A Natureza Humana entre a Medicina e a Filosofia
The Human Nature between Medicine and Philosophy
Dra. Juliana da Silveira Pinheiro
Profa. Adjunta na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC
E-mail: jspinheiro@uesc.br
RESUMO
Neste artigo, pretendemos analisar textos significativos do Corpus Hippocraticum que tratam da natureza humana, a fim de responder a uma pergunta colocada por alguns médicos hipocráticos: quem estaria mais apto a definir a natureza humana, médicos ou filósofos? Analisamos os escritos Da natureza do homem, Medicina antiga, Sobre a arte médica, Sobre as carnes, Sobre as enfermidades IV e Sobre a dieta, e compreendemos a importância da filosofia, para a maioria de seus autores, para responder a esta questão, na medida em que ela fornece fundamentos sobre a natureza em geral e especificamente sobre a natureza humana, aos moldes da filosofia pré-socrática. A cosmogonia dos pré-socráticos, e em especial a de Empédocles referida por muitos desses autores, busca encontrar os elementos primários da constituição do universo, necessária também para compreender a constituição física do homem, imprescindível para o médico. A resposta à pergunta não seria, portanto, excludente. Ela mostra como, para a medicina hipocrática, de modo geral, a natureza humana é concebida entre a medicina e a filosofia.
INTRODUÇÃO
Na Medicina Hipocrática, conhecer a natureza humana é fundamental. É a partir dela que será possível compreender a saúde e a doença e prescrever um tratamento. Implícita ou explicitamente, essa compreensão deve estar presente. Mas, nos perguntamos: quem estaria mais apto a definir a natureza humana, a medicina ou a filosofia? Ou, quem sabe, as duas juntas poderiam dar contribuições diferentes para o entendimento dessa questão? Essa foi uma pergunta que autores do Corpus Hippocraticum[1] também se colocaram e responderam de formas diferentes, o que mostra a diversidade de ideias que compõem a Coleção. Para respondermos a essa indagação, neste artigo analisaremos os textos Da natureza do homem, Medicina antiga, Sobre a arte médica, Sobre as carnes, Sobre as enfermidades IV e Sobre a Dieta, os quais são significativos sobre esse tema.[2]
O texto que mais parece tratar desse assunto no Corpus Hippocraticum é o Da natureza do homem, escrito no século IV a.C. Nele, o autor, que provavelmente foi Pólibo, demonstra a preocupação de reconhecer a natureza humana pelo médico, para que possa proporcionar a saúde do homem, pois esta dependeria do equilíbrio dos quatro humores (sangue, fleuma, bile negra e bile amarela), dos quais, segundo ele, o ser humano é constituído. Nessa reflexão, podemos perceber como Pólibo transita tranquilamente pela filosofia, pois relaciona cada humor aos elementos da doutrina de Empédocles: o úmido, o seco, o quente e o frio. Ele afirma:
É necessário, também, que cada humor retorne à sua própria natureza, tendo chegado ao seu fim o corpo do homem: o úmido ao úmido, o seco ao seco, o calor ao calor e o frio ao frio. Esta é a natureza dos animais e de todos os seres: tudo acontece da mesma maneira e termina da mesma forma. Pois a natureza dos seres é formada a partir de todos estes humores já mencionados, e, segundo o que foi dito, acaba e se desintegra exatamente lá, onde cada um se formou. (Da natureza do homem, 2005, p.44).[3]
Como afirma Nava (2020, p.35), o influxo dos pensadores jônios chega, através de Empédocles, até as escolas médicas itálicas e cnidias. Esta filosofia jônia havia elaborado a doutrina dos elementos, num esforço para compreender a natureza, buscando seu princípio. Mas, como um só elemento não bastava para explicar a multiplicidade dos fenômenos observáveis, Empédocles ampliou a teoria, postulando quatro elementos (terra, fogo, água e ar), cuja associação e dissociação viriam a explicar o nascimento e a corrupção de todos os seres do cosmos. Ao assumir essa explicação, a medicina deveria assumir suas consequências. A primeira delas é a de que, sendo o homem parte da natureza universal, deveria ser composto dos mesmos elementos de que ela é composta. E a segunda é a de que os mesmos elementos simples que explicavam os cosmos em sua composição e dissociação, deveriam também explicar os vários estados do homem e da sua saúde. Nesta perspectiva, na natureza humana, como no cosmos, a ordem e a saúde correspondem a um equilíbrio dos quatro elementos, enquanto que a desordem e a enfermidade aparecem quando algum deles falta ou predomina sobre os demais.
Esse modo de pensar foi incorporado na visão do médico Pólibo, segundo o qual os quatro elementos servem de base para a formação dos humores, tais quais são os elementos constituintes de todo o universo. Em seu texto Da natureza do homem, o autor combina descrição biológica com fundamentação cosmogônica, muito comum dentre os pré-socráticos, para explicar a natureza humana, bem como para mostrar a atuação do meio sobre nossa saúde. Dessa forma, como reconhecemos, Pólibo não pretende separar a medicina da filosofia, tampouco dar uma definição de natureza humana exclusivamente médica. Ele é crítico apenas da visão monista da natureza humana, como defendiam alguns médicos e filósofos da época, mas não da sua relação com a filosofia. Como apresento em meu artigo anterior, “A natureza humana segundo o Corpus Hippocraticum: análise do texto A natureza do homem”, Pólibo defende que os humores são substâncias que podem ser observadas no corpo, e o são, de fato, por médicos, não sendo, portanto, fruto de especulações de filósofos. A defesa de uma natureza humana composta por várias substâncias, e não apenas uma, se dá, no entanto, por um argumento filosófico, pelo qual seria necessário estipular várias substâncias em nossa composição para poder explicar a geração e a corrupção, bem como a saúde e a doença, pois o uno não poderia gerar e se corromper, assim como Empédocles o fez. Todos esses movimentos de alteração só seriam possíveis pela ação do outro. Sendo assim, se faz necessário ter pelo menos duas substâncias em nossa composição para explicar toda a gama de eventos que acontecem conosco. Assim Pólibo escreve no texto Da natureza do homem:
Primeiramente, é necessário que a gênese não se dê a partir de um só indivíduo. Como, de fato, um ser único geraria, se não se unisse a outro? Afinal, se não se mesclar em seres que sejam da mesma raça e tenham as mesmas propriedades, não haveria gênese, nem isto poderia acontecer. Por outro lado, se o calor e o frio, e o seco e o úmido não se interrelacionarem com moderação e em igualdade, mas um predominar sobre o outro, o mais forte sobre o mais fraco, não ocorrerá a gênese. De sorte que como seria possível gerar a partir de um só ser, quando não se gera a partir de muitos, se a combinação entre eles não for bem constituída? Sendo esta a natureza de todos os seres e a do homem, então, é forçoso que o homem não seja uno; mas cada um dos humores que contribuem para a gênese conserva no corpo sua propriedade, e precisamente a que contribuiu. (Da natureza do homem, 2005, p.44).
Como dissemos, este raciocínio é filosófico e não apenas uma observação empírica, e isso permite a construção da leitura da natureza humana em uma mescla entre filosofia e medicina. Inclusive, para o autor da Natureza do homem, os médicos que defenderiam uma natureza composta por uma única substância também não teriam fundamento. O critério de definição não seria o concreto ou o abstrato, já que Pólibo utiliza ambas as fontes para elaborar sua definição: o empírico e o racional. Em outras palavras, a pergunta aqui não seria “quem pode melhor definir a natureza humana: a medicina ou a filosofia?”, pois um ou outro seriam insuficientes, o primeiro por não conseguir avançar muito para além dos dados concretos, o segundo porque, sozinho, seria mera fantasia. Portanto, neste texto, a diferença entre quem está mais correto em definir a natureza humana não está entre o médico e o filósofo, e sim entre o monista e o pluralista.
De acordo com Jouanna (1999, p.51), no entanto, na teoria de Pólibo está implícita uma crítica aos médicos filósofos, porque, diferentemente dos modernos que associam os quatro humores aos quatro elementos de Empédocles, Pólibo parte do homem e suas observações, enquanto que os médicos adeptos da medicina filosófica trazem artificialmente elementos exteriores à medicina. Para Jouanna, diferentemente do que parece à primeira vista, Pólibo seria um crítico dos médicos que buscam fundamentação na filosofia. Nós, por outro lado, observamos que, apesar de Pólibo defender a empiria na constatação dos quatro humores, partindo daí para se ter uma “prova” da nossa constituição, ele demonstra haver uma correlação e uma fundamentação nos quatro elementos. Para essa sustentação, vale ressaltar o trecho em que Pólibo fala:
É necessário, também, que cada humor retorne à sua própria natureza, tendo chegado ao seu fim o corpo do homem: o úmido ao úmido, o seco ao seco, o calor ao calor e o frio ao frio. Esta é a natureza dos animais e de todos os seres: tudo acontece da mesma maneira e termina da mesma forma. Pois a natureza dos seres é formada a partir de todos estes humores já mencionados, e, segundo o que foi dito, acaba e se desintegra exatamente lá, onde cada um se formou. (Da natureza do homem, 2005, p.44).
Dessa forma, o que podemos ver é que essa preocupação, a de quem poderia melhor definir o que é a natureza humana, se seria o médico ou o filósofo, não faz sentido ao autor da Natureza do homem, na medida em que ele reconhece pressupostos filosóficos na própria arte da medicina.
Já no livro Medicina antiga, o autor[4] destaca a independência da medicina em relação à filosofia, enquanto defende que a medicina é quem pode fazer uma real ciência do homem em particular, a quem a filosofia, responsável por uma visão universal e, portanto, abstrata, deve ser tributária. O autor desse texto busca mostrar que a medicina toma sua concepção a partir de sua própria prática, e não de um postulado filosófico anterior, pelo qual se tentaria buscar na prática médica sua comprovação. Assim, ele se refere à doutrina dos elementos de Empédocles e se pergunta:
De minha parte, eu me pergunto com perplexidade como as pessoas que professam esta tese, e que levam a arte do caminho atual para um postulado, podem tratar os enfermos de acordo com o que eles postulam. Porque não descobriram, creio eu, qualquer coisa que seja quente, fria, seca ou úmida, em si e por si, sem estar associada a nenhum outro tipo de qualidade. (Medicina antiga, 1999, p.87, tradução nossa).[5]
A pergunta que pode resumir esse questionamento é: como verificar na experiência os postulados filosóficos? Como podemos ver, o autor da Medicina antiga duvida que se possa encontrar empiricamente e por si mesmos os elementos de que falara Empédocles, sem que estivessem de alguma maneira associados a algum tipo de qualidade. Dessa maneira, defende a autonomia da medicina enquanto arte definidora de seus próprios conceitos, e não uma consequência da filosofia, pois a terapêutica comprovaria a ineficiência dos postulados filosóficos. E acrescenta:
Mas acredito que tudo o que foi dito ou escrito sobre a natureza por tal sábio ou tal médico tem menos a ver com a arte da medicina do que com a arte da pintura, e acredito que para ter algum conhecimento preciso sobre a natureza, não há nenhuma outra fonte que não seja a medicina. (Medicina antiga, 1999, p.93, tradução nossa).[6]
Como esclarece Jouanna (1999, p.50), na Medicina antiga, o autor defende que tais postulados pré-socráticos são redutores demais da natureza humana e que somente a medicina, através de suas análises das reações do corpo aos estímulos externos, poderia descrever em maiores detalhes a natureza humana. A filosofia traria apenas uma ideia geral demais do ser humano, enquanto que a medicina forneceria uma concepção mais particular e, por isso, mais exata do homem. A Medicina antiga reivindicaria para a arte médica o estatuto da única ciência verdadeira do homem, colocando a antropologia filosófica em segundo plano.
A Medicina antiga irá assumir a doutrina do desequilíbrio como causa da enfermidade, já presente na doutrina de Empédocles, e antes disso na do médico e filósofo pitagórico Alcméon de Crotona, diga-se de passagem, mas rechaçará como excessiva simplificação a redução do seu princípio a alguns poucos elementos, cuja realidade ou é irrelevante ou é inverificável empiricamente. De acordo com esse texto, o que interessa ao médico, quanto à natureza humana para atuar corretamente é saber o que é o homem em relação ao que come e bebe, o que é em relação aos seus hábitos e o que pode acontecer a cada indivíduo a partir de cada coisa concreta. (Medicina antiga, 1999, p.89-91).
Estimei, por minha parte, que não havia necessidade de inovar colocando um postulado, como se faz para as coisas invisíveis e duvidosas; porque para essas coisas é necessário, se alguém se compromete a dizer algo sobre isso, recorrer a um postulado, como é o caso das coisas que estão no céu ou debaixo da terra: mesmo que alguém os exponha e os conceba como são, nem aquele que expõe, nem quem o escuta, verá claramente se ele está certo ou não; porque não há critério ao qual se possa referir para ter um conhecimento exato. (Medicina antiga, 1999, p.75, tradução nossa).[7]
O texto Medicina antiga é, portanto, um escrito que contraria uma ideia aceita por outros médicos também hipocráticos, aquela de Empédocles, como demasiadamente abstrata. O que se aplica à concepção de medicina dele, também se aplica à concepção de natureza humana.
Todos que têm pretendido falar ou escrever de medicina fundamentando sua tese em um postulado tal como o quente, o frio, o úmido e o seco, ou qualquer outro, simplificando a causa original das doenças e da morte dos homens, e postulam em todos os casos a mesma causa, um ou dois princípios, cometem erros manifestos em muitas de suas afirmações, ao atribuir a todas a mesma origem. (Medicina antiga, 1999, p.74, tradução nossa).[8]
De acordo com o autor desse texto, a medicina não foi construída tendo como ponto de partida um postulado filosófico, mas sim a observação empírica. Em resumo, nessa perspectiva, podemos dizer que não é preciso fazer filosofia para poder fazer medicina. Diferentemente, segundo ele, foi a necessidade que levou o homem a buscar e a descobrir a medicina. Em outras palavras, foi de uma observação concreta e da necessidade de descobrir como recuperar a saúde de um doente, que ela se formou, por tentativa e erro.
Quanto a sua origem, a arte da medicina não teria sido descoberta, nem sido objeto de investigação (pois a necessidade não teria sido sentida), se tivesse sido proveitoso aos enfermos utilizar, no seu regime e na sua alimentação, os mesmos alimentos, as mesmas bebidas e, em geral, o mesmo regime que as pessoas sãs o fazem, e se não houvessem outras coisas melhores do que aquelas. Mas, na realidade, foi a necessidade que fez com que a medicina fosse pesquisada e descoberta, pois não era benéfico aos enfermos tomar a mesma alimentação que os sãos, assim como hoje também não é. (Medicina antiga, 1999, p.76-77, tradução nossa).[9]
O mais evidente no texto Medicina antiga é a importância dada à alimentação, como fundamental para restabelecer nossa saúde e como causa de muitas doenças. Sendo assim, o autor procura mostrar como a medicina se iniciou da necessidade de perceber o que causava nossos males físicos, encontrando na alimentação a principal resposta e o principal recurso, mostrando, em destaque, como a dieta de um enfermo deve ser diferente da de um homem são. De modo geral, o texto traz o ensinamento de saber reconhecer o que, na alimentação, está causando a enfermidade e eliminá-lo. Em resumo, afirma que, de modo geral, o que faz o desequilíbrio, portanto, a doença, não é o quente, o frio, o úmido ou o seco, e sim um alimento. Portanto, para a cura não há que se administrar o seu contrário (o quente para o frio, o seco para o úmido, e vice-versa), como diz o postulado que se guia por Empédocles, mas entender qual alimento é forte demais para o organismo e não é bem absorvido. Assim fizeram, de acordo com ele, os pioneiros da arte médica.
Dessa maneira, a definição de natureza humana pode ser alcançada pela própria maneira como a medicina é elaborada e pensada, na medida em que, para conceber o modo de alcançar a saúde, implica em termos de antemão uma definição de como o homem é composto. Porém, essa é uma definição construída indutivamente, segundo esse texto, e não dedutivamente, como acontece com os tratados que seguem Empédocles. Segundo o autor da Medicina antiga, a respeito de como se restabelece a saúde do homem, se considerássemos o postulado dos pares quente/frio, úmido/seco como causadores de doenças, no caso de uma pessoa frágil que se alimenta de trigo cru (sem ser elaborado), de carne sem cozimento e que bebe água, o que, segundo ele, certamente o faria adoecer, como se poderia restabelecer a saúde dela? – ele pergunta. Com o frio, o calor, o seco ou o úmido? Se o mal fosse causado por algum desses elementos, segundo o raciocínio dos médicos filósofos, o que pode curá-lo é o seu contrário. Mas, de fato, o remédio mais seguro e claro deveria ser a supressão da dieta que o paciente seguia, dando-lhe pão ao invés de trigo cru, carne cozida ao invés de crua e vinho no lugar de água. O que se pode dizer aqui? Que seu mal foi causado pelo frio e foi curado com o alimento quente, ou o contrário? Aquele que é interrogado se veria em grande aperto, porque ao administrar-lhe pão, o que, então, teria sido lhe tirado, para que não causasse mais danos? O úmido, o seco, o frio ou o quente? Sabe-se, na verdade, que não é o mesmo para um organismo o pão de farinha fina e o de farinha sem ser peneirada, feito com muita ou pouca água, bem amassado ou sem amassar, cozido ou cru etc. Há em cada coisa princípios ativos muito distintos entre si, que vemos influenciar a saúde do homem, pelos quais se ressente ou sofre alterações, pela influência de um ou outro princípio e pelo qual também se recupera a sua saúde. Disto que é muito mais útil e imprescindível conhecer essas coisas, e não outras, sabendo aplicá-las à natureza humana. Assim fizeram os pioneiros da arte da medicina, que não acreditavam que o que fazia mal ao homem era o frio, o quente, o úmido ou o seco, nem que necessitava nada disso. Pensavam que o que o prejudicava era a força de cada coisa e o que havia nela de excessivo para a natureza humana que não o podia assimilar, como o mais doce de todos os doces, o mais amargo de todos os amargos, o mais ácido de todos os ácidos, enfim, de cada componente, o seu grau máximo. E isso era o que precisavam suprimir. Além disso, viam que esses mesmos elementos faziam parte do homem e também o prejudicavam. Dessa forma, conclui: no organismo se encontra o salgado, o doce, o amargo, o adstringente, o ácido, o insípido etc. Mesclados e combinados, eles não prejudicam o corpo. Mas, quando um deles se individualiza, então se deixa sentir e causa sofrimento ao homem. Desde aí, segue a conclusão de que não há, ou pelo menos, coloca a dúvida de se haveria um elemento, tal como o frio ou o quente, descoberto por si mesmo na natureza, sem que estivesse copartícipe de outro tipo de princípio. Seja o frio ou o quente, ou algum desses elementos, sempre estão atribuídos a alguma coisa. Assim, se mandam a um paciente tomar algo quente, ele lhe perguntará que coisa pode ser quente, e fará diferença se for quente e adstringente ou quente e insípido. E, mais do que isso, o princípio que será dominante e que, portanto, poderá fazer mal, não é o quente, e sim o adstringente ou flatulento, por exemplo. Na verdade, na opinião do autor da Medicina antiga, de todos os princípios do organismo, o que menos influência é o calor e o frio, porque, uma vez que um deles se apresenta, o oposto brota do corpo humano, de modo a reequilibrá-lo. (Medicina antiga, 1999, p.84-86). A partir disso, se pode perceber que a concepção de natureza humana, baseada na doutrina dos elementos de Empédocles, é questionada e substituída pela dos elementos “salgado”, “doce”, “amargo”, “adstringente”, “ácido”, “insípido”. Estes, sim, seriam os elementos pelos quais os seus excessos desencadeariam enfermidades. Porém, cabe questionar aqui, da mesma forma, se tais elementos podem ser encontrados por si mesmos, sem ser atribuídos a nada. Ou seja, o problema que o autor de Medicina antiga imputa aos filósofos, isto é, a abstração, não estaria também presente aqui? Apesar de muito questionar a ideia dos elementos de Empédocles, o autor da Medicina antiga continuou postulando a ideia de elementos, e essa é uma noção que permeia toda a fisiologia do CH, como lembra Entralgo (1970, p.82).
De forma indireta, o texto Sobre a arte médica[10] advoga sobre a independência da medicina em relação à filosofia, na medida em que defende que ela é uma techné [arte], uma atividade técnica. Como esclarece Gual (2020a, p.29), a experiência e a experimentação são o fundamento da investigação e da técnica, ou seja, da ciência indutiva e prática. Dessa forma, distingue-se da episteme por sua orientação prática, enquanto que a episteme é um saber teórico, constituído sobre bases dedutivas e axiomas gerais e abstratos. O que se discute nesse texto, no entanto, é a existência de uma arte curadora, e não explicitamente a sua diferença com a filosofia. De acordo com Rebollo (2003, p.275), o tratado Peri tekhnés é o primeiro documento histórico, senão o único, que reporta o debate entre os médicos, os filósofos e a sociedade grega no estabelecimento da arte médica. E, mais precisamente, é um dos primeiros textos em defesa da medicina contra seus críticos, dentre eles, os sofistas do século V a.C. É nesse contexto que ele oferece um dos mais importantes testemunhos da antiguidade de reflexões epistemológicas e filosóficas sobre a medicina. Porém, destacamos que neste texto não há nenhum recurso à cosmogonia para a fundamentação da medicina, como se encontra na Natureza do homem. O que, de fato, se encontra é uma defesa da medicina enquanto techné existente, frente às críticas de que a medicina seria fruto do acaso e de que há casos em que os doentes alcançam a cura sem ajuda médica e outros que, mesmo com ajuda médica, morrem, e ainda que algumas vezes os próprios médicos se recusam a tratar casos sem esperança, objeções as quais teriam a intenção de mostrar que a medicina enquanto arte não existe. E é justamente na tentativa de defender a medicina enquanto arte, e que, por isso mesmo, tem seus limites, que indiretamente ela se estabelece na distinção com a filosofia, pois, como mostra a definição de medicina encontrada nesse texto, seu objetivo é totalmente pragmático:
[A medicina] é o separar por completo os padecimentos dos que estão enfermos e mitigar os rigores de suas enfermidades, e o não tratar aos já dominados por enfermidades, conscientes de que em tais casos a medicina não tem poder. (Sobre a arte médica, 2020a, p.31, tradução nossa).[11]
Dessa forma, sem se preocupar em buscar um fundamento filosófico para o saber médico, Sobre a arte médica configura-se na compreensão como técnica e, como tal, uma arte com regras e procedimentos de orientação prática, que parte de casos concretos para, através da indução, poder predizer casos semelhantes. Nada menos filosófico, para os olhos da época. E, diferentemente da Medicina antiga, esse texto sequer apresenta qualquer preocupação em compreender e definir o que é a natureza humana, da qual essa arte mesma trata. Não se pode afirmar, a partir do texto Sobre a arte médica, quem deveria tratar dessa definição, se a medicina ou a filosofia. Simplesmente não é seu objetivo realizar essa tarefa. Parece, então, que ao contrário da Medicina antiga, relega essa preocupação de compreender a natureza humana para quem se debruça sobre princípios, fundamentos e definições, que é a própria filosofia.
Já no texto Sobre as carnes[12], encontra-se claramente uma fundamentação filosófica da medicina, na medida em que o autor tenta descrever a formação do corpo humano baseado numa teoria dos elementos, muito próxima dos pré-socráticos, como a de Empédocles. Segundo o autor desse texto (Sobre as carnes, 2020c, p.83), o universo é constituído por três grandes elementos, a saber: o éter (quente), a terra (seca e fria, mas que conserva, de modo disperso, aqui e lá, também calor) e o ar (úmido e espesso), os quais formariam também certos órgãos e partes do corpo. Dessa forma, é evidente que o autor desse texto também se inscreve numa cosmogonia e, como tal, toma a filosofia como princípio do conhecimento médico. Este é o conhecimento do ser humano que se pode depreender desse texto, o qual se registra apenas em uma descrição física da formação de seu corpo. De qualquer forma, vemos que o autor percebe a medicina como tributária da filosofia na medida em que, para se aproximar da natureza humana, mesmo que do ponto de vista físico, teve que recorrer à filosofia.
O texto Sobre as enfermidades IV mostra-se, por sua vez, com um fundo doutrinal partidário da Teoria dos Quatro Humores[13], embora o autor apresente aqui uma diferença entre eles: em vez de sangue, fleuma, bílis negra e bílis amarela, ele defende a existência de sangue, fleuma, bílis e água. No mais, compactua da mesma ideia de saúde, a de que ela depende do equilíbrio desses humores e de que a enfermidade aparece quando um humor se sobrepõe a outro. Este texto, tal como Da natureza do homem, oferece uma clara influência de filósofos pré-socráticos, tais como Empédocles, Demócrito e Alcmeón de Crotona. Como destaca Blanco (2020, p.60), é o que se pode ver com referência à defesa de que o esperma pertence tanto à mulher quanto ao homem, tese compartilhada por Empédocles, Alcmeón de Crotona, Parmênides e Demócrito. Aliás, afirma a comentadora, a preocupação com a embriologia e a origem da vida é muito comum entre os pré-socráticos. E, como vimos anteriormente, a própria doutrina dos Quatro Humores tem influência de Empédocles, dada a sua relação com a teoria dos quatro elementos do universo. Diz o autor de Sobre as enfermidades IV:
A mulher e o homem têm no corpo quatro variedades de humor, dos quais procedem as enfermidades, exceção feita pelas originadas por causa da violência. Estas variedades são a fleuma, o sangue, a bílis e a água. [...] Quero mostrar primeiro como aparece um excesso ou uma deficiência de bílis, sangue, água e fleuma; se origina a partir dos alimentos e das bebidas do seguinte modo. O ventre, quando está cheio, é a fonte de todos os humores para o corpo; mas, quando está vazio, os toma de todo o corpo, que assim se liquefaz. Há também outras quatro fontes, desde as quais fluem cada um dos humores para todo o corpo, uma vez que as fontes os tenham colhido do ventre, mas quando estas estão vazias, o tomam do resto do corpo e o próprio corpo arrasta do ventre, quando este contém alguma coisa. O coração é a fonte para o sangue, a cabeça para a fleuma, o baço para a água e o lugar que está acima do fígado para a bílis. Estas são as quatro fontes dos humores, sem contar o ventre. (Sobre as enfermidades IV, 2020d, p.70, tradução nossa).[14]
Vemos, portanto, que o autor descreve as fontes dos quatro humores no corpo, desenvolvendo a partir daí uma explicação mais completa do surgimento das enfermidades, que levará todo o texto para trabalhá-la. Esta descrição fala da composição do corpo humano, com um olhar médico, mas toma de empréstimo concepções embebidas em filosofia, sem demonstrar qualquer incômodo com isso.
Por fim, o livro Sobre a Dieta[15] defende que, para fazer medicina, é preciso antes conhecer a natureza do homem. Do contrário, como se poderia promover o equilíbrio daquilo que não se conhece? Diz ele:
Afirmo que quem pretende compor acertadamente um escrito sobre a dieta humana deve, antes de mais nada, reconhecer e discernir a natureza do homem em geral; conhecer de quais partes está composto desde a sua origem e distinguir de que elementos está dominado. Pois se não reconhece a composição fundamental, será incapaz de conhecer o que dela se deriva. E se não discerne o que é o dominante no corpo, não será capaz de procurar o conveniente ao ser humano. (Sobre a dieta I, 2020b, p.18, tradução nossa).[16]
A ideia é a de que a saúde é um estado natural do homem que deve ser restabelecido, caso entre em desequilíbrio. Assim, é preciso saber para qual condição voltar. E, para isto, é necessário saber qual a composição elementar desse corpo e qual a proporção lhe confere uma harmonia. Como, então, seria essa natureza humana? O texto não tarda em dizer que:
Todos os seres vivos, tanto o homem quanto todos os demais, estão constituídos por dois elementos, diferentes quanto a sua propriedade essencial, mas complementares em seu funcionamento: fogo e água. [...] Quanto à sua propriedade natural, cada um possui isto: o fogo pode mover-lo todo em qualquer circunstâncias e a água nutrir-lo todo em qualquer caso. A sua vez, por turnos, cada um domina e é dominado até o mais amplo e ao mínimo possível. Porque nenhum pode impor seu domínio totalmente pela razão seguinte: ao fogo, ao avançar ao último lhe falta a nutrição; de modo que se retira aonde encontra de que se nutrir; e a água, ao avançar sobre o último do fogo, lhe falta movimento, com que nisso se detém, e quando se detém já não é potente, a não ser que já se consome em alimento do fogo que a ataca. Por isso, nenhum dos dois pode impor seu domínio de modo absoluto. (Sobre a dieta I, 2020b, p.19, tradução nossa).[17]
Esta referência de composição humana de fogo e água é muito claramente influenciada pela filosofia pré-socrática, no sentido de uma compreensão da realidade física por elementos. Enquanto no Livro I da Dieta o autor faz clara menção à natureza humana filosoficamente pensada, nos livros seguintes ele tem uma perspectiva mais empírica, mostrando como alimentos, exercícios, ventos e estações do ano podem influenciar a saúde. Isso mostra como filosofia e medicina estão integrados neste texto, de modo que, segundo ele, não se poderia fazer medicina sem antes ter uma clareza do que é a natureza humana. Desse modo, a filosofia não somente é o que pode definir esse conceito, como ela é mesmo antecessora da arte médica.
No Livro I, art. 10, da Dieta, o autor mostra sua visão da natureza humana à imitação dos cosmos, tratando-a do ponto de vista de sua formação genética. Natureza humana é aqui compreendida como o corpo, que se forma como um embrião, à maneira do mar, da terra, da lua e do sol.
Em resumo, o fogo todo o tem (o embrião) organizado por si mesmo no interior do corpo, à imitação do universo, concordando o pequeno com o grande e o grande com o pequeno. A cavidade estomacal é como o órgão mais amplo, recipiente para a água seca e úmida, a fim de proporcioná-la a todo o resto e receber de todo o demais, à maneira do mar, nutridor dos animais adaptados a ele e destruidor dos inadaptados. Em torno dessa (cavidade estomacal), o fogo produz uma condensação da água fria e úmida, conduto para o ar interior frio e quente, à imitação da terra, que transforma tudo o que cai sobre ela. E ao consumir isto e ao desenvolver o outro, tem logrado uma dispersão de água ligeira e de fogo aéreo, invisível e visível, secreção do compacto, no qual se move cada elemento para chegar a fazer-se visível, no momento prefixado. No interior, o fogo formou três círculos, que se correspondem entre si, tanto por dentro quanto por fora, um nas cavidades do úmido, à maneira da lua, o outro na capa sólida circundante, à maneira dos astros, e o circuito médio que alcança tanto o interior como o exterior, à maneira do sol. (Sobre a Dieta I, 2020b, p.22 e 23, tradução nossa, grifo nosso).[18]
Esta é a ideia da natureza humana como um microcosmo, à imagem do grande cosmo, ideia essa que vai perpassar muitos textos do CH. Desse modo, como conclui Entralgo (1970, p.102), “o médico hipocrático necessita da filosofia como saber teorético acerca da physis e este é o traço mais fundamental do hipocratismo.” Esse entendimento da physis é fortemente influenciado pela filosofia jônica da natureza. Assim afirma Jaeger:
A medicina jamais teria conseguido chegar à ciência sem as investigações dos primeiros jônicos da natureza, que procuravam uma explicação natural para todos os fenômenos, sem a sua tendência a reduzir todo efeito a uma causa e a comprovar na relação de causa e efeito a existência de uma ordem geral e necessária, e sem a sua fé inquebrantável em chegarem a descobrir a chave de todos os mistérios do mundo, pela observação imparcial das coisas e a força do conhecimento racional. (JAEGER, 2013, p.1014).
Jaeger apresenta bem a influência da filosofia na medicina hipocrática, através do exemplo de Empédocles. “Sua teoria física dos quatro elementos perdura na medicina dos séculos seguintes sob a forma da doutrina das quatro qualidades fundamentais: o quente, o frio, o seco e o úmido. Combina-se de modos diversos e curiosos com a teoria médica dos humores básicos.” (JAEGER, 2013, p.1031). Alguns a incorporam completamente, outros a adaptam à teoria dos humores e outros ainda a recusam. Mas é, sem dúvida, um traço marcante da medicina hipocrática, de modo que o conceito de natureza humana nesta medicina, salvo no texto Medicina antiga, é claramente fundamentado na filosofia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pudemos ver através dos textos analisados, somente a Medicina antiga e Sobre a Arte Médica são partidários da independência da medicina em relação à filosofia, com uma diferença importante entre eles: o primeiro defende a tese de que a concepção do ser humano é mais bem definida pelos médicos do que por filósofos, por sua perspectiva mais empírica, devendo mesmo se resguardar do viés filosófico, este abstrato e desprovido de concretude. Em resumo, o autor desse texto advoga que a filosofia não somente não ajuda como atrapalha o entendimento da natureza humana; no segundo, o texto Sobre a arte médica, apesar da independência da medicina em relação à filosofia, deixa para a filosofia a tarefa de tratar da definição da natureza humana. Os demais textos demonstram uma visão completamente diferente, dialogando e até mesmo construindo a medicina com o auxílio da filosofia. Com exceção dos dois primeiros textos mencionados, podemos dizer que a fisiologia hipocrática é tributária da cosmogonia pré-socrática, de modo que, como diz Entralgo (1970, p.102), a filosofia jônica e siciliana constituiu o solo intelectual de toda a medicina hipocrática, onde podemos ver, por exemplo, a influência de Empédocles na Natureza do homem, em Enfermidades IV, em Sobre as carnes e em Sobre a dieta.
De acordo com Jacques Jouanna (1999, p.46), podemos encontrar no Corpus inúmeros exemplos de tratados escritos por partidários da medicina filosófica, segundo os quais o saber médico é dependente de um conhecimento prévio da natureza do homem e de diversos elementos dos quais é constituída, sendo, portanto, tributária de uma cosmogonia que lhe é exterior. Facilmente podemos ver essa dependência nos tratados de embriologia, os quais expressam a ideia de que o homem reproduz, numa pequena escala, a organização do universo. Trata-se, segundo ele, das primeiras formulações integralmente conservadas da teoria microcósmica da literatura grega.
Quem pode definir, então, a natureza humana: médicos ou filósofos? Devemos reformular a pergunta, portanto, porque, nessa época, muitos médicos têm estudos filosóficos, bem como muitos filósofos também conhecem de medicina. À exceção dos autores da Medicina antiga e de Sobre a arte médica, para os quais o médico tem uma visão mais concreta e prática do ser humano, para a maioria dos médicos hipocráticos, a medicina se constrói também com filosofia, sem problema algum e muito ao contrário. A arte médica chega mesmo a ser tributária da filosofia, de modo que não há uma fronteira que separe um médico de um filósofo. Aliás, a pergunta pela natureza humana é uma questão filosófica, pela própria natureza universalizante, de modo que, só o fato de pensar sobre isso, já o aproxima da filosofia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RECEBIDO: 01/09/2021 RECEIVED: 01/09/2021
APROVADO: 02/08/2022 APPROVED: 02/08/2022
[1] Corpus Hippocraticum = CH.
[2] Este texto é uma continuação da série de artigos sobre a natureza humana no Corpus Hippocraticum, cujo primeiro foi intitulado “A natureza humana no Corpus Hippocraticum: análise do texto A natureza do homem”, e, como tal, não retomarei todos os detalhes introdutórios já explicados naquela ocasião.
[3] Utilizamos a tradução de Henrique Cairus, referenciada na bibliografia.
[4] Não se sabe ao certo de quem é a autoria deste texto, mas sabe-se que ele é do fim do século V a.C. ou início do século IV a.C. De acordo com Nava (2020, p.36), a data de sua composição pode ser situada entre os anos 440 e 400 a.C. Na medida em que a Medicina antiga refuta a tese dos quatro elementos, relacionada aos quatro humores, teoria esta apresentada no texto Da natureza do homem, pode-se ver que esses dois textos não são do mesmo autor e que, possivelmente, este último já estava escrito.
[5] Pour ma part, je me demande avec perplexité comment les gens qui professent cette thèse-là, et qui conduisent l’art hors de la présente voie vers un postulat, peuvent traiter les malades en conformité avec ce qu’ils postulent. Car ils n’ont pas découvert, je pense, quelque chose qui soit chaud, froid, sec ou humide, en soi et à part soi, sans être associé à aucune autre sorte de qualité. (Ancienne Médecine, 1999, p.87).
[6] Mais moi, j’estime que tout ce qui a été dit ou écrit sur la nature par tel savant ou tel médecine a moins de rapport avec l’art de la médecine qu’avec l’art de la peinture, et j’estime que pour avoir quelque connaissance précise sur la nature, il n’existe aucune source autre que la médecine. (Ancienne médecine, 1999, p.93).
[7] J’ai estimé, pour ma part, qu’elle n’a pas besoin d’innover en posant un postulat, comme on le fait pour les choses invisibles et douteuses ; car pour ces choses-là, il est nécessaire, si l’on entreprend d’en dire quoi que ce soit, de recourir à un postulat, comme c’est le cas pour les choses qui sont au ciel ou sous la terre : quand bien même quelqu’un les exposerait et les concevrait comme elles sont, ni celui qui expose lui-même ni ceux qui l’écoutent ne verraient clairement s’il est dans le vrai ou non ; car il n’y a pas de critère auquel on puisse se référer pour avoir une connaissance exacte. (Ancienne médecine, 1999, p.75).
[8] Tous ceux qui, ayant entrepris de traiter de la médecine, oralement ou par écrit, se sont donné comme fondement à leur thèse un postulat tel que le chaud, le froid, l’humide, le sec, ou tout autre postulat de leur choix, simplifiant la cause originelle des maladies et de la mort chez les hommes et postulant dans tous les cas la même cause, un ou deux principes, commettent des erreurs manifestes sur bien des points de leurs thèses. (Ancienne médecine, 1999, p.74-75).
[9] À l’origine, l’art de la médecine n’aurait été ni découvert ni recherché - car le besoin ne s’en serait point fait sentir - s’il avait été profitable aux gens souffrants d’user, dans leur régime et dans leur alimentation, des mêmes aliments, des mêmes boissons et, en général, du même régime que les gens bien portants, et s’il n’y avait pas eu d’autres choses meilleures que celles-là. Mais en réalité, c’est la nécessité elle-même qui fit que la médecine fut recherchée et découverte chez les hommes, car il n'était pas profitable aux gens souffrants de prendre la même alimentation que les gens bien portants, de même qu’aujourd’hui non plus cela n’est pas profitable. (Ancienne médecine, 1999, p.76-77)
[10] Segundo Rebollo (2003, p.277), os comentadores deste texto atribuem a sua autoria ora a Protágoras, ora a Hípias, ou, ainda, a Heródico de Selimbria, sofista e médico citado por Platão.
[11] [La medicina es] el apartar por completo los padecimientos de los que están enfermos y mitigar los rigores de sus enfermedades, y el no tratar a los ya dominados por las enfermedades, conscientes de que en tales casos no tiene poder la medicina. (Sobre la ciencia médica, 2020a, p.31).
[12] Datado pelos comentadores como provavelmente do século V a.C. e não se sabe o autor.
[13] Como vemos, tal doutrina aparece no escrito Da natureza do homem, o que, segundo Blanco (2020, p.60), é muito comum na escola de Cnido. Apesar disso, não se pode dizer que Sobre as enfermidades IV tenha sido escrito por Pólibo, assim como se tem indícios de que a Natureza do homem tenha sido. Para além dessa relação com este texto, Sobre as enfermidades IV também guarda relação com outros textos do CH, que podem ter sido escritos por outros autores, de modo que não se pode estabelecer claramente quem o escreveu. Sobre a datação, provavelmente se trata de fins do século V a.C. ou início do IV a.C.
[14] La mujer y el hombre tienen en el cuerpo cuatro variedades de humor, de los que proceden las enfermedades, excepción hecha de las originadas por causa de la violencia. Estas variedades son la flema, la sangre, la bilis y el agua. [...] Quiero mostrar primero cómo aparece un exceso o una deficiencia de bilis, sangre, agua y flema; se origina a partir de los alimentos y de las bebidas del siguiente modo. El vientre, cuando está lleno es la fuente de todos los humores para el cuerpo; pero cuando está vacío los toma de todo el cuerpo, que así se licua. Hay también otras cuatro fuentes desde las que fluyen hasta el cuerpo cada uno de los humores, una vez que los han cogido del vientre; pero cuando éstas están vacías lo toman del cuerpo, y el propio cuerpo arrastra del vientre, cuando este contiene alguna cosa. El corazón es la fuente para la sangre, la cabeza para la flema, el bazo para el agua y el lugar que está encima del hígado para la bilis. Éstas son las cuatro fuentes de los humores, sin contar el vientre. (Sobre las enfermedades IV, 2020d, p.70).
[15] Texto escrito possivelmente, segundo Gual (2020b, p.14), no ano de 400 a.C. por um filósofo que não se sabe o nome, mas com conhecimento em medicina, dada a efervescência e o nítido conhecimento filosófico revelado nesse texto, sobretudo no livro I.
[16] Afirmo que quien pretende componer acertadamente un escrito sobre la dieta humana debe, antes que nada, reconocer y discernir la naturaleza del hombre en general; conocer de qué partes está compuesto desde su origen y distinguir de qué elementos está dominado. Pues si no reconoce la composición fundamental, será incapaz de conocer lo que de ella se deriva. Y si no discierne qué es lo dominante en el cuerpo, no será capaz de procurarle lo conveniente al ser humano. (Sobre la dieta I, 2020b, p.18).
[17] Los seres vivos, tanto el hombre como todos los demás, están constituidos por dos elementos, diferentes cuanto su propiedad esencial, pero complementarios en su funcionamiento: fuego y agua. [...] Cuanto a su propiedad natural cada uno posee esto: el fuego puede moverlo todo en cualquier circunstancia y el agua nutrirlo todo en cualquier caso. A su vez, por turnos, cada uno domina y es dominado, hasta lo más amplio y lo mínimo en lo posible. Porque ninguno puede imponer su dominio totalmente por la razón siguiente: al fuego, al avanzar sobre lo ultimo del agua le falta la nutrition; de modo que se retira adonde encuentra de qué nutrirse; y al agua, al avanzar sobre lo último del fuego, le falta movimiento, con que en eso se detiene, y cuando se detiene ya no es potente, sino que ya se consume en alimento del fuego que la ataca. Por eso ninguno de los dos puede imponer su dominio de un modo absoluto. (Sobre la dieta I, 2020b, p.19).
[18] En resumen, el fuego todo lo ha organizado por si mismo en el interior del cuerpo, a imitación del universo, acordando lo pequeño con lo grande y lo grande con lo pequeño. La cavidad estomacal es como el órgano más amplio, recipiente para el agua seca y húmeda, a fin de proporcionarla a todo el resto y recibir de todo lo demás, a la manera del mar, nutridor de los animales adaptados a él y destructor de los inadaptados. En torno a esta [cavidad estomacal] produjo el fuego una condensación de agua fría y húmeda, conducto para un aire interior frío y caliente, a imitación de la tierra, que transforma todo lo que cae sobre ella. Y al consumir este y desarrollar lo otro, ha logrado una dispersión de agua ligera y de fuego aéreo, invisible y visible, secreción de lo compacto, en lo que se mueve cada elemento para llegar a hacerse visible en el momento prefijado. En el interior, el fuego ha formado tres circuitos, que se corresponden entre sí tanto por dentro como por fuera: el uno en las cavidades de o húmedo, a la manera de la luna, el otro en la capa sólida circundante, a la manera de los astros, y el circuito medio que alcanza tanto el interior como el exterior, a la manera del sol. (Sobre a Dieta I, 2020, p.22 e 23).