das investigações científicas. A própria análise conceitual segue caminhos muito diferentes nas formulações das suas hipóteses em relação às ciências, e talvez Goldman dê um papel excessivamente importante para conteúdos semânticos, delegando às ciências um papel de escolha de hipóteses que são, em princípio, semânticas. Ainda que as hipóteses sobre os conceitos, ou seja, as investigações a priori, sejam todas substituídas por experimentos científicos, desempenhando o mesmo papel, permaneceria a questão de como extrair normas epistêmicas de considerações semânticas. Até porque, se Quine está minimamente certo em “Two Dogmas of Empirism”, a questão parece ser a mesma: como extrair verdades sobre o mundo de dados semânticos (cf. QUINE, 1961, p. 37).

Se, portanto, como referido anteriormente, descobrirmos uma arquitetura cognitiva básica nos seres humanos que lhes confira habilidades cognitivas, não será fácil ver como o conceito de “arquitetura cognitiva básica”, assim como o conceito de “justificação”, possam nos ajudar a entender a fonte da normatividade. Goldman teria que mostrar de forma clara como o conceito de algo pode nos ajudar a entender a regulação da nossa vida cognitiva.

Além disso, podemos avaliar outra questão relativa ao termo (B) – “O empreendimento epistemológico precisa de ajuda apropriada da ciência, especialmente da ciência cognitiva”. Essa formulação se propõe a enfraquecer a relação entre ciência e filosofia, para garantir que elementos especulativos próprios da epistemologia tradicional continuem tendo papel central nas questões epistemológicas. Nos parece, no entanto, que a aceitação de elementos a priori na epistemologia não implica que a relação entre ciência e filosofia seja apenas colaborativa. Se aceitarmos a noção de a priori como apresentada por Kripke, não parece haver incompatibilidade entre noções a priori e uma posição naturalista que esteja em continuidade com as informações da investigação científica. Isso porque, nessa visão, no seio da própria ciência estariam estabelecidas uma série de afirmações apriorísticas, quando a priori se refere a estipulações como sendo convenções e não como intuições racionais. Isso quer dizer que não há necessidade de suavizar a relação entre ciência e filosofia – como ocorre no ponto (B) – para garantir algum tipo de conhecimento a priori.

 

Considerações finais

 

Na apresentação da formulação de Goldman foi possível observar que ele está preocupado em naturalizar a justificação, fornecendo artifícios para integrar as formulações epistemológicas com as informações advindas das investigações científicas. Nesse percurso há uma preocupação grande com a manutenção da análise conceitual na explicitação da dimensão normativa do conhecimento. Essa manutenção ocorre, pois, a epistemologia “precisa da ajuda” das ciências, mas lhe cabe o importante papel de “desnudar as características semânticas de itens ‘escondidos’ dentro de um sistema cognitivo”. Assim, Goldman mantém um elo com os compromissos de uma epistemologia tradicional, colocando um forte peso no elemento especulativo para defender o aspecto normativo da epistemologia.

Se por um lado, o naturalismo moderado ou cooperativo apresentado por Goldman tem a vantagem de se comunicar com a tradicional visão sobre a normatividade, buscando uma continuidade metodológica com essa, mas adicionando critérios de falibilidade e corrigibilidade, por outro lado, acaba delegando à especulação e as intuições racionais um papel demasiadamente importante. Em nosso entendimento, isso é problemático, pois reforça a noção tradicional de que a melhor – e talvez única – forma de se conceber a normatividade epistêmica seja defendendo alguma noção de justificação e correspondentes teorias da justificação. Talvez o ponto central seja buscar uma nova compreensão sobre a normatividade.

 

Referências

 

BONJOUR, Laurence. In Defense of Pure Reason. New York, NY: Cambridge University Press, 1998.

_____. A Priori Knowlegde. In: The Routledge Companion to Epistemology. BERNECKER, S., PRITCHARD, D. (ed.) London, UK; New York, NY: Routledge. p. 281-93, 2011.

DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Introdução à Epistemologia. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

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RECEBIDO: 31/07/2020                                                    RECEIVED: 31/07/2020

 

APROVADO: 06/03/2022                                                   APPROVED: 06/03/2022

 

 



[1] Colin McGinn, em um texto publicado algum tempo depois ao de Kim, defende a possibilidade de que uma epistemologia radicalmente naturalista seja nossa única possibilidade, não por ela ser a mais completa, mas por ser a única que não temos que “sacrificar tudo o que é distintivo na natureza humana” (McGINN, 1993, p. 149 [tradução nossa]).

[2] Não vou entrar no mérito de como o naturalismo de Quine se distingue de um naturalismo moderado nem se os textos posteriores ao ensaio “Epistemologia Naturalizada” (1969) alteram essa visão inicial.

[3] No original “R4”, pois o autor desenvolveu a versão de forma gradual. (cf. GOLDMAN, 1994, p.312)

[4] Uma das diferenças entre “What is Justified Belief?” (1979) e Epistemology and Cognition (1986) é a saída que Goldman oferece para solucionar a nova versão do problema do Gênio Maligno, adicionando para isso a noção de mundos normais. Posteriormente, ele abandona essa visão em “Strong and Weak Justification” (1988), tentando solucionar o problema explorando uma ambiguidade do termo “justificado” (cf. HAACK, 1993). Para os fins desta seção, essa mudança de foco é pouco relevante, pois isso não afeta pensarmos a justificação como conjunto de regras cognitivas conectadas com a verdade.

[5] Bonjour defende que a ideia de a priori é mais ampla que a de analiticidade, o que faria da crítica de Quine, mediante a passagem do analítico para o a priori, um erro. (BONJOUR, 1998)

[6] David Moshman defende uma concepção semelhante à de Goldman, afirmando que, a partir de uma leitura da Epistemologia Genética de Piaget, conseguimos “fornecer uma perspectiva útil sobre a coordenação de abordagens empíricas (psicológicas) e normativas (filosóficas) da epistemologia.” (MOSHMAN, 2015, p. 20)

[7] Essa classificação é extraída de Lawrence Bonjour. Ele afirma que a epistemologia de Quine seria melhor entendida como um naturalismo científico ou uma espécie de empirismo radical e, em face da posição de Goldman, como um naturalismo moderado. O próprio Goldman referenda tal classificação.  (cf. GOLDMAN, 1999; BONJOUR, 2011)

[8] O termo self-defeating foi traduzido no “Compêndio de Epistemologia” como “autoanulador” (cf. GRECO, SOSA, 1999, p. 272, Cf. Índice Remissivo). Na tradução de Epistemology de Fumerton, o termo é traduzido por “autodestrutivo” (cf. FUMERTON, 2006, p. 80). Preferimos manter o termo defeating traduzido por “anulador”, pois se trata, no modo como normalmente aparece no debate em português, de anuladores epistêmicos. (cf. MÜLLER, RODRIGUES, 2012)