Verdade e política em Michel Foucault e Hanna Arendt:

um ensaio sobre a formação atual da esfera pública midiatizada

Truth and policy in Michel Foucault and Hanna Arendt: an essay on current formation of the midiatized public sphere

Dr. André Constantino Yazbek

Universidade Federal Fluminense – UFF

E-mail: andre.yazbek@yahoo.com.br

 

RESUMO

O presente artigo recupera o debate contemporâneo sobre a política e a pós-verdade para enfatizar o problema da “verdade política” em sua relação com a questão do poder e a da constituição do espaço público em algumas das obras de Michel Foucault e Hannah Arendt. Neste sentido, gostaria de sugerir que as perspectivas de poder, política e verdade de Foucault e Arendt, a despeito de suas amplas diferenças, são importantes para a compreensão de certos aspectos atuais da “circulação da verdade” e para a descrição do perfil de nossas estratégias contemporâneas de controle das sociedades em um chamado “novo” regime de verdade. Ao final do artigo, procuramos delinear algumas questões gerais a respeito das atuais relações entre tecnociência, política e novas mídias.

PALAVRAS-CHAVE: Michel Foucault. Hannah Arendt. Verdade. Política. Poder.

ABSTRACT

This paper recovers the contemporary debate about politics and post-truth to stress the problem of “political truth” in its relation to the question of power and the constitution of public space in some Michel Foucault and Hanna Arendt’s works. In this sense, I should like to suggest that Foucault and Arendt’s perspectives of power, politics and truth, despite their great differences, are important for understanding certain current aspects of “truth circulation” and to describe the profile of our contemporary strategies to control societies in a so-called “new” regime of truth. At the end of this paper, we seek to outline some general issues regarding the current relations between technoscience, politics and new media.

KEYWORDS: Michel Foucault. Hannah Arendt. Truth. Politics. Power.

 

Introdução

 

“Uma ‘época’ não preexiste aos enunciados que a exprimem e nem às visibilidades que a preenchem”, dizia Gilles Deleuze a propósito das relações entre o visível e o enunciável em Michel Foucault (2005, p. 58). É bastante conhecida, aos dias correntes, a tópica da pós-verdade, espécie de maledicência contemporânea a oscilar entre o ineditismo de uma sociedade de vigilância hiper conectada e as antigas evocações milenares contra os sofismas da vida pública, – nas quais o sofismo não é um incidente ocasional da vida política, mas ele próprio um recurso de poder ou, se quisermos, a manipulação da opinião da massa. Uma velha questão, portanto, referida já aos inícios de nosso pensamento político: “segundo o Sócrates de Platão, o maior dos sofistas é a multidão política” (STRAUSS, 1992, p. 56).

No entanto, a julgar-se pelo prefixo – pós-verdade –, e a ter-se em conta a ascensão de movimentos políticos autoritários que exploram largamente o declínio da confiança na grande mídia e no conhecimento especializado, bem como o crescimento das chamadas mídias alternativas, talvez se deva mesmo considerar uma mudança significativa em nosso regime de veridicção (para usar mais uma expressão foucaultiana): se a “verdade permanece solidamente atada ao poder”, a novidade consiste em que testemunhamos quiçá uma progressiva degradação do “estatuto fiduciário do dizer-verdadeiro”, – degradação que vai a par com a fragmentação e a aceleração do consumo de notícias (HARSIN, 2015, p. 329).[1] Daí o fato de regimes de pós-verdade surgirem de estratégias políticas comuns a sociedades de controle nas quais trata-se, especialmente, do uso dos data analytics para gerenciar o campo da aparência e da participação políticas, um “aparato político” que evoca uma “economia política da verdade” (Idem, p. 331).

Assim, seria o caso de nos perguntarmos, então, em que espaços de enunciação e visibilidade se deveria situar nossa própria época, a supor-se pertinente a noção foucaultiana de regime de veridicção ou regimes de verdade, – nos quais está em jogo não uma “certa lei de verdade, [mas sim] o conjunto de regras que permitem estabelecer, a propósito de um discurso dado, quais enunciados poderão ser caracterizados, nele, como verdadeiros ou falsos” (FOUCAULT, 2008a, p. 49). Ou ainda: em que cenário poderíamos situar nossa atualidade – precisamente essa, na qual opiniões são produzidas e gerenciadas por meio de análises preditivas baseadas em big data e comunicação estratégica –, fosse o caso de restabelecê-la criticamente a partir de uma história política da verdade?[2] Em que consiste uma cultura política na qual tornara-se virtualmente possível a desarticulação (pretensamente sem paralelos, dado seu alcance e extensão) entre o discurso e o referente da enunciação?

Evidentemente, o ensaio que se segue não pretende fornecer uma resposta suficiente às inquietações contemporâneas acerca do suposto declínio da verdade em nossos atuais regimes políticos, e muito menos trata-se de esgotar a temática. Antes, gostaria de valer-me do tema das possíveis articulações entre o poder, a política e a verdade para delinear algumas observações esparsas, ainda pouco sistematizadas e não exatas, sobre as relações da verdade com a política a partir de um enfoque que deve bastante ao pensamento de Foucault – como já deve ter ficado claro –, mas também a certas intuições de Hannah Arendt em um texto publicado por ela em 1967 na revista The New Yorker, intitulado “Verdade e Política”, posteriormente republicado na coletânea Entre o passado e o futuro. O enfoque privilegiado recairá sobre o pensamento foucaultiano, ao passo que em Arendt apenas serão destacadas algumas temáticas pontuais.

A princípio, gostaria de delimitar que tipo de “verdade” pode entreter relações com a política e o poder, – considerando tanto a extensão do conflito entre a verdade e a política para a formação do espaço público, tal como Arendt notara[3], quanto, de outra parte, a ênfase histórica nas formas de nosso ordenamento discursivo naquilo que concerne às relações entre saber e poder, segundo a perspectiva lançada por Foucault.[4] Depois, pretendo remeter esta relação a uma espécie de economia dos espaços de visibilidade em seu sentido eminentemente político, levando em conta, de modo bastante genérico, a situação atual de nossas modernas democracias de massa, – cuja cena pública é atravessada por instrumentos técnico-científicos de mediação da opinião comum nos quais opera-se uma rearticulação entre instituições e discursos, sua descentralização estatal “difusamente incorporada em códigos e softwares para quantificar o comportamento digital” (HARSIN, 2015, p. 331).

Assim, considero a relação entre a democracia (tomada em sentido bastante abrangente) e a politização tecnológica a partir da situação de espaços políticos nos quais a chamada “opinião pública” se encontra cada vez mais mediatizada por uma tecnociência da informação que tende a normatizar as esferas do debate comum de maneira a esgotá-la como expressão de espaços comunitários, dando lugar a formas narcísicas da opinião comum (no sentido da degradação da natureza dialógica e intersubjetivamente constitutiva da opinião, para falarmos em termos genericamente arendtianos). Neste sentido, o que estaria em jogo nesta espécie de desagregação da opinião comum seria a própria dimensão fundamental da experiência política, aquilo que a caracteriza em sua abertura à pluralidade dos “pontos de vista” e mesmo à incorporação das perspectivas ausentes (ARENDT, 2001, p. 298). Ou ainda, para tomar as coisas pela outra ponta, tratar-se-ia da formação de um “capitalismo de vigilância” (ZUHOFF, 2018, p.18) que, em termos foucaultianos, redistribuí os espaços do (in)visível e do (in)enunciável segundo uma expansão sem precedentes do que se poderia chamar de tecnologia de “controle panóptico” em “espaço aberto”, tal como assinalado por Deleuze (2007, p. 216).[5]

Deixo à parte, nestas minhas considerações, o que poderia haver de formação de um contra-poder no espaço suscitado por estes mesmos mecanismos, – mesmo considerando que “se não houvesse resistência, não haveria [nem mesmo] relações de poder” (FOUCAULT, 2001a, p. 1559). Ocorre que me interessa, antes, uma perspectiva na qual trata-se de sublinhar procedimentos de controle e gestão positiva das condutas, o que implica em surpreender o poder operando produtivamente na cena pública das populações “do ponto de vista de suas opiniões […], dos seus comportamentos, dos seus hábitos, dos seus medos, seus preconceitos, das suas exigências” (FOUCAULT, 2008b, p. 98). Por outro lado, valendo-me da perspectiva de Foucault, recuso igualmente as leituras simplistas, vulgares, que atribuem ao seu pensamento um grau de cumplicidade com o aparente declínio da autoridade da verdade nas dinâmicas políticas atuais, – como se a perspectiva foucaultiana, ao considerar a partilha do verdadeiro e do falso em termos de um sistema de exclusões (em muitos sentidos análoga aos esforços do pragmatismo para a redefinição da verdade a partir da atividade prática e das interações sociais), destruísse a ideia mesma de verdade, tornando-a “obsoleta”, quando se trata exatamente do contrário.[6] Ademais, tampouco se deve contrapor à chamada “pós-verdade” algo como uma “verdade pura”, como se nossa situação atual tivesse cortado nossos laços com uma “política democrática intrinsecamente esclarecida pela verdade”, – uma perspectiva que é “evidentemente risível”  (MONOD, 2017, p. 152).

Da parte de Arendt, como se verá, passaremos ao largo de uma exploração mais sistemática das complexas relações entre a filosofia e a política – ou da (suposta) incapacidade da tradição filosófica em apreender a natureza da experiência política[7] –, para nos concentrarmos no seguinte aspecto: mesmo não sendo em Arendt uma categoria política, a verdade, na condição de “verdade dos fatos”, “atua politicamente quando resiste contra a força de manipulação da realidade operada pela mentira organizada, pela mentira em massa” (PEREIRA, 2017, p. 15). Assim, resta que o ensaio que se segue mobiliza o problema da verdade no pensamento arenditiano exclusivamente da perspectiva da “’atuação’ política da verdade dos fatos no campo da ação” (Idem, p. 13).

 

Foucault e Arendt: regimes de verdade e verdade factual

 

É interessante notar que um autor como Foucault, que não se cansou de afirmar a correlação entre determinados “regimes de verdade” e determinados “sistemas de poder”, aplicara as variações de seu método arqueológico a um campo restrito de ciências ou saberes, ou seja: ao campo de saberes pouco formalizados e/ou dificilmente formalizáveis, posto que circunscrito não às “ciências nobres”, mas sim às “ciências menores”, contaminadas em demasia pelo empirismo, pelo acaso e por eventos exteriores (mormente a medicina, o direito e as chamadas ciências humanas). Este recorte privilegiado, por sua vez, que recairá sobre “grupos de discursos pouco formalizados, nos quais os enunciados não pareçam se engendrar necessariamente segundo regras de mera sintaxe”, explica-se inicialmente por uma necessidade de método: tratara-se de colocar-se em condições as mais favoráveis para “apreender, em um enunciado, não o momento de sua estrutura formal e de suas leis de construção, mas o de sua existência e o das regras de seu aparecimento” (FOUCAULT, 2005, p. 42).

Mas este privilégio metodológico evoca ainda, como Foucault o reconhecerá, um privilégio político: mais do que as ciências teóricas, as ditas ciências empíricas ou “humanas” estão ligadas a práticas diversas de poder, de sorte que um saber como o da medicina ou da economia política, por exemplo, a despeito de seu suposto baixo grau de cientificidade, revelam uma miríade de articulações com práticas sociais variadas de poder (FOUCAULT, 2001d, p. 806). Assim, pode-se dizer que já em sua arqueologia Foucault interessara-se não exatamente pelo valor lógico ou epistemológica de tais saberes, mas sim por seu aspecto de efetividade prática em enformar práticas institucionais diversas, de maneira que se tratara de explicitar os efeitos de exigência e coerção exercidos pela norma do verdadeiro nos domínios aos quais ela é aplicável. “A Arqueologia que acabo de escrever”, dirá ainda Foucault, referindo-se a sua única obra metodológica, “é uma espécie de teoria para uma história do saber empírico” (Idem).

Neste sentido, a hipótese de partida da arqueologia foucaultiana poderia ser formulada nestes termos: e se o “saber empírico”, e a própria possibilidade de registrar fatos e de se deixar convencer por eles, possuísse uma “regularidade”? (FOUCAULT, 2001e, p. 875). Compreende-se aqui o que Paul Veyne afirmara ao asseverar que a “intuição inicial de Foucault” não é a da estrutura, do corte ou do discurso, mas sim a da “raridade, no sentido latino dessa palavra [raritas]: os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina” (1998, p. 239).[8] Assim, uma vez que é microfísica, política e histórica, a verdade do saber da qual trata Foucault poderia ser dita factual (no sentido de que não se trata de uma verdade proposicional e/ou metafísica) e, enquanto tal, comporta regularidades discursivas cujos efeitos extra-discursivos instauram regimes políticos de verdade.

Portanto, trata-se do que se poderia chamar (não sem algum equívoco) de circulação empírica da verdade, quer dizer, da verdade em seu aspecto relativo a uma espécie de potência de inscrição histórica e política da materialidade do discurso, e que se refere não à validade proposicional dos enunciados, mas sim aos efeitos materiais do discurso naquilo que concerne a um “sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se” (FOUCAULT, 1996, p. 14). Daí que Foucault tenha sempre se interessado por um conjunto de disciplinas científicas específicas, circunscritas no tempo e no espaço e que, com efeito, estiveram historicamente ligadas às lógicas modernas do poder, – a começar por saberes localizados no “ponto em que se cruzam a instituição judiciária e o saber médico ou científico em geral”. Ora, nesta dupla qualificação médico-legal, o conjunto de enunciados formulados pelo saber possuí o estatuto de discurso verdadeiro, veicula efeitos judiciários efetivos de poder e, no entanto, detém a “curiosa propriedade de ser alheio a todas as regras, mesmo as mais elementares, de formação de um discurso científico” (FOUCAULT, 2014, p. 11).

Em perspectiva bastante diversa, em seu “Verdade e Política” Arendt se serve da distinção moderna (e leibniziana) entre verdades de fato e verdades de razão para divisar, de uma parte, o território das verdades matemáticas, científicas (no sentido de axiomatizáveis) e filosófico-especulativas e, de outra, o das verdades factuais propriamente ditas. Por verdade factual, Arendt compreende um domínio de verdades que “ocorrem no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança”, verdades “infinitamente mais frágeis do que axiomas”: trata-se do registro de fatos e eventos cujo estatuto de verdade, não sendo o das demonstrações racionais autoevidentes ou axiomáticas, é mais vulnerável e, portanto, sujeita a manipulações diversas, – o que significa que o assédio do poder à verdade, mormente em seu aspecto deletério de dominação, incide especialmente sobre o registro desta “verdade factual” (2001, p. 287). Neste sentido, não se trata aqui de verdades indiferentes ao domínio público da opinião, da “verdade inócua” para a organização prática do poder, mas, justamente, de “verdades modestas” que, em sua factualidade, importam sobremaneira ao domínio da política: os “factos e os acontecimentos – que são sempre engendrados pelos homens vivendo e agindo em conjunto – constituem a própria textura do domínio político” (Idem).

Arendt retoma, assim, a milenar história do conflito entre a verdade e a política, demarcando seu surgimento na oposição entre “dois modos de vida diametralmente opostos” relativos à verdade racional:  a vida do filósofo (cuja marca é a de uma forma de vida  dedicada à verdade das “coisas que eram por sua natureza eternas e das quais se podiam derivar princípios que estabilizassem os assuntos humanos”) e a vida do cidadão (cujo feitio é o de uma forma de vida prática indexada à doxá comum, “elemento que pertence à classe dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”) (Idem, p. 289). Mas ocorre que Arendt, avançando na questão em termos de uma espécie de diagnóstico da modernidade, nota que o nódulo fundamental deste conflito, tal como se dava na antiguidade, sofrerá um deslocamento significativo: se se tratava, ao tempo de Platão, do problema da degradação ou da rejeição da “verdade dos filósofos” (que não pode ser obtida nem comunicada entre as massas) face a multiplicidade movente da dóxa comum, em nossos dias trata-se antes de uma degradação da própria verdade de fato em meio a opinião. Portanto, nos termos de Arendt, se nenhuma outra época soube tolerar tantas opiniões diversas acerca de assuntos religiosos ou filosóficos, resta que, em contrapartida, é nesta mesma ambiência que “a verdade factual, se porventura opõe-se ao lucro ou ao prazer de um determinado grupo, é acolhida [...] com maior hostilidade que nunca” (Idem, p. 293).

Neste sentido, é importante assinalar que a “verdade factual” da qual fala Arendt não é aquela dos segredos de Estado – cuja circulação restrita importa à razão de Estado –, mas sim a das verdades conhecidas publicamente, mas cuja mera enunciação ou é intolerável ou então, para ser tolerada, circula como uma opinião entre outras (assim, por exemplo, o fato histórico de que o nazismo é um regime político de extrema direita reveste-se com a insígnia da mera opinião, uma entre tantas outras, dissolvendo-se como verdade factual histórica para só então poder ser tolerada em sua circulação).[9] Com efeito, dada a perspectiva arenditiana – cujo pressuposto fundamental é o da ação política imediatamente relacionada aos processos de deliberação e formação da opinião pública em um mundo compartilhado em comum (BRUNKHORST, 2002, p. 182) –, o nódulo central de sua argumentação poderia ser apresentado nos seguintes termos: a ação política ou a palavra partilhada entre iguais, a doxá comum, é o centro da vida política[10], mas esta mesma doxá não pode dispensar, para a sua formação, a referência à verdade factual. Assim, nas palavras de Anne Amiel, a “integridade da política exige o respeito por aquilo que lhe constitui o seu limite: a verdade factual (o que não se pode mudar conforme a vontade)” (AMIEL, 2003, p. 134).

Assim, trata-se, para a modernidade, não tanto da contraposição (classicamente platônica) entre dois modos de vida no interior de um quadro de referência comum – o antagonismo entre a “vida filosófica” e a “vida cidadã”, entre a comunicação dialética e a retórica –, mas antes da resistência ao esfacelamento desta mesma referencialidade em comum, ou seja, da dissolução da própria partilha de um referente: “O que aqui se acha em jogo é essa mesma realidade comum e fatual, e isso é com efeito um problema político de primeira plana” (ARENDT, 2001, p. 294). E assim como outrora ocorrera com a verdade filosófica, doravante a verdade de fato (que não pertence à esfera unitária do raciocínio dedutivo pretensamente solitário e, por isso mesmo, pertence a todos em comum) passa a ser “contraditada não por mentiras e falsidades deliberadas, mas pela opinião” (Idem). Em suma: em lugar do conflito entre a verdade filosófica e a opinião, teríamos antes uma “disputa pela realidade”, ou uma “ameaça à sua destruição sistemática”, o que implica, de outra parte, em considerar a atuação política da verdade factual como forma de resistência à mentira organizada (PEREIRA, 2017, p. 168).[11]

Ora, se Arendt refere-se a verdades ligadas à tessitura do domínio político, e as apreende como verdades de fato conhecidas publicamente – não os segredos de Estado, como vimos acima, mas fatos públicos cuja discussão pública, paradoxalmente, transforma-se em tabu –, também em Foucault, mutatis mutandis, a “economia política da verdade”, seu ordenamento discursivo, não diz respeito ao oculto ou ao não-dito, mas ao “dito” em demasia. Pode-se dizer, neste sentido, que a verdade é epidérmica e, portanto, trata-se de “discernir relações que estão na própria superfície dos discursos” para, precisamente, tentar “tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das coisas” (FOUCAULT, 2001d, p. 800). E é nesses termos que Foucault insistirá, em seu engajamento prático, que a tarefa do intelectual (ou do “filósofo”) não é aquela de informar as massas, fornecer-lhes o fio condutor de um saber da ação política, posto que as massas já o “sabem” e o “dizem muito bem”; ao contrário, é o seu dizer e o seu saber que se tornaram problemáticos, de sorte que se tratava de dar-lhes a palavra para deslocar o lugar de titularidade do discurso.[12]

Em registro bastante diverso – uma vez que trata-se de recuperar a tradição socrática e platônica, e de fazê-lo à maneira opositiva –, também Arendt alimenta uma suspeição contra a “atividade filosófica” na medida em que ela pretende ser o métron da “cidade”: forjada em um contexto de negação da pluralidade ao menos desde o platonismo, a filosofia corre o risco permanente de ensejar uma “desfiguração da vida política” em favor de uma “concepção de verdade segundo a qual sua função primeira é fornecer os parâmetros para a política” (ADVERSE, 2020, p. 28).[13] Daí que o filósofo possa ser aparentado ao tirano: ambos rejeitam a pluralidade da doxá comum, – o primeiro pela determinação coercitiva do assentimento ao pensamento lógico dedutivo, o segundo pela coerção física pura e simples (Idem, p. 26).

 

Os espaços de visibilidade e o sujeito insular

 

Ao lado da verdade factual arenditiana e da raridade foucaultiana, gostaria de sublinhar ainda um outro elemento, que diz respeito aos espaços de visibilidade, ou a economia de visibilidade relativa aos domínios da verdade e da política, ou de sua mútua imbricação. Em Arendt e em Foucault, a reflexão sobre o poder – compreendido seja como ação em concerto, seja como dominação gestionária das condutas – concerne diretamente a espaços ou regimes de visibilidade, quer dizer, ao princípio de uma economia de visibilidade que, em Arendt, é a instauração do domínio público (e, portanto, diz respeito a ação coletiva em sua dimensão eminentemente política de aparência), ao passo que, em Foucault, é relativo a disposição estrutural de uma visibilidade arquitetada para fins de organização disciplinar das práticas de indivíduos inseridos em espaços correcionais específicos.[14] Assim, ao passo que Arendt pôde afirmar a primeira característica da esfera pública como sendo aquela da aparência e da visibilidade – lugar em que aquele que fala “pode ser visto e ouvido por todos” (1981, p. 59) –, Foucault pensa o advento da dominação disciplinar a partir da inversão moderna da economia de visibilidade da soberania clássica: se tradicionalmente o “poder é o que se vê, se mostra, se manifesta” no fausto dos grandes palácios e nas punições públicas do suplício, a forma moderna de seu exercício disciplinar implica em que ele “se exerça tornando-se invisível” do ponto de vista do centro do qual emana, para então impor uma “visibilidade obrigatória” sobre aqueles que estão submetidos às suas práticas (“Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. [...] É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar”) (2014, p. 183-184).

É certo que as concepções de verdade e de poder são bastante diversas em Arendt e Foucault (e não pretendemos aqui nos ocupar de suas diferenças). Mas talvez se possa considerar que em ambos vigora, ao mesmo tempo, uma compreensão específica da verdade em suas articulações com o poder político (como verdade factual, trata-se de uma “verdade que existe na medida em que se fala sobre ela” (ARENDT, 2001, p. 295)) e uma importância conferida aos espaços de visibilidade e circulação nos quais verdade, opinião comum e poder político se articulam (um campo de visibilidade é necessário seja à formação política da autoridade pública e dos negócios humanos, seja à formação de uma articulação entre saber-poder que produz obediência por meio de processos de assujeitamento). No caso específico de Arendt, como já assinalamos, não se trata exatamente da verdade em sentido forte (aquela que obriga ao assentimento), mas antes das “verdades factuais” em sua relação com a formação da dóxa comum, cuja característica fundamental é a da “salvaguarda da distância entre diferentes pontos de vista, permitindo, assim, uma comparação entre diferentes perspectivas” (FORTI, 2006, p. 285).

Neste sentido, Arendt nos auxilia na medida em que nos fornece uma noção positiva do espaço público e da arena comum da política, ou seja: uma noção não hipotecada aos esquemas de assujeitamento de saber-poder próprios ao pensamento foucaultiano, mas, ao contrário, compreendida na relação entre ato e discurso no âmbito da linguagem compartilhada proferida no espaço público (e é por isso que a constituição do sujeito arendtiano é uma constituição política) (ORTEGA, 2001, p. 232). De outra parte, Foucault nos auxilia a tomar certas distancias com relação ao risco de idealização deste mesmo espaço público arendtiano, quer dizer: o espaço de visibilidade foucaultiano, na medida em que é o espaço de relações estratégicas de poder, corresponde a um diagrama de relações de forças em disputa permanente no qual, ao estilo nietzschiano, não há concessões para a afirmação de uma forma apaziguadora do poder político (por este motivo, a constituição do sujeito foucaultiano, na condição de sujeito desasujeitado, é uma constituição ética) (Idem). Nestes termos, trata-se de manter certa concepção positiva do espaço público sem, no entanto, ceder a fenomenologia arendtiana da liberdade como um dado político do amor mundi; igualmente, e de outra parte, trata-se de seguir as pistas foucaultianas de uma analítica do poder sem esgotar o problema político no aspecto “apenas” estratégico das formas de exercício do poder para a formação de subjetividades obedientes.

Assim, colocando-me entre Arendt e Foucault ao mesmo tempo em que me afasto da fidelidade a ambos, quero partir do princípio de que um dado regime de poder político é um dado regime de visibilidade no interior do qual a verdade factual ou raridade circula na condição de fato ou evento. Mas a circulação de tal fato ou evento, por sua vez, tensiona-se constantemente entre a ampliação e a abertura de espaços públicos de ação em concerto e as práticas estratégicas de modulação ou controle gestionário da circulação das palavras e das coisas para fins de assujeitamento, – sobretudo em se tratamento de um controle em espaço aberto, tal como o que caracteriza nossas modernas sociedades em rede, nas quais se trata de gerir os fluxos no sentido de favorecer a circulação que interessa à lógica da acumulação capitalista.[15] Ora, parece-me que essa definição minimamente operatória de um regime de poder político permite a reacomodação da pergunta acerca das relações da verdade com o poder em um contexto que nos é particularmente atual: aquele da crise das chamadas democracias contemporâneas em um ambiente de massas altamente mediatizadas pela tecnociência da informação e a rede mundial de computadores.[16]

Talvez possamos mobilizar estes elementos pontuais da discussão relativa à verdade e à política em Foucault e Arendt, sem intenção de fidelidade estrita ou comentário exegético, para compreendermos um traço marcante de nossas sociedades contemporâneas: estamos em uma época mais ou menos cônscia da regulação gestionária, e virtual, da circulação dos discursos e da verdade em ambiência de uma moderna tecnologia digital da informação em rede; uma época que consagrou as noções de pós-verdade e fake news não porque a falsidade ou a mentira tenham sido inventadas em nosso tempo, mas porque nosso tempo parece ter intuído, em algum grau, o potencial inaudito, em termos de eficiência e escala, dos instrumentos tecnocientíficos de mediação privada (e monopolista) para enformar a circulação de “verdades fatuais” ou raridades no espaço da dóxa comum. Daí que o confronto entre “verdade de fato” e “política” (compreendida em sua forma degradada, erodida) se produza, aos dias correntes, em uma escala inaudita: assim, o clássico problema político da demagogia – anátema por excelência da vida pública – vê-se reforçado pela formação do que se propõe chamar aqui de “sociedades de boataria”.[17] E a isso se poderia ainda acrescentar, fazendo uso do vocabulário de Arendt, a dimensão propriamente deletéria, em sociedades de massa, da experiência política de uma “solidão organizada” (experiência de base dos regimes totalitários na medida em que implica a destruição de um mundo comum, agora substituído por massas de homens isolados): “O que prepara os homens para a dominação totalitária em um mundo não totalitário é o fato de que a solidão [...] tornou-se, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores” (ARENDT, 2004, p. 615).[18]

O que se quer dizer é que a própria formação do espaço público, mediado pelo incremento da técnica e do “mercado de notícias” em termos da extensão de nossas atuais tecnologias de comunicação, tende à consolidação de um “regime de visibilidade” insular, ou falsamente gregário, que se consubstancia em um certo aspecto (não o único) do fenômeno das “redes sociais” na internet; um aspecto que eu definiria, inspirando-me em um artigo de Eugênio Bucci, como sendo o de um “encapsulamento de indivíduos” (palavras dele) em “massas funcionais” (palavras minhas) (2018, p. 28). Daqui se pode falar da prevalência da formação de um conjunto de “massas de iguais” (Idem) cuja incidência, na esfera pública, faz do sujeito da massa o objeto ativo de um conjunto de relações de produção da indústria do imaginário cuja caráter é transnacional, privado e monopolista, e cuja lógica é a da constituição de uma percepção narcísica da sensibilidade pública (em alguma medida análoga à “solidão organizada” de que falara Arendt). Do ponto de vista dos “social media feeds”, por sua vez, ocorre algo como a prevalência do que Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud e figura central para a consolidação do papel da publicidade na constituição de uma nova dimensão do poder econômico, chamara de “manipulação dos hábitos organizados das opiniões das massas” (BERNAYS, 2005, p. 37).

 

Considerações finais

 

Não é ocioso lembrarmos que já Theodor Adorno assinalara a chamada “Indústria Cultural” como sendo uma esfera que não é do domínio do popular ou do público, mas sim do domínio da articulação entre as possibilidades contemporâneas das capacidades técnicas com o da concentração administrativa e econômica (ADORNO, 1991, p. 98). Em ambiência marcadamente neoliberal e tecnocientífica, como a atual, isso implica em um sistema normativo de gestão de subjetividades “difusamente incorporado em códigos de software para quantificar o comportamento digital” (HARSIN, 2015, p. 330).[19] A encarnação propriamente “pública” deste processo, no sentido da formação da dóxa comum, implica em que, com o incremento da velocidade de alcance de circulação da opinião narcísica (ou insular) nas redes, predomine um sistema de fluxos projetado para o gerenciamento de cidadãos-consumidores para os quais a crença em seus próprios arbítrios deve enformar, ela própria, a totalidade da cena pública. Em outros termos: aqui, a “cena pública” tende a ser reduzida à monotonia narcísica que expressa a autorreferência do sujeito enunciador.

É notável, neste sentido, que já a seu tempo Arendt se referira a uma espécie de “mentira organizada” no interior da qual o sentido comum do mundo – aquele que constitui a cena pública (única cena verdadeiramente comunicável) – pode ser falsificado por meio de estratégias midiáticas de manipulação de massas, conduzindo a um cinismo niilista que desaguaria na pura e simples recusa às distinções de sentido.[20] E se Foucault, de sua parte, não chegou a referir-se aos modos midiáticos de circulação dos discursos – ao menos não de forma sistemática (ao estilo de uma crítica da técnica) –, resta que ele fora um dos primeiros a referir-se explicitamente à importância da articulação existente entre o governo das condutas, os processos de constituição da subjetividade e a manifestação da verdade, uma temática que poderia incluir, igualmente, a produção politicamente organizada da “mentira”, – afinal, não menos que a “ verdade”, também a “mentira” é uma técnica de governo das condutas, isto é, uma política e uma polícia de controle e vigilância dos enunciados. Era um pouco neste sentido que Gilles Deleuze, observando a passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle – um controle em espaço aberto de circulação, propiciado pelas modernas tecnologias da informação –, afirmara que talvez a resistência esteja em “criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle” (1992, p. 217, grifo nosso).

Ocorre que a pregnância da manipulação dos fatos na cena política não é o resultado de uma decadência da “civilização moderna”, mas uma consequência da natureza propriamente fenomenológica do espaço público, – daí porque resulte senão em ingenuidade as reivindicações em favor da “verdade” na política. Antes, trata-se de compreender as atuais funções estratégicas das próprias pretensões à objetividade de sistemas mediáticos e tecnocientíficos cujo incremento inaudito, por sua grandeza de escala e velocidade, por sua natureza fragmentária, determina crescentemente formas ampliadas de controle e gestão das circulações na esfera pública. Daí que as perspectivas de Arendt e Foucault sobre as relações entre poder, política e verdade, sem que se possa aplainar diferenças por vezes irreconciliáveis, ainda possuam significativa atualidade para a compreensão crítica de aspectos centrais das formas atuais de “circulação da verdade” e, em consequência, dos impasses contemporâneos de degradação da “opinião comum” e de formação de uma esfera pública altamente midiatizada.

 

Referências

 

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[1] Uma tal “história política da verdade” deveria nos mostrar “que nem a verdade é livre por natureza, nem o erro é servo: que sua produção é inteiramente infiltrada pelas relações de poder” (FOUCAULT, 2017, P. 67).

[2] Uma tal “história política da verdade” deveria nos mostrar “que nem a verdade é livre por natureza, nem o erro é servo: que sua produção é inteiramente infiltrada pelas relações de poder” (FOUCAULT, 2017, P. 67).

[3] Temos em vista, aqui, a tópica arendtiana de afirmação da existência de um “mundo comum” como condição da política e, nesses termos, sua consequente apreciação crítica da moderna sociedade de massas: “A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-se na companhia uns dos outros e, contudo, evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange [...], antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las” (ARENDT, 1981, p. 62).

[4] Neste caso, como se sabe, trata-se mesmo da perspectiva axial do pensamento foucaultiano, segundo a qual “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1996, p. 10).

[5] Deleuze não fala especificamente em “controle panóptico”, mas assinala o fato de que o próprio Foucault fôra um dos “primeiros a dizer que as sociedades disciplinares [de sistemas de controle fechado] são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos”: “Estamos entrando nas sociedades de controle [sistemas abertos de governo das condutas], que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” (DELEUZE, 2007, p. 216).

[6] “Acredito demasiadamente na verdade para não supor que existam diferentes verdades e diferentes formas de dizê-la” (FOUCAULT, 2001b, p. 1552). Assim, e ao contrário da caricatura irracionalista que se pretende atribuir à obra foucaultiana, Foucault jamais negou a realidade dos objetos de suas análises: “Quando afirmo que estou estudando a ‘problematização’ da loucura, do crime ou da sexualidade, isso não é uma maneira de negar a realidade de tais fenômenos. Pelo contrário, tenho tentado mostrar, precisamente, que foi sempre algo realmente existente no mundo que pôde tornar-se, em dado momento, alvo de regulação social” (FOUCAULT, 2001c, 171).

[7] Para uma exposição competente e introdutória ao tema, cf. DOLAN, 2002, p. 261: “Certamente, o pensamento de Arendt não pode ser compreendido sem que se leve em conta sua profunda suspeita e igualmente seu profundo compromisso com a filosofia no contexto da reflexão política”.

[8] Em outra versão desta mesma caracterização, Veyne se referirá ao conhecimento dos fatos humanos como tendo por “característica a sua raridade, no sentido latino da palavra: ele é furado, disperso, nunca vê tudo o que poderia ver” (2011, p. 101).

[9] “O que parece ainda mais perturbante é que as verdades de facto incómodas são toleradas nos países livres, mas ao preço de serem muitas vezes, consciente ou inconscientemente, transformadas em opiniões – como se factos como o apoio de Hitler pela Alemanha ou o desmoronamento da França diante dos exércitos alemães em 1940, ou a política do Vaticano durante a segunda guerra mundial, não fossem da ordem da história, mas da ordem da opinião” (ARENDT, 2001, p. 293-294).

[10] Nas palavras de Dana Richard Villa, Arendt “identifica a própria opinião, doxá, como a matéria da vida política” (VILLA, 1996, p. 94).

[11] Lembremos, uma vez mais, que a verdade factual, ao contrário da verdade filosófica, é justamente aquela que “relaciona-se sempre com outras pessoas”, o que significa que ela é “política por natureza” (ARENDT, 2001, 295).

[12] “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber” (FOUCAULT, 1998, p. 71).

[13] Adverse reconstrói a suspeição arenditiana lançada contra a “filosofia política” a partir da ambiguidade e permanente tensionamento, vivido pela atividade do filósofo, entre o “estar só” (necessário à atividade do pensamento) e a “solidão” (que configura exatamente a perda da dimensão própria ao pensamento como pensar entre-dois): “Arendt nos mostra que a tradição da filosofia não sustentou o impulso inicial, perfeitamente visível em Sócrates, de exercer o dois-em-um [o estar só, cuja experiência é contígua à pluralidade], seja no âmbito da alma seja no da cidade. Nesse sentido, tanto a filosofia, em geral, quanto a filosofia política, em particular, cedeu ao ‘pecado da lógica’, degradou o estar só em solidão. O desafio socrático foi esquecido em favor de uma concepção de verdade que privilegia a unidade de seu conteúdo e a coerência de sua forma. Em outros termos, a transformação do estar só em solidão corresponde à desqualificação da doxa” (ADVERSE, 2020, pp. 27-28).

[14] Evidentemente, neste ponto pode-se igualmente explorar o abismo conceitual e metodológico das démarches de Arendt e de Foucault, distância que pode ser medida já pela maneira como cada um deles concebe o “poder”: se da parte do pensamento foucaultiano o poder é apreendido sob o aspecto do exercício produtivo da técnica, do saber e da objetividade – o poder produz modalidades de individuação por meio divisões normativas (FOUCAULT, 2013, p. 185) –, em Arendt, por seu turno, o poder corresponde a nossa capacidade de agir em concerto, ou seja, uma capacidade coletiva e eminentemente política que, enquanto tal, se distingue fundamentalmente da violência ou da coerção (ARENDT, 1969, p. 44). No entanto, para os propósitos restritos deste ensaio, interessa-nos sublinhar, em Arendt, o espaço público “como locus da aparência”, no sentido que se trata de um espaço que mobiliza a “excelência da opinião, isto é, daquilo que, politicamente, ganha visibilidade e luminosidade para as diversas perspectivas” (PEREIRA, 2017, p. 101, grifo nosso).

[15] Era esse o tipo de “controle” (ou de “governamento”) que interessara a Foucault em sua análise do liberalismo, cuja definição será dada por contraste com o domínio territorial típico da soberania clássica: laissez faíre, laissez passer significa, com efeito, “não mais estabelecer e demarcar o território, mas deixar as circulações se fazerem, controlar as circulações, separar as boas das ruins, fazer que as coisas se mexam, se desloquem sem cessar, que as coisas vão perpetuamente de um ponto a outro, mas de uma maneira tal que os perigos inerentes a essa circulação sejam anulados. Não mais segurança do príncipe e do seu território [como fôra o caso para o problema político clássico da soberania], mas segurança da população e, por conseguinte, dos que a governam” (FOUCAULT 2008b, p. 85).

[16] “Manipulada pelo capital e pela tecnologia, a própria constituição dos públicos está em risco hoje em dia, com a interação do cidadão impulsionada em câmaras de eco de informação que reforçam e ampliam o viés profundo, resultando em uma banalidade que impede a deliberação e coloca riscos particulares, especialmente para populações já marginalizadas” (GURUMURTHY & BHARTHUR, 2018, p. 44).

[17] Sem fazer uso da expressão que propomos aqui, Harsin esclarece que “Uma outra entrada para os regimes de pós-verdade é o boato [rumor], pois, apesar de suas definições variadas, ele sempre envolve uma afirmação cuja veracidade está em questão” (2015, p. 328).

[18] Tratando da dimensão política da “solidão” e de sua relação com o “isolamento” em Arendt, tendo-se em vista a especificidade do totalitarismo, Adverse dirá o seguinte: “Arendt observa que o domínio do terror corresponde a uma situação política de isolamento, na qual os seres humanos estão apartados uns dos outros em um espaço público desertificado e, por conseguinte, são incapazes de agir em concerto, o que é o mesmo que dizer que estão desprovidos de poder. Mas essa caracterização se aplica também aos regimes despóticos. Para especificar o totalitarismo é preciso ressaltar dois aspectos complementares do isolamento político, a saber, a substituição do pensamento pela logicalidade e a destituição da experiência da realidade, ambas igualmente decorrentes da destruição do espaço comum. Essa experiência política do isolamento encontra um correspondente na esfera social (e psicológico-existencial, embora Arendt não utilize o termo): a solidão. Esta última se caracteriza pela perda dos laços com os outros e, em sua forma mais acentuada, a perda do laço consigo mesmo. É precisamente este aprofundamento existencial que falta ao isolamento, pois que este é compreendido essencialmente como uma condição ‘externa’ ao ser humano [...]. Ora, o que tipifica a solidão é precisamente a transformação dessa condição ‘externa’ e temporária em uma experiência existencial, seguindo daí uma de suas características mais pungentes, isto é, o desespero” (ADVERSE, 2020, p. 19).

[19] Procurando “atualizar” as análises foucaultianas dos “regimes de verdade” a partir da conjuntura contemporânea da extensão dos big data nos “mercados de comunicação estratégica (política corporativa) orientados por análises preditivas”, Harsin centra sua análise na categoria de “atenção” (attention): os atuais “jogos de verdade” atuam “gerenciando não simplesmente ideologias, discursos e corpos em recintos institucionais, mas a atenção em si mesma” (2015, p. 332).

[20] Como observa Arendt, a “mentira é frequentemente mais plausível, mas conforme à razão do que a realidade, uma vez que o mentiroso possui a grande vantagem de saber antecipadamente aquilo que o público deseja escutar” (1999, p. 16).