Sartre e Politzer: os ecos de uma teoria e a busca por uma psicanálise existencial concreta.

Sartre and Politzer: the echoes of a theory and the search for a concrete existential psychoanalysis

Me. Diego Luiz Warmling

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina

(PPGFil UFSC)

E-mail: diegowarmling@hotmail.com

Dr. Diego Rodstein Rodrigues

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina

E-mail: di_rodstein@hotmail.com

 

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo discutir as bases teóricas das interlocuções entre Sartre, Politzer e a psicanálise clássica. Apresentaremos os conceitos-chave para compreender o que a psicanálise existencial, em sua proximidade com o projeto politzeriano de uma psicologia concreta, visa na estruturação da psique. Para entendermos como a noção de concreto entra na teoria sartreana da consciência fenomenológica, interrogaremos as influências do pensamento de Politzer sobre o projeto de uma psicanálise existencial. Mediante a ruptura com a inconsciência e a substituição do inconsciente pelo âmbito pré-reflexivo dos sujeitos, entenderemos que o agente sabe da ação, mas não tem conhecimento de si enquanto agente. Desde aquilo que é dramatizado pela concretude do sujeito em primeira pessoa, depreender-se-á: se não existem forças que lhe sejam antagônicas, então a consciência é inteira, espontânea, concreta e absolutamente livre.

PALAVRAS-CHAVE: Sartre. Politzer. Freud. Psicanálise existencial. Subjetividade concreta.

ABSTRACT

The present work aims to discuss the theoretical bases of the interlocutions between Sartre, Politzer and classical psychoanalysis. We will present the key concepts to understand what existential psychoanalysis, in its proximity to the politzerian project of a concrete psychology, aims at structuring the psyche. In order to understand how the notion of the concrete enters Sartre's theory of phenomenological consciousness, we will question the influences of Politzer's thought on the project of an existential psychoanalysis. Through the rupture with unconsciousness and the replacement of the unconscious by the pre-reflective scope of the subjects, we will understand that the agent knows about the action, but has no knowledge of himself as an agent. From what is dramatized by the concreteness of the subject in the first person, we will infer: if there are no forces that are antagonistic to it, then consciousness is whole, spontaneous, concrete and absolutely free.

KEYWORDS: Sartre. Politzer. Freud. Existential. psychoanalysis. Concrete subjectivity.

 

1.           Os esforços contra a psicologia abstrata: por uma psicanálise concreta.

 

          O presente trabalho tem por pretensão não só demonstrar as influências das críticas de Politzer sobre a psicanálise clássica, mas evidenciar a maneira como tal autor se faz presente na fundamentação da proposta de construção de uma psicanálise existencial, apresentada em larga escala na obra O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica (1943). Da interlocução entre Jean-Paul Sartre e Politzer, notaremos a presença que uma forte ambivalência em relação aos conceitos psicanalíticos: se por um lado existe uma situação insolúvel entre o inconsciente psicanalítico e a intencionalidade fenomenológica, do outro, ambos os modelos teóricos trabalham a partir de um viés interpretativo na busca de significações relativas ao que é vivido em primeira pessoa. Por meio de uma psicanálise de bases concretas e existenciais, tudo opera como se Sartre estivesse empenhado em corrigir a linguagem excessivamente positivista presente na psicanálise freudiana, evitando assim o emprego de metáforas energéticas. Amplamente influenciado por Politzer, o autor parte de uma crítica às tendências empíricas de Freud, o que o leva a substituir, por exemplo, a noção de sexualidade “por uma liberdade radical pela qual fazemos de nós mesmos um ser-no-mundo” (HYPPOLITE, 1989, p. 41). Seja como for, ainda que a proposta de uma psicanálise existencial tenha surgido de maneira organizada apenas em 1943, pontuaremos, ademais, a importância de se compreender como as críticas à psicologia do jovem Sartre possuem papel relevante na constituição do seu projeto, em especial no Esboço de uma Teoria das Emoções, de 1938.

Apesar de pouco trabalhado, é de consenso que Politzer se faz, tácita e explicitamente, presente nas elaborações teóricas de diversos autores que visavam repensar as bases da psicologia em meados dos anos 1920-30 na França. No que concerne nossa análise, notamos: mobilizadas de maneira especial para embasar as críticas relacionas a tese bergsoniana da concretude, por mais escassas que tenham sido as citações de Politzer n’O Ser e o Nada, a presença deste autor na obra de Sartre tanto ultrapassa a mera concordância contra Bergson quanto exerce influência estrutural no processo de configuração daquilo que se tornaria a psicanálise existencial. Nestes termos, é de grande valia que façamos não apenas uma explanação da Crítica dos Fundamentos da Psicologia (1928), de Politzer, mas que entendamos de que maneiras Sartre mobiliza essa leitura como um modo de construir uma psicanálise inspirada apenas no método psicanalítico, ou seja, na tentativa de...

 

extrair as significações de um ato partindo do princípio de que toda ação, por mais insignificante que seja, não é simplesmente efeito do ato psíquico anterior nem resulta de um determinismo linear, mas, ao contrário, integra-se como estrutura secundária em estruturas globais e, finalmente, na totalidade que sou (SARTRE. 1997, p. 566)

 

 

Com efeito, Politzer, no ano de 1928, aponta à necessidade de uma crítica aos modos como a psicologia é aplicada. Entre aprovações e contestações, ele cinde a psicologia em duas formas: a subjetiva e a objetiva. Ao passo que a primeira está pautada na introspecção e, por isso, voltada ao campo conceitual, a segunda refere-se ao experimentalismo da técnica. Atentando aos limites de ambas as formas, sua crítica parte da premissa de que devemos rever as propostas que criam um modo de vida interior, dando duplicidade à natureza humana. Ao que aqui sugerimos, isso se assemelha ao intento de Sartre, em especial ao que se faz presente na introdução do seu ensaio de ontologia fenomenológica. Tal como Politzer, Sartre preocupou-se com as propostas que geravam um aspecto dúbio para a existência.[1]

Em sua Crítica de 1928, Politzer afirma ainda que boa parte das teorias psicológicas são edificadas em torno de uma série de dogmas e axiomas epistemológicos, não sendo capazes de alçar o status de saberes seguros e positivos. Segundo ele, um saber psicológico só seria cientificamente positivo e seguro se constituído por três premissas concomitantes: 1) estar preocupado com fatos específicos; 2) ser original ao ponto de se diferenciar das demais ciências, de modo a demarcar seu escopo teórico; 3) ser suficientemente objetivo para reivindicar um método de trabalho em relação ao seu objeto de estudo, tornando-se assim acessível e verificável. Mediante tais critérios, Politzer elucida o esforço das psicologias para, na tentativa de desmistificar seus axiomas, se encaixarem e se afirmarem enquanto componentes do grupinho das ciências positivas.

          A psicologia contemporânea recusa o método introspectivo, que consiste na observação do sujeito através de si mesmo. A introspecção não trata dos mecanismos que trabalham dentro da consciência, mas dos modos pelos quais o sujeito expõe a si, haja vista que a pessoa mais próxima do conhecimento deste sujeito não é outro alguém que não ele mesmo. Politzer entende que as psicologias subjetivistas se distanciam desse modo de ver o sujeito quando inquerem apenas os mecanismos da consciência. Ela tenta classificar tais estados individualmente, mas passa por alto o sentido da experiência vivida em primeira pessoa.

 

A isso ele opõe o princípio de uma psicologia concreta, que teria como objeto de estudo a pessoa em si: o homem em seus desejos e seus atos. A pessoa, no sentido politzeriano, não é um objeto da consciência provido de afetos ou de condutas, mas sim o indivíduo em seu devir histórico. O objeto da psicologia concreta é o drama pessoal do homem desejante, sua pessoa teatral. Assim, Politzer recusa a perspectiva de um sujeito plenamente senhor de seus atos, bem como a perspectiva inversa dos estados sonambúlicos e do automatismo. (ROUDINESCO, 2004, p. 80)

 

Para Politzer, a linguagem representa, pois, um fator crucial à compreensão da psicologia, pois é por meio dela que o sujeito expressa o sentido de suas vivências. Não obstante, a psicologia experimental se mostra adepta de tal abordagem subjetiva. Visando chegar em algo sobre o sujeito, ela considera os fatores contingentes que o circundam. Politzer tem por meta uma psicologia que não busque pela compreensão de uma vida da alma. Não se trata de pensar a vida interior do sujeito, mas de entender o modo como ele fala sobre si. Disto decorre a concretude dos critérios da psicologia.

 

Sob a forma de relato, quando se trata de expressão por meio da linguagem (em todos os sentidos do termo); sob a forma de visão, quando se trata de gestos ou, em geral, de ação. Segundo ele, o relato e a visão têm função prática e social e sua estrutura é, por isso, finalista:  a linguagem corresponde em mim a uma “intenção significativa” e as ações, a uma “intenção ativa”.  Por sua vez, à intenção significativa em mim corresponde nos outros uma “intenção compreensiva”, e quanto à visão, o dia-a-dia respeita o seu plano, afirma ele (PASTRE, 2006, p.108)

 

A psicologia busca diversos modos de se afirmar enquanto uma ciência. Tais esforços podem ser destacados de três modos: a psicologia da forma, o behaviorismo de Watson e, ao que tange nossa leitura, a psicanálise. Seja qual for a escola, Politzer assume que, apesar das contribuições ambas, todas pecam por se afastarem de suas fontes concretas. Neste sentido, trata-se de separar a psicologia concreta da psicologia abstrata. É preciso que renovemos o discurso sobre o sujeito, de modo que a psicologia não se confunda com um misticismo da alma.

Com efeito, no que diz respeito a teoria da forma, Politzer enxerga nela uma grande valia. A negação do procedimento clássico segundo o qual cada ação particular é redutível a um ato isolado que separa, recorta e aliena a subjetividade faz com que a psicologia da forma enxergue o sujeito como uma totalidade que não pode ser cindida num mosaico de atos “parte-extra-parte”. Contudo, apesar de sua valia, aceita-se aí que o psicológico é aprendido de forma imediata pela percepção.

Quanto ao behaviorismo, sua contribuição reside no distanciamento das premissas que levam a vida interior do sujeito. A teoria de Watson busca negar qualquer forma de mentalismo ao alegar que nada há que decida pelo sujeito suas ações, pois tudo é dado para fora da vida interior. Todavia, Politzer alega que tais esforços não alcançam o sujeito em sua concretude. As análises behavioristas não enxergam a vida humana como um “drama” vivido pelo sujeito desde a primeira pessoa do singular.

Por fim, é na psicanálise onde Politzer encontra a grande promessa à estruturação da roupagem que deseja dar à psicologia. Lendo Freud, indaga o concreto através da análise da dramatização que o sujeito confere à sua própria vida. Trata-se de buscar os modos como, em seu devir mudando, ele diz de si. Para tanto, Politzer se vale das ferramentas fornecidas por Freud na Interpretação do Sonhos (1900). Seu intuito é demonstrar a possibilidade de construção de uma psicanálise concreta.

A psicologia clássica tratou dos sonhos como um modo abstrato de lidar com informações desconexas. Aliás, a abstração é o modo pelo qual tal escola torna objetivos os fatos psicológicos, fazendo deles processos mentais desconectados da experiência do sujeito. Tornando impessoais os fatos vividos em primeira pessoa, a psicologia clássica não só aparta o sujeito da autoria de seus sonhos, como dá ao sonho uma entidade própria e independente daquele que sonha. Lendo Freud, Politzer mostra que só há uma via pela qual a psicologia pode existir: o empirismo. Não podemos tirar do indivíduo o ato, o devir, a experiência que ele possui do mundo. Nesse sentido, os fatos psicológicos não podem ser desvinculados do sujeito, como se estivéssemos falando de impessoalidades. Os sonhos devem ser vinculados às experiências concretas do sujeito. Se por um lado temos a psicologia clássica apontando para um sujeito interiorizado em seus processos mentais, por outro a psicanálise apresenta processos de um sujeito concreto. Sua meta é interpretar o drama e o sentido que o indivíduo se elege para si.

Porém, apesar do grande interesse, os elogios de Politzer à Freud são acompanhados de contundentes ressalvas. Para o filósofo húngaro, a psicanálise encontra limites já nos modos como concebe os dinamismos do aparelho psíquico. Ao apresentar uma dualidade entre as narrativas manifestas e os conteúdos latentes, a psicanálise parte da dualidade interioridade-exterioridade, trazendo de arrasto um sistema psíquico inconsciente. Fornecidos por um sujeito alheio de si mesmo, tais processos fazem com que a psicanálise freudiana repita os vícios da psicologia clássica.

Do ponto de vista da psicologia clássica, Politzer considera que a Interpretação dos sonhos é vista como alheia ao próprio sujeito; perspectiva esta que não se aplica em Freud. Para a psicanálise, a relação entre o vivido e o sonho se faz no drama do sujeito, através dos seus significantes. Nisto, o fato psicológico não é um dado pré-definido, mas um constructo, o que garante ao sujeito ampla participação no drama de sua vida. Em primeira pessoa, ele relata na fala suas próprias experiências. Para Politzer, essa diferença de acentuação nos métodos investigativos da psicanálise faz com que o sujeito não seja visto como um alguém que vive num mundo introspectivo.

Na psicologia clássica, a subjetividade é compartimentada de forma que seus processos se articulam como se fossem engrenagens mecânicas. Trabalhando pela ótica da mensuração dos fenômenos psíquicos, esta descrição dos processos psíquicos está mais preocupada com aquilo que se dá durante o estudo do caso, do que o plano teleológico. Abstraindo o que é vivido em primeira pessoa, é como se a psicologia clássica buscasse uma objetivação do pensamento em si. Neste interim, Politzer enxerga na psicanálise uma atitude de interpretação dos atos que fogem ao plano da vida interior. Trata-se de trazer o sujeito para fora da introspecção de seus pensamentos, de modo a dispor o plano teleológico como prévio a qualquer processo mental.

 

Os sonhos são caóticos ou bizarros por razões determinadas que devem ser buscadas na história de vida de cada sujeito e, portanto, são também inseparáveis do próprio eu. Arrancar dos sonhos a sua significação e o seu sujeito reflete o procedimento essencial da psicologia clássica para transformar os fenômenos psicológicos em objeto científico: a abstração. (CARVALHO, 2020, p. 332)

 

Ao que nos interessa, isso quer dizer que a psicanálise rompe com a psicologia clássica na medida em que esta não lida com o sonho como um processo vivido pelo indivíduo. Trata-se aí de não compactuar com a ideia de conferir ao sonho um critério impessoal, como numa existência paralela ao sujeito. Para Politzer, “o sonho não é um ato psíquico, mas sim um fenômeno orgânico, só registrado por certos sinais psíquicos, cujas representações têm existência própria independente do sujeito” (POLITZER, 2004, p.88). Distanciando-se do plano teleológico, a psicologia clássica afirma a possibilidade dos processos mentais, mas ignora a fala do sujeito sobre si. Recusando a interpretação, ela dá voz a um processo de introspecção do mesmo.

Apesar dos elogios aos esforços de Freud em se desvencilhar da vida interior dos processos mentais, Politzer o acusa: ao estilizar sua interpretação do inconsciente, a psicanálise deixa levar-se pelas tendências clássicas da psicologia. Em verdade, não há como negar sua concretude quanto a interpretação dos fatos vividos tomando lugar na fala. Não obstante, é quando ultrapassa a consciência do sujeito que Freud recai nas armadilhas do discurso clássico. Há uma força impessoal no inconsciente que desprende a psicanálise interpretativa e a faz regredir ao modus operandi da psicologia clássica. O inconsciente psicanalítico retorna à interpretação do sujeito; à introspecção que o afasta do vivido concreto. Em psicanálise, os conteúdos inconscientes facultam como que um desligamento do sujeito da fala, da intenção, operando segundo um movimento de retorno a vida interior e, consequentemente, de afastando da linguagem do campo teleológico. Dá-se aqui o fio condutor da crítica que Politzer tece à psicanálise. Pela linguagem, o sujeito narra o drama de sua vida. Contudo, em momento algum esse drama pode ser desvinculado daquilo que ele, o sujeito, representa como verdade.

 

A narrativa e a visão têm uma função prática e social e, devido a isso, a sua "estrutura" é "finalista": a linguagem corresponde em nós a uma "intenção significativa,", e as ações a uma "intenção ativa" e, antes de mais nada, sob esta forma "intencional" que a narrativa e a visão se inserem na vida cotidiana. A narrativa propriamente dita é tomada por aquilo que é; por outras palavras, à nossa intenção significativa corresponde, nos outros, a uma "intenção compreensiva (POLITZER, 2004, pp.111-112).

 

Como produto do que se vive em primeira pessoa, a narrativa nunca pode deixar de apontar à teleologia da linguagem, pois ela não só afirma algo do sujeito, como revela o que ele vê do mundo que habita. A separação freudiana entre conteúdos manifesto e conteúdos latentes fere o que Politzer quer manter na construção de uma psicologia concreta. Freud escapa às críticas fundando uma narrativa prévia aos atos pessoais: uma narrativa do inconsciente que funda o ato na impessoalidade de um intelectualismo interiorizado e distante da linguagem. De acordo com Politzer, isto é suficiente para acusar Freud de falar do inconsciente do mesmo modo que a psicologia clássica alude aos processos mentais. Ambas teorias relegam o sujeito ao inverificável.

A recusa de Politzer ao inconsciente freudiano leva a outro tipo de simbolismo, pois as imagens que se formam nos sonhos não são mais secundárias ao ato. Elas representam uma intencionalidade do sujeito frente a sua relação dialógica com o mundo e com os outros. A linguagem que esses signos carregam ultrapassam os preconceitos linguísticos, aparecendo para o sujeito na pureza de sua relação intencional. Nestes termos, os sonhos, os atos falhos, as ambiguidades dos nossos atos nada mais são do que expressões diretas da nossa consciência nos modos de ser dela com o mundo. Segundo Politzer, eis a expressão pura do drama da vida do sujeito.

Ademais, disto se depreender que, enquanto a psicanálise mantiver enunciados em que estejamos situados como terceira pessoa, ela não ultrapassará o discurso fisiológico da psicologia clássica. Ao criticar Freud, o intento de Politzer é separar a boa psicologia (concreta) da má psicologia (abstrata). Trata-se, segundo ele, de não repetir os caminhos de uma ciência que tenta relacionar-se com a consciência, afastando-se dela mesma. Como já podemos antever, essa busca por uma psicologia concreta se faz fundamental ao projeto sartreano da psicanálise existencial.

 

2.          Esboços para uma psicanálise existencial: Sartre leitor de Freud e Politzer

 

Em verdade, não é por acaso que Sartre chama sua psicanálise existencial de psicanálise. Apesar de associarmos, desde Freud, a psicanálise ao conceito de inconsciente, Politzer – antes mesmo de Sartre – já propôs a construção de uma psicologia/psicanálise concreta, pautada não no inconsciente, mas por aquilo que dramatizamos desde a primeira pessoa do singular, através de nossas vivências mundanas e intersubjetivas. Essa atenção ao drama não trata de fatos desconexos que o sujeito diz sobre si, e sim do modo como interpreta a soma de suas relações com o mundo. A busca politzeriana por uma psicologia/psicanálise concreta visa tratar do indivíduo em sua totalidade. Lendo Freud à luz de Politzer, Sartre – no capítulo sobre A Psicanálise Existencial de O Ser e o Nada – apresenta sua leitura, em que extrai da consciência a possibilidade de aderir aos seus conteúdos. Trata-se, segundo ele, de entender que a psicologia clássica “encara o desejo como existente no homem a título de ‘conteúdo’ de sua consciência, e supõe que o sentido do desejo é inerente ao próprio desejo” (SARTRE, 1997, p. 682).  Evitando tudo o que se poderia conjurar com a ideia de uma transcendência, o princípio básico da psicanálise proposta por Sartre reside em – assim como Politzer – zelar pelo sujeito não como um conjunto de fatos aleatórios, mas como uma totalidade de sentido; uma totalidade de Ser. Disto decorre que qualquer ato pode ser tomado como uma possibilidade de significação; coisa esta que é muito mais complexa e enraizada do que um gosto ou impulso se revelando.

 

Se ela (a psicanálise) for entendida como a teoria dos desejos inconscientes manifestos pela pulsão, sem estar inserida em uma abordagem mais ampla da concretude do ser humano, ela será considerada por Sartre como mais uma forma de “energetismo”. Mas, se ela for a busca pelo homem concreto e real que vive historicamente em um mundo “hostil”, Sartre poderá situar-se como o seu continuador. Tais posições podem ser identificadas, em suas linhas gerais, na obra clássica de Georges Politzer, Crítica aos fundamentos da Psicologia – a psicologia e a psicanálise. (SASS, 2017, p. 212)

 

Uma das problemáticas que surgem nas tangências entre Sartre, Freud e Politzer é a tentativa de abandono de preceitos da psicologia clássica. Em suas antinomias, ambos demonstram o caráter abstrativo das abordagens clássicas, principalmente quando distanciam o sujeito da concretude dramática e atual de sua vida. Quanto a crítica de Politzer, devemos nos arremeter as diferenças entre as psicologias concreta e abstrata, lembrando sempre que o autor deixa claro o quanto Freud foi abstrato em sua teoria (metapsicologia) mas concreto em sua prática clínica. Freud, segundo Politzer, até tentou atualizar sua metapsicologia pelo viés do drama, mas não raro recaiu no vício de flertar com o vocabulário enviesado das abstrações clássicas. Neste interim, Politzer diz que a psicologia clássica, ao tentar formular padrões de comportamento ao vivido em primeira pessoa incorre no equívoco de estabelecer postulados que, convencionais, não tocam os significados mais profundos das vivências concretas.

 

É evidente que para formar este catálogo não é necessário nenhum estudo propriamente psicológico, na medida em que tudo que é fornecido por documentos objetivos no sentido mais simples da palavra. Ora, através do postulado do caráter convencional do significado, a psicologia supõe precisamente que essas dialéticas, cuja lista pode ser estabelecida sem consulta quaisquer dos dados realmente subjetivos, são as únicas que existem. (POLITZER, 1975 I, p. 130)

 

Não muito distante do que Politzer advoga, Sartre atualiza essa perspectiva quando atenta ao papel do psicólogo clássico frente ao seu analisado.

 

A introspecção não fornecerá aqui, como lá a experimentação "objetiva", senão fatos. Deve-se haver mais tarde um conceito rigoroso de homem – e isso mesmo é duvidoso –, esse conceito só pode ser considerado como coroamento de uma ciência acabada, isto é, ele é remetido ao infinito. Ainda assim seria apenas uma hipótese unificadora inventada para coordenar e hierarquizar a coleção infinita dos fatos trazidos à luz. (SARTRE, 2014, p. 15)

 

Sartre e Politzer verificam na psicologia clássica uma leitura generalizante que, além nada dizer sobre as vivências pessoais, reedita os saberes fugidios ao realismo do sujeito. Ambos atentam aos limites de toda qualquer teórica que não se apresente de maneira horizontal na psicologia. Disto decorre que estejam preocupados com os riscos dos discursos objetificantes, na medida em que estes, ao apelarem à possibilidade de hierarquização dos fatos, passam por alto que o sujeito ocupado em estabelecer hierarquias acaba assumindo o papel daquele que decide o que deve ou não ser considerado como relevante nos fenômenos psíquicos. Tanto Politzer quanto Sartre nos fazem entender que o psicólogo não pode atuar como um colecionador de fatos psíquicos. Se preocupado com a concretude dos dramas individuais, não é ele quem decide o que comporá sua coleção, pois, caso contrário, aparta a função do sujeito dentro de uma ciência, em seus termos, se faz pautada pela ideia de subjetividade.

Isto posto, que levemos em conta, a partir de Politzer, a construção dos sentidos dos sujeitos em suas concretudes. Os sentidos da vida concreta surgem como numa pirâmide invertida, sendo a parte superior a mais genérica do sujeito, onde estão localizados os postulados mais convencionais. Estamos falando de suposições clássicas como, por exemplo, “o pai ausente e mãe castradora tende a gerar um filho homossexual”. Conforme a investigação avança, adentramos nas significações profundas, naquelas mais distantes da base da pirâmide invertida. Recorrente em Sartre, esta abordagem piramidal proposta por Politzer refere-se àquilo que o sujeito internaliza para si na sua relação com o mundo. Como num funil, a meta é se aproximar do que há de mais concreto e “mais profundo” na relação entre sujeito e objeto/mundo/alteridade.

De modo análogo ao que se inquere por Politzer no seu projeto de uma psicanálise concreta, o autor de O Ser e o nada visa desconstruir as significações convencionais, haja vista que estas nos levam a assumir que certas objetividades são capazes de se sobrepor não só à liberdade do sujeito, mas à escolha dele de agir segundo seu projeto de ser. Ao se montar uma consciência reflexiva por meio de uma investigação psicológica, temos a possibilidade de, em direção ao nosso projeto, transpor tais objetividades. Lendo Freud à luz de Politzer, entendemos que Sartre dialoga com o método de trabalho proposto na psicanálise tradicional. Através do que ele chama de induções espontâneas, podemos, via interpretação, desconstruir os postulados de caráter convencional. Tal interpretação orienta o sujeito a sair do convencional e direcionar-se ao individual, ao autêntico. Via psicanálise existencial, vemos que não se trata de requerer a criação de uma doutrina absolutamente autônoma. Conservando de Freud a noção de significação, mas recusando “a ideia de que a consciência seja, em função do desejo inconsciente, um fenômeno secundário e passivo” (DEPRAZ, 2002, p. 105, tradução nossa), Sartre, assim como Politzer, propõe um modo de reorganização das significações por meio do esforço do sujeito em relação a elas.

 

Pelas induções espontâneas que apenas permitem apreender o significado convencional, o psicanalista organiza um inquérito para obter o individual. O método psicanalítico, portanto, é apenas uma técnica que permite aprofundar os significados de acordo com as exigências da psicologia concreta. (POLITZER, 1975, p. 132)

 

Ao chamar essas objetivações convencionais de induções espontâneas, remetemos à impossibilidade apontada por Sartre dos objetos de má-fé serem refletidos[2]. Espontânea e irrefletidamente, o sujeito expressa a crença de que seu projeto encontrou sentido em algo objetivo. Para si, esse objeto age como um guia que tenta se sobrepor a liberdade, objetivando os atos da maneira que o sujeito acredita que “deve agir”. Pensemos, por exemplo, num soldado: na guerra, ele acredita estar em missão, de modo que seus atos são tangenciados pelo cumprimento da mesma. Seu projeto de ser e sua busca pessoal são colocados de lado para suprir as significações de soldado que a sociedade convencionalmente lhe impôs. Regadas por esse objeto de má-fé, suas induções são espontaneamente orientadas no sentido de manter o personagem que assumiu: no cumprimento da missão, o soldado crê que há aí uma resolução do seu projeto. Para a psicologia clássica, deveríamos encerrar os postulados de soldado naquilo que se considera que o meio faz dele. Nisto, nega-se a possibilidade de uma subjetividade que se constrói assumindo a má-fé, bem como os postulados convencionais relativos ao entendimento da conduta de um militar de baixa patente.  Por seu turno, Sartre e Politzer alertam que este modo de compreender o soldado só é operacionalizável por meio de um distanciamento em relação a concretude do drama vivificado pelo sujeito. Habilitá-lo a conhecer as significações que ultrapassam a má-fé e as convenções é, portanto, um modo de manter sua liberdade na construção daquilo que deseja.

Com efeito, é preciso que haja uma relação imediata (e não mediada) entre o sujeito e a realidade que se apresenta para ele, a fim de que possamos alçar o íntimo de suas significações. Eis aqui o que Politzer chama de uma experiência secreta (Cf. POLITZER, 1975, p 133). Situada no núcleo do Eu, tal experiência é o indicativo de um espaço inacessível – um Isso – que só pode ser dito pela ação. Fugidias e escondidas em si, as representações aqui secretadas caem num vazio inconsciente e não cognocivo, a menos que o sujeito tenha a intenção de expressá-las no mundo. Assim, a prova do inconsciente reside “nos efeitos conscientes de fatos psicológicos que não o são; e como o efeito real requer uma causa real, torna-se assim necessário introduzir a noção de inconsciente” (POLITZER, 1975b, p. 21).

Acerca, portanto, do projeto de construção de uma psicanálise existencial, Sartre demonstra que a estruturação da psicanálise freudiana entorno do inconsciente não supre de modo algum a possibilidade de algo que possa ser anterior ao ato. Interpelando as evidências que levam Freud a cindir o sujeito em dois, Sartre, à luz de Politzer, aponta ao fato de que devemos tratar o sujeito como uma totalidade destotalizada no ato. Como Cannon bem observa, “as estruturas ontológicas não se manifestam por trás do vivido concreto, mas no vivido concreto” (CANNON, 1991, p. 323, tradução nossa). Afinal, a “consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo” (SARTRE, 1997, p. 35). E é como estatuto ontológico que a liberdade é vivida e dramatizada como “a escolha irremediável de certos possíveis: o homem não é, mas faz-se. Não há futuro previsível e nem ao menos cartas marcadas de antemão. Há, isso sim, o movimento através do qual o Ser do homem faz-se isso ou aquilo” (YAZBEK, 2005, p. 142).

Em vias de reivindicar uma psicanálise sem inconsciente, Sartre revela que a consciência, em função do seu devir, não deve ser pensada como algo que pode assumir a forma da passividade. Não havendo nela estruturações ou significações estáticas, é como ser-no-mundo que ela está sempre em transcendência, sempre em transformação. Ora, mas se é desse modo, então impera aqui uma incompatibilidade com a ideia de que a compreensão do psiquismo precisa admitir algo como uma “cena outra” repleta de conteúdos latentes. Ainda que possa ser inferido desde um ponto de vista dinâmico, o inconsciente tal como Freud o concebe não parece, em momento algum, habitar o sujeito que o vivifica e dramatiza.  Jamais plenamente tematizados, os conteúdos que desta cena podemos inferir trabalham como um pano de fundo à ação consciente. Trata-se de algo que não é concreto, mas que serve ao positivismo das teorias clássicas. Apontando à concretude do vivido em primeira pessoa, Sartre e Politzer atentam às inconsistências do projeto psicanalítico, alegando que não pode haver um realismo da consciência na consciência. Não pode haver conteúdos que não são conteúdos expressos num drama e numa concretude vivida.

Ora, mas qual o papel da consciência para o sujeito freudiano? Nas leituras de Sartre e Politzer, a consciência em Freud designa tão somente uma passividade das estruturas e dos processos internos do sujeito. Ela fica à mercê dos conteúdos latentes, assumindo apenas uma função secundária na estruturação da subjetividade. Contra isto, Sartre alega que ser consciente de algo não nos leva a um conhecimento de algo. É preciso colocar em xeque os conteúdos inconscientes, imputando nos atos irrefletidos a responsabilidade intencional de uma consciência livre. Assim, se para Politzer “há uma disparidade entre o saber aparente e o saber real(POLITZER, 1975b, p. 10), é contra as abstrações implicadas no inconsciente que, a respeito da consciência, Sartre nega haver toda essa passividade em relação aos conteúdos latentes.

Ainda que seu projeto de psicanálise não esteja fundamentado na leitura fenomenológica da consciência, os esforços de Politzer em separar o concreto do abstrato em Freud são análogos aos esforços empenhados por Sartre na construção de sua psicanálise existencial. Preocupados com a vida concreta, ambos evitam reeditar os escapes dualistas na constituição do sujeito. Eles estão preocupados em não tratar a subjetividade como classificável em uma generalidade abstrata. Trata-se de fazer do sujeito desejante uma singularidade relativa ao mundo e aos significados que faz dele de acordo com a concretude e a espontaneidade do seu drama.

 

3.          Conclusão: por uma psicanálise sem inconsciente

 

Em 1925, no artigo sobre A resistências à psicanálise, Freud reitera que, dentre tantos obstáculos e disparidades, os filósofos de sua época apresentavam graves faltas de compreensão quanto aos conteúdos inconscientes. Isso ocorria pois os filósofos, em sua grande maioria, “consideram psíquico apenas o que é um fenômeno da consciência. Para eles, o mundo do que é consciente coincide com a esfera do psíquico [...] a alma não tem outro conteúdo senão os fenômenos da consciência, e a ciência da alma, a psicologia, tampouco tem outro objeto” (FREUD, 2011b, p. 232). Contudo, quando falamos em psicanálise existencial, logo notamos a recusa da “ideia de que a consciência seja, em função do desejo inconsciente, um fenômeno secundário e passivo” (DEPRAZ, 2002, p. 105, tradução nossa). Deste modo, ao insistir numa “cena outra” do psiquismo, por mais que Freud tenha sido o primeiro a reivindicar que “todo estado de consciência vale por outra coisa que não ele mesmo” (SARTRE, 2012, p. 49), é preciso, segundo Sartre, que o censuremos quanto ao papel atribuído à consciência e seu mecanismo intencional. Afinal, se desejássemos, por exemplo, conceber uma teoria psicanalítica das emoções, bastaria supor uma organização sintética de nossas condutas, todas elas advindas de uma cena inconsciente.

 

Ora, seria a rigor bastante fácil fazer uma teoria psicanalítica da emoção-finalidade. Poderiamos sem muita dificuldade mostrar a cólera ou o medo como meios utilizados pelas tendências inconscientes para satisfazer-se simbolicamente, para romper um estado de tensão insuportável. Explicaríamos assim este caráter essencial da emoção: ela é sofrida, ela surpreende, ela se desenvolve segundo leis próprias e sem que nossa espontaneidade consciente possa modificar seu curso de um modo muito apreciável (SARTRE, 2014, p. 49)

 

Para Sartre, devemos estar atentos aos princípios utilizados por Freud quando forja as explicações psicanalíticas. Alienando no inconsciente a maior parte das ações psíquicas e, portanto, do significado das emoções, a interpretação psicanalítica faz da “consciência um ser taciturno e menor na dinâmica da vida psíquica consciente do sujeito” (FUJIWARA, 2013, p. 84). Ela “concebe o fenômeno consciente como a realização simbólica de um desejo recalcado pela censura” (SARTRE, 2014, pp. 50-51). Contudo, se atentarmos ao mesmo problema, só que do ponto de vista da consciência, logo percebemos:

 

Esse desejo não está implicado em sua realização simbólica. Na medida em que existe pela e na nossa consciência, ele é aquilo pelo qual se dá: emoção, desejo de sono, roubo, fobia, etc. Se fosse de outro modo e tivéssemos alguma consciência mesmo implícita de nosso verdadeiro desejo, seriamos de má-fé, e o psicanalista não entende assim. (SARTRE, 2014, p. 51)

 

Em Freud, a representação consciente do desejo não coincide com sua realização. O significado (sentido de uma conduta) dos atos téticos é inteiramente desligado do seu significante (manifestação consciente dessa conduta). Isso faz com que a consciência seja tipificada “como significação sem ser consciente da significação que ela constitui” (SARTRE, 2014, p. 52). Trazendo à baila a dramaticidade da espontaneidade irrefletida, a psicanálise existencial, por sua vez, recusa a ideia segundo a qual a consciência é passiva e secundária diante do desejo inconsciente. Muito influenciado por Politzer, Sartre nega “que o inconsciente seja primeiro, desconhecido da própria consciência” (FUJIWARA, 2013, p. 85). Ele entende que, ao supor causalidade ente significado e significante, Freud infere um pensamento incapaz de pensar a si mesmo. O austríaco faz da consciência o efeito de uma “cena outra”, que, desde então, será considerada sua causa.

Tal causalidade é qualificada pelo fato da cena inconsciente ser extrínseca aos atos conscientes vividos em primeira pessoa. Por definição, um fato consciente é, para a psicanálise, extrínseco à sua causa inconsciente: um efeito exterior à causa, onde é passivo em relação a ela. Assim como nas investigações das ciências naturais, trata-se de uma relação externa entre duas coisas que existem independentemente desta relação (Cf. TOMÈS, 2010). Todavia, a menos que tomemos a consciência como se fosse uma pedra, é preciso que renunciemos ao ímpeto de fazer dela um fenômeno passivo e secundário. No âmbito da intencionalidade fenomenológica, se “a consciência se faz, ela nunca é senão o que aparece a si mesma. Portanto, se ela possui uma significação, deve contê-la nela como estrutura de consciência” (SARTRE, 2014, p. 52). Ora, mas isso não implica que suas significações sejam perfeitamente explícitas. Como partes de uma espontaneidade irrefletida, se a consciência é sempre consciência de si, suas significações também devem ser iluminadas por si. E isso significa que não devemos interrogá-las de fora, mas de dentro, sabendo sempre que a consciência “é ela mesma o fato, a significação e o significado” (SARTRE, 2014, p. 53).

Por mais que, do ponto de vista psicanalítico, o caráter simbólico do que é expresso entre a consciência e o desejo não seja completamente exterior ao fato de consciência, mas constitutivo dele, é preciso tratar a simbolização como constitutiva da consciência. Sendo deste modo, nada há por de trás da consciência; “e a relação entre símbolo, simbolizado e simbolização é uma ligação intra-estrutural da consciência” (SARTRE, 2014, p. 53). Em oposição aos psicologismos clássicos e, portanto, também ao inconsciente psicanalítico, Sartre, lendo Freud à luz de Politzer, deseja pensar uma teoria onde a consciência é assumida como condição ontológica e concreta de todos os sentidos possíveis. Para tanto, sua tese é de que as psicanálises pautadas no inconsciente se equivocam quando concebem a consciência como simbolizante apenas enquanto estiver sob a pressão transcendente de um desejo recalcado. De maneira contraditória, tais teorias apresentam “ao mesmo tempo uma ligação de causalidade e uma ligação de compreensão entre os fenômenos que estudam” (SARTRE, 2014, p. 54). Contra todo causalismo psíquico, se preocupada com as emoções, a psicanálise existencial deve ter em seu horizonte as potencialidades de uma consciência irrefletida, sabendo sempre que “tudo o que se passa na consciência só pode ser explicitado e receber sua explicação na própria consciência” (FUJIWARA, 2013, p. 86).

Chocados com tais contestações, os leitores atentos de Freud podem alegar que o tipo de psicanálise requerido por Sartre concebe um mundo impregnado de voluntarismos. Contudo, trata-se de entender que, em favor da dynamis de uma consciência reflexiva, o filósofo francês apenas nega o inconsciente como instância primária, atuante sobre e acima da consciência. Ao insinuar que as significações inconscientes não têm significado algum, “a teoria sartreana da consciência não é voluntarista. Ela só não torna iguais consciência e vontade” (Cf. CANNON, 1991, p. 35). Com efeito, não se trata de supor um voluntarismo racionalista, mas de teorizar sobre uma liberdade intencional constituída como lei eidética da consciência. Havendo “muitos graus possíveis de condensação e clareza” (SARTRE, 2014, p. 52), mesmo que a significação faça parte da consciência, Sartre crê que ela não é totalmente explícita. Por isso, se o “psicanalista se serve da compreensão para interpretar a consciência, mais valeria reconhecer francamente que tudo o que se passa na consciência só pode receber sua explicação da própria consciência” (SARTRE, 2014, p. 54). Em vias de propor uma psicanálise sem inconsciente, Sartre reivindica uma ontologia que não interrogue a consciência de fora – como se se tratasse de um objeto em-si –, mas de dentro[3], por meio do vivido em primeira pessoa.

Do ponto de vista de uma psicanálise existencial, nota-se, primeiramente, que a metapsicologia freudiana é toda ela feita entorno de uma injustificável defasagem entre a significação e a consciência. Em favor da autonomia dos conteúdos inconscientes, Freud incorre no vício de cindir significante e significado. Em sua psicanálise, “não apenas não temos consciência da finalidade da emoção, como também rejeitamos a emoção com todas as nossas forças, e ela nos invade contra nossa vontade. (SARTRE, 2014, p. 55). Por fim, chamamos atenção ao modo como Freud faz da consciência um efeito causal da cena inconsciente. Lendo-o à luz de Politzer, Sartre acredita que a interpretação freudiana dos significantes inconscientes está “fundada numa relação de causalidade e em uma concepção realista da consciência” (TOMÈS, 2012, p. 237, tradução nossa). Ora, mas isso é bastante paradoxal; afinal, afirmar que a consciência se constitui como significação sem se fazer ciente de sua própria significação faz dela apenas um existente, tal como quaisquer outros objetos no mundo. A psicanálise existencial, por seu turno, reivindica não que tomemos o inconsciente como instância primária de nossas condutas psíquicas, mas que voltemos ao seio da própria atividade da consciência, para encontrar nela o signo de uma ontologia fenomenológica, apesar de tantas questões, dificuldades e contradições. Desde aquilo que é dramatizado pela concretude do sujeito em primeira pessoa, trata-se de compreender: se não existem forças que lhe sejam antagônicas, então a consciência é inteira, espontânea, concreta e absolutamente livre.

Por fim, reiteramos que nossa análise teve como proposta demonstrar as convergências de Sartre e Politzer e, para além disso, mostrar como Sartre, até certo ponto, se apropria das críticas de Politzer a psicanálise para fundamentar sua proposta existencial. Ao que parece, Sartre segue o anseio de rever as estruturas positivas que regem a psicologia, na busca de fundar um novo caminho para ela, que seja estruturado no vivido concreto e na abdicação de qualquer estrutura inconsciente. Politzer é um autor radical que forçou esses caminhos da concretude; e ele traz para Sartre uma fundamentação de como se pensar estruturas da consciência que não recaiam em estruturas objetivas. Disto possibilita um forte embasamento para se pensar o sujeito como uma situação da vida concreta.

 

Referências

 

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[1] Resumidamente, podemos dizer que na introdução da obra O Ser e o Nada, Sartre debate com autores como Kant e Descartes, buscando desconstruir dualidades que habitam o campo da consciência, destituindo o sujeito do campo transcendental e o colocando em um plano comum com as coisas do mundo, sem representações ou artífices que possam dizer dele para além do projeto de si.

[2] Em Sartre, a má-fé corresponde a tentativa de fuga do sujeito dando a si um determinismo. Não se trata da fuga decorrente da vontade de negar o que sou. O sujeito da má-fé busca no mundo algo que possa determiná-lo, e cujas propriedades negam sua condição negativa. Assim, não só nega sua liberdade, mas abre mão de si enquanto projeto. Segundo Leopoldo e Silva, “quando a consciência nega sua indeterminação original e procura se determinar em um ser poderíamos dizer que ela se nega para ser” (LEOPOLDO E SILVA, 2003, p.159). A má-fé refere-se, então, à tentativa do indivíduo em se autodeterminar. Diferentemente do mentiroso ciente de sua ação, a má-fé é a conduta na qual o sujeito mente para si mesmo – uma mentira intima, um autoengano. Por conseguinte, se a toma como uma de suas possibilidades, será, num só tempo, enganado e enganador (mentiroso). Ao que nos interessa, notamos que o problema da má-fé expressa a possibilidade da consciência enganar a si mesma. E considerando que a consciência é sempre intencional, a má-fé é o que escapa da intenção do sujeito.

[3] Entendemos que “dentro” e “fora” é uma problemática contundente em Sartre. Não obstante, optamos por essa linguagem para fins didáticos.