A impossibilidade da produção do sublime pelo gênio em Kant

The impossibility of the production of the sublime by the genius in Kant

Thiago Ehrenfried Nogueira

Doutorando pelo PPGF-PUCPR e joint PhD PUCPR/Università degli Studi di Ferrara.

Bolsista CAPES/PROSUC

E-mail: tenog@hotmail.com

 

RESUMO

O problema que o texto busca apresentar, é a questão sobre a impossibilidade de o gênio produzir o sublime da natureza. No interior desta questão, para possibilitar sua resposta, serão desdobradas algumas relações que remetem a totalidade da filosofia de Kant, sendo elas: A questão da separação entre fenômeno e coisa em si; A relação desta separação nos juízos estéticos; A relação entre gênio e natureza;  A relação entre o gênio e o suprassensível e; A diferença entre o belo e o sublime na natureza e nas artes. Dentro destas questões buscamos mostrar o motivo do sublime não fundar uma espécie de arte, apesar do sublime e do belo se mostrarem como experiências de espécies totalmente diferentes para o expectador quando experienciados na natureza, fundando duas espécies de juízos estéticos distintos. Contudo, quando se trata da criação das artes pelo homem, o sublime passa a ser mero efeito do belo, sendo internalizado na experiência do belo. Essa diferença do sublime da natureza com o sublime nas artes encontra fundamento nos limites da razão e na relação do gênio com o suprassensível.

PALAVRAS-CHAVE: Gênio; Natureza; Sublime; Belo; Suprassensível.

ABSTRACT

The problem that the text seeks to present is the question about the impossibility of genius to produce the sublime of nature. Within this question, to make it possible to answer, some relations that refer to the totality of Kant's philosophy will be unfolded, namely: The question of the separation between phenomenon and thing itself; The relationship of this separation in aesthetic judgments; The relationship between genius and nature; The relationship between genius and the super sensitive and; The difference between the beautiful and the sublime in nature and the arts. Within these questions we seek to show the reason why the sublime does not found a kind of art, although the sublime and the beautiful show themselves as experiences of totally different species for the spectator when experienced in nature, founding two kinds of different aesthetic judgments. However, when it comes to the creation of arts by man, the sublime becomes a mere effect of the beautiful, being internalized in the experience of the beautiful. This difference between the sublime of nature and the sublime in the arts finds its foundation in the limits of reason and in the relationship of genius with the super-sensitive.

KEYWORDS: Genius; Nature; Sublime; Beautiful; Supersensible.

 

Introdução

 

            O objetivo deste texto é apresentar o motivo da impossibilidade do gênio de produzir o sublime da natureza. Assim, o nosso interesse se estabelece no sentido daquele que é capaz de produzir arte. O principal ponto que queremos investigar é o motivo do sublime não ser articulado como uma outra espécie de arte, como acontece no caso do belo com as belas artes. O sublime aparece no interior das artes como um mero efeito possível do belo.

Embora as experiências do belo e do sublime sejam totalmente distintas na perspectiva do espectador,[1] e do modo como aparecem na natureza, elas não se apresentam como distintos tipos de arte. O belo aparece tanto na natureza como na arte de maneira equivalente, mas o sublime da natureza não pode ser reproduzido na arte,[2] ele apenas aparece na arte no interior da experiencia bela de arte, como um efeito desta. Assim, o sublime na natureza e o sublime na arte - enquanto mero efeito do belo - não se equivalem em essência. O motivo dessa diferença está na relação do gênio com o suprassensível, e na sua possibilidade de criação. Como veremos, a resposta para esta questão está nas próprias condições de possibilidade do belo e do sublime e a relação destas com os limites da razão.

            Uma primeira questão que gostaríamos de explicitar, a título introdutório, é quanto ao conceito de arte que estamos tratamos nesse início de texto. Na Crítica da faculdade de julgar, a arte é exposta na introdução como um dos modos de apreender a natureza pelo sujeito.[3] Essa arte é descrita do ponto de vista do sujeito que é por ela afetado e do sujeito que a produz. A arte que estamos tratando até o momento é a arte que pode ser produzida pelo sujeito, que é feita pelo gênio através de seu dom natural.[4] É esse tipo de arte que o sublime não tem lugar independentemente do belo, pois o gênio não consegue imitar a característica sublime da natureza, apenas a bela. É importante ressaltar que será demonstrado que o motivo disso é enraizado na própria arquitetônica do sistema kantiano, e que, se Kant admitisse que essa imitação fosse possível o próprio sistema estaria em contradição.

 

Os juízos estéticos na crítica da faculdade de julgar

 

            Para iniciarmos a discussão sobre o gênio e a arte, é importante revermos rapidamente a construção arquitetônica de Kant a título introdutório. A separação entre o sensível e o suprassensível é uma das bases de toda a filosofia de Kant, expressada logo no início de sua primeira crítica pode ser colocada como a separação entre os fenômenos e coisas em si.[5] A razão só pode conhecer, em seu uso teórico, o domínio da natureza no que diz respeito aos fenômenos, onde o suprassensível se colocaria como meramente regulativo. Na segunda crítica, o interesse não é mais o uso teórico, mas o uso prático da razão, a liberdade e a ação moral, onde a sua lei é dada pelo suprassensível e a causalidade dos fenômenos não faz parte. Na terceira crítica, Kant expressa que deve haver um ponto de união, um fundamento da unidade do suprassensível – do objeto e do sujeito prático - que permita a mediação de razão teórica e prática.[6] Essa unidade é o que faz a mediação dos dois âmbitos do objeto – o sensível e o suprassensível – e permite o conhecimento dos conceitos empíricos da natureza. Essa unidade é dada pela faculdade de julgar, que, como faculdade mediadora entre o entendimento e a razão, tem um princípio transcendental próprio, o conceito de finalidade da natureza:

 

Aquilo que a pressupõe a priori sem levar em conta o aspecto prático, isto é, a faculdade de julgar, fornece, no conceito de uma finalidade da natureza, o conceito mediador entre os conceitos da natureza e o conceito da liberdade que torna possível a passagem da razão pura teórica à razão pura prática e da legalidade da primeira à finalidade da última; pois assim é conhecida a possibilidade do fim derradeiro, que só pode tornar-se efetivo na natureza e em concordância com suas leis. (KANT, 2016, p. 97)

 

            A faculdade de julgar é, também, a faculdade que realiza a junção dos objetos dados pela intuição com os conceitos puros do entendimento, por meio do esquematismo apresentado na primeira crítica. Esse uso da faculdade de julgar produz um juízo determinante sobre a natureza, determinante pois os fenômenos se encontram determinados por conceitos do entendimento. Esse juízo, porém, não é o juízo mediador entre o âmbito teórico e prático da razão, pois se encontra apenas no seu âmbito teórico. O juízo reflexionante é o juízo próprio a faculdade de julgar enquanto mediadora, pois este não é determinado por conceitos do entendimento nem por ideias da razão. O juízo reflexionante é determinado pelo princípio da finalidade na natureza, princípio transcendental[7] da faculdade de julgar, que é pressuposto pela razão para que seja possível o conhecimento em geral. Só na medida em que pressupomos uma certa finalidade da natureza em relação ao sujeito cognoscente temos acesso aos conceitos empíricos da ciência. Esse princípio é pressuposto, ou seja, subjetivo, pois, se fosse objetivo se trataria de um acesso da razão humana ao suprassensível da natureza no âmbito teórico[8], algo que é vedado por Kant desde o início de sua investigação filosófica pelas condições de possibilidade do conhecimento em geral.

            O juízo reflexionante pode ser estético ou teleológico. Em ambos os casos está pressuposto uma finalidade da natureza. No caso do teleológico a finalidade é da natureza em relação a si mesma, embora posta pelo sujeito, no caso do estético a finalidade é da natureza em relação ao sujeito racional. Para nossa questão, só nos interessa o julgamento estético. O juízo estético pode se dar em relação ao belo ou ao sublime. O juízo em relação ao belo se denomina juízo de gosto.

O juízo de gosto se realiza quando a finalidade da natureza concorda com nossa mente, porém sem que haja um conceito que delimite o objeto da natureza sobre uma regra. No juízo determinante em que a relação entre o entendimento e imaginação – na realização do esquematismo – o entendimento tem uma superioridade, pois infere um conceito à intuição, no caso do juízo reflexivo do belo, a imaginação e fica livre do entendimento, em um livre jogo, embora haja uma harmonia com ele. Essa harmonia diz respeito a concordância dada pelo princípio transcendental da faculdade de julgar - a finalidade da natureza - que corresponde a forma com que o objeto empírico[9] é dado ao sujeito, com suas faculdades.[10] Então, o belo é relacionado a forma do objeto que concorda com nossas faculdades racionais, sem ser, contudo, determinado por elas conceitualmente.[11] Assim, pode-se dizer que a finalidade do gosto se trata de uma finalidade sem fim, no sentido de que ela “tem uma causalidade em si, qual seja, a de conservar, sem qualquer propósito ulterior, o estado da própria representação e a atividade das faculdades cognitivas.” (KANT, 2016, p. 119) A causalidade não visa um objetivo, um ponto ao qual se deve chegar, mas simplesmente visa manter-se a si mesma, “porque essa contemplação se fortalece e se reproduz a si mesma” (KANT, 2016, p. 119). Desta forma, diz Lebrun que a finalidade sem fim é “uma consciência anterior a todo conhecimento, o caráter essencialmente não representativo [sem representação de um fim] da consciência da beleza” (LEBRUN, 1993, p. 456).

O outro juízo estético é juízo do sublime. Ao contrário do juízo sobre o belo, pelo “qual o objeto parece como que predeterminado para a nossa faculdade de julgar, e, assim, constitui em si um objeto da satisfação” (KANT, 2016, p. 141), o sublime se caracteriza justamente pela inadequação à essa finalidade da natureza que é pressuposta pela faculdade de julgar. O sublime é “contrário a fins para a nossa faculdade de julgar, inadequado à nossa faculdade de exposição e, por assim dizer, uma violência para a nossa imaginação” (KANT, 2016, p. 141). Dessa forma, o sublime enquanto inadequação da natureza em relação as faculdades do sujeito, se apresenta enquanto uma violência para este. Esta violência acontece devido a uma incapacidade das faculdades em apreender o a totalidade do fenômeno, pois este aparece ou como absolutamente grande, ou como poder. A violência é uma desarmonia da imaginação com o entendimento que só pode ser superada com uma harmonia da imaginação em relação a razão, ou seja, a imaginação tem que apelar para às ideias da razão para que possa “dominar” o fenômeno absolutamente grande, a partir da ideia de totalidade, e o fenômeno violento[12], a partir da ideia de finalidade da razão pela lei moral[13].

Ambos os juízos estéticos são de fundamento subjetivo, porém, existe uma diferença nesta subjetividade que gostaríamos de explorar. O belo, por ser predeterminado pela finalidade da natureza em relação às nossas faculdades mentais é subjetivo pois a própria finalidade da natureza é pressuposta subjetivamente pela faculdade de julgar. Se o contrário fosse o caso ela seria uma finalidade objetiva da natureza, e, caso tivéssemos acesso a ela estaríamos tendo acesso a coisa em si, que a primeira crítica nos mostra como sendo um limite de nossa razão. Apesar disso, o belo ainda pode ter uma pretensão de objetividade no juízo de gosto, pelo fato de todos os sujeitos portarem as mesmas faculdades da razão, incluindo a faculdade de julgar, portanto, a finalidade da natureza, que os juízos quando adequados podem concordar. Essa concordância, embora não objetiva, pois não tem fundamento no objeto, mas em sua forma, tem a pretensão de validade universal. A isso Kant denomina senso comum. Já o sublime é inteiramente subjetivo, na medida em que se baseia na inadequação das faculdades mentais com o objeto o sublime se encontra inteiramente na razão do sujeito, pois é ela que contêm as ideias de grandeza e liberdade.[14] Como diz Kant:

 

O máximo que podemos dizer é que o objeto é adequado para a exposição de uma sublimidade que se encontra na mente; pois o autêntico sublime não pode estar contido em uma forma sensível, já que só diz respeito a ideias da razão - as quais, mesmo não sendo possível uma exposição que lhes fosse adequada, são, justamente por essa inadequação (que pode ser expressa sensivelmente), evocadas e reavivadas na mente. Assim, o vasto oceano agitado por tempestades não pode ser denominado sublime. Sua visão é pavo rosa; e é preciso já ter enchido a mente com muitas ideias // para que ela possa ser determinada por tal intuição a um sentimento que é ele próprio sublime, na medida em que a mente é estimulada a abandonar a sensibilidade e ocupar-se de ideias que contêm uma mais elevada finalidade. (KANT, 2016, p. 142)[15]

 

            Neste sentido, apenas o juízo de gosto dependeria de uma dedução na Crítica da faculdade de julgar, pois, apenas ele tem de ser deduzido em sua legitimidade da sua presunção à universalidade. Segundo Deleuze: “Também no belo nos encontramos diante de um acordo subjetivo; mas este faz-se a propósito de formas objetivas, de tal modo que se coloca no caso do belo um problema de dedução que se não colocava para o sublime” (DELEUZE, 2000, p.59)[16] É nessa dedução que Kant vai fazer sua análise do gênio, aquele que pode produzir as obras de arte belas, e, ao analisarmos o gênio kantiano responderemos parte do problema do texto, o problema do porque não existem artes sublimes em Kant.

 

O gênio de Kant

 

            Tudo o que foi explicitado até este momento foi necessário para que possamos responder à questão sobre a existência da arte sublime. A resposta a essa pergunta só poderia se dar se nos colocássemos do ponto de visto daquele que, no pensamento de Kant, tem a capacidade de produzir obras de arte. Então, a pergunta que temos que responder é, porque, o gênio não tem a capacidade de produzir o sublime da natureza na arte? A resposta a essa questão, como veremos, tem relação com o todo do sistema crítico de Kant.

            O problema da produção da obra de arte[17] ocorre pois o belo, não pode ser captado por conceitos, ou seja, pela faculdade do entendimento. Essa impossibilidade de ser conceituado impede que haja algum tipo de regra objetiva, racional, na produção do belo, pois o próprio belo não é objetivo. Não obstante, todo produto da arte tem de ter uma regra de finalidade para que sua produção seja possível: “O conceito de bela arte não admite, porém, que o juízo sobre a beleza de seu produto seja deduzido de alguma regra que tivesse por fundamento de determinação um conceito, ou seja, um conceito de como ela seria possível.” (KANT, 2016, p. 205)

            A figura o gênio é formulada justamente para dar conta deste impasse. Na medida que ele é um dom natural que é dado ao sujeito pela natureza, ou seja, é justamente o que é natural no homem – sensível – e não o seu entendimento, que é o que formula a regra para as belas artes. Segundo Kant, definição de gênio é: “Um vez que o talento, como faculdade produtiva inata do artista[18], pertence ele mesmo à natureza, poderíamos nos exprimir assim: gênio é a disposição inata da mente (ingenium) através da qual a natureza dá a regra à arte.” (KANT, 2016, p. 205) Como diz Figueiredo; “É como se a natureza, capturando o gênio, pusesse-o a seu serviço, a fim de concluir o que ela, por si só, não é capaz de levar a termo.” (FIGUEIREDO, 2004, p. 52) Pelo fato da natureza tomar o gênio por veículo e este, por meio dela, estabelecer regras para a sua arte, essas regras não podem ser elaboradas totalmente em conceitos definidos e padrões, pois são justamente aquilo que foge ao entendimento.[19] Assim a obra de arte é um misto de compreensibilidade e incompreensibilidade:

 

A natureza é, na verdade, o que está na base de toda essa exposição, pois ela concede ao gênio a capacidade de unir regra e arte ao permitir a criação de um objeto que é ao mesmo tempo compreensível e incompreensível, que parece ter sido feito de acordo com regras, mas que não se deixa enquadrar numa regra única e determinada, assim como a natureza, embora se trate de uma obra de arte. (SANSEVERO, 2012, p. 283 – 284)

 

Desta forma, a comunicação e ensinamento das regras se torna impossível, então, uma escola estética é aquela que se funda sobre a imitação desses objetos produzidos pelo gênio.[20] Isso significa que os produtos do gênio servem de exemplo a outros para aguçarem seu gosto e, se estes forem favoritos da natureza, imitarem o produto. Uma imitação criadora, produtiva, sem realizar mera cópia – se for mera cópia não tem a originalidade de que o gênio depende. Originalidade essa que é a regra dada pela natureza ao gênio, que seria a finalidade da natureza, justamente aquilo que o entendimento não pode apreender e, no caso do gênio, nem a faculdade de julgar, pois ela não tem nada de razão. Neste sentido, a natureza é pensada por Kant nessa formulação como um organismo, cuja finalidade o sujeito genial faz parte.[21] Assim, podemos observar que, a figura do gênio de Kant é muito distante do gênio difundido, que produz arte por meio de um ato subjetivo de inspiração. Ao contrário, é justamente aquilo que não tem nada de subjetivo nesse ato de criação, aquilo que escapa à sua subjetividade, que é o essencial nela.

Esse é o ponto a que queríamos chegar. Na descrição do gênio como aquele capaz de produzir arte, Kant admite que, o homem é capaz de ter acesso ao suprassensível. Todo o cuidado que foi tomado por Kant na sua arquitetônica na formulação dos juízos estéticos, todos com fundamentos subjetivos, diz respeito a este problema. Como produzir o belo se a finalidade da natureza - algo que é essencial para a produção do sentimento do belo e do juízo de gosto – que não pode ser conhecida objetivamente – como demonstrado na Crítica da Razão Pura – e que, por isso, deve ser presumida pela faculdade de julgar, é a parte essencial do próprio belo? Em outras palavras: se não existisse a finalidade da natureza em relação as faculdades do sujeito, o belo seria suprimido da experiência deste, então, o gênio há de ter acesso a essa finalidade em si, e não apenas pressupô-la subjetivamente, para poder produzi-la. É por isso que Kant diz que a finalidade não é formulada pelo gênio, mas sim dada ao gênio pela natureza, o modo como isso acontece é resolvido pelos conceitos de espírito e ideias estéticas.

A definição de espírito diz: “Em sentido estético, espírito significa o princípio animador na mente. O que permite a esse princípio animar a alma, contudo, o conteúdo que ele emprega para isso, é aquilo que, conformemente a fins, coloca as forças da mente em movimento.” (KANT, 2015, p. 211) Vejamos bem este trecho, o espírito é o princípio que anima o gênio,[22] porém o que é condição de possibilidade dessa animação é algo além do espírito, é aquilo que é conforme a fins e coloca as faculdades em movimento, em outras palavras, a natureza.[23] Então, a natureza possibilita o espírito, enquanto princípio animador, estimular as faculdades mentais do gênio. Tendo essas faculdades mentais estimuladas não mais por um objeto externo belo, mas sim pelo princípio interno do espírito o gênio consegue exprimir essa finalidade interna da natureza por meio de ideias estéticas:

 

Agora, eu afirmo que esse princípio não é outra coisa senão [...] a faculdade de expor ideias estéticas; por ideia estética, porém, entendo uma representação da imaginação que dá muito a pensar sem que, no entanto, um pensamento determinado, isto é, um conceito, possa ser-lhe adequado; uma representação, portanto, que nenhuma linguagem alcança ou pode tornar compreensível. - Vê-se facilmente que ela é a contraparte (pendant) de uma ideia da razão, a qual, inversamente, é um conceito ao qual nenhuma intuição (representação da imaginação) pode ser adequada. (KANT, 2016, p. 211 – 212)

           

            Esse é o ponto de resolução do problema. As ideias estéticas, que são o que dá a regra às obras do gênio, são apresentadas como contraparte das ideias da razão. Enquanto estas são conceitos sem intuição – como aparecem na primeira crítica – aquelas são intuições sem conceitos: “Uma ideia estética não pode tornar-se conhecimento, pois ela é uma intuição (da imaginação) para a qual nunca se poderá encontrar um conceito adequado.” (KANT, 2016, p. 240)

Neste sentido, está claro o que Kant fez ao introduzir estes conceitos, se trata de dar conta de uma divisão do suprassensível. Com o conceito de espírito, Kant já nos disse que o gênio tem acesso ao suprassensível (finalidade da natureza), pois este é a condição de possibilidade do espírito, que anima a mente. Mas, esse acesso se trata justamente de um acesso que não é racional, por isso o espírito é uma faculdade de expor ideias estéticas, ideias que justamente não conseguem se adequar ao racional, ao conceito, são puramente naturais – intuição sensível produzida pela imaginação.[24] O suprassensível é dividido em suprassensível no sujeito[25], ou racional e suprassensível da natureza (ou matéria, dado, coisa em si, incondicionado). O suprassensível no sujeito é demonstrado na Crítica da Razão Prática e se expressa como liberdade, o suprassensível da natureza é impossível de ser conhecido pela razão, como diz a Crítica da Razão Pura, mas isso não significa que o sujeito não tenha acesso a ele. Esse acesso não se dá pelo conhecimento da razão, mas por aquilo que, no sujeito, não é razão, mas sim por aquilo que nele é apenas natureza inata (o espírito do gênio) – em outros termos, poderia se dizer que se trata do inconsciente – por isso são ideias estéticas e não racionais.[26] Assim, este suprassensível pode ser apenas pressuposto subjetivamente pela faculdade de julgar, mas nunca conhecido e acessado objetivamente, porém, pode ser acessado pelo espírito do gênio, possibilitando que o suprassensível se aproprie dele e que este exponha o suprassensível na produção de suas obras. Essa divisão faz todo sentido quando Kant diz que o homem participa, ao mesmo tempo, de duas causalidades, uma da liberdade e outra da natureza[27] – se trata da participação nesta última, que faz com que o sujeito possa ser apropriado pela finalidade da natureza que ele não pode conhecer. Baseado nessa separação do suprassensível, podemos falar em duas metafísicas de Kant.[28]

 

Efetivamente, as idéias estéticas reintroduzem um aspecto material e sensível excluído da reflexão, quando ela se voltava à observação do belo na natureza e podia deter-se apenas às formas. Tal relação de exterioridade, que mantém o espectador no acordo contingente do belo natural, não pode conservar-se na relação interna sustentada pelo gênio com a mesma natureza. (FIGUEIREDO, 2004, p. 56)

 

            Outro ponto que corrobora com a tese de que o gênio tem acesso ao suprassensível está na solução da antinomia do gosto.[29] Lá Kant sustenta que o juízo de gosto tem um conceito que o faz pretender à validade necessária de todos, esse conceito é um conceito indeterminado[30] denominado “conceito racional do suprassensível,[31] que serve de fundamento ao objeto (e também ao sujeito que julga) como objeto dos sentidos, portanto como fenômeno.” (KANT, 2016, p. 237) Esse conceito é o “fundamento em geral da finalidade subjetiva da natureza para a faculdade de julgar” (KANT, 2016, p. 238) que nada mais é do que as ideias estéticas, por meio das quais o gênio se expressa. Nesse sentido as ideias estéticas – enquanto conceitos racionais do suprassensível - garantiriam tanto o fundamento da universalidade do juízo de gosto, para quem apenas às acessa de modo externo e subjetivo - como espectadores do belo – pela faculdade de julgar, e seriam ao mesmo tempo o que dá a regra as obras do gênio, que às acessa de maneira interna pela sua natureza, pelo que nele é o espírito. Nesse sentido, diz Kant sobre o gênio e seu acesso ao suprassensível:

 

Também se pode, em função disso, explicar o gênio pela faculdade das ideias estéticas, mostrando-se ao mesmo tempo, com isso, por que nos produtos do gênio é a natureza (do sujeito), e não um fim deliberado, que dá a regra à arte (à produção do belo). Pois, como o belo tem de ser julgado não segundo conceitos, mas segundo a disposição conforme a fins da imaginação para concordar com a faculdade dos conceitos em geral, o que tem de servir como padrão de medida subjetivo daquela finalidade estética, mas incondicionada nas belas artes, que deve ter a pretensão de agradar a todos, não são regras e preceitos, mas aquilo que é mera natureza no sujeito, não podendo todavia ser compreendido sob regras ou conceitos, isto é, o substrato suprassensível de todas as suas faculdades (que nenhum conceito do entendimento alcança). (KANT, 2016, p. 242. grifos nossos)

           

Se Kant tivesse elaborado que o gênio conhecesse a finalidade da natureza para dar regra a sua produção artística, – e isso não poderia se dar por ideias estéticas, mas conceitualmente - o próprio sistema crítico elaborado desde a primeira crítica estaria em contradição. Através da divisão do suprassensível e com a divisão do sujeito - em razão e natureza – é possibilitado a Kant manter os limites do conhecimento estabelecidos no seu sistema. Além disso, elaborar, na Crítica da Faculdade de Julgar, como ele pretendia, uma mediação entre o objetivo e o subjetivo, entre o teórico e o prático, que fundam suas duas metafísicas, através do conceito de gênio e de finalidade da natureza.[32]

            Podemos retornar a questão principal do texto, porque não existem artes da espécie sublime[33] em Kant? A resposta já esta questão está delineada nas explicações anteriores; se o belo é aquele sentimento em que a finalidade da natureza concorda com o sujeito – portanto, que o gênio tem acesso pelo seu dom doado pela própria natureza – o sublime é justamente o sentimento da inadequação desta finalidade em relação ao sujeito. Esta inadequação é justamente a parte do suprassensível da natureza que é inacessível para o sujeito, quando ele tenta, ou melhor, é forçado pela sublimidade do objeto a apelar as ideias da razão para suportá-lo – essa força do sublime expressa o incondicionado, que o sujeito não consegue apreender, então, é forçado a lembrar do seu suprassensível racional para se manter vivo.

Tanto o sublime matemático como o dinâmico[34] são disposições de ânimo do sujeito mediante a representação deste dos fenômenos naturais ora absolutamente grandes, ora contendo uma força incomensurável. Tanto a força incomensurável como o absolutamente grande são o que o sujeito não consegue aguentar, sendo levado ao limite de sua imaginação e apelando a sua razão como refúgio: “A sublimidade, portanto, não está contida em coisas da natureza, mas apenas em nossa mente, na medida em que podemos tornar-nos conscientes de sermos superiores à natureza em nós e, portanto (na medida em que ela tem influência sobre nós), também à natureza fora de nós.” (KANT, 2016, p. 161) Assim, o sublime é um estado de ânimo do sujeito, mas esse estado é causado por representações da natureza com as quais o sujeito não consegue lidar no âmbito sensível, pois elas expressam ideias.[35] Essas representações sublimes não têm uma regra de finalidade para o sujeito, a partir do qual ele pode ordená-las sensivelmente, se esse fosse o caso elas seriam belas. Assim sendo, está vedado mesmo ao gênio o acesso à regra que tornaria possível uma criação de um objeto sublime, pois o gênio só pode ter acesso às regras da natureza que são conformes a sua natureza – as regras que permitem reproduzir o belo.  Por este motivo o sublime é a expressão do incondicionado, que quando sentido força o apelo às ideias da razão de totalidade e liberdade,[36] que remetem justamente ao suprassensível do sujeito[37], expressando aquela inadequação, o limite do sujeito em relação ao suprassensível da natureza.

Neste sentido, o sublime expressa aquele “abismo intransponível entre o domínio do conceito da natureza, como domínio sensível[38], e aquele do conceito da liberdade, [...] como domínio suprassensível” (KANT, 2016, p. 76).[39] Abismo esse que impede o produtor de arte de produzir justamente aquilo que mostra o abismo, a inadequação. Se fosse possível produzir o sublime, e o produtor de arte teria acesso ao incondicionado pela razão de modo conceitual e objetivamente – não apenas através de pressuposições subjetivas como o expectador - e conseguiria reproduzir uma obra, através de regras, que representa a grandeza infinita e o poder da natureza, significaria que o abismo não existiria. Esse acesso, no entanto, não poderia se dar pelo gênio, que é uma espécie de natureza no sujeito que a razão não faz parte, pois o sublime é justamente aquela parte que no suprassensível da natureza expressa a coisa em si, que só poderia ser reproduzida caso fosse acessada racionalmente.[40] A ideia é que, o sujeito acessa a causalidade natural pelo gênio por ser parte natureza, e pode reproduzir isso na arte por meio de sua natureza,[41] não por meio de sua razão. Já o sujeito não tem acesso a coisa em si (a suposta liberdade da natureza, uma causalidade contrária a sua que se expressa como poder) por ser racional, e sua razão ser limitada, que seria justamente o que é o sublime, a expressão na natureza desse além da razão que ela não pode alcançar. Se esse acesso fosse admitido por Kant, seu método crítico estaria em risco, pois seria demonstrado que a razão do sujeito não tem limitação, e teria acesso ao absoluto. Portanto, são os limites da razão que impedem uma espécie de arte sublime de existir para Kant.

 

Considerações finais

 

                Ao final, vamos analisar os dois trechos da terceira crítica em que Kant fala do sublime na arte, e veremos que, embora ele admita a possibilidade disso, este sublime permanece atrelado à uma exposição do belo. Assim, o sublime na arte não alcança e representa o sublime da natureza, como o belo na arte realiza. Por esse motivo nós falamos o tempo todo de Kant não admitir uma espécie sublime de arte, mas apenas belas artes.

A primeira passagem em que Kant fala de um sublime na arte se encontra na analítica do sublime: “só levamos aqui em consideração o sublime nos objetos naturais (o sublime da arte é sempre limitado pelas condições da concordância com a natureza).” (KANT, 2016, p. 141) O problema levantado nessa passagem é a das condições de concordância com a natureza do sublime, que o sublime na arte tem que ter com o sublime na natureza. Essas condições, como explicitado ao longo do texto, nunca são atingidas de modo à que o sublime na arte concorde totalmente com ele na natureza. Para termos uma adequação total, o produtor da arte, que faz o sublime na arte, teria que se adequar a essas condições do sublime na natureza. Porém, por causa da cisão entre sensível e suprassensível e pela limitação do sujeito que produz a arte essas condições não são atingidas, limitando o sublime na arte às condições com a natureza que o sujeito consegue atingir. Essas condições são às condições do belo, pois só o belo no sujeito concorda com a natureza, como foi explicado no texto. Por isso, o sublime na arte é um efeito que pode ser realizado meramente no interior do belo, como diz Kant no parágrafo 52 que trata sobre a ligação das belas artes em um mesmo e único produto:

 

A representação do sublime também pode, na medida em que pertence às belas artes, unir-se à beleza em uma tragédia rimada, uma poesia didática, um oratório; e nessas ligações as belas artes são ainda mais artísticas se são também mais belas (já que tantos tipos diversos da satisfação se cruzam entre si) é algo duvidoso em alguns desses casos. Mas em todas as belas artes, / / o essencial reside na forma, que é conforme a fins para a observação e o julgamento, e onde o prazer é ao mesmo tempo cultura e dispõe o espírito para as ideias, tornando-o assim receptível a muitos desses prazeres e divertimentos; o essencial não reside, pois, na matéria da sensação (do atrativo ou da emoção), onde se trata somente da fruição, que nada acrescenta às ideias, embota o espírito, torna o objeto cada vez mais repugnante e deixa a mente irritada e insatisfeita consigo mesma devido à consciência de sua disposição, contrária a fins no juízo da razão. (KANT, 2016, p. 224 grifo nosso)

 

            É importante ressaltar que esse parágrafo vem imediatamente depois do que estabelece uma divisão das belas artes. Esse parágrafo específico fala das diversas artes belas que podem unir-se em apenas um produto. O sublime é um efeito dessas artes belas, que é dito literalmente no texto, que pode aparecer na poesia trágica ou em qualquer outra arte bela, na medida em que este, o sublime, pertence a elas quando se trata de produção artística. Neste sentido, o que está em jogo é pensar quais artes belas estão mais propícias à efeitos sublimes, como por exemplo a poesia trágica – este sublime, no entanto, não é o sublime mesmo, mas apenas um efeito daquilo que em si é conforme as faculdades do sujeito, o belo.  Quando ele diz que a representação do sublime pode, na medida em que pertence às belas artes, unir-se a beleza da tragédia rimada, essa afirmação diz que o sublime nessas artes está sobre às condições de possibilidade do belo – que são as condições de uma produção artística em geral.

Toda essa discussão se encontra na parte da crítica em que o problema é a dedução dos juízos de gosto, na qual já foi dito a respeito, mas no qual só o belo é um problema por ter pretensões objetivas. A dedução chega no ponto onde é estabelecida uma divisão das belas artes sobre princípios de comunicabilidade, da qual a poesia, que foi citada no exemplo, é uma das artes discursivas. A poesia trágica, que foi citada como exemplo o qual possa aparecer a representação do sublime como seu efeito, faz parte da poesia em geral que segundo Kant “é a arte de levar a cabo um livre jogo da imaginação como se fosse uma atividade do entendimento.” (KANT, 2016, p. 219) Observamos que a poesia é condicionada, assim como as demais artes, por características do belo, como o dito livre jogo entre imaginação e entendimento - e não entre imaginação e razão - que parece uma atividade apenas do entendimento, ou seja, que parece que é estabelecido por conceitos do entendimento quando na verdade a imaginação é livre. Durante toda a descrição das artes só se encontram condições do belo - como ideias estéticas, jogo de imaginação e entendimento, etc. – e nunca se encontram condições do sublime – como jogo entre imaginação e razão ou exposição do absolutamente grande, etc.[42] Além dos motivos que já foram explicados durante o texto, sobre as condições da criação de um sublime, é importante ressaltar a sua característica na arte de mero efeito no interior do belo que se difere totalmente do sublime na natureza que se caracteriza por ser totalmente diferente do belo.

Dessa forma, mesmo a outra natureza criada pela imaginação do gênio, que por isso está sobre as condições do belo,[43] não pode ser uma natureza sublime que pudesse, por exemplo, colocar em risco a própria existência humana como faz o sublime da natureza. Pois essa outra natureza tem que se adequar aos fins humanos, enquanto sua condição de criação e, por isso, não pode se tornar independente e apresentar uma inadequação a estes fins. Mesmo que, porventura, ela possa representar um perigo, não será extinguida a possibilidade de dominar esse perigo pois ela, por essência, enquanto sua condição de possibilidade, está dentro dos limites humanos,[44] e, por isso, nunca será o perigo real além do humano que o sublime natural apresenta.

 

Referências

 

DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Lisboa; Portugal; Edições 70, 2000.

FIGUEIREDO, Virgínia. O gênio kantiano ou o refém da natureza. Impulso, Piracicaba, n 38, p 47-58, 2004.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2016.

_____. Crítica da razão pura. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2015.

_____. Crítica da faculdade de julgar. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2016.

_____. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Introdução, tradução e estudo de Vinicius de Figueiredo. São Paulo; Editora Clandestina. 2018.

LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

Loparic, Zeljko. As duas metafisicas de Kant. Kant e-prints, Vol 2, N 5, 2003.

SANSEVERO, Bernardo. Kant e a figura do gênio: arte e natureza. Kínesis, Vol. IV, n° 07, Julho 2012, p. 273-285.

SCHILLER, Friedrich. Do sublime (Para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas) In: Do sublime ao trágico. Org: Paulo Sussekind; Tradução: Paulo Sussekinf e Vladimir Vieira. Belo Horizonte; Autêntica Editora, 2011, p. 19 – 53.

_____. Observações dispersas sobre diversos objetos estéticos. In: Objetos trágicos, objetos estéticos. Org. e Tradução: Vladimir Vieira. Belo Horizonte; Autêntica Editora, 2018, p. 105 – 139.

_____. Sobre o fundamento do deleito com objetos trágicos. In: Objetos trágicos, objetos estéticos. Org. e Tradução: Vladimir Vieira. Belo Horizonte; Autêntica Editora, 2018, p. 17 - 39.

SUZUKI, Márcio. O gênio Romântico – Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel, São Paulo: Editora Iluminuras, 2007.



[1] E por esse motivo se constituem como dois juízos diferentes, embora ambos reflexionantes.

[2] Se isso fosse possível ele fundaria outro tipo de arte totalmente diferente das belas artes.

[3] Modo esse que diz respeito ao princípio transcendental da faculdade de julgar. Portanto, a analise prevista aqui se distancia das Observações sobre o sentimento do belo e do sublime de 1764, pois nessas se tratava de uma apresentação dos sentimentos em enfoque mais antropológico, e na Crítica visa-se as condições de possibilidade desses sentimentos. Embora, as distancias entre o Kant do período crítico e o das observações não seja tão grande quanto parece, como se pode ver na introdução a tradução brasileira: (KANT, 2018)

[4] Se encontra no §46 da CFJ. (KANT, 2016, p. 205)

[5] “Neste ponto, porém, reside também o experimento de uma contraprova da verdade que resulta dessa primeira apreciação de nosso conhecimento racional a priori, a saber, que ele só se aplica a fenômenos e deixa de fora a coisa em si, como uma coisa efetivamente real por si mesma, mas por nós desconhecida.” (KANT, 2015, p. 31)

[6] “Tem de haver, portanto, um fundamento da unidade do suprassensível, que está no fundamento da natureza, com aquilo que o conceito da liberdade contém do ponto de vista prático; um fundamento cujo conceito, mesmo não servindo - nem do ponto de vista teórico, nem do prático - para um conhecimento do mesmo e, portanto, não possuindo um domínio próprio, torna, todavia, possível a passagem de um modo de pensar segundo os princípios de um para o modo de pensar segundo os princípios do outro.” (KANT, 2016, p. 76)

[7] Como indica um dos próprios tópicos da introdução da CFJ “O princípio da finalidade formal da natureza é um princípio transcendental da faculdade de julgar” (KANT, 2016, p. 81)

[8] Pois se trataria de um conhecimento da natureza em si. Isso é expresso por Kant quando diz que a faculdade de julgar é heautonoma, não autônoma como no caso da razão que prescreve lei a si mesma, ela prescreve lei a natureza, mas a partir de si própria: “A faculdade de julgar também tem, portanto, um princípio a priori para a possibilidade da natureza, mas apenas de um ponto de vista subjetivo, pelo qual ela prescreve uma lei não à natureza (como autonomia), mas a si mesma (como heautonomia) // para a reflexão sobre aquela” (KANT, 2016, p. 86)

[9] Não a forma do fenômeno em geral, como no caso do esquematismo, mas a forma de uma finalidade dos objetos para serem apreendidos pelo sujeito.

[10] Essa finalidade é também o que torna possível o conhecimento de conceitos empíricos, como diz Virgínia Figueiredo: “O movimento que “desce”, no sentido da especificação, de um conceito universal até um objeto, como qualquer conhecimento científico, deve fundar-se em conceitos a priori do entendimento. Já o movimento que “sobe”, no sentido da classificação ou generalização, de uma intuição empírica buscando conceitos cada vez mais gerais (das subespécies às espécies e, logo, destas aos gêneros) ou gêneros superiores, deve apoiar-se na possibilidade de um conceito de finalidade da natureza.” (FIGUEIREDO, 2004, p. 49 – 50)

[11] Esse resumo pode ser verificado na Analítica do Belo da CFJ nos § 1 - § 22.

[12] Que expressa um poder que coloca em jogo a vida do sujeito.

[13] Exposta pela Crítica da razão prática. Essa superioridade da razão sobre a natureza que é aflorada no sublime, que é uma superioridade sobre as condições sensíveis do sujeito, é bem explicitada por Schiller: “Mas ele só é temível para nós enquanto seres sensíveis, pois apenas enquanto tais dependemos da natureza. Aquilo em nós que não é natureza, que não está submetido à lei natural, não tem nada a temer da natureza fora de nós considerada como poder. A natureza representada como poder que, embora capaz de determinar o nosso estado físico, não detém nenhum domínio sobre a nossa vontade é sublime de modo dinâmico ou prático. O sublime prático se diferencia, assim, do sublime teórico pelo fato de que o primeiro está em conflito com as condições de nossa existência, ao passo que o último apenas com as condições do conhecimento (SCHILLER, 2011, p. 25) Essa separação dos sublimes, antecipada acima, corresponde com o sublime dinâmico e matemático de Kant.

[14] Embora o sublime seja subjetivo, dele não se exclui a universalidade, visto que todos os sujeitos carregam as mesmas faculdades racionais, tanto o sublime quanto o belo “apresentam-se como universalmente válidos em vista de cada sujeito, ainda que só tenham pretensões relativamente ao sentimento de prazer, e não a um conhecimento do objeto.” (KANT, 2016, p. 140)

[15] Schiller explica muito bem essa dinâmica, embora falando apenas do sublime da grandeza, essa explicação pode ser estendida ao sublime em geral: “O sublime da grandeza não é, portanto, nenhuma propriedade objetiva do objeto a que é atribuído, mas antes meramente o efeito de nosso próprio sujeito por ocasião daquele objeto. Ele emana, por um lado, da incapacidade representada da faculdade da imaginação em atingir a totalidade na apresentação da grandeza que é estabelecida como exigência pela razão; por outro lado, da capacidade representada da razão de poder estabelecer tal exigência. No primeiro se funda a força repulsiva, no segundo a força atrativa do grande e do sensivelmente infinito” (SCHILLER, 2018, p 131) Assim, é possível dizer que somos nós mesmos que somos a grandeza infinita que é gerada pela sublimidade do objeto: “O objeto que faz de mim mesmo uma grandeza infinita para mim se chama sublime” (SCHILLER, 2018, p. 121)

[16] Kant diz que a própria analítica do sublime já é sua dedução, pois por ser totalmente subjetiva, e a relação conforme a fins não se dar em vista da forma do objeto mais da vontade do sujeito, sua pretensão de validade universal já se encontra automaticamente demonstrada: “Uma resposta possível é a de que o sublime da natureza só é assim denominado de maneira imprópria, quando na verdade deveria apenas ser atribuído ao modo de pensar ou, melhor, aos seus fundamentos na natureza humana. A apreensão de um objeto que, de outro modo, seria desprovido de forma e sem finalidade, nos dá tão somente a oportunidade de tomar consciência disso, utilizando o objeto, desse modo, de maneira subjetivamente conforme a fins, mas não o julgando como tal por si mesmo e em virtude de sua forma (species finalis accepta, non data, por assim dizer). Por isso a nossa exposição dos juízos sobre o sublime da natureza foi ao mesmo tempo sua dedução. Pois, quando analisamos nesses juízos a reflexão da faculdade de julgar, encontramos neles uma relação conforme a fins das faculdades de conhecimento que tem de ser posta a priori como fundamento da faculdade dos fins (a vontade) e, portanto, é ela própria a priori conforme a fins; o que já contém diretamente, portanto, a dedução, isto é, a justificação da pretensão de tal juízo a uma validade universalmente necessária.” (KANT, 2016, p. 177)

[17] A obra de arte são as belas artes que tentam parecer natureza, imitar o sentimento do belo. Cf. § 45 CFJ. O que estamos querendo dizer por imitação aqui, tem o sentido de que a bela arte imita a natureza, mesmo criando a partir dela uma outra natureza (como será mencionado posteriormente), o seu caráter de bela arte está na sua capacidade de parecer uma natureza, de imita-la. Neste sentido: “Em um produto das belas artes é preciso ter consciência de que se trata de arte, e não de natureza; entretanto, a finalidade na sua forma tem de parecer tão livre de qualquer coerção de regras , arbitrárias como se ele fosse um produto da mera natureza.(...) A natureza só era bela quando ao mesmo tempo parecia ser arte; e a arte só pode ser denominada bela quando temos consciência de ser ela arte, parecendo ao mesmo tempo natureza.” (KANT, 2016, p. 204)

[18] “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte.” (KANT, 2016, p. 205)

[19] “Que ele mesmo não pode descrever ou indicar cientificamente como cria o seu produto, a não ser dizendo que lhe dá a regra enquanto natureza; e que, portanto, o criador de um produto, pelo qual ele agradece ao seu gênio, não sabe ele mesmo como lhe vieram as ideias para criá-lo, nem tem em seu poder a possibilidade de decidir se o concebe ao seu bel-prazer ou de maneira planejada, ou de comunicar a outrem preceitos que lhes permitissem criar produtos semelhantes.” (KANT, 2016, p. 205)

[20] “Como, no entanto, o gênio é um favorito da natureza, do tipo que se deve considerar como um fenômeno raro, seu exemplo cria uma escola para outras boas cabeças, isto é, uma instrução metódica segundo regras, na medida em que estas possam ser extraídas daqueles produtos espirituais e de sua peculiaridade; e para essas boas cabeças as belas artes são uma imitação cuja regra foi dada pela natureza através do gênio.” (KANT, 2016, p. 216)

[21] “A originalidade, primeira propriedade do produto genial, decorre, portanto, não de uma decisão ou ato voluntário de uma subjetividade inspirada, como se vulgarizou na teoria do gênio, e sim da própria natureza, pensada não mecânica, mas organicamente, quiçá regida por um princípio genético vivo, indeterminado (e, para nós, contingente), cujo principal ato talvez consista em querer superar-se.” (FIGUEIREDO, 2004, p. 52)

[22] A definição aparece no “§ 49. Das faculdades mentais que constituem o gênio.” (KANT, 2016, p. 211)

[23] A natureza que coloca as forças da mente em movimento, em jogo, no belo.

[24] Neste sentido, sobre a aproximação das ideias estéticas com o suprassensível: “Pode-se chamar semelhantes representações da imaginação de ideias; em parte porque elas ao menos aspiram por algo que está além dos limites da experiência, buscando assim aproximar-se de uma exposição dos conceitos da razão (as ideias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma realidade objetiva; em parte, e aliás principalmente, porque a elas, enquanto intuições internas, nenhum conceito pode ser inteiramente adequado.” (KANT, 2016, p. 212) Itálico do autor.

[25] Termo, aliás, que é utilizado por Kant na CFJ (Ver: KANT, 2016, p. 96)

[26] É importante salientar que não se trata, aqui, de igualar as ideias estéticas com a natureza inata, no sentido de que elas seriam equivalentes, pois como Kant mesmo diz: “A imaginação (como faculdade produtiva de conhecimento) é, com efeito, muito poderosa na criação de uma outra natureza, por assim dizer, a partir do conteúdo que a verdadeira lhe dá.” (KANT, 2016, p. 212) Nesse sentido, as ideias estéticas, como representações da imaginação produtiva, permitem a criação de uma segunda natureza, e não da própria natureza originária. Mas o ponto que se quer enfatizar aqui é, que a regra para essa criação de uma outra natureza, é uma regra dada pela própria natureza ao gênio, através do que Kant chama de espírito. Assim, o acesso ao suprassensível se dá de maneira não racional, mas de maneira inata ao gênio.

[27] Cf: Crítica da Razão Prática.

[28] Artigo em que Loparic demonstra as duas metafísicas que Kant elabora, uma da natureza e outra da moral, ambas podem ser sustentadas nessa perspectiva de separação do suprassensível. Ver: LOPARIC, Z. As duas metafísicas de Kant. Kant e-Prints[S. l.], v. 2, n. 5, p. 1-10, 2015.

[29] §57 (KANT, 2016, p. 236)

[30] Com conceitos indeterminados, Kant quer se referir as ideias.

[31] Ou “substrato suprassensível da humanidade” (KANT, 2016, p. 238

[32] Assim, estamos de acordo com Figueiredo quando diz: “Se tivesse de estabelecer uma topografia dos conceitos kantianos, não hesitaria em localizar num ponto extremo, ápice coincidente com a fronteira, a habitação tanto do gênio quanto do conceito de finalidade da natureza. O lugar da estreita passagem entre a subjetividade (atividade reflexionante) e a objetividade (da natureza). (FIGUEIREDO, 2004, p. 56)

[33] Ou, artes comoventes, como as denomina Schiller: “Assim, por exemplo, poderíamos compreender as artes que satisfazem primordialmente o entendimento e a faculdade de imaginação [...] sob o nome de artes belas (artes do gosto, artes do entendimento); e unificar, em uma classe particular, aquelas que em contrapartida ocupam primordialmente a faculdade da imaginação com a razão – que tem no bom, no sublime e no comovente o seu objeto principal – sob o nome de artes comoventes (artes do sentimento, artes do coração). (SCHILLER, 2018, p. 23)

[34] Cf. §26 e §28 da CFJ. (KANT, 2016, p. 147, 157)

[35] Ideias do absolutamente grande e da força incomensurável.

[36] Ao contrário do belo, que pode ser expresso pelas ideias estéticas. Ideias estéticas que estão em uma situação de adequação, à finalidade da natureza, e por isso expressam o belo através da imaginação.

[37] No caso da liberdade, se trata de um confronto entre a causalidade natural representada pelo poder – suprassensível da natureza (sublime dinâmico) – e a causalidade por liberdade – suprassensível no sujeito. No caso da totalidade o confronto é com a medida absolutamente grande (sublime matemático) – suprassensível da natureza - que força o sujeito a apelar às ideias da razão – suprassensível no sujeito - para dar conta regulativamente do fenômeno ao modo das antinomias da razão na Crítica da Razão Pura, mas que, por isso mesmo mostra a inadequação dos dois domínios, mantendo cada um em seu limite.

[38] Importante ressaltar que essa divisão é de um único suprassensível, que se divide nos domínios sensível e suprassensível. No sentido de que, o domínio sensível, como natureza, tem o seu suprassensível que seria a coisa em si (o incondicionado) e o seu sensível que seria o fenômeno. Assim, parte deste incondicionado o sujeito teria acesso pelo gênio, e a outra parte não. É também essa parte que não se tem acesso que impede que se atribua condição de sujeito livre à natureza na “Crítica da faculdade de julgar teleológica” (KANT, 2016, p. 255), sendo sua condição de organismo apenas suposta subjetivamente pelo princípio transcendental da faculdade de julgar.

[39] A continuação desta citação é bem esclarecedora e expressa a necessidade que Kant tem de pensar um fundamento que una esses dois mundos, que seria o gênio e o conceito de finalidade da natureza, ao mesmo tempo que fala da inadequação essencial deles, que é a coisa em si, que nos juízos estéticos aparece como o sublime: “de tal modo que do primeiro ao último (através, portanto, do uso teórico da razão) não há passagem possível, como se fossem dois mundos tão distintos que o primeiro não pode ter qualquer influência sobre o último, este deve, no entanto, ter influência sobre o primeiro, ou seja, o conceito da liberdade deve tornar efetivo, no mundo sensível, o fim fornecido por suas leis; e a natureza, por conseguinte, também tem de poder ser pensada de tal modo que a legalidade de sua forma concorde ao menos com a possibilidade dos fins que devem nela operar segundo leis da liberdade. - Tem de haver, portanto, um fundamento da unidade do suprassensível, que está no fundamento da natureza, com aquilo que o conceito da liberdade contém do ponto de vista prático; um fundamento cujo conceito, mesmo não servindo - nem do ponto de vista teórico, nem do prático - para um conhecimento do mesmo e, portanto, não possuindo um domínio próprio, torna, todavia, possível a passagem de um modo de pensar segundo os princípios de um para o modo de pensar segundo os princípios do outro.” (KANT, 2016, p. 76)

[40] Portanto, não é a parte do suprassensível da natureza que se adequa ao sujeito por ele mesmo fazer parte dela, a causalidade natural interna ao espírito, que por ser parte comum a natureza e ao sujeito o gênio acessa, mas não através do entendimento ou da razão.

[41] Por meio de sua natureza, pois só por fazer parte também na natureza e não ser apenas razão, está lhe dá a regra que o sujeito não consegue expressar pela razão – conceitualmente. Apesar de ser a imaginação que a elabora, a imaginação amplia a experiência por meio das ideias estéticas cuja a regra é dada pela natureza, essa ampliação se pretende ir além da experiência sensível em direção ao suprassensível – que ela incarna – colocando a razão em movimento e dando a ela o que pensar. Neste sentido, se estabelece uma relação entre imaginação e razão, em que o gênio cria a partir de si uma outra natureza, que representa a natureza, embora possa ter elementos que não tem base nenhuma na experiencia da natureza, como diz Kant: “A imaginação (como faculdade produtiva de conhecimento) é, com efeito, muito poderosa na criação de uma outra natureza, por assim dizer, a partir do conteúdo que a verdadeira lhe dá. [...] Pode-se chamar semelhantes representações da imaginação de ideias; em parte porque elas ao menos aspiram por algo que está além dos limites da experiência, buscando assim aproximar-se de uma exposição dos conceitos da razão (as ideias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma realidade objetiva; em parte, e aliás principalmente, porque a elas, enquanto intuições internas, nenhum conceito pode ser inteiramente adequado. O poeta ousa tornar sensíveis as ideias da razão de seres invisíveis, o reino dos bem-aventurados, o reino do inferno, a eternidade, a criação etc.; ou também aquilo que, embora encontrando exemplos na experiência, como a morte, a inveja e todos os vícios, bem como o amor, a glória etc., ele torna sensível - através de uma imaginação que rivaliza com os precedentes da razão no atingimento de um máximo - para além dos limites da experiência, em um grau de perfeição que não encontra nenhum exemplo na natureza; [...] Agora, se a um conceito é submetida uma representação da imaginação // que, embora pertencente à sua apresentação, dá mais a pensar, por si mesma, do que um determinado conceito jamais permitiria compreender, e assim amplia esteticamente, de um modo ilimitado, o próprio conceito, então a imaginação é aqui criadora e coloca a faculdade das ideias intelectuais (a razão) em movimento, dando ocasião a pensar mais, a respeito de uma representação (o que de fato pertence ao conceito do objeto), do que nela mesma se poderia compreender ou aclarar. (KANT, 2016, p. 212 – 213)

[42] Até porque, o absolutamente grande que só aparece no sujeito como ideia racional que são, por definição, ideias que não podem ser intuídas. Então, não se pode ter objetos que a expressam, mas apenas objetos que por sua sublimidade forçam o sujeito a apelar para elas como forma de manter sua segurança – isso que faz com que os sujeitos apelem para às ideias é o que é além dos limites da razão.

[43] Ponto que já está explicitado ao longo do texto.

[44] Ou, limites da apresentação do belo.