Acerca do sujeito, da pessoa e do direito nos Grundrisse

On subject, person and law in Grundrisse

Prof. Dr. Vitor Sartori

Universidade Federal de Minas Gerais

E-mail: vitorbsartori@gmail.com

 

RESUMO

No presente artigo, a partir daquilo que o filósofo brasileiro José Chasin chamou de análise imanente, abordaremos o Direito nos Grundrisse, procurando demonstrar que a crítica pachukaniana ao Direito – ao relacionar forma jurídica e a forma mercadoria – traz aspectos essenciais para a compreensão da posição de Marx sobre a esfera jurídica. Porém, a análise do autor alemão é mais ampla, e destaca também a ligação das relações jurídicas com aspectos essenciais da forma dinheiro, bem como da esfera da distribuição. Outra questão de grande importância é que a crítica marxiana tem um tratamento mais detido que aquela de Pachukanis tanto sobre a autonomização do Direito quanto no que diz respeito à correlação entre a lei do valor, a formação de sujeitos na sociedade capitalista e as categorias jurídicas. Neste sentido, traremos uma abordagem distinta daquela hegemônica no Brasil, e ligada à tradição pachukaniana. Procuraremos demonstrar que, mesmo nos Grundrisse, em que a noção de sujeito e de pessoa são mais recorrentes, não há uma identificação entre estas categorias e a noção de sujeito de direito, sempre ressaltada por autores como Márcio Naves e Alysson Mascaro, bem como por seus seguidores, como central à crítica marxista ao Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Marx, Direito, Grundrisse, sujeito de direito

ABSTRACT

In this article, with José Chasin´s Immanent analysis, we will analyze Law in the Grundrisse, intending to demonstrate that Pachukan's criticism of Law - relating legal form and form of commodity - brings essential aspects for the understanding of Marx's position on the juridical sphere. However, an analysis by the German author is more comprehensive and allow us to link legal relationships with essential aspects of the money form, as well as of distribution. Another issue of great importance is the Marxian criticism that deals with a treatment more careful than the pachukanian of both, the autonomy, and the correlation between a law of value, the formation of Subjects in capitalist society and juridical categories. In this sense, we will bring a different approach to the hegemonic one in Brazil, represented by the Pachukanian tradition. We try to demonstrate that, even in the Grundrisse, in which the notion of subject and person are more recurrent, there is not an identification between these categories and the notion of subject of rights, always highlighted by authors such as Márcio Naves and Alysson Mascaro, as well as by their followers, as something central to the Marxist critique of Law.

KEYWORDS: Marx, Law, Grundrisse, Subject of rights

 

Introdução

 

            No Brasil, a crítica marxista ao Direito é representada, sobretudo, pela abordagem pachukaniana, introduzida por aqui pelo sério trabalho de Márcio Naves. (2000) Formou-se toda uma tradição na esteira da contribuição do filósofo brasileiro e althusseriano; e tal tradição tem como expoentes autores como Mascaro (2018, 2012), Almeida (2016 b, 2018), Kashiura (2009, 2014), dentre outros. E, se é verdade que não há como dizer que não exista diferenças entre tais pensadores, igualmente correto é afirmar que todos eles têm como princípio organizador de suas teorias a correlação entre forma jurídica e forma mercadoria, trazida à tona por Pachukanis em sua obra magna. (2017) A partir da leitura de Marx, principalmente do livro I de O capital, desenvolveu-se nos pachukanianos uma centralidade da crítica ao sujeito de direito, crítica esta que já estaria presente em Marx (Cf. NAVES, 2014). O guia da crítica marxista ao Direito no Brasil tem sido esta correlação entre igualdade jurídica, sujeito de direito e forma mercantil. E, assim, acreditamos que pode ser importante revisitar a obra marxiana para que se veja como que isto se dá no próprio autor alemão.

Se a coisa ocorre como supõe Pachukanis e os pachukanianos, tal tradição mencionada é indiscutivelmente a legítima herdeira do pensamento marxiano. Porém, se o que se passa no autor alemão é distinto, há, no mínimo, a necessidade de complementar tal leitura (Cf. SARTORI, 2015). Aqui, pretendemos explicitar a possibilidade de uma crítica do ponto de partida da tradição hegemônica no Brasil na crítica marxista ao Direito.  Neste sentido, intentamos demonstrar que – mesmo ao se ler os Grundrisse, obra em que as categorias pessoa e sujeito são recorrentes, não há como se trazer uma identificação entre elas e a categoria jurídica do sujeito de direito.

            Neste artigo, a partir da análise imanente[1] dos Grundrisse, abordaremos a relação entre as categorias sujeito, pessoa e o Direito. Esta obra de Marx – não publicada em vida – é uma espécie de rascunho sobre temas importantes de O capital, tendo grande serventia para a compreensão tanto do pensamento marxiano quanto de sua obra magna (Cf. ROSDOLSKY, 2001). Tal texto também explicita alguns tópicos do pensamento marxiano já que a exposição e a pesquisa ainda se encontram em uma relação bastante imbricada e visível; e, assim, a análise do texto se justifica por ser possível se olhar de mais perto o próprio processo de desenvolvimento do raciocínio marxiano. (Cf. GRESPAN, 2012) No que diz respeito ao nosso tema, há de se apontar que a categoria sujeito não aparece diretamente relacionado ao Direito em O capital, analisado por Pachukanis (Cf. SARTORI, 2019 a). Mas a correlação entre as categorias pessoa, sujeito e Direito é explícita nos Grundrisse.

            Assim, procuraremos explanar como que a questão aparece nestes rascunhos de Marx, que, pelo que dissemos, parecem – à primeira vista – ratificar a grande tese pachukaniana. Veremos, porém, que o percurso do pensamento marxiano é mais tortuoso do que normalmente se supõe. E, com isso, há a necessidade de se criticar o ponto de partida dos pachukanianos brasileiros, que vêm tomando tal categoria como a pedra de toque da crítica marxista ao Direito (Cf. CASALINO, 2019; KASHIURA, 2009, 2014; ALMEIDA, 2016 b, 2018; MASCARO, 2018, 2012; NAVES, 2014)

 

Importantes indícios a favor da tese pachukaniana sobre a identidade entre as categorias pessoa e sujeito de direito, mas não só

 

Depois de muitos estudos sobre o nosso tema, não há mais como se dizer que não existe uma relação na obra marxiana – enfatizada, sobretudo por Pachukanis – entre a circulação de mercadorias e o Direito (Cf. MASCARO, 2012; NAVES, 2014). Neste sentido, vale a pena analisar como que isto aparece em Marx, em nosso caso, nos Grundrisse. A tese pachukaniana é aquela segundo a qual o Direito propriamente dito só existe no capitalismo, tendo-se, antes disso, protoformas da esfera jurídica, formas jurídicas embrionárias (Cf. PACHUKANIS, 2017). Naves vai ainda mais longe, dizendo que, por o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo não ter tido acesso a alguns textos de Marx (sobretudo, ao Capítulo VI inédito), ele teria desconsiderado a oposição entre subsunção formal e real ao capital. E, com base nesta oposição, sequer seria possível falar em formas embrionárias de Direito antes do capitalismo (Cf. NAVES, 2014). Na esteira deste posicionamento pachukaniano, a categoria pessoa colocar-se-ia na circulação de mercadorias determinada pela produção propriamente capitalista, tendo-se uma importante determinação (diria Naves, com Althusser, uma sobredeterminação) entre as esferas da produção e da circulação. A partir da leitura do livro I de O capital, principalmente, esta correlação tornou-se o ponto de partida da crítica marxista ao Direito brasileira. E é certo que Pachukanis desenvolve sua tese, principalmente, em ligação com a obra magna de Marx; mas o autor tem acesso também à chamada introdução de 1857, que faz parte dos Grundrisse, que não puderam ser abordados pelo autor em sua totalidade devido à publicação somente posterior. Ou seja, o autor soviético passa também por parte do texto que aqui analisamos. Seus seguidores brasileiros, com acesso aos Grundrisse na íntegra, também abordam a obra marxiana e, tal qual Pachukanis, reafirmam a centralidade da noção de sujeito de direito. Eles também trazem a ligação entre a “forma jurídica” e a “forma mercantil” com a categoria do sujeito e do sujeito de direito, tanto em Marx (Cf. KASHIURA, 2009, 2014) quanto ao ter em conta grandes autores da teoria marxista, como Lukács, Sartre e Althusser (Cf. ALMEIDA, 2016 a, 2016 b). Por isso, há de se ver a pertinência da tese pachukaniana, também, ao se analisar os Grundrisse. Vejamos.

            Marx é muito claro ao dizer em O capital que: “a esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem.” (MARX, 1996 b, p. 144) Nesta esfera, liberdade, igualdade e propriedade, por meio da forma jurídica do contrato, trazem consigo a compra de mercadorias que está assentada sobre o trabalho assalariado subsumido ao capital:

 

O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados (MARX, 1996 b, p. 144).

           

            A circulação de mercadorias, portanto, torna efetivos os direitos do homem na medida em que eles têm por base real a produção capitalista de mercadorias, que determina a esfera da circulação. Marx ainda diz que, nesta esfera, “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias” (MARX, 1996 a, p. 79). E, com isto, é necessário que exista uma mediação social entre as coisas que aparece apagada: ao falar sobre as mercadorias, diz o autor que “para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas” (MARX, 1996 a, p. 79), o que supõe o reconhecimento dos indivíduos como pessoas proprietárias: “eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados.” (MARX, 1996 a, p. 79)[2] Tal análise está consolidada na literatura da crítica marxista ao Direito (Cf. CASALINO, 2011, 2019; NAVES, 2014; KASHIURA, 2014) e ainda pode ser confirmada com outros textos, como as Notas sobre Wagner. Nela, diz-se:

 

mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo desenvolvido as partes se reconhecem tacitamente como pessoas iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e ao entrar em acordo uns com os outros sobre o negócio. Essa relação fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire mais tarde forma jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das pessoas entre si, mas vice-versa (MARX, 2017, p. 273).[3]

 

                A partir destas citações, pode-se perceber que há, em Marx, uma relação entre a circulação de mercadorias e o Direito, como bem demonstrou Pachukanis (2017). Porém, é preciso apontar que a categoria sujeito de direito não aparece explicitamente; antes, tem-se uma remissão à categoria pessoa.

Esta última, por sua vez, é destacada pelo autor, não só ao se enfatizar o Direito, mas ressaltando a correlação sui generis entre pessoas e coisas, que existe no sistema capitalista de produção. (Cf. SARTORI, 2019 a) É preciso, portanto, ir mais longe na análise dos textos de Marx, já que nos textos fala-se das pessoas iguais e dos contratos que elas celebram, mas o autor de O capital não traça em nenhum momento a identidade entre esta categoria e aquela do sujeito de direitos, como querem os autores mais importantes da crítica marxista ao Direito no Brasil (Cf. NAVES, 2014; MASCARO, 2012, 2018) e seus discípulos (Cf. KASHIURA, 2009, 2014; ALMEIDA, 2016 b).

Ocorre que, nos Grundrisse, o autor explicita a correlação entre a pessoa e o sujeito, remetendo ao Direito. E, por isto, é importante que analisemos tal texto, buscando conferir aquilo que é tomado como pressuposto por grande parte da tradição de crítica marxista ao Direito. Ou seja, ao analisar uma obra que Pachukanis não teve acesso na totalidade, parece que a tese do autor de Teoria geral do Direito e o marxismo ganha ainda mais força. Há, neste sentido, uma importante citação sobre o tema, que parece corroborar a tese pachukaniana. Ao tratar do Direito romano (e, para Marx, trata-se de Direito, e não de algo distinto), e da capacidade de figurar como proprietário, diz Marx:

 

No direito romano o servus é corretamente determinado como aquele que não pode adquirir nada para si pela troca (ver Institut). Por essa razão, é igualmente claro que esse direito, embora corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo algum desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar, assim, o direito da sociedade industrial (em suas determinações fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o Direito da sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da comunidade romana (MARX, 2011, p. 299).

 

            Marx explicitamente traz a categoria pessoa em oposição ao servus, determinando a primeira na medida em que aquilo que caracteriza a pessoa é sua conformação como indivíduo da troca.

E, deste modo, parece haver uma clara confirmação da tese pachukaniana. Os indivíduos figuram como pessoas ao passo que são capazes de adquirir propriedade por meio da troca. E, com isto, o autor de O capital explicita a correlação entre a troca, o Direito da sociedade capitalista nascente e a categoria pessoa, no caso, vista em oposição ao servus. Neste sentido, os Grundrisse corroboram parte importante da teorização presente em Teoria geral do Direito e o marxismo.

Porém, é preciso olhar as coisas com mais cuidado. Um primeiro aspecto a se destacar é que Marx traz a categoria pessoa jurídica, e não a categoria sujeito de direito. Faz isto, inclusive, em um sentido bastante distinto daquele da teoria do Direito, em que a concepção de sujeito de direito é uma constante. O autor alemão não opõe pessoa física à pessoa jurídica, mas traz a categoria pessoa e destaca uma dimensão dela, justamente a jurídica. E, assim, ao tratar da pessoa em seu sentido jurídico, Marx traz esta determinação à tona. Ele fala de pessoa jurídica (Juristichen Person) no original em alemão (MARX, 1983, p. 171); se Marx estivesse se referindo ao uso jurídico da expressão, estaria abordando um conjunto de bens e obrigações que são distintos dos indivíduos concretos e, na citação, e em todos os momentos que o autor utiliza a expressão (como veremos à frente), não é isto que ocorre. Ou seja, tem-se a igualdade entre as pessoas, certamente, tal qual ressaltado por Pachukanis. Porém, tal igualdade traz uma dimensão universal das pessoas em oposição aos servus sem que esta universalidade seja caracterizada em termos essencialmente jurídicos. Trata-se do indivíduo da troca, que está expresso na dimensão jurídica da pessoa, em que se tem aquilo características do “momento jurídico da pessoa e da liberdade” (MARX, 2011, p. 196), sem que se possa reduzir a pessoa e a liberdade a esta dimensão. Parece-nos, portanto, que a utilização da categoria pessoa por Marx pode trazer uma relação com o Direito, certamente. Mas não pode ser vista como algo que diz respeito somente à esfera jurídica; o contexto em que é empregada é certamente mais amplo. A concepção marxiana de pessoa envolve a compreensão do processo global de produção capitalista em seus diferentes momentos; tanto é assim que, ao trazer à baila o momento jurídico, é preciso que se especifique a que aspecto da pessoa está sendo feita referência (Cf. SARTORI, 2019 a).

Outro elemento que precisa ser destacado é a correlação entre trocas mercantis, a pessoa e o capitalismo. Ao passo que em Pachukanis isto se desenvolve efetivamente somente no modo de produção capitalista, Marx aproxima a troca e a dimensão jurídica da pessoa já nos Institutos do Direito romano, que são desenvolvidos em meio à dissolução da comunidade romana (römischen Gemeinwesens) (MARX, 1983, p. 171). Com isto, em Marx, efetivamente, tem-se um Direito pré-capitalista, no caso, o autor menciona o Direito romano. E mais, a questão essencial para os Grundrisse, na passagem, não é tanto o modo pelo qual as trocas engendram a pessoa, imbuída de igualdade jurídica, como em Pachukanis (2017). O importante a ser explanado é o desenvolvimento desigual entre a base material e o Direito, tendo-se como importante elemento deste processo o papel que o Direito romano exerceu na emergência da moderna sociedade civil-burguesa. A imposição do Direito da sociedade nascente na Idade média passa pala tomada de consciência por meio da forma ideológica do Direito romano; este último desenvolve-se com a dissolução da comunidade antiga, mas é efetivo também no nascimento da sociedade moderna. Vê-se, assim, que a correlação entre a troca mercantil e as relações jurídicas é bastante mais mediada do que pode parecer à primeira vista.

Tal aspecto nem sempre é destacado com o devido cuidado pela tradição pachukaniana brasileira. E, se há a pretensão de uma leitura cuidadosa de Marx, isto é essencial.

A questão possui importância, inclusive, “metodológica”. E, assim, não é possível concordar sem ressalvas com a posição de Márcio Naves, que se tornou canônica na crítica marxista ao Direito brasileira (Cf. CASALINO, 2011; MASCARO, 2012, 2018; ALMEIDA, 2016 b; KASHIURA, 2009), segundo a qual Pachukanis “retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano.” (NAVES, 2000, p. 16) Destacar tal aspecto é importante porque a exegese correta e rigorosa do texto marxiano, bem como a aplicação acertada do método do autor alemão, veio dando crédito aos pachukanianos. E, pelo que vemos, é necessário cuidado neste ponto. Com isto, aponta Marx:

 

A relação desigual do desenvolvimento da produção material com, por exemplo, o desenvolvimento artístico. Não conceber de modo algum o conceito de progresso na abstração habitual. Com a arte moderna etc., essa desproporção não é tão importante nem tão difícil de conceber quanto [a que ocorre] no interior das próprias relações prático-sociais. Por exemplo, a cultura [Bildung]. Relação dos Estados Unidos com a Europa. Mas o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as relações de produção, como relações jurídicas, têm um desenvolvimento desigual. Em consequência disso, p. ex., a relação do direito privado romano (nem tanto o caso no direito penal e no direito público) com a produção moderna (MARX, 2011, p. 89-90).

 

As determinações fundamentais do Direito da sociedade industrial já são efetivas nos indivíduos da troca, presentes já na dissolução da comunidade romana. Mesmo que a sociedade antiga não tivesse a troca plenamente desenvolvida – como viria a ocorrer na sociedade capitalista – isto já teria sido o suficiente para que as determinações da pessoa jurídica estivessem presentes. E, deste modo, chega-se a um ponto importante: não só Marx aponta a existência de um Direito anterior ao capitalismo; as bases fundamentais daquilo que Pachukanis acredita ser o essencial da esfera jurídica – para ele, colocada como tal só no capitalismo – já estão presentes na sociedade romana. E é preciso destacar que tal passagem citada acima já era de conhecimento do próprio autor de Teoria geral do Direito e o marxismo; ela figura na parte dos Grundrisse conhecida como Introdução de 1857.

A leitura marxiana, portanto, diferencia-se daquela de Pachukanis e dos pachukanianos.

Isto se dá, principalmente, ao se considerar o Direito privado romano, o qual tem uma relação e um desenvolvimento desigual diante de sua base material. “Metodologicamente”, portanto, ao considerar a análise marxiana sobre a esfera jurídica, é preciso ver a relação entre os conflitos sociais de determinado momento e as “formas ideológicas, sob as quais os homens adquirem consciência desses conflitos.” (MARX, 2009, p. 46) E isto remete a uma concepção de ideologia, e de formas ideológicas, que não se confunde como aquela das “falsas consciências”. (Cf. LUKÁCS, 2013)

E, se é verdade que uma concepção redutora sobre a ideologia era a mais corrente na época do autor soviético, talvez ela não tenha deixado de marcar – mesmo que de modo mediado (Cf. SARTORI, 2015) – certos aspectos da teorização do autor. E, assim, é preciso, de um lado, reconhecer os méritos do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo em sua leitura de Marx; doutro lado, porém, é preciso apontar os limites de tal interpretação e, por conseguinte, da leitura daqueles que se colocam na esteira da obra pachukaniana. Isto se dá até mesmo porque a explicitação da especificidade do Direito burguês ainda precisaria ser explicada para além da correlação entre a esfera de trocas e de circulação mercantil. Esta correlação já se desenvolve na dissolução da comunidade romana, sendo o essencial para a compreensão da esfera jurídica, em um primeiro momento, a análise do desenvolvimento desigual desta esfera do ser social diante de sua base material.

 

Direito, forma mercadoria, forma dinheiro e autonomização da esfera jurídica

 

            Pode-se dizer que, segundo Marx, as determinações essenciais do Direito da sociedade industrial já aparecem anteriormente a ela. Por isto, pode ser importante analisar a diferença específica da esfera jurídica moderna. E, se é verdade que ela aparece com as trocas de mercadorias – mesmo pouco desenvolvidas – igualmente verdadeiro é que é necessário remeter para além da forma mercadoria para que se compreenda a universalidade e a igualdade das pessoas jurídicas.

            Marx disse na Crítica ao programa de Gotha que “o Direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um igual padrão de medida” (MARX, 2012, p. 31). Pachukanis, por sua vez, não tarda a compreender tal afirmação reiterando a relação entre a forma jurídica[4] e a forma mercadoria. (2017) A troca equivalente ofereceria justamente este igual padrão, colocado no sujeito de direitos. (Cf. KASHIURA, 2009) Ou seja, o essencial seria a correlação entre a forma mercadoria e o Direito. (Cf. NAVES, 2000; MASCARO, 2012, 2018) Porém, se formos continuar a leitura dos Grundrisse – e, talvez, de O capital (Cf. SARTORI, 2020) – perceberemos que o papel da forma dinheiro no nivelamento dos indivíduos como pessoas iguais é tão importante quanto aquele da mercadoria. O essencial se coloca na realização do valor, tendo-se como pano de fundo do tratamento da esfera jurídica a teoria do valor, que, na esteira de Rubin (1987), foi compreendida por Pachukanis.

O clássico Teoria marxista do valor (de Rubin), porém, tem a tendência a reduzir a crítica marxiana das potências estranhadas da sociedade capitalista ao fetichismo da mercadoria. E, com isto, talvez a ênfase deste pensador, e do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo, venha a se assentar demasiadamente na forma mercadoria, deixando de analisar as metamorfoses dela no dinheiro e no capital. Destacamos a questão porque, em verdade, o que caracteriza o modo de produção capitalista não é a circulação de mercadorias, mas a subordinação desta à autovalorização do valor, em que este último “passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático.” (MARX, 1996 a, p. 273) Tem-se a subordinação à reposição da relação-capital. [5] E, nela, existem relações complexas entre as formas mercadoria, dinheiro e capital. E, assim, vale ver o papel que joga o dinheiro no processo tratado por Pachukanis. Logo depois da citação dos Grundrisse que trouxemos acima, diz Marx:

 

Como o dinheiro é unicamente a realização do valor de troca, e como o sistema de valores de troca só se realizou no sistema monetário desenvolvido ou inversamente, o sistema monetário só pode ser de fato a realização desse sistema da liberdade e igualdade. Como medida, o dinheiro só dá ao equivalente a expressão determinada, faz dele equivalente também de acordo com a forma. De fato, na circulação ainda emerge uma diferença na forma: os dois trocadores aparecem nas determinações diferentes de comprador e de vendedor; o valor de troca aparece uma vez como valor universal na forma do dinheiro, depois, como valor particular na mercadoria natural que tem um preço; mas, em primeiro lugar, essas determinações variam; a própria circulação não é uma desigualação, mas só uma igualação, uma supressão da diferença meramente imaginada. A desigualdade é puramente formal. Enfim, no próprio dinheiro como dinheiro circulante, dinheiro que ora aparece em uma mão, ora em outra, e que é indiferente frente a essa manifestação, a igualdade se põe inclusive de maneira objetiva. Considerado o processo de troca, cada qual aparece ante o outro como possuidor de dinheiro, até mesmo como dinheiro. Por isso, a indiferença e a equivalência estão explicitamente presentes na forma da coisa. A diversidade natural particular que existia na mercadoria está apagada e é constantemente apagada pela circulação. (MARX, 2011, p. 299-300)

 

            Ao falar do sistema monetário desenvolvido, Marx já se refere à moderna sociedade civil-burguesa. A diferença entre a dissolução da comunidade antiga romana e o capitalismo está substancialmente na colocação da relação-capital; com ela sobre os próprios pés, o valor rege a produção e, com isto, o sistema monetário está desenvolvido. A liberdade e a igualdade – tão importantes para a teoria pachukaniana – certamente se relacionam com a forma mercadoria. Porém, pelo que vemos, também há uma ligação bastante importante entre elas e a forma dinheiro. E tal aspecto, que foi desenvolvido por Rubin (2020) de modo a derivar o fetichismo do dinheiro diretamente do fetichismo da mercadoria, aparece, por vezes, de modo igualmente sem mediações tanto em Pachukanis quanto na tradição da crítica marxista ao Direito no Brasil.

            Tem-se, sobre o tema, um importante diferença nas formas econômicas. Ela advém justamente do pleno desenvolvimento do dinheiro na sociedade capitalista: a desigualdade entre compradores e vendedores, que é de grande relevo para a esfera da circulação capitalista de mercadorias, precisa de uma suplementar caracterização da pessoa proprietária e capaz de adquirir bens. Trata-se da pessoa que é proprietária de uma forma de riqueza que é exteriorizada como “forma universal de riqueza” em oposição à “riqueza real” (MARX, 2011, p. 300). Trata-se do valor de troca aparecendo na forma de valor universal em oposição ao valor particular das mercadorias. Os indivíduos certamente figuram como pessoas, portanto, tal qual colocou Pachukanis e como destacam os principais pachukanianos (Cf. NAVES, 2000, 2014; MASCARO, 2012, 2018), bem como seus mais diretos discípulos (Cf. KASHIURA, 2009, 2014; ALMEIDA, 2016 b). Mas a igualdade e a liberdade que são colocadas na esfera da circulação advêm primordialmente, não tanto da relação entre forma jurídica e forma mercantil, mas da ligação e oposição entre a forma dinheiro e a forma mercadoria. A circulação só consegue ser igualação porque o dinheiro é um nivelador, e não importa na mão de quem ele esteja (Cf. SARTORI, 2020). Ou seja, a mediação de formas econômicas como o dinheiro é essencial para que o Direito e a sua caracterização universalizante possam se conformar.

            A desigualdade entre as pessoas, que é colocada pela forma dinheiro em oposição à forma mercadoria não é superada na igualdade jurídica. Esta última, em verdade, não é o central na passagem marxiana; os possuidores de dinheiro encontram-se com os guardiões das mercadorias, portanto. E esta diferença na forma econômica aparece resolvida já na forma da coisa, que, por sua vez, supõe as metamorfoses das formas econômicas subsumidas ao capital. Assim, há de se notar: para que se possa tratar da circulação de mercadorias e de sua relação com o Direito, é preciso remeter não só àquilo que Marx, em O capital, chamaria de fetichismo da mercadoria. Deve-se compreender também o fetichismo do dinheiro, bem como sua especificidade. E, se, em hipótese alguma, é possível dissociá-los, igualmente verdadeiro é que não é possível trazer uma simples identidade.[6] A compreensão do modo de produção capitalista implica no reconhecimento da separação entre trabalhadores e meios de produção, certamente. Porém, ela não pode ser efetiva se não se passa pela relação entre as formas mercadoria, dinheiro e capital, em suas diversas figuras. (Cf. SARTORI, 2020)

Isto nem sempre é destacado por Pachukanis e por aqueles que o seguem. A desigualdade formal que caracteriza as pessoas, e as pessoas jurídicas em particular, portanto, não pode ser explicada a partir da centralidade de uma categoria jurídica como aquela do sujeito de direito. Antes, ela precisa do entendimento das oposições entre as formas econômicas, bem como da resolução parcial destas oposições, que remete à preservação das contradições fundantes do modo de produção capitalista. Antes que se possa passar a uma análise do Direito, é preciso ter isso em mente.

            No livro II e no livro III de O capital, Marx tratará com mais cuidado deste aspecto destacado acima (Cf. SARTORI, 2020). Porém, já nos Grundrisse, é possível visualizar a importância do tema, que também precisa ser visto em relação com a maneira pela qual a esfera da circulação de mercadorias tem a forma dinheiro como um elemento essencial. Deste modo, no mínimo, é necessário complementar a análise pachukaniana.[7] Isto se dá, como já mencionamos, porque o funcionamento do modo de produção capitalista traz consigo as metamorfoses da forma mercadoria em formas econômicas, como o dinheiro, que são bastante autonomizadas (Cf. SARTORI, 2019 b, c).

E, dessa maneira, ao falar da forma jurídica contratual, há de se reconhecer que, por meio dela, bem como pela vontade, desenvolvem-se relações jurídicas tendo por base as relações econômicas. Estas últimas pressupõem os indivíduos como proprietários e como guardiões de mercadorias – como Marx destaca no livro I de O capital, e como Pachukanis e a tradição pachukaniana sempre insistem – porém, tem-se algo mais; o autor alemão diz que “essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996 a, p. 79) E, com fundamento nestas colocações marxianas, foi trazida a centralidade da relação entre forma jurídica e mercantil, mas, em Marx, a “mercadoria universal dos contratos” (MARX, 2011, p. 300) é justamente o dinheiro. E, deste modo, faz-se necessário aprofundar a leitura sobre tal questão; tal ponto nos é essencial porque, ao tratar do tema, há menção direta ao sujeito:

 

Mas como o dinheiro aparece aqui como material, como mercadoria universal dos contratos, toda diferença entre os contratantes é, ao contrário, apagada. Se o dinheiro devém objeto da acumulação, o sujeito parece só retirar dinheiro da circulação, i.e., a forma universal da riqueza, desde que não retire dela mercadorias do mesmo preço. Logo, se um dos indivíduos acumula e o outro não, nenhum deles o faz às custas do outro. Um deles usufrui a riqueza real, o outro se apossa da forma universal da riqueza. Se um deles empobrece e o outro enriquece, esse é seu livre-arbítrio e não tem origem na própria relação econômica, no próprio vínculo econômico em que estão postos um em relação ao outro. A própria herança e outras relações jurídicas similares que perpetuam as desigualdades assim surgidas em nada afetam essa liberdade e essa igualdade naturais. Se a relação original do indivíduo A não está em contradição com esse sistema, essa contradição certamente não poderá se produzir porque o indivíduo B assume o lugar do indivíduo A, perpetuando-o. Trata-se, ao contrário, de uma vigência da determinação social para além do limite natural da vida: uma consolidação dessa determinação em face da ação contingente da natureza, cujo efeito enquanto tal seria muito mais a supressão da liberdade do indivíduo. Ademais, como o indivíduo nessa relação nada mais é do que a individuação do dinheiro, ele é enquanto tal tão imortal quanto o dinheiro, sendo sua representação por herdeiros, ao contrário, a efetivação dessa determinação (MARX, 2011, p. 300-301).

 

            A diferença entre os contratantes é apagada, não tanto devido à igualdade jurídica, mas em razão do conteúdo das relações jurídicas, que está nas relações econômicas mesmas. O sujeito aparece aqui como aquele que retira o dinheiro da circulação. E, assim, há dois pontos que precisam ser destacados de imediato sobe isso: primeiramente, a universalidade da igualdade dos sujeitos está correlacionada com a forma universal da mercadoria, colocada no dinheiro. Em segundo lugar, na passagem há também uma autonomização do Direito que é perceptível na medida em que as relações jurídicas têm como função, como no caso da herança, preservar o papel social de determinado indivíduo “para além do limite” de sua vida, parecendo prescindir de sua individualidade concreta.

Deste modo, o direito a se apropriar de parte da riqueza social tem uma autonomia relativa diante da função produtiva que gerou, em correlação com o processo produtivo, esta riqueza mesma. Ele nunca se afasta de sua determinação social, nem pode ser “emancipatório”; trata-se de algo que eleva a autonomização das formas econômicas ao plano jurídico. E, assim, em Marx, há mais que uma correlação entre o fetichismo da mercadoria e o Direito. Em verdade, o fetichismo do dinheiro também marca profundamente a conformação do Direito da sociedade capitalista.

            O primeiro ponto tem íntima ligação com o segundo ao passo que o indivíduo não figura só como proprietário; ele é uma individuação do dinheiro. Ou seja, o sujeito da relação social que Marx analisa não se coloca tanto como um guardião de mercadorias, mas de modo ainda mais abstrato e reificado, como individuação do Dinheiro. A riqueza aparece como uma monstruosa coleção de mercadorias. (Cf. MARX, 1996 a) Porém, a acumulação da riqueza necessita da forma dinheiro, que é forma universal de riqueza. E, sobre isto, é preciso dizer: é certo que uma forma social se metamorfoseia em outra, porém, há diferenças entre estas formas, que não podem sob hipótese alguma serem eclipsadas. No nosso caso, há de se destacar que as relações jurídicas passam a ter o seu conteúdo medido pela forma dinheiro de modo que, devido a ele, as diferenças entre as mercadorias são apagadas. A coisa se dá de tal modo que os indivíduos vêm a ter uma existência em função da autovalorização do valor, sendo representantes do dinheiro. E, na herança, por exemplo, por meio das relações jurídicas, as desigualdades sociais são perpetuadas também.

Para além da existência concreta dos indivíduos cuja atividade tem uma função no processo global de produção, continuam a existir formas de apropriação privadas; se antes elas eram exercidas por uma pessoa, passam a ser exercidas por outra, dado que ambas são individuações do dinheiro. Os indivíduos falecem e o dinheiro continua seu movimento. As metamorfoses das formas econômicas precisam deste papel ativo das relações jurídicas. Elas encaminham este conteúdo econômico. E vale destacar: tal aspecto, bastante importante para o funcionamento concreto do Direito e que já aparece na obra de Marx não é abordado por Pachukanis e por seus seguidores. Assim, reiteramos: a fidelidade pachukaniana, tanto ao método de Marx, quanto ao corpus de sua obra precisa ser repensada.

            E, no caso, isto precisa ser destacado ao termos em mente o tema aqui analisado: ao tratar destas relações jurídicas, acaba-se por abordar a apropriação e a distribuição da riqueza. E, com isto, a análise marxiana da esfera da circulação mercantil remete ao papel ativo do Direito na distribuição.

            Ou seja, não só é impossível dizer que o Direito em Marx está relacionado somente com a circulação de mercadorias, como também deve-se perceber que o autor de O capital enfatiza sua função na esfera da distribuição. Isto se dá ao passo que os indivíduos não se colocam somente como guardiões de mercadorias, e, portanto, sob o solo mais ou menos próximo do processo imediato de produção; eles são individuações do dinheiro e da riqueza abstrata e não particularizada, que se autonomiza diante do solo da produção material. As relações jurídicas atuam sob este conteúdo de modo igualmente autonomizado: ao mesmo tempo em que possuem uma ligação indissolúvel com a base real, encaminham relações econômicas que aparecem em formas econômicas estranhadas, como o dinheiro. O direito dos sujeitos retirarem o dinheiro da circulação pressupõe justamente esta autonomização das formas econômicas, que se desenvolve também em formas sociais como o Direito.

            E, deste modo, a autonomização das formas jurídicas passa pelo Estado, mas depende também da relação existente entre elas e a forma dinheiro, que é bastante mais distante da produção material que a forma mercadoria. Tanto é assim que o livre arbítrio se coloca nesta esfera ao passo que o empobrecimento e o enriquecimento parecem não ter origem nas relações econômicas, mas em relações jurídicas similares à herança, que perpetuam as desigualdades. Para Marx, claramente, a gênese e a perpetuação desta situação possuem raízes na produção material, e no modo pelo qual as formas econômicas se opõem na sociedade capitalista. Porém, na medida mesma em que não pode ter uma autonomia completa, a distribuição, tanto para a economia política quanto para a concepção jurídica, parece assentar-se sobre si mesma. Diz nosso autor que “para os economistas [...] a produção deve ser representada – veja, por exemplo, Mill –, à diferença da distribuição etc., como enquadrada em leis naturais eternas, independentes da história” no que continua dizendo que se tem uma “oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade in abstracto” (MARX, 2011, p. 59). E, “na distribuição, em troca, a humanidade deve ter se permitido de fato toda espécie de arbítrio” (MARX, 2011, p. 59). Se formos tomar o texto de Marx como referência, a crítica ao Direito deve adentrar nestes meandros com força.

            E, destacamos: nem Pachukanis nem seus seguidores fazem isso. Voltemos a Marx:

 

Isto se dá, não somente ao passo que Marx critica os proudhonianos nos Grundrisse, ou o próprio Proudhon em O capital; certamente, em alguma medida, tal aspecto é importante já que tais autores colocavam suas esperanças na regulamentação jurídica da distribuição de mercadorias e salários. Porém, isto ganha destaque porque são abundantes as referências marxianas ao papel ativo do Direito na distribuição, ao mesmo tempo em que a esfera jurídica passa longe de ser resolutiva das questões que aparecem nesta esfera das relações sociais de produção. Neste ponto, novamente, Marx adianta algo que trataria com bastante cuidado no livro III de O capital (Cf. SARTORI, 2019 b, c).

 

Nos Grundrisse, portanto, não há como ir além neste assunto específico. Porém, fica claro, para Marx, que é de enorme relevo o estudo da autonomização das formas econômicas e das formas jurídicas.

            Os indivíduos concretos conformam-se como pessoas e como sujeitos em meio a estas circunstâncias, que precisariam ser explanadas tendo em conta a própria produção. Embora não possam ser reduzidas às relações sociais de produção, as formas ideológicas, como o Direito, remetem – é verdade que de modo muito mais mediado do que se supõe normalmente – a elas. A tese pachukaniana segundo a qual há uma relação direta entre forma mercantil e jurídica, portanto, precisa ser criticada. Caso se queira fazer uma leitura atenta de Marx, isto é uma necessidade.

 

Direito, pessoa, sujeito e capacidade de trabalho

 

            Vimos acima como que a análise marxiana presente nos Grundrisse passa pela circulação de mercadorias, mas também leva à análise do papel do Direito na distribuição. Um fenômeno importante como a autonomização da esfera jurídica precisa ser compreendido ao se ter em conta tanto a oposição entre a forma mercadoria e a forma dinheiro quanto a distribuição do mais-valor já produzido na esfera da produção e realizado na circulação mercantil. Na obra marxiana, a correlação destas esferas, bem como daquelas da troca e do consumo, dão a tônica da crítica da economia política.

            Ao considerar os apontamentos de nosso autor sobre o Direito, isto é essencial, ao mesmo tempo em que se admite que a produção é o momento preponderante do processo global de produção.

            Justamente ao tratar da categoria sujeito, Marx enfatiza este fato:

 

O importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são considerados como atividades de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos aparecem em todo caso como momentos de um processo no qual a produção é o ponto de partida efetivo, e, por isso, também o momento predominante [übergreifende Moment] (MARX, 2011, p. 68).

 

            Assim, mesmo ao se considerar a distribuição, a circulação, o papel do Direito nelas e o desenvolvimento desigual da esfera jurídica diante da base material da produção, Marx volta-se à produção. E, com isto, talvez seja importante compreender a correlação entre a esfera produtiva e o grande tema pachukaniano, aquele que passa pela determinação mútua entre forma mercantil e forma jurídica (Cf. SARTORI, 2015). Como dissemos, um dos grandes méritos do autor soviético foi ter trazido o tema remetendo à lei do valor e ao fetichismo da mercadoria. Porém, aqui cabe uma indagação – que tentaremos responder a partir deste ponto de nosso escrito – sobre a posição das categorias sujeito e pessoa neste processo. Seria possível, neste contexto, trazer uma identidade entre estas categorias e o sujeito de direitos? Ao se ter em conta aquilo que o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo considera – a lei do valor e o fetichismo da mercadoria – não seria necessário considerar tais categorias em um contexto mais amplo? Para tratar disso, comecemos trazendo o pressuposto da venda da capacidade de trabalho (chamada em O capital de força de trabalho):

 

Antes de tudo, o primeiro pressuposto é que a relação de escravidão ou de servidão seja abolida. A capacidade de trabalho viva pertence a si mesma e dispõe, por meio da troca, da manifestação de sua própria energia. As duas partes se defrontam como pessoas. Formalmente, sua relação é a relação igual e livre de trocadores. Que essa forma seja aparência, e aparência enganosa, apresenta-se, considerada a relação jurídica, como algo situado fora desta. O que o trabalhador livre vende é sempre só uma medida determinada, particular, de manifestação de energia; acima de toda manifestação particular está a capacidade de trabalho como totalidade. O trabalhador vende a manifestação de força particular a um capitalista particular, com quem se defronta como indivíduo independente. É claro que essa não é a sua relação com a existência do capital como capital, i.e., com a classe dos capitalistas. Somente desse modo deixa-se, no que diz respeito à pessoa singular efetiva, um amplo espaço de escolha, de arbítrio e, em consequência, de liberdade formal. Na relação escravista, o trabalhador pertence ao proprietário singular, particular, de quem é máquina de trabalho. Como totalidade de manifestação de energia, como capacidade de trabalho, o trabalhador é uma coisa pertencente a outrem e, por conseguinte, não se comporta como sujeito em relação à sua manifestação de energia particular ou à ação viva do trabalho. Na relação de servidão, o trabalhador aparece como momento da própria propriedade fundiária, é acessório da terra, exatamente como os animais de tração. Na relação escravista, o trabalhador nada mais é do que máquina de trabalho viva que, por isso, tem valor para outros ou, mais precisamente, é um valor. Em sua própria totalidade, a capacidade de trabalho aparece diante do trabalhador livre como sua propriedade, como um dos momentos sobre o qual ele exerce o domínio como sujeito e que ele conserva ao alienar. Desenvolver isso mais tarde, no trabalho assalariado (MARX, 2011, p. 617-618).

 

Como vimos, a categoria pessoa desenvolve-se já na dissolução da comunidade romana. E algo similar se dá com as determinações essenciais do Direito industrial. Porém, na passagem, resta claro o acerto de Pachukanis (2017) ao relacionar a categoria pessoa, principalmente, com a emergência do capitalismo. As pessoas colocam-se na relação livre e igual de trocadores, que pressupõe a abolição da escravidão e da servidão. E, assim, embora não se possa dizer que o Direito seja uma forma ideológica existente somente no capitalismo, é possível verificar que, em Marx, ele se coloca sobre bases particularmente sólidas neste modo de produção. E isto se dá ao passo que o essencial a este sistema social é venda da capacidade de trabalho dos trabalhadores (posteriormente, analisada por Marx ao se ter em conta a mercadoria força de trabalho) a um capitalista particular.

Os indivíduos independentes que menciona Marx figuram nesta relação social de compra e venda como pessoas de uma relação igual e livre que se dá na troca, tendo-se nesta forma – na troca – algo de enganoso e cuja relação jurídica parece situar-se fora da relação econômica. Ou seja, a troca parece subsistir por si mesma, independentemente das determinações da produção [8] – mesmo que isto seja impossível – e a relação jurídica, por sua vez, aparece na troca como algo exterior. Isto, porém, dá-se somente na medida em que se considera a pessoa em sua atomização, liberdade e a arbítrio.

O tema seria tratado com bastante cuidado pelo autor ao analisar o caráter fetichista da mercadoria; aqui, porém, Marx enfatiza que a formação desta figura da individualidade vem justamente com o modo de produção capitalista, em que não se está mais acoplado seja à propriedade fundiária, como na servidão, ou aos instrumentos de produção como na escravidão. Ou seja, ao tratar da categoria pessoa, nos Grundrisse, o essencial é a correlação entre a circulação, a distribuição e a produção. A ênfase está no contexto da crítica da economia política, e não da crítica às categorias jurídicas, como, por vezes, alguns pachukanianos parecem sugerir; estas últimas categorias aparecem subordinadas às categorias econômicas. E, assim, é certo que há uma dimensão jurídica na pessoa; porém, a significação das dimensões multifacetadas da pessoa e da liberdade são muito maiores. Trata-se de um processo contraditório em que, com a oposição entre formas econômicas, dá-se e desenvolvimento da individualidade moderna. Nessa, potências estranhadas e indivíduos universalmente desenvolvidos são determinações de reflexão. Trata-se de analisar como que se tem as diversas dimensões da individualidade como um produto histórico da atividade humana, relacionado tanto a uma condição estranhada quanto ao incremento das capacidades dos indivíduos:

 

A conexão é um produto dos indivíduos. É um produto histórico. Faz parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento. A condição estranhada [Fremdartigkeit] e a autonomia com que ainda existe frente aos indivíduos demonstram somente que estes estão ainda no processo de criação das condições de sua vida social, em lugar de terem começado a vida social a partir dessas condições. É a conexão natural e espontânea de indivíduos em meio a relações de produção determinadas, estreitas. Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades (MARX, 2011, p.164).

           

Em Marx, os indivíduos têm consigo a universalidade e a multilateralidade de suas relações e habilidades, ao mesmo tempo em que os imperativos da produção capitalista procuram circunscrevê-lo a uma mera função da autovalorização do valor (Cf. SARTORI, 2018 a). De acordo com o texto dos Grundrisse, a superação da conexão natural e espontânea traz, na sociedade capitalista, a conexão estranhada entre os indivíduos; ao mesmo tempo em que objetivamente suas individualidades se formam somente em conexão, há oposição entre elas. E a forma pela qual se dá esta oposição tem por base a venda da capacidade de trabalho, ou seja, a existência do trabalho assalariado.

Tratar da pessoa faz com que se reconheça que há uma importante dimensão jurídica nela. Porém, também leva ao entendimento de que, em oposição aos indivíduos subsumidos à máquina ou à propriedade fundiária, surgem pessoas que, ao mesmo tempo, são indivíduos universalmente desenvolvidos em sua multilateralidade e estão submetidos ao processo de autovalorização do valor. “A categoria pessoa acompanha esta problemática, essencial a Marx." (Cf. SARTORI, 2018 a)

A oposição entre as pessoas do capitalista e do trabalhador efetivamente traz, como disse Marx, “à pessoa singular efetiva um amplo espaço de escolha, de arbítrio e, em consequência, de liberdade formal” (MARX, 2011, p. 618); porém, isto se dá ao passo que estas escolhas e arbítrio estão limitadas pelas possibilidades da esfera produtiva. E, novamente, o que está em jogo ao tratar do papel da categoria pessoa na esfera da circulação de mercadorias não é tanto a caracterização jurídica do fenômeno, mas as interrelações entre a esfera da produção e da circulação. E isto pressupõe a conformação da individualidade moderna, com suas contradições, potencialidades e limitações.

No que se tem algo bastante importante a ser destacado, e que remete a um tema muito importante em O capital (MARX, 1996 a): a relação entre pessoas e coisas.  Para nosso autor, “o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada por coisas.” (MARX, 1996 b, p. 384) E, nesta passagem, resta não só a impossibilidade de se compreender a noção de pessoa como um sinônimo de sujeito de Direito; há também justamente o contexto mais amplo que mencionamos acima. De modo mais diretamente relacionado ao nosso tema, diz Marx sobre os produtores e o produto de seu trabalho: “aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.”  (MARX, 1996 a, p. 199) Em O capital, portanto, há uma relação direta entre o tema da pessoa e a reificação das relações sociais, que objetivamente ocorre no sistema capitalista de produção. E, ao tratarmos dos Grundrisse, isto também se dá: a capacidade de trabalho do indivíduo aparece a ele de modo estranhado. Ele figura como um trabalhador livre que pode dispor de sua propriedade, no caso, sua própria capacidade de trabalho. Ou seja, os atributos de sua capacidade aparecem a ele como uma coisa. E, nesta medida, ele é reconhecido como um proprietário. Ele pode vender sua capacidade de trabalho como assalariado e, assim, dispor de fatores e momentos de si mesmo como sujeito.

Na medida mesma em que a existência social dos indivíduos é reificada eles aparecem como sujeitos. Isto explicita-se nos Grundrisse tal qual em O capital, em que Marx menciona o valor como “o sujeito automático” (MARX, 1996 a, p. 273). Para o tema que nos diz respeito, isto é muito importante. Tal ocorre porque há uma correlação entre o Direito, a circulação, a produção, a venda da capacidade de trabalho, a categoria pessoa e a categoria sujeito. E, pelo que podemos notar, o autor alemão traz um contexto bastante mais amplo que o jurídico para a sua análise. Ao mesmo tempo em que a análise pachukaniana é muito perspicaz ao analisar a teoria do valor e a correlação entre a produção e a circulação ao tratar da categoria pessoa, ela – caso não se tome o devido cuidado – corre um risco grave, que é reduzir a categoria pessoa à sua dimensão jurídica.[9] E, com isto, tem-se também outro ponto que corre o risco de ficar de lado, aquele atinente à crítica marxiana ao modo pelo qual o sujeito aparece na sociedade capitalista, como algo que supõe a reificação das relações sociais (Cf. SARTORI, 2019 a, 2020). E, assim, o trabalho de Pachukanis na interpretação da obra de Marx é grandioso, mas, caso se queira ser fiel ao legado marxiano, é preciso também rumar para além dele. E é necessário rever alguns dos pontos de partida do autor soviético, e de seus seguidores.

Ainda passando pelo tema clássico de Pachukanis, diz Marx o seguinte sobre o modo pelo qual a produção aparece aos clássicos da economia política. Segundo nosso autor, ela:

 

Constitui o motivo para a integração desses indivíduos, para a sua relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da liberdade. Ainda que o indivíduo A sinta necessidade da mercadoria do indivíduo B, não se apodera dela pela força, nem vice-versa, mas reconhecem-se mutuamente como proprietários, como pessoas cuja vontade impregna suas mercadorias. Em decorrência, aqui entra de imediato o momento jurídico da pessoa e da liberdade, na medida em que está contida na primeira. Nenhum deles se apodera da propriedade do outro pela força. Cada um a cede voluntariamente. Mas isso não é tudo: o indivíduo A serve à necessidade do indivíduo B por meio da mercadoria a somente na medida em que, e porque, o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para servir a si mesmo; cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio. Ambos os aspectos estão agora presentes na consciência dos dois indivíduos: 1) que cada um só alcança seu objetivo à medida que serve como meio para o outro; 2) que cada um só devém meio para o outro (ser para outro) como fim em si mesmo (ser para si); 3) que a reciprocidade, segundo a qual cada um é ao mesmo tempo meio e fim, e de fato só alcança seu fim à medida que devém meio, e só devém meio à medida que se põe como fim em si mesmo; que, portanto, cada um se põe como ser para outro à medida que é ser para si, e que o outro se põe como ser para ele quando é ser para si mesmo – que essa reciprocidade é um fato necessário, pressuposto como condição natural da troca, mas que é, enquanto tal, indiferente para cada um dos dois trocadores, e essa reciprocidade tem interesse para o indivíduo apenas na medida em que satisfaz seu interesse, como interesse que exclui o interesse do outro, sem ligação com ele. O que significa dizer que o interesse comum, que aparece como motivo do ato como um todo, é certamente reconhecido como fato por ambas as partes, mas não é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer, por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do interesse singular contraposto ao do outro. Sob esse último aspecto, o indivíduo pode ter no máximo a consciência reconfortante de que a satisfação de seu interesse singular contraditório é justamente a realização da contradição superada, do interesse social universal” (MARX, 2011, p. 296-297).

 

Marx fala do momento jurídico da pessoa e da liberdade. E, assim, há de se perceber, primeiramente, que há outros momentos tanto da categoria pessoa quanto da categoria liberdade.

Depois, porém, é preciso ressaltar que o momento jurídico entra de imediato; e, assim, fica na superfície. Ele encaminha relações sociais, mas não as cria. O processo pelo qual tais relações sociais são criadas é aquele em que se coloca “o ser-para-si autônomo do valor perante a capacidade de trabalho – daí sua existência como capital”; e continua Marx dizendo que se tem aí “a indiferença objetiva autossuficiente, a estranheza das condições objetivas do trabalho perante a capacidade de trabalho viva”, a qual, por sua vez “chega ao ponto em que essas condições confrontam a pessoa do trabalhador na pessoa do capitalista” (MARX, 2011, p. 600). Ou seja, por mais que a dimensão jurídica da pessoa e da liberdade sejam essenciais ao funcionamento da circulação capitalista de mercadorias, o que rege este processo social é autovalorização do valor, que sujeita os indivíduos ao processo produtivo capitalista a partir de determinada configuração das relações de produção.

Trata-se do processo mencionado, em que as potencialidades dos indivíduos universalmente desenvolvidos se conformam por meio de sua integração, de imediato, como trocadores, como guardiões das mercadorias, individualizações do dinheiro etc. Ou seja, o momento jurídico da pessoa e da liberdade se subordina às contradições do sistema produtivo capitalista. Os fatores e momentos que se impõem aos indivíduos ao mesmo tempo, desenvolvem suas integração e reciprocidade de um lado e, doutro, trazem suas atomização e oposição. O processo de constituição do mercado mundial é aquele pelo qual os indivíduos universalmente desenvolvidos se põem como possibilidade; mas a perpetuação deste mercado significa o aviltamento destes indivíduos (Cf. SARTORI, 2018 a).

            Marx demonstra como que a individualidade se apresenta nestas figuras antagônicas, tendo-se na mesma pessoa o proprietário, atomizado e o indivíduo universalmente desenvolvido. A correlação entre estes momentos da pessoa e da liberdade é antagônica, de modo que o interesse comum e o interesse singular se opõem objetivamente; ao mesmo tempo, porém, reconciliam-se em uma figura social do interesse – o interesse social universal – que mantém intactos todos os pressupostos do modo de produção capitalista. E é este último que dá origem às contradições mencionadas. Ou seja, a análise marxiana busca enxergar como que o desenvolvimento econômico objetivo da sociedade capitalista traz a correlação entre as diversas dimensões da pessoa e da liberdade. De acordo com o autor, elas são efetivas na medida em que as coisas vêm a dominar os homens, estes últimos que aparecem, de imediato, não como indivíduos universalmente desenvolvidos, mas como “proprietários, como pessoas cuja vontade impregna suas mercadorias” (MARX, 2011, p. 296). E, assim, também por este ângulo, vê-se que há uma correlação importante entre as relações jurídicas e o reconhecimento de relações sociais reificadas. (Cf. SARTORI, 2019 a)

Em meio a estas relações reificadas, Marx traz ainda outro aspecto importante: a correlação entre meios e fins. Os indivíduos se colocam, ao mesmo tempo, como meios e fins na circulação de mercadorias; porém, isto se dá em uma forma de reciprocidade cujos interesses são, ao mesmo tempo, contrapostos e estão reconciliados no interesse social universal, que, por sua vez, traz consigo a autovalorização do valor, o qual aparece como sujeito automático. A passagem marxiana, assim, é bastante rica, inclusive, para que se possa desenvolver uma teorização sobre a moral a partir dela[10]; porém, tal qual o centro dos estudos do texto que aqui analisamos não é o Direito, também não é a moral. Tanto o desenvolvimento de uma crítica à moral quanto à esfera jurídica podem partir destes apontamentos de Marx, porém, não há como encontrar uma tematização de uma teoria moral ou de uma teoria do Direito em nosso autor. A segmentação do conhecimento nos termos destas teorias gerais é algo posterior a Marx, e que, em verdade, em sua forma incipiente, como em Bentham ou Austin, já foi fortemente criticado pelo nosso autor.[11] E, assim, é preciso que se volte ao raciocínio marxiano: o fato de as relações serem reificadas significa que elas ocorrem com certo automatismo.

            O fato de tal processo se dar por meio do Direito e não da força é bastante importante para nosso tema. Ao contrário do que ocorre em outros modos de produção, em que o encaminhamento das relações econômicas aparece com o papel preponderante e imediato da violência, ou da guerra, no capitalismo, tem-se o automatismo de uma potência social estranhada; e isto, por sua vez, traz um processo econômico que passa às costas dos indivíduos. E, com isto, notamos que os proprietários de suas próprias capacidades (reificadas) encaminham relações econômicas por meio de uma dimensão da pessoa e da liberdade que aparece de imediato na circulação de mercadorias, a jurídica.

Porém, encaminhar relações não significa criá-las; antes, isto traz consigo o reconhecimento do processo social que aqui procuramos destacar. Neste processo, há uma oposição entre pessoas e coisas; as últimas são dominadas pelos indivíduos que, como sujeitos, têm papel ativo justamente ao se sujeitarem ao movimento delas. Eles subsumem-se à metamorfose das coisas em mercadorias, e em diversas formas econômicas, como a forma mercadoria, a forma dinheiro e o capital. Ou seja, as pessoas atuam como sujeitos dominando as coisas somente na medida em que são dominadas por elas no processo capitalista, que é aquele de autovalorização do valor. (Cf. SARTORI, 2018 a)

            Tal análise é bastante importante para Marx, que se opõe a Hegel também sobre este aspecto.[12]

Ao passo que o autor da Filosofia do Direito enxerga no Direito – que atua como um portador da vontade estatal – o sujeito deste processo, em Marx, é a sociedade que figura nesta posição. Para nosso autor, “o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação” (MARX, 2011, p. 297), não sendo possível, desde 1843, aceitar a inversão hegeliana entre sujeito e predicado, que inverte também a real relação entre realidade efetiva e fenômeno.[13]

Este questionamento da relação entre sujeito e predicado está nos Grundrisse também.

Pelo que vimos aqui, o momento jurídico da pessoa e da liberdade aparece justamente como fenômeno, ou seja, de imediato; e, assim, o esforço de Marx vai no sentido de compreender o elemento jurídico como algo que, embora encaminhe relações sociais, é essencialmente um resultado (se quisermos utilizar outra dicção, um predicado) da conformação objetiva destas relações. Elas, por sua vez, têm por base a venda da capacidade de trabalho de um lado e, doutro, a compra desta capacidade para que se incremente o capital. E, assim, tem-se a oposição entre capitalistas e trabalhadores como algo basilar às trocas e à circulação de mercadorias no capitalismo. E, ao analisar o sistema capitalista de produção não seria possível inverter a relação entre a sociedade civil-burguesa e o Estado; se, como disse Marx na Contribuição da crítica da economia política, “a anatomia da sociedade civil-burguesa deve ser procurada na economia política” (MARX, 2009. p. 47), a questão nos é essencial já que a crítica da economia política deve partir da compreensão justamente desta anatomia, em que as formas econômicas engendram as possibilidades objetivas sobre as quais atuam as formas políticas e jurídicas, e não o oposto. Marx critica Hegel por partir do sujeito de direito na análise da sociedade civil-burguesa: “Hegel, por exemplo, começa corretamente a filosofia do direito com a posse como a mais simples relação jurídica do sujeito” e continua dizendo: “mas o substrato mais concreto, do qual a posse é relação, é sempre pressuposto” (MARX, 2011, p. 79), de modo que o procedimento e o método hegeliano, e também da economia política, seriam equivocados.

No que, ao voltarmos mais diretamente ao nosso tema, é preciso destacar que Marx é explícito sobre a relação entre sujeito, valor, relações jurídicas e troca mercantil:

 

Pelo próprio ato da troca, o indivíduo, cada um dos indivíduos, está refletido em si mesmo como sujeito exclusivo e dominante (determinante) do ato da troca. Com isso, portanto, está posta a completa liberdade do indivíduo: transação voluntária; nenhuma violência de parte a parte; posição de si como meio, ou a serviço, unicamente como meio de se pôr como fim em si, como o dominante e o prevalecente; enfim, o interesse egoísta, que não realiza nenhum interesse superior; o outro também é reconhecido e conhecido como sujeito que realiza seu interesse egoísta exatamente da mesma maneira, de modo que ambos sabem que o interesse comum consiste precisamente na troca do interesse egoísta em sua bilateralidade, multilateralidade e autonomização. O interesse universal é justamente a universalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Como ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência. E isso também se verifica historicamente. A igualdade e a liberdade nessa extensão são exatamente o oposto da liberdade e igualdade antigas, que não têm justamente o valor de troca desenvolvido como fundamento, mas se extinguem com seu desenvolvimento. Elas pressupõem relações de produção que ainda não haviam se realizado no mundo antigo nem tampouco na Idade Média. O trabalho compulsório direto é o fundamento do mundo antigo; a comunidade repousa sobre ele como suporte real; na Idade Média, prevalece como fundamento o próprio trabalho como privilégio, ainda em sua particularização, não como trabalho produzindo universalmente valor de troca. O trabalho não é nem compulsório nem, como no segundo caso, tem lugar em respeito a uma entidade comunal como algo superior (corporações).  (MARX, 2011, p. 297-298)

 

A conformação dos indivíduos como sujeitos é um resultado da atomização destes. Diz Marx que eles são exclusivos e dominantes no ato de troca, em que se tem a transação voluntária, que se dá sem o uso imediato da violência. Neste contexto tem-se a igualdade dos sujeitos colocada pela forma econômica da troca. O conteúdo e a matéria deste ato de troca, por sua vez, trazem a liberdade. E, assim, há algumas questões importantes para o nosso tema: a relação entre a forma e o conteúdo do ato de troca, a maneira pela qual aparece a vontade (livre), a relação entre o valor de troca e a circulação de mercadorias, a igualdade dos sujeitos, o trabalho livre e oposição ao privilégio, bem como a emancipação diante de qualquer entidade comunal. No que é preciso que analisemos isso.

Primeiramente, há de se apontar que, em oposição ao uso direto da violência, tem-se o encaminhamento das relações econômicas por meio do Direito. Por isso, diz Marx que o papel ativo desta esfera do ser social se dá enquanto as ideias de liberdade e de igualdade se colocam no terreno do Direito, não como meros epifenômenos e reflexos passivos; elas são “desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência.” (MARX, 2011, p. 297)

Ou seja, há de se perceber que estas formas ideológicas operam na medida em que não há violência de uma parte diante da outra. Ao mesmo tempo, porém, os sujeitos se colocam como portadores de relações sociais estranhadas, não estando diretamente relacionados com o processo produtivo, mas colocando a base econômica em outra potência. Assim, por meio de relações jurídicas, as relações econômicas são encaminhadas em outro patamar, tendo-se a forma da transação voluntária colocada pela troca e o conteúdo da liberdade trazido pela compulsão da autovalorização do valor.

Pelo ato de vontade, tem-se uma transação em que, por meio do interesse egoísta, chega-se ao comum acordo, à bilateralidade, à multilateralidade, mas também à atomização. E, deste modo, o fato de se desenvolverem relações econômicas em outra potência traz consigo indivíduos, ao mesmo tempo, como sujeitos dominantes e exclusivos e como fins em si mesmos. Porém, isto só pode ocorrer ao passo que o valor de troca é a base de todo este processo, que domina os indivíduos. E eles aparecem ora como guardiões de mercadorias, ora como individualizações do dinheiro. Por conseguinte, a violência não se coloca como determinante do ato de troca. Mas o encaminhamento deste pelo Direito (que traz consigo a transação voluntária) depende da base de toda liberdade e igualdade desta esfera, e esta assenta-se justamente sobre o valor. O interesse universal aparece ligado à autovalorização do valor, e ao aviltamento dos indivíduos concretos. (Cf. SARTORI, 2018 a)

A vontade livre dos sujeitos iguais expressa-se na troca do interesse egoísta; e, assim, o interesse egoísta tem como suposto também a bilateralidade e a multilateralidade. Ao mesmo tempo, porém, a completa liberdade do indivíduo, que menciona Marx, significa a subordinação desse ao valor de troca e ao processo de extração do trabalho excedente (que Marx chamará em O capital de mais-trabalho). Ou seja, a integração pelo mercado capitalista, em que os indivíduos são pessoas e sujeitos, é também a atomização destes e a sua subordinação ao processo econômico. Assim, há uma universalidade posta pelo próprio processo global de produção capitalista, certamente. Mas ela é essencialmente antagônica: “o interesse universal é justamente a universalidade dos interesses egoístas.” (MARX, 2011, p. 297) E, no Direito, tal universalidade, expressa através da relação entre a forma da troca e a igualdade, traz essa base econômica em outra potência. A liberdade que aparece neste campo, por sua vez, tem como conteúdo e material a preponderância do valor, que, por sua vez, só pode se exteriorizar por meio da dependência diante do trabalho assalariado e da alienação e da venda do que Marx chama nos Grundrisse de capacidade de trabalho. E, assim, novamente, tem-se a correlação entre as esferas da produção e da circulação na análise do ato de troca. Tal relação, como bem compreendeu Pachukanis (2017), dá a tônica de parte importante da análise marxiana do Direito.

No que se coloca outro ponto sobre isto. Marx traz aqui a comparação de tal situação com aquela do mundo antigo e da Idade Média. E, com isto, chega-se a um elemento que também foi bastante enfatizado pelo auto da Teoria geral do Direito e o marxismo, a relação do Direito com a sociedade capitalista. Pelo que se vê, a análise pachukaniana, caso se leve a sério os Grundrisse, tem grande parcela de acerto. Mesmo que a ênfase de Marx seja diferente daquela do autor soviético, ambos destacam que as condições de produção modernas dão um conteúdo completamente diferente à igualdade e à liberdade que aquele explícito na antiguidade. No lugar do trabalho compulsório, tem-se o trabalho formalmente livre e regido pela valorização do valor. Há também uma atomização dos sujeitos que só pode ser efetiva com a supressão das entidades comunais, bem como dos privilégios. E, assim, há uma oposição bastante clara entre a liberdade e a igualdade da sociedade capitalista diante daquelas que estão na sociedade antiga, baseada no trabalho escravo, e na sociedade da Idade Média, baseada na ligação do trabalhador à propriedade fundiária. Tal questão, como outras, traz um reforço à teorização de Pachukanis, que parte de O capital e da correlação entre lei do valor e Direito.

Porém, pelo que vimos acima, também é preciso que se volte os olhos com mais cuidado ao fetichismo do dinheiro, bem como para a autonomização do Direito e para o papel da esfera jurídica na distribuição; deve-se, assim, colocar o principal tema pachukaniano sob o solo em que está em Marx, aquele da crítica da economia política, solo este que o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo não pode escavar  com todo o rigor, tanto devido à não publicação de parte do material marxiano (como os próprios Grundrisse em sua totalidade) quanto devido a uma ênfase bastante clara no livro I de O capital em detrimento dos livros II e III. (Cf. SARTORI, 2020) No autor alemão, em verdade, a correlação entre pessoas e coisas é essencial na medida em que está inserida nos próprios meandros da atividade econômica; o Direito, por sua vez, precisa ser visto em seu desenvolvimento desigual diante das condições materiais de produção; as determinações da esfera jurídica, como vimos, em essência, já aparecem na dissolução da comunidade romana; os indivíduos exteriorizam-se também como individualizações do dinheiro por meio de relações jurídicas, como aquelas da herança; e, por fim, há toda uma teorização sobre o sujeito como algo, ao mesmo tempo, dominante e exclusivo e subordinado à autovalorização do valor. E, com isto, se é impossível não contar com o auxílio de Pachukanis (e dos pachukanianos) na crítica marxista ao Direito (e em especial com a especificidade brasileira desta), caso se queira fazer jus ao legado marxiano, é preciso que se remeta para uma compreensão de Marx que ultrapassa a destes autores, não obstante suas contribuições.

 

Apontamentos finais

 

            Ao buscar compreender o Direito na obra de Marx, a produção é o momento preponderante do processo global de produção, e não só porque isto é basilar à compreensão do autor. Embora seja sempre importante ressaltar tal aspecto, deve-se também apontar que isto se dá porque na esfera jurídica, é reconhecida a “separação absoluta entre a propriedade, i.e., as condições materiais do trabalho, e a capacidade de trabalho viva” tendo-se, deste modo, “condições materiais que se confrontam com ela como propriedade alheia, como a realidade de outra pessoa jurídica”(MARX, 2011, p. 600); e, assim,  há certa naturalização da separação entre produtores e os meios de produção, como apontaram Pachukanis e a tradição pachukaniana. Porém, isto traz consigo uma peculiar inversão entre sujeito e predicado: ao passo que os indivíduos produzem as mercadorias, “o resultado total do trabalho (tanto do trabalho excedente como do necessário) foram postos como capital, como valor de troca confrontando de maneira autônoma e indiferente a capacidade de trabalho viva” (MARX, 2011, p. 600), sendo o processo produtivo compelido à reprodução justamente do capital. Assim, a própria capacidade de trabalho figura como uma coisa, e “o trabalho aparece consequentemente como trabalho alheio perante o valor personificado no capitalista ou perante as condições objetivas de trabalho” (MARX, 2011, p. 601). Tem-se a “mera capacidade de trabalho separada das condições de sua efetivação – e pôs essas próprias condições como coisas, valores, que a confrontam em uma personificação estranha e dominante” (MARX, 2011, p. 601).

            A inversão que destacamos ocorre também ao considerarmos algo que não é uma mera coincidência: Marx utiliza os mesmos adjetivos para falar deste processo (que passa pela reificação e pela autonomização de formas sociais) e para referir-se ao sujeito. E, assim, a vontade livre do sujeito da troca não é colocada imediatamente pela forma mercadoria, mas pelo conteúdo e material que advém da autovalorização do valor. A forma do ato de troca, por sua vez, determina a forma igual pela qual os sujeitos se reconhecem como proprietários. E, assim, não há como não deixar de relacionar as formas jurídicas e a universalidade expressa no Direito com este processo, como, novamente, bem destacou Pachukanis. Ao mesmo tempo, é preciso perceber: a forma da troca justamente traz consigo a oposição entre a forma mercadoria e a forma dinheiro, de modo que a igualdade e a liberdade que existem na circulação de mercadorias dependem muito mais da correlação entre estas formas econômicas, que estão subordinadas à forma capital, do que da igualdade jurídica.

E, assim, neste ponto, a análise pachukaniana é muito proveitosa, mas talvez enfatize demais a dimensão jurídica da pessoa e da liberdade em detrimento de uma análise mais mediada da relação entre forma mercadoria e Direito. Para Marx, tais dimensões da pessoa e da liberdade não são as essenciais a se compreender neste processo, por mais que ele não prescinda delas. Mesmo que elas sejam bastante importantes, elas somente levam a sua base real a outra potência. Isto certamente não é pouco, e se relaciona com o fato de o processo econômico não ser operacionalizado diretamente pela violência. Mas, isto precisa ser explanado remetendo ao Direito com mais mediações do que normalmente se admite. Neste sentido, é preciso de uma escavação mais detida nas relações econômicas e, em especial, da relação entre as diversas esferas da economia e as formas econômicas.

            Esta compreensão pressupõe a análise cuidadosa da relação entre pessoas e coisas, em que os indivíduos se colocam como sujeitos ao passo que são subordinados à autovalorização do valor.

            No entanto, é necessário trazer também outro lado da análise marxiana: o fato de a autonomização do Direito diante das condições materiais, bem como seu desenvolvimento desigual serem centrais à sociabilidade capitalista. Sem que se perceba deste aspecto, não é possível sequer apreender a especificidade da esfera jurídica nesta sociedade. Isto se dá, primeiramente, porque, em Marx, a dimensão jurídica da pessoa já está desenvolvida, em suas determinações essenciais, na dissolução da comunidade romana. Porém, o mais importante é que a compreensão do Direito pressupõe a sua autonomia relativa, que se coloca, principalmente, na esfera da distribuição, mas que pode ser vista também quando se volta os olhos à “separação absoluta entre propriedade e trabalho, entre a capacidade de trabalho viva e as condições de sua realização, entre trabalho objetivado e vivo, entre o valor e a atividade criadora de valor” (MARX, 2011, p. 601). Com isto, os proprietários têm o direito de apropriarem-se do valor (mais precisamente, para que se use a dicção de O capital, do mais-valor) mesmo apartados do processo produtivo. E, deve-se dizer: a questão é de grande relevo tanto na obra de Marx quanto no capitalismo contemporâneo, já que a tendência (analisada pelo autor no livro III) à separação entre a propriedade e a função (Cf. SARTORI, 2019 b, c) na produção cada vez mais efetiva-se em uma economia em que a forma de organização empresarial é a sociedade por ações e o investimento passa tanto pelo papel do Estado quanto da bolsa de valores.

A análise de Marx seria muito insuficiente se não considerasse estes aspectos. E uma crítica marxista ao Direito que não passe por tais elementos é insuficiente. O que se dá, também nos Grundrisse, é, antes, de acordo com os elementos que trouxemos, o oposto. Há um rico tratamento destas questões, as quais, mesmo que de modo mediado, remetem a uma crítica ao Direito.

Estes fatos, ligados à autonomização do Direito diante do processo imediato de produção, precisam ser ressaltados ao se estabelecer uma crítica efetiva à anatomia da sociedade civil-burguesa. A conjugação deles com as relações jurídicas, como aquelas advindas da herança, perpetuam muitas das desigualdades desta sociedade. E, deste modo, o estudo da esfera da distribuição e de sua relação com o Direito nos parece essencial. Neste campo, o papel ativo da regulamentação jurídica é muito relevante; porém, tudo se dá ao passo que o processo de produção de mais-valor resta absolutamente intocado. A distribuição mostra-se como se pudesse ser autônoma e toda a espécie de arbitrariedade parece ser possível, também, por meio de transações jurídicas. Ou seja, a riqueza social – já com o dinheiro como padrão de medida inquestionável na acumulação de capital – é apropriada por aqueles que têm direito, como proprietários, a ela. Seja ao se tratar dos acionistas, seja ao se ter em mente o capital portador de juros, há formas jurídicas que encaminham as relações econômicas. Na medida em que estas formas jurídicas (e as figuras econômicas a elas relacionadas, como os juros, o lucro, a renda) têm considerável grau de autonomização diante da produção material e do processo imediato de produção, parece ser possível – segundo nosso autor, sem nunca o ser de fato – contrapor-se ao sentido do processo econômico capitalista por meio do Direito. E isto deve ser tratado com todo o cuidado pela crítica marxista ao Direito. A partir da consideração do sujeito de direito é possível tal tratamento. Porém, acreditamos que isto pode ser feito de modo mais rico ao considerarmos estes aspectos da obra de Marx, que infelizmente não puderam ser tratados por Pachukanis com todo o cuidado e que não têm aparecido na crítica marxista ao Direito brasileira.

 

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[1] Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal – em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)

[2] Veja-se a passagem: “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma” (MARX, 1996 a, p. 79).

[3] Para uma análise mais detida dos aspectos presentes nesta passagem, Cf. SARTORI, 2020.

[4] Pachukanis fala de forma jurídica, ao passo que Marx, no livro III principalmente, analisa as formas jurídicas. Aqui, porém, não podemos analisar a questão. Cf. SARTORI, 2020. Para uma abordagem mais ampla e inovadora da concepção de forma jurídica pachukanina, Cf. PAZZELLO, 2021,

[5] A partir deste aspecto, Vinícius Casalino (2011) apontou a insuficiência da posição pachukaniana por não destacar a reprodução ampliada do capital e enfatizar demasiadamente na circulação simples.

[6] Aqui não podemos tratar do Direito frente o fetichismo do capital, em especial do capital portador de juros. Isto se dá porque seria importante trazer uma análise cuidadosa do livro III de O capital para que o tema fosse esclarecido. Para que não fiquemos silentes sobre a questão, vale mencionar que a noção de formas jurídicas aparece algumas vezes neste livro, tendo-se também inúmeras remissões a transações, expectativas e ficções jurídicas. (Cf. SARTORI, 2019 b, c, 2020)

[7] Segundo Vinícios Casalino (2019), isto se dá também, ao considerarmos o livro I de O capital, que é o ponto de partida da tradição pachukaniana, da qual o próprio Casalino faz parte, embora não de modo dogmático.

[8] Diz Marx que “a troca de equivalentes, que parece subentender a propriedade sobre o produto do próprio trabalho – e, por conseguinte, pôr como idênticos: a apropriação pelo trabalho, o processo econômico efetivo da apropriação [Zueigen-Machen], e propriedade sobre o trabalho objetivado; o que há pouco parecia processo real, aqui é reconhecido como relação jurídica, i.e., como condição universal da produção, e, por isso, é reconhecido legalmente, posto como expressão da vontade universal –, muda repentinamente, revela-se, por uma dialética necessária, divórcio absoluto entre trabalho e propriedade e apropriação de trabalho alheio sem troca, sem equivalente. A produção baseada no valor de troca, sobre cuja superfície acontece aquela troca livre e igual de equivalentes, é no fundo troca de trabalho objetivado como valor de troca pelo trabalho vivo como valor de uso, ou, como também pode ser expresso, comportamento do trabalho em relação às suas condições objetivas – e, por essa razão, com a objetividade criada pelo próprio trabalho – como propriedade alheia: alienação [Entäußerung] do trabalho. Por outro lado, é condição do valor de troca ser medido pelo tempo de trabalho, e, por isso, o trabalho vivo – não o seu valor – como medida dos valores. É uma ilusão acreditar que, em todas as condições de produção, a produção e, em consequência, a sociedade se baseiam na troca de simples trabalho por trabalho. Nas diversas formas em que o trabalho se relaciona com suas condições de produção como sua propriedade, a reprodução do trabalhador não é posta de modo algum por mero trabalho, pois sua relação de propriedade não é o resultado, mas o pressuposto de seu trabalho.” (MARX, 2011, p. 685-686)

 

[9] Para uma análise dos meandros desta questão, Cf. SARTORI, 2015.

[10] Aqui não podemos tratar do tema, mas é interessante como que esta relação entre meios e fins traz uma temática muito cara à teria moral e, em especial, à ética kantiana. Para uma análise destas categorias, Cf. LUKÁCS, 2013.

[11] Marx diz sobre estes autores ao analisar tal tratamento autônomo do Direito: “diz Maine: Hobbes tinha um propósito político; o propósito de Austin era 'estritamente científico' [Científico! Somente no significado que pode ter esta palavra para os estudiosos jurídicos britânicos, entre os quais se pode ter por ciência a antiquada classificação, definição, etc. […] No mais, Hobbes pensava sobre as origens do Estado (governo e soberania); este problema não existe para o jurista Austin; para ele, este fato existe, de certo modo, a priori.” (MARX1988, p. 288-289) Depois, diz que Austin e Bentham se apresentam com uma ciência sem o essencial: “Austin chegou à 'sua teoria da soberania' apartando todas as características e todos os atributos do governo e da sociedade, com exceção de um só, relacionando toda a forma de dominação política com aquilo de comum no uso do poder. [Não é este o problema principal, mas tomar a dominação política, qualquer que seja sua forma característica e qualquer que sejam o conjunto de seus elementos, como algo acima da sociedade, baseado em si mesmo.] Este procedimento desdenha elementos importantes, algumas vezes, de importância capital, pois compreendem todos os elementos que dirigem a ação humana, com exceção da força diretamente aplicada ou diretamente percebida.” (MARX, 1988, p. 289) Para uma análise desta problemática, Cf. SARTORI, 2018 b.

[12] Diz Marx nos Grundrisse que “o todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação. Mas essas categorias simples não têm igualmente uma existência independente, histórica ou natural, antes das categorias mais concretas? Isto depende. Hegel, por exemplo, começa corretamente a filosofia do direito com a posse como a mais simples relação jurídica do sujeito. Mas não existe posse antes da família ou das relações de dominação e de servidão, que são relações muito mais concretas. Pelo contrário, seria correto dizer que existem famílias, tribos, que somente possuem, mas não têm propriedade. Com relação à propriedade, portanto, a categoria mais simples aparece como relação de associações mais simples de famílias ou tribos. Na sociedade mais avançada, a propriedade aparece como a relação mais simples de uma organização desenvolvida. Mas o substrato mais concreto, do qual a posse é relação, é sempre pressuposto. É possível imaginar um selvagem singular possuidor. Nesse caso, porém, a posse não é uma relação jurídica. Não é correto que a posse desenvolve-se historicamente na família. A posse pressupõe sempre, ao contrário, esta “categoria jurídica mais concreta”.” (MARX, 2011, p. 79) Para o aprofundamento deste aspecto da crítica de Marx a Hegel, Cf. LUKÁCS, 2018.

[13]  Diz Marx que “o importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da “disposição política”, faz o predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo, sempre do lado do predicado.” (MARX, 2005, p. 34) Depois, continua e diz “o real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade lógica.” (MARX, 2005, p. 30) Por fim, diz nosso autor que “se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como a base do Estado, ele não precisaria deixar o Estado subjetivar-se de uma maneira mística.” (MARX, 2005, p. 44) Para uma análise deste aspecto, Cf. SARTORI, 2014.