No republicanism, no procedural liberalism: or some considerations on the dynamics of exclusion/inclusion and alienation/participation in democratic regimes in Charles Taylor
Marcos Aurélio Pensabem Ribeiro Filho
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo
E-mail: kitopensabem@gmail.com
Resumo
O presente artigo, primeiramente, analisa exigências que Charles Taylor considera cruciais aos regimes democráticos: inclusão e participação. Após, examina como o liberalismo procedimental e o republicanismo atendem às essas exigências, ou falham ao atender, e geram exclusão e alienação. A suposição levantada pelo artigo é de que os elementos de exclusão e alienação presentes nos regimes democráticos não se encontram apesar da democracia, mas em virtude das exigências de inclusão e participação da própria democracia. Por fim, apontaremos algumas considerações feitas por Taylor em relação à constituição de uma democracia viável, que rejeita e incorpora tanto elementos da interpretação republicana quanto do liberalismo procedimental em relação à democracia.
Palavras-chave: Democracia. Inclusão. Exclusão. Participação. Alienação. Charles Taylor.
Abstract
This paper first analyzes demands that Charles Taylor considers crucial to democratic regimes: inclusion and participation. Then, it examines how procedural liberalism and republicanism respond to these demands, or fail to respond to them, and generate exclusion and alienation. The assumption raised by the article is that the elements of exclusion and alienation present in democratic regimes are not found in spite of democracy, but by virtue of the inclusion and participation demands of democracy itself. Finally, we will point to some considerations made by Taylor regarding the constitution of a viable democracy that rejects and incorporates both elements of the republican and procedural liberalism interpretations of democracy.
Keywords: Democracy. Inclusion. Exclusion. Participation. Alienation. Charles Taylor.
Em uma das últimas publicações feitas por Charles Taylor, em parceria com Patrizia Nanz e Madeleine Beaubien, intitulada Reconstructing Democracy, os autores partem da seguinte constatação: “existe uma crença generalizada nas sociedades ocidentais de que nossas democracias estão em perigo” (TAYLOR, 2020, p.5). As bem-sucedidas campanhas eleitorais pelo Brexit no Reino Unido, de Donald Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil, bem como o crescimento de movimentos e partidos de extrema direita em países democráticos, evidenciaram e ainda evidenciam a fragilidade de nossas democracias. O apelo ao sentimento de nostalgia por um “passado perdido”, mais “digno” e “coeso”, de um Reino Unido antes da União Europeia, de um passado em que a América era “grande”, ou, ainda, de um “Brasil semelhante àquele que tínhamos há cinquenta, quarenta anos”[1], quase sempre acompanham fortes apelos patrióticos e sentimentos xenófobos e de exclusão.
Os discursos xenófobos e excludentes que fazem parte da agenda desses movimentos não são os únicos elementos que intrigam. Chama a atenção, sobretudo, o fato de que todos eles se tornaram vitoriosos em democracias mais ou menos “consolidadas” e por meio de expedientes democráticos legítimos. A suposição que gostaríamos de levantar aqui, com o aporte da filosofia de Charles Taylor, é de que o “perigo” e a “fragilidade” dos regimes democráticos não se encontram apesar da democracia, mas em virtude da própria democracia.
Essa suposição, de que o perigo e a fragilidade da democracia possam estar não em elementos externos à democracia, mas internos a ela, não é apenas uma preocupação de escritos recentes de Taylor, mas uma constante em seu pensamento. Desde os escritos de juventude, como em Alienation and Community (1958), ou em sua fase mais madura, como em Democratic Exclusion (and Its Remedies?) (1999), até o mais recente escrito supracitado, a preocupação quanto aos elementos “corrosivos” inerentes aos regimes democráticos se revela crucial. Para o autor, os elementos inclusivos e excludentes, bem como de participação e alienação, são aspectos constitutivos da maneira como, historicamente, a noção de democracia foi desenvolvida na modernidade. Em Democratic Exclusion (and Its Remedies?) (1999), Taylor apresenta o problema da seguinte maneira: “o que faz a democracia inclusiva é que ela é o governo de todo povo; o que a faz excludente é que ela é o governo de todo o povo” (TAYLOR, 1999, p. 124).[2] O dilema exposto é que a exigência de inclusão presente na noção de democracia pode ser eclipsada pelas exigências de participação ativa e identificação também próprias da democracia.
O dilema presente nas exigências inerentes à noção de democracia se apresenta de modo destacado tanto nas críticas de Taylor ao liberalismo do tipo procedimental, como nas críticas ao republicanismo. Na conferência ministrada no Chile em 1986, Algunas Condiciones para una Democracia Viable[3], Taylor considera que tanto o liberalismo procedimental como o republicanismo – apesar de errôneos – conseguem captar alguns aspectos importantes da noção de democracia (TAYLOR, 1986, p. 15). Com isso, ambos os modelos apresentam aspectos importantes relativos às exigências existentes nos regimes democráticos, mas também revelam “distorções fundamentais” quanto à interpretação dessas mesmas exigências (TAYLOR, 1986, p. 15). Através dessas críticas, Taylor procura mostrar que tais modelos não somente são incapazes de neutralizar os “elementos corrosivos” presentes nas democracias, como também que tais elementos são inerentes à maneira como o liberalismo procedimental e o republicanismo interpretam as exigências de um regime democrático.
O questionamento que pretendemos abordar no presente artigo é: dada as exigências inerentes à noção de democracia como um governo de todos e para todos, quais características se apresentam disponíveis, tanto no liberalismo procedimental como no republicanismo, para a constituição de uma democracia viável? Tal questionamento, embora motivador de nosso trabalho, não terá aqui o tratamento amplo e minucioso que ele merece. Nosso intuito é expor ao menos algumas contribuições feitas por Taylor, que, não obstante, se apresentam também como problemáticas. Com isso, procuraremos, primeiro, apresentar dois sentidos que Taylor expõe como sendo cruciais à noção de democracia. Em segundo lugar, através da análise crítica de Taylor ao liberalismo procedimental e ao republicanismo, procuraremos compreender as exigências que o autor considera cruciais à noção de democracia em ambas as tradições do pensamento político. Conjuntamente a isso, buscaremos identificar os elementos “corrosivos” e “contraditórios” inerentes à maneira como os respectivos modelos políticos interpretam as exigências de uma democracia. Por fim, apontaremos algumas considerações feitas por Taylor em relação à constituição de uma democracia viável, que rejeita e incorpora tanto elementos da interpretação republicana quanto do liberalismo procedimental em relação à democracia.
Em uma conferência intitulada Democratic Degeneration: Three Easy Paths to Regression, ministrada em 2018, Taylor apresenta duas acepções possíveis para o uso do termo democracia. Segundo o autor, a polissemia do sentido de democracia deriva-se da ambiguidade existente nos termos demos e plebe, originários do grego e do latim, respectivamente. Taylor observa que as palavras people, volk, povo preservam uma similar ambiguidade: por um lado, podem ser usadas para designar toda a população. Assim, pode-se dizer: “o povo francês foi libertado em 1944 do domínio nazista”; ou “o governo de todo o povo”. Por outro, pode-se usar o termo povo em um sentido mais antigo presente nas palavras demos ou plebe. Demos, populus e plebeus eram também palavras usadas para designar aqueles que não faziam parte das elites. Em oposição à aristocracia, dos bem-nascidos, democracia é “o governo do povo”, no sentido de não-elite.
Na compreensão de Taylor, o significado do termo democracia preserva, assim, dois níveis de sentidos (TAYLOR. 2018). No primeiro nível, democracia é um “Estado de Direito”. Um país pode ser considerado uma democracia quando possuir um sistema de direitos e liberdades que seja o mais inclusivo possível, que possua eleições regulares e que todos sejam livres e tratados como iguais, de maneira justa. Já no segundo nível de sentido, é possível afirmar que determinados países, embora considerados democráticos, não o são realmente ou são menos democráticos que outros. Com isso, se pretende afirmar que tais países apresentam um evidente desequilíbrio em favor das elites. Isto é, eles não são governos por e para todo o povo. As pessoas que não fazem parte das elites não possuem a chance de se fazer ouvir, de fazer certas mudanças, em suma, de ser parte do governo do povo. O termo povo não mais designa todos, mas apenas as parcelas da população que não integram as elites. Assim, é possível afirmar que, embora alguns países sejam inquestionavelmente democracias no primeiro sentido, em outro, eles não o são. Esses dois níveis de sentidos devem ser entendidos como cruciais para a noção de democracia. Uma democracia completa apenas pode ser considerada como tal quando cumpre as exigências presentes nesses dois níveis de sentido: um governo de todo o povo.
Mas como torná-la viável? As exigências presentes nos dois sentidos da noção de democracia impulsionaram respostas distintas para essa pergunta. Podemos entender que tanto o liberalismo como o republicanismo procuram oferecer respostas distintas à questão, bem como interpretações distintas em relação aos elementos necessários para a sua execução. A noção de democracia que Taylor defende ser central tanto para a tradição republicana quanto para o liberalismo, no entanto, é a mesma: “o governo do povo, pelo povo e para o povo” (TAYLOR, 1999, p.124), onde “povo” deve significar todos. Na presente discussão sobre a noção de democracia procuraremos circunscrever a maneira como Taylor interpreta serem as exigências democráticas, por um lado, e seus elementos corrosivos, por outro, presentes nas formas de democracia liberal e republicana em seus termos mais gerais. No que se segue, analisaremos a partir da interpretação de Taylor, os aspectos centrais da “tese republicana” de democracia e, em seguida, os elementos “corrosivos” e contraditórios presentes nessa tradição do pensamento político. Após, procuraremos fazer o mesmo levando em consideração a “tese liberal” de democracia.[4]
A formulação “do povo, pelo povo, para o povo”, para a tradição “republicana” ou “cívico humanista”, especifica o elemento básico envolvido na concepção de autogoverno ou de liberdade positiva, na qual o povo é a fonte de legitimação das ações em Estados democráticos. Ao se submeterem apenas às leis que forem estabelecidas por eles mesmos, os cidadãos de uma república não mais precisam ser coagidos a se submeterem às leis por meio de coerção física, nem indiretamente por medo de punições, comuns em regimes despóticos, mas devem se submeter às leis de bom grado. O argumento de Taylor é que, na tese republicana, os regimes livres e democráticos precisam exigir um forte sentido de identificação patriótica de seus cidadãos. Nas palavras do autor,
[...] ao refletirmos sobre o que está envolvido na noção de autogoverno, e o que está implícito no modelo básico de legitimação dos estados democráticos, percebemos que eles estão fundados na soberania popular. Para que um povo seja soberano, ele precisa formar uma entidade e ter uma personalidade. (TAYLOR, 1999, p.124-5)
Se os cidadãos de uma comunidade não possuírem um forte sentido de identificação patriótica, eles não terão os elementos motivacionais necessários para carregar o fardo exigido por sua comunidade política. Os cidadãos de uma república devem pagar impostos, se submeter a leis que, em muitos casos, são individualmente indesejáveis e inconvenientes, se alistar e eventualmente servir ao exército, estar prontos a combater em guerras quando forem convocados, estar dispostos a participar de conselhos e organizar eleições, e assim por diante. O argumento de Taylor é que, para republicanos, somente é possível carregar esse “fardo” de “bom grado” se os cidadãos possuírem um forte sentimento de identificação e pertencimento com relação à comunidade política. Ou, posto em termos mais taylorianos, se eles considerarem a sua comunidade política uma expressão de si mesmos. Em Democratic Exclusion (and Its Remedies?) (1999), Taylor observa:
Os pensadores da tradição cívico humanista, de Aristóteles a Arendt, concordam que as sociedades livres exigem um nível mais alto de compromisso e participação do que as sociedades despóticas ou autoritárias. Os cidadãos têm que fazer por si mesmos o que na outra forma seus governantes fariam por eles. Mas isso só pode ocorrer se esses cidadãos sentirem um forte vínculo de identificação com sua comunidade política e, portanto, com aqueles que como eles compartilham essa identificação. (TAYLOR, 1999, p. 129)
A vida em democracias possui uma série de exigências que não seriam impostas por governos despóticos. Ela necessita que seus membros tenham interesse em participar ativamente da vida pública. O autogoverno é oneroso. É necessária uma forte fonte de motivação externa, e não apenas o auto interesse dos indivíduos envolvidos. Na interpretação de Taylor, a tese republicana é de que o único meio que pode proporcionar a fonte de motivação que o autogoverno exige é a fidelidade patriótica (TAYLOR, 1999, p. 128). Daí se segue a ligação entre liberdade e patriotismo presente no republicanismo. Uma sociedade livre é aquela cujos cidadãos possuem a força e o compromisso necessários para mantê-la. Para o republicanismo, segundo Taylor, a fonte desta força e compromisso é o patriotismo.[5]
Taylor considera que a “tese republicana” capta um aspecto crucial da democracia e de como torná-la viável. Isto é, que a viabilidade de uma democracia plena depende da fidelidade dos seus cidadãos a ela. Em Algunas Condiciones para una Democracia Viable (1986), Taylor afirma que, segundo uma “interpretação convincente” do Do Contrato Social (1762) de Rousseau, “o autogoverno deve ser concebido em termos de vontade”. Isso significa que “o fundamento de uma sociedade ocorre apenas se existir algo como uma vontade comum, uma Volonté Générale” (TAYLOR, 1986, p.19). A construção de uma “vontade geral”, segundo a tradição republicana, é condição necessária para a democracia. Uma vontade cuja elaboração todos participam e com a qual todos se identificam.
A fidelidade à democracia precisa, então, expressar uma vontade comum, uma identidade compartilhada, um compromisso comum compartilhado. O diagnóstico de Taylor é que, sem esse compromisso comum, a própria democracia se encontraria em perigo. Contudo, é devido à exigência de um forte compromisso comum, presente na “tese republicana” de democracia, que a não participação ativa, por parte de alguns, bem como a não identificação, por parte de outros, pode se apresentar intolerável. Tal paradoxo nos leva à análise do problema da “exclusão democrática” que as “democracias” podem vir a manifestar.
Em uma coluna sobre ética e religião do jornal australiano ABC, intitulado Democratic Exclusions: Political Identity and the Problem of Secularism, em 2017, Taylor aborda o problema de exclusão democrática da seguinte maneira:
A democracia moderna como a conhecemos – ao contrário da democracia antiga – é universalista. Acreditamos que os direitos dos cidadãos devem ser aplicados a toda a população, sem exclusão por motivos de gênero, propriedade, origem e raça. Mas, de forma paradoxal, a democracia também pode gerar exclusão, e regularmente o faz (TAYLOR, 2017).
Mas o que gera essa tendência à exclusão? Para Taylor, a tendência à exclusão não é uma característica externa às exigências impostas pela viabilidade de um regime democrático, mas interna a elas. Isto é, tal tendência está presente na “tese republicana”, na qual a viabilidade de um regime democrático depende da ligação entre autogoverno e patriotismo. Um regime democrático apenas pode se tornar viável se e somente se existir um compromisso por parte de seus cidadãos para mantê-la. Esse compromisso, como vimos, necessita de um forte senso de identidade e solidariedade por parte de todos os cidadãos. “Sem essa solidariedade básica, não poderia haver confiança”, como afirma Taylor (2017).
Ainda na mesma coluna, para o jornal australiano ABC, Taylor faz uma distinção elucidativa quanto ao “sentido daquilo pelo qual estamos comprometidos nas democracias modernas” (TAYLOR, 2017). Por um lado, afirma Taylor, “uma faceta” desse compromisso é constituída pelo princípio político/moral, que foi cristalizado na forma de Direitos Humanos, na defesa da igualdade e na não discriminação, ou seja, nos aspectos gerais que definem as formas democráticas de governo. Tal faceta pode ser vista como a exigência de inclusividade, presente na maneira como modernamente entendemos ser a democracia. Contudo, existe outra faceta, que diz respeito aos nossos “projetos históricos particulares”, específicos para cada democracia. Assim, a “fidelidade patriótica” pode ser dirigida, por exemplo, à República Americana, ou à República Francesa, ou ao Reino Unido. Ou ainda, pode ser direcionada aos aspectos que estão envolvidos em uma identidade comum, como a história, a língua, a etnia e afins. Para Taylor, essas duas facetas constituem “o duplo aspecto de toda a nossa identidade política” (TAYLOR, 2017).
Assim, o autor sugere que a exclusão democrática diz respeito à ênfase dada à segunda faceta de nossa identidade política. Quando o sentido de “identidade comum”, presente e necessário à democracia, passa a ser usado como meio de identificar e diferenciar “cidadãos reais” ou “cidadãos de bem” de outros “cidadãos” considerados não dignos de cidadania. Quando isso ocorre, afirma Taylor, “o sentimento democrático começa a trabalhar contra a democracia” (TAYLOR, 2017), o que então pode resultar, como de fato aconteceu, em uma modulação do princípio de “soberania popular” presente na tese republicana. O apelo por identidade, necessário à democracia, pode assumir formas nacionalistas de soberania. E o sentimento de que não se está vivendo aquilo que o “povo soberano” almeja viver, pode – e como de fato ocorreu – destruir a faceta inclusiva de nossa identidade política. É nesse sentido que a exclusão, para Taylor, pode vir a ocorrer em virtude de demandas da própria democracia.
É nesse sentido que Taylor afirma, em Democratic Exclusion (and Its Remedies?), que “o nacionalismo nasceu da democracia, como um crescimento (benigno ou maligno)” (TAYLOR, 1999, p.127). No início do século XIX, na Europa, o sentimento democrático se expressou na luta transnacional pela emancipação dos povos contra o despotismo reinante. Muito do que estava em jogo nesse momento era o imperativo de que todos precisavam ser livres. Mas esse mesmo apelo à democracia também produziu formas jacobinas, nacionalistas e imperialistas de subordinação.
De acordo com a interpretação de Taylor, o nacionalismo representa uma modulação à tese republicana de soberania popular. No nacionalismo, as “leis do povo” não se referem mais apenas à liberdade positiva, ou ao autogoverno, mas sobretudo à identidade cultural. “O que é defendido e realizado no Estado nacional não é apenas a liberdade como ser humano, mas a expressão de uma identidade cultural comum” (TAYLOR,1999, p. 127). Nesse modelo, a exigência de inclusividade, inerente à noção de democracia, é eclipsada pela exigência de uma identidade comum também necessária à democracia.
A interpretação tayloriana de que o nacionalismo se desenvolveu a partir do republicanismo, não significa uma indistinção quanto à interpretação que esses modelos políticos fazem de soberania popular, mas sim que o primeiro pode ser entendido como uma radicalização de um elemento presente no segundo.
Podemos falar, portanto, de uma variante “republicana” e uma variante “nacionalista” do apelo à soberania popular, embora, na prática, os dois muitas vezes corram juntos e muitas vezes se encontrem indistintamente na retórica e no imaginário das sociedades democráticas. (TAYLOR, 1999, p.127)
Tal interpretação nos permite pensar o tipo de “nacionalismo” que se desenvolve em sociedades “originariamente republicanas”, como a americana e a francesa. Sob um aspecto, a exigência de inclusividade da democracia sempre esteve presente na retórica das respectivas revoluções: o objetivo era promover o bem universal da liberdade. Mas, sob outro, a lealdade patriótica pode vir a ser dirigida ao “projeto histórico particular” de realização dessa mesma liberdade universal. Com isso, o próprio universalismo pode tornar-se
a base de um orgulho nacional feroz na “última e melhor esperança para a espécie humana”, na república que era portadora dos “direitos do homem”. É por isso que a liberdade [...] pode se tornar um projeto de conquista. (TAYLOR, 1999, p.128)
Assim, o projeto de conquista particular pode assumir outras formas de subordinação, como o imperialismo e o colonialismo. Foi pela democracia e apesar da democracia que o nacionalismo militarista, as ideologias totalitárias e as formas “modernas” de imperialismo e colonialismo se tornaram – e em alguns lugares ainda são – vigentes. É pela democracia, uma vez que são entendidas como formas ou modulações do princípio republicano de soberania popular; e apesar dela, pois tais interpretações excludentes implicam na depreciação (em casos mais “leves”) ou mesmo na eliminação (nos casos mais graves) da diversidade e da individualidade e, como consequência, na destruição da liberdade e da própria democracia. Para Taylor, a exclusão nessas formas de “democracia” pode assumir três padrões específicos, detalhados a seguir.
Em Democratic Exclusion (and Its Remedies?) (1999), Taylor distingue três circunstâncias nas quais a exclusão ocorreu e pode ainda ocorrer em regimes “democráticos”. O primeiro padrão, o mais grave deles, Taylor chama de “limpeza étnica”, que pode assumir formas distintas: a de uma política assimilacionista imposta ou a de perseguição e eliminação de grupos étnicos específicos, que ameaçam a identidade política dominante. No primeiro caso, o que importa é excluir as diferenças identitárias de grupos minoritários por força da assimilação forçada. Mas, para Taylor, nem todas as formas de limpeza étnica precisam significar a eliminação física. Talvez as formas mais eficazes desse tipo de exclusão sejam a imposição de uma identidade arbitrária e a tentativa de anulação das diferenças. Como afirma Taylor, nesse modelo assimilacionista, “trata-se de dizer: como vocês são, ou se consideram como tal, não tem importância aqui para nós; por isso vamos fazer com que vocês se transformem” (TAYLOR, 1999, p. 131). Outra forma de “limpeza étnica” ocorre em casos em que não é mais possível uma política assimilacionista. A exclusão assume a forma de perseguição, por meio de expulsão ou de extermínio dos grupos étnicos com identidades distintas. Exclusão que ocorre também ao se conferir formalmente um status inferior de cidadania e obrigar grupos étnicos a viverem em um determinado espaço geográfico segregado, como foi o caso do Apartheid na África do Sul. Outro exemplo que o autor apresenta como paradigmático desse padrão de exclusão, é o caso dos hindus contra os muçulmanos na Índia. O autor afirma que antes do período democrático indiano, “hindus e muçulmanos coexistiram em condições de civilidade, e mesmo com um certo grau de sincretismo” (TAYLOR, 1999, p.132), e somente posteriormente, no período democrático, que a minoria muçulmana passou a ser fortemente perseguida.
Um segundo padrão de exclusão ocorre nas chamadas “sociedades democráticas de imigrantes”, em que a exclusão não toma a forma nem de assimilação forçada e nem de perseguição, mas acontece ao conceder um status de cidadania incompleto aos chamados “imigrantes nativos”. Nesse caso, Taylor apresenta como exemplo paradigmático a Alemanha, onde a terceira geração de Gastarbeiter (trabalhadores convidados) turcos, que falam somente o alemão e cujo único lar familiar está localizado em Frankfurt, permanecem sendo considerados como “estrangeiros nativos residentes” em seu status de cidadania (TAYLOR, 1999, p.132). Nesse padrão de exclusão, não existe formalmente uma política assimilacionista imposta, nem eliminação ou perseguição, mas se confere a esses grupos de imigrantes o status permanente de cidadania incompleta. Esse modelo de exclusão, por não caracterizar uma política formalmente estabelecida, é mais sutil e muitas vezes publicamente negado. Mas pode ser facilmente percebido na linguagem adotada para descrever o “problema”. Assim, adota-se uma linguagem que distingue um “nós” de um “eles”, em que “eles” são um permanente “problema” e não parceiros iguais no debate político e público. Taylor também inclui como exemplo desse padrão de exclusão o caso dos “imigrantes nativos” de Quebec (TAYLOR, 1999, p. 133).
O terceiro padrão de exclusão, apontado por Taylor, diz respeito a uma política de padronização do exercício da cidadania, que não está direcionada apenas aos imigrantes ou aos grupos étnicos distintos, mas a toda a sociedade. O caráter distintivo desse modelo de exclusão não é a assimilação cultural de grupos culturais distintos, mas a necessidade de impor uma única fórmula rígida de identidade cidadã a toda a sociedade. Nesse modelo, a exclusão opera sob outro eixo, mas em virtude da mesma exigência democrática: da necessidade de buscar uma maior coesão, um entendimento comum, uma cultura política comum. Nas palavras de Taylor, “as democracias por vezes têm tentado forçar seus cidadãos a um molde único” (TAYLOR, 1999, p.134). No escrito de 1999, Taylor se refere à tradição “jacobina” da República Francesa como exemplo paradigmático desse último padrão de exclusão. Na conferência chilena, Algunas Condiciones para una Democracia Viable (1986), Taylor também apresenta como exemplo, além da tradição “jacobina”, o marxismo, em particular a variante leninista. Segundo o autor, o socialismo marxista-leninista “entende os conflitos sociais como resultado de uma sociedade de classe, que uma vez superada, permitiria uma harmonia fundamental” (TAYLOR, 1986, p. 20). A imposição de uma forma única de exercício de cidadania aos cidadãos seria para o socialismo marxista-leninista um imperativo e, com isso, também a exclusão.
Finalmente, Taylor menciona a exclusão das mulheres da cultura pública dominante. Todas as democracias modernas surgiram em sociedades dominadas por homens, nas quais as mulheres foram e continuam a ser excluídas, também da “cultura política masculina”. Embora aludida no escrito Democratic Exclusion (1999), não fica claro se essa forma de exclusão está diretamente ou indiretamente relacionada aos padrões de exclusões oriundos de modulações do princípio de soberania popular republicano. Taylor menciona o fato de que “sem exceções”, nas democracias modernas, as mulheres receberam de forma tardia e com muito custo o direito ao voto. Esse fato pode ser entendido como emblemático para ilustrar o “perigo” que as mulheres representam à unidade política dominantemente masculina.
No escrito A ética da autenticidade (1991), Taylor observa que existem casos em que o princípio de soberania popular sofre uma modulação e é interpretado não como uma necessidade de formar uma identidade comum, mas como uma necessidade de a elite política formar uma maioria para governar. A força determinante que gera o processo de exclusão nesse caso, não é proveniente da necessidade de se formar uma identidade comum, mas oriunda da necessidade de conservação da elite política dominante. Em casos como esses, os regimes políticos mantêm todas as características formais de uma democracia, como possuir uma constituição e eleições regulares, mas todo esse empenho “democrático” é canalizado para a manutenção das elites no poder. Assim, os grupos não hegemônicos, como mulheres, negros, trabalhadores e pobres, começam a ser vistos como uma ameaça à elite política que, em geral, é composta por homens brancos e ricos. Em A ética da autenticidade (1991), tomando emprestado de Alexis de Tocqueville, Taylor denomina tal modelo “democrático” de despotismo suave (TAYLOR, 1991, p. 32).
No escrito de 1999, a questão fundamental para o autor foi procurar entender como as exigências legítimas, oriundas da necessidade de se formar uma agência coletiva, podem vir a gerar exclusão. Ou melhor, como a exigência de inclusividade, inerente à noção de democracia, pode ser sobrepujada por modulações excludentes do princípio republicano de soberania popular. Taylor não está defendendo que o princípio republicano de soberania popular, legitimador das democracias, necessariamente gera exclusão. Ao contrário, o princípio é originalmente inclusivo: estabelece que todos devem ser incluídos no processo de autogoverno. Mas a necessidade de se gerar um forte sentido de coletividade entre todos os cidadãos, como condição necessária à democracia, pode gerar – como de fato gerou – uma orientação para a exclusão.
Uma forma de tentar superar esse dilema é negar a necessidade de um forte sentido de coletividade para a concretização de uma democracia plena. Assim, argumenta-se que a democracia não necessita que as pessoas se compreendam pertencentes a uma comunidade de propósitos compartilhados, nem precisam de um sentido de identidade comum. Argumenta-se também, que o tipo de ênfase dada pela tradição republicana ao patriotismo seria prejudicial aos propósitos inclusivos das democracias e que, inevitavelmente, geraria exclusão. Taylor considera que essa foi a maneira como os defensores do liberalismo procedimental responderam ao dilema da exclusão democrática presente no republicanismo. O “medo” dos nacionalismos, ou das formas exacerbadas de comunitarismos, fez com que alguns teóricos políticos pudessem conceber a democracia como fundamentada em uma concepção “negativa” de liberdade, entendida como não interferência do Estado nos assuntos dos indivíduos. Taylor considera que, embora tal concepção capte aspectos cruciais das exigências necessárias aos regimes democráticos, o liberalismo procedimental não apresenta uma resposta adequada à questão sobre a viabilidade de uma democracia. Nas páginas seguintes, apresentaremos o entendimento de Taylor acerca dos aspectos gerais dessa tradição de pensamento, bem como suas críticas a ela.
Taylor considera que a interpretação liberal da máxima democrática – do povo, pelo povo, para o povo – “oferece a perspectiva política mais inclusiva da história da humanidade” (TAYLOR, 1999, p. 124). A palavra demos presente no termo democracia aqui deve significar todo mundo, sem restrições. Para defensores do liberalismo, um regime democrático necessariamente deve incluir imigrantes, camponeses, mulheres, descendentes de imigrantes nativos ou de antigos escravizados, pessoas com necessidades físicas específicas ou com necessidades materiais de sobrevivência, pessoas de todos os credos e religiões, em suma, todos. Sob esse aspecto, a noção de democracia liberal não pode ser compreendida de maneira descolada da noção de inclusão. Mas sobre quais bases é possível instituir um modelo político não excludente?
Em uma das formulações clássicas do liberalismo, defendida por John Locke, os indivíduos possuem, por natureza, o direito incondicional à vida, à saúde, à liberdade e à posse da propriedade (LOCKE, 1689, p.83). Uma sociedade justa é aquela em que os indivíduos exercem seus direitos naturais “sem interferência” de outros, nem do Estado. O Estado apenas estaria legitimamente apto a agir nos casos em que houver violação desses direitos por parte de algum de seus membros ou quando for preciso arbitrar em virtude de algum conflito de interesses. Nesse modelo de sociedade, então, os indivíduos estariam livres para cuidar de seus interesses pessoais com o mínimo de interferência por parte do Estado. Robert Nozick em Anarquia, Estado e Utopia (1974), uma das defesas certamente mais radicais do liberalismo, endossa uma versão do princípio de “não interferência do Estado”. Nas primeiras páginas de sua obra, Nozick afirma que seu pensamento deve ser entendido como uma defesa incondicional à dignidade humana e à liberdade individual. Tal como em Locke, sua argumentação se baseia nos “direitos individuais invioláveis” (NOZICK, 1974, p.9). Resguardadas as diferenças aos autores citados, John Rawls em Uma Teoria da Justiça (1971) afirma: “[...] numa sociedade justa as liberdades de cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais” (RAWLS, 1971 p.4).[6]
Embora existam diferenças cruciais entre os modelos de liberalismo defendidos pelos autores supracitados, a liberdade individual é entendida como o princípio central da concepção liberal de democracia e qualquer violação desse princípio deve ser rejeitada. Apenas assim, à base da liberdade individual, é possível instituir uma sociedade maximamente inclusiva. Os planos de vida individuais de seus membros, bem como suas concepções de bens particulares, desde que razoáveis, não podem sofrer qualquer interferência por parte do Estado. Nas sociedades contemporâneas, marcadas por concepções diversas de vida boa, qualquer posição por parte do Estado em relação a alguma dessas concepções, significaria uma violação ao princípio de liberdade individual, bem como ao imperativo de inclusividade. Um Estado de todos e para todos, uma democracia, se não quiser ser excludente, não pode promover, privilegiar, facilitar, incentivar, ou mesmo atrapalhar, taxar ou coibir alguma concepção de vida boa em favor ou em detrimento de outras. O requisito basilar de uma democracia liberal é, então, o de que todos os modos de vida, desde que razoáveis, devem ser admitidos como bons.
Sob a perspectiva do liberalismo de tipo procedimental, somente a não interferência do Estado, no que diz respeito às diversas concepções éticas, filosóficas e religiosas existentes nas sociedades contemporâneas, tornaria o Estado inclusivo e democrático. Como as sociedades contemporâneas são marcadas por um desacordo razoável em relação às concepções de vida boa, uma democracia deve ser caracterizada pela neutralidade e publicidade de seus procedimentos. Apenas dessa forma é possível arbitrar entre as diversas reivindicações concorrentes entre indivíduos e grupos (RAWLS, 1971 p.78). Quando for necessário ao Estado arbitrar, seu exercício apenas poderá ser considerado legítimo quando for possível justificá-lo publicamente, isto é, para todos.
Portanto, em uma democracia liberal, não pode haver uma “concepção socialmente endossada do bem”. No artigo Propósitos entrelaçados: O debate liberal-comunitário (1987), Taylor afirma que, para os defensores desse modelo de liberalismo, “uma sociedade liberal não deveria se fundar em nenhuma noção particular de vida boa. A ética central a uma sociedade liberal é antes uma ética do direito do que do bem”. (TAYLOR, 1987, p. 202-203). Essa perspectiva, para Taylor, fornece ao liberalismo seu caráter distintivamente procedimental. Como não é possível endossar qualquer concepção substantiva de vida boa, então o procedimento, neutro e público, das ações do Estado deve ser entendido como necessário à garantia da justiça. Uma democracia plenamente inclusiva e justa necessita de uma concepção pública de justiça, comum a todos, como base para a ação do Estado.
Mas o liberalismo procedimental, para Taylor, apresenta uma boa resposta quanto às exigências inerentes à uma democracia contemporânea viável? Por um lado, sim. Por outro, não. Taylor considera que o liberalismo procedimental capta um aspecto importante dessas exigências: a de lidar de forma inclusiva com o pluralismo de valores existentes nas sociedades contemporâneas (TAYLOR, 1986, p. 15). Qualquer democracia, se quiser ser efetivamente democrática, precisa incorporar a defesa da diversidade de valores como um de seus princípios basilares. No entanto, para Taylor, a resposta que os defensores do liberalismo procedimental oferecem ao problema da exclusão, presente na “tese republicana” de democracia, não é capaz de cobrir outros problemas igualmente corrosivos à democracia: a fragmentação política e a alienação dos indivíduos quanto aos procedimentos políticos (TAYLOR, 1986, p. 19). Os motivos pelos quais Taylor considera tal resposta insatisfatória, em especial quanto ao problema da alienação cidadã, é o que vamos expor a seguir.
Para melhor entendermos o que está envolvido na recusa de Taylor ao liberalismo de tipo procedimental, gostaríamos de partir de uma nova questão: uma teoria política que exclua toda e qualquer concepção de vida boa socialmente endossada, apresenta as características necessárias a uma democracia viável? O que está em jogo aqui é que, em nome da defesa da diversidade de valores e da incondicionalidade da liberdade individual, o liberalismo procedimental se posiciona contrário à necessidade de endossar alguma concepção de vida boa, mesmo que coletivamente reconhecida. Essa posição, segundo Taylor, “indubitavelmente”, geraria “o fenômeno da alienação cidadã” (TAYLOR, 1986, p. 19). Mas por quais motivos o modelo político defendido pelo liberalismo procedimental engendraria alienação? A resposta a essa questão passa pela crítica de Taylor ao procedimentalismo no campo político.
A crítica de Taylor às teorias políticas procedimentais está diretamente ligada aos aspectos ontológicos envolvidos em tais teorias.[7] Assim, o “erro” de tal posicionamento não seria concernente à defesa de determinados aspectos políticos (como a defesa de inclusividade e liberdade individual), mas à omissão, ou mesmo à má compreensão de seus aspectos ontológicos. Para Taylor, as teorias políticas procedimentais não compreendem ou omitem “a natureza exata das relações que são estabelecidas entre os membros de um regime democrático” (TAYLOR, 1986, p.15). Dessa forma, Taylor não direciona suas críticas às teorias políticas procedimentais específicas, como a de Rawls ou Nozick, mas ao elemento comum que o autor considera existir entre os autores da tradição liberal: o caráter atomista ao compreender o humano e suas relações sociais.[8]
Embora em seu artigo Atomism (1979) Taylor direcione suas críticas à posição de Nozick, em Anarquia, Estado e Utopia (1974) seu cerne é mais amplo: é uma crítica à ontologia do humano que fornece o suporte às teorias políticas liberais defendendo a primazia do direito sobre as concepções de bem. Nas palavras de Taylor, “o atomismo representa uma visão sobre a natureza humana e a condição humana que (entre outras coisas) torna plausível uma doutrina da primazia dos direitos” (TAYLOR, 1979, p. 189). Em uma posição atomista, o indivíduo humano é concebido como o suporte ontológico de um “sistema de direitos e liberdades”. O pressuposto aqui é que todo o humano, enquanto agente moral e político, possui uma série de características comuns, anteriores ao contexto social em que se está inserido. Essa anterioridade confere à teoria política liberal o suporte e a garantia de que os procedimentos adotados pelo Estado não estejam comprometidos com alguma concepção particular de vida boa, nem a algum grupo em particular (como as elites).
Com isso, o liberalismo de tipo procedimental, ao defender a primazia dos direitos, atribui um status incondicional “a certos direitos individuais”, como o de liberdade, mas “nega o mesmo status a um princípio de pertencimento ou obrigação” (TAYLOR, 1979, p. 188). Para Taylor, os defensores do liberalismo procedimental consideram a obrigação de se pertencer a algum grupo ou a obrigação de sustentar uma sociedade “bem-ordenada” como algo derivado. Isto é, as obrigações concernentes à manutenção do devido funcionamento de uma sociedade liberal estão condicionadas aos interesses dos indivíduos. Isso significa que os indivíduos somente teriam a obrigação de defender os interesses coletivos quando tais interesses forem convergentes aos seus interesses individuais. Assim, os indivíduos podem, por exemplo, vir a querer possuir a obrigação de preservar um regime democrático e, para isso, podem chegar a “firmar” um contrato com o Estado, porque tal regime se apresenta vantajoso em longo prazo. Mas os direitos do indivíduo não são derivados ou condicionados à manutenção de um Estado democrático, eles são incondicionais. Isto é, mesmo que os indivíduos vivessem como súditos em um regime político autoritário, eles ainda possuiriam potencialmente esses direitos.
Em uma sociedade pensada nesses termos, os indivíduos estariam, primeiramente, interessados em seus fins particulares e, posteriormente, quando forem convergentes aos seus interesses particulares, se voltariam aos fins comuns. Segundo Taylor, o problema é que, para o liberalismo procedimental, ao conceber os indivíduos como anteriores à sociedade, os consideram não somente como atômicos, mas também como autossuficientes. Com isso, o vínculo entre indivíduo e sociedade é pensado de forma puramente instrumental, a partir do auto interesse, o que gera “o indubitável fenômeno da alienação cidadã”. Nas palavras do autor, o problema é que as
[...] pessoas podem viver em sua própria sociedade democrática desta maneira individualista e distante apenas porque ainda existe um grande reservatório de identificação geral com a sociedade e suas leis. Se todos os cidadãos adotassem esta atitude, a sociedade estaria ameaçada e com sérios perigos. (TAYLOR, 1986, p.19)
Para Taylor, o problema da alienação não surge apenas porque o liberalismo procedimental, ao conceber o indivíduo como o locus do direito e anterior à sociedade, ignora a necessidade de pertencimento em uma comunidade na qual esses direitos são e precisam ser defendidos. Mas, sobretudo, porque existe uma defesa valorativa implícita de um tipo de sociedade e de indivíduo ideal. Um indivíduo ideal deve ser entendido como um agente desprendido, autônomo, livre de compromissos alheios. Um indivíduo que seja capaz de construir a si mesmo e seu próprio destino sem interferência externa, capaz de escolher o que é bom para si a partir de si mesmo. Já uma sociedade ideal, seria aquela em que todos podem seguir seus planos de vida individuas de forma autônoma, que garanta o mínimo de interferência externa. Uma sociedade que forneça as garantias para que seus membros não sejam pressionados a agir dessa ou daquela forma e cujos acordos entre eles possam ser tomados conforme a máxima liberdade de cada um dos envolvidos.
A alienação cidadã, segundo Taylor, é consequência do ideal de sociedade e de indivíduo atomizados e implicitamente defendidos por um modelo político liberal procedimentalista. Uma sociedade cujos indivíduos estão altamente centrados em questões particulares, perde-se o controle de suas próprias decisões políticas (TAYLOR, 1991, p.19). O diagnóstico de Taylor, em A Ética da Autenticidade (1991), é que o liberalismo de tipo procedimental, em virtude da consequente perda de controle político, não promove a liberdade, mas, a perda dela. Quando os cidadãos renunciam à vida cidadã, em nome de seus interesses particulares, o modelo político que se estabelece não é o liberalismo procedimental, mas o “despotismo suave”. Isto é, um Estado que mantém toda a estrutura formal de um “Estado de Direitos”, mas cujo esforço político é a promoção e facilitação dos interesses particulares de uma elite política.[9] Existe aqui uma dupla consequência: o Estado não interfere na vida dos indivíduos, e, por sua vez, os indivíduos não interferem na vida do Estado. Logo, perde-se a própria democracia.
Taylor defende que existe um nexo estreito entre democracia e comunidade, sem o qual, inevitavelmente, engendra-se a alienação e a fragmentação política (TAYLOR, 1991, p. 117). Para o autor, mesmo em uma sociedade cujos valores da individualidade e da liberdade fossem comumente aceitos, “haveria pelo menos um bem comum firmemente estabelecido: a existência do próprio Estado e de suas leis” (TAYLOR, 1986, p.19). A defesa de Taylor é que “uma democracia não poderia funcionar se todos os objetivos fossem puramente individuais”. E mais: esses fins comuns não podem ser entendidos como uma “convergência de diferentes fins individuais”. É preciso mais. Os cidadãos de uma democracia precisam de um forte senso de pertencimento e participação em uma comunidade para sustentarem, não só para si mesmos, como também para as futuras gerações, a própria democracia. Por isso, Taylor considera ser incoerente afirmar a incondicionalidade dos direitos individuais, como valores fortes, sem ao mesmo tempo afirmar a necessidade de se pertencer a uma comunidade em que esses valores sejam fortes o bastante para que, em comunidade, se lute e se sacrifique em nome deles.
É importante destacar que a defesa de Taylor por uma democracia inclusiva e participativa já envolve uma posição sua quanto ao que constitui uma vida boa. Com isso em mente, gostaria de apresentar, no que se segue, algumas considerações sobre a constituição de uma democracia viável a partir da filosofia de Taylor.
Como vimos, Taylor considera que algumas modulações do princípio republicano de soberania popular, produz exclusão e põe em risco a própria democracia e a diversidade. Contudo, o autor também sustenta que o sentimento de participar de uma comunidade mais ampla, de compartilhar propósitos comuns, é igualmente essencial à democracia. Em seu segundo livro, em 1970, The Pattern of Politics, Taylor avalia que o sentimento de pertencimento em uma comunidade é fundamental à democracia (TAYLOR, 1970, p.97). A participação nos procedimentos democráticos, decisivos à vida em comum, requer a existência de um forte sentido de comunidade, sem o qual, a democracia corre perigo. Esse diagnóstico é o mesmo, cinquenta anos depois em Reconstructing Democracy (2020), quando o autor afirma que a reconstrução da democracia passa pela recuperação do sentido de comunidade (TAYLOR, 2020, p.6).
Como também vimos, a defesa da inclusividade, presente no modelo liberal de democracia, é defendida por Taylor como um elemento crucial para uma democracia viável. A inclusividade é entendida como extensiva ao princípio da dignidade humana, indispensável ao pleno reconhecimento das diferenças (TAYLOR, 1992, p. 242), bem como à defesa da igualdade e da não discriminação (TAYLOR, 2017). Contudo, o autor também salienta que um modelo político centrado no indivíduo ou que aspire neutralidade em relação aos seus procedimentos, defendida por algumas formas de liberalismo, embora possa expressar a necessidade de inclusividade, pode gerar fragmentação e alienação em relação aos elementos comuns de nossa identidade política (TAYLOR, 2020, p. 67).
A questão é: como é possível promover um sentido de identidade comum sem, com isso, gerar exclusão? Ou: como é possível um modelo maximamente inclusivo sem, com isso, gerar fragmentação e alienação? Ou melhor: como preservar o cerne da “tese republicana” de democracia, a qual defende existir um vínculo entre participação e liberdade e, ao mesmo tempo, conservar o imperativo de inclusividade, presente na formulação liberal de democracia?
A resposta a essa questão, para Taylor, possui dois níveis: um nível ontológico e o nível da defesa.[10] Por um lado, é preciso estabelecer uma compreensão ontológica do humano e suas relações interpessoais de forma mais rica. Com essa posição, Taylor considera ser preciso, em um primeiro momento, reconduzir a discussão política a um nível mais fundamental. Sob a perspectiva ontológica, a constituição da identidade política de um agente não pode ser pensada em termos monológicos. A noção de identidade, considerada como o elemento que constitui significado a nós mesmos e às nossas ações, deve ser pensada a partir de uma estrutura dialógica. Em The Dialogical Self (1989), Taylor afirma que
[...] nossa identidade nunca é simplesmente definida em termos de nossas propriedades individuais. Isso também nos coloca em algum espaço social. Definimo-nos em parte em termos do que viemos a aceitar como nosso lugar adequado dentro das ações dialógicas (TAYLOR, 1989b, p.307)[11]
Em outros momentos e em consonância com essa compreensão dialógica do humano, Taylor afirma que nós, invariavelmente, existimos em “redes de interlocução” (TAYLOR, 1989a, p.55) com “outros significativos” (TAYLOR, 1992, p. 246), em relação às quais nunca podemos escapar completamente. Essa “rede de interlocução” com “outros significativos” deve ser pensada como necessária à autorrealização individual. Sob tal aspecto, não é possível pensar o indivíduo como anterior à sociedade, mas desde sempre nela e a partir dela.
Outro aspecto importante, para Taylor, ignorado pela perspectiva monológica, é que qualquer dos significados que as coisas, que nós mesmos e que os outros possam vir a ter, apenas configuram sentido em virtude de um background significativo historicamente herdado (TAYLOR, 1989b, p.307).[12] Um horizonte de sentido, através do qual as identidades, as nossas ou de outros podem, em determinados contextos, assumir respectivos significados.
Com isso, Taylor formula uma compreensão na qual a comunidade, entendida como uma “rede de interlocução” é o locus das experiências significativas humanas. Tal compreensão impossibilita, assim, pensar o humano com características ontológicas incondicionais defendidas por alguns liberais, como é no caso do princípio de liberdade pessoal. Mas não se segue disso uma recusa ao princípio da liberdade individual como um valor necessário à vida em sociedade. Se a liberdade pessoal se apresenta hoje como um valor forte na maior parte das sociedades ocidentais, isso se deve ao horizonte de valor que historicamente herdamos e, em razão dos quais, julgamos. Tanto nas lutas pela democracia, travadas contra as antigas monarquias, quanto nos movimentos políticos internos às atuais democracias, a defesa da liberdade pessoal ocupa um lugar imprescindível. Nesse sentido, qualquer discussão sobre a viabilidade de uma democracia hoje passa necessariamente pela afirmação da liberdade pessoal. O mesmo se deve afirmar em relação ao Estado de Direito. Um sistema de direitos e liberdades é uma conquista democrática cujo valor se manifesta imprescindível para qualquer defensor da democracia. Nas palavras de Taylor:
Reciprocamente, a liberdade pessoal e o Estado de direito são claramente condições da verdadeira democracia, ou seja, de um regime no qual as pessoas podem se mobilizar independentemente do poder, seja para mudá-lo ou para determinar suas políticas. (TAYLOR, 1986, p.14)
Mas ao afirmar isso, o autor já nos coloca diante de questões de defesa. É claro que uma ontologia do agente humano socialmente enraizado, não está necessariamente comprometida com a defesa da democracia e da inclusividade. Poderíamos elencar inúmeros exemplos em que a compreensão enraizada do humano, como devendo prestar lealdade a um povo, foi altamente nefasta à democracia. Mas também não é preciso defender uma ontologia do indivíduo como desenraizado, bem como defender a existência de “direitos incondicionais”, para defender a democracia e a inclusividade. Isso é uma questão ontológica e não de defesa. Para Taylor, pensar adequadamente sobre as exigências de uma democracia viável é compreender os valores que a constituem como vinculados a uma forma de vida, historicamente enraizada. Tais valores devem ser entendidos como fortes, como constitutivos da identidade comum aos seus membros. Valores que, coletivamente, os indivíduos estão dispostos a defender e a manter, pagando, para isso, qualquer eventual ônus.
Com isso, a “inclusão democrática” precisa ser entendida como inclusão em uma forma de vida cujo valor da inclusividade esteja ligado ao seu sentido de identidade comum. O valor da inclusividade deve ser parte da identidade comum dos agentes. Somente assim, compreende Taylor, seria possível conciliar a necessidade de se construir uma identidade comum, imprescindível à manutenção de um regime democrático, com o imperativo da inclusividade. Isto é, conciliar a necessidade de formar uma identidade coletiva, uma agência comumente compartilhada, com a exigência de inclusão de todos os que reivindicam cidadania (TAYLOR, 1999, p.138).
Contudo, afirmar a necessidade de se pensar a inclusividade como um valor que constitui a identidade comum, não é capaz, por si só, de resolver o dilema da exclusão nas sociedades democráticas. O dilema não está presente apenas em virtude da necessidade de constituição de uma identidade coletiva, mas principalmente na forma como esta é comumente constituída.
O dilema, afinal, surge porque algumas definições identitárias historicamente consagradas não podem acomodar todos os que têm uma reivindicação justa de cidadania. E, no entanto, a reação é, com bastante frequência, tornar esta identidade original ainda mais absoluta e incontestável, como se de alguma forma ela pertencesse essencialmente a um certo povo com seu território e sua história, e que ela apenas pode ser organizada sob esta e nenhuma outra identidade. (TAYLOR, 1999, p. 138)
Para Taylor, o problema da exclusão ocorre ao estabelecer o passado como o único locus possível para constituição de uma identidade comum. Esse “apelo às origens”, segundo o autor, pode se manifestar tanto em registros “republicanos” quanto “nacionalistas” de democracia. O caso francês é, mais uma vez, paradigmático quanto a isso. O princípio de laïcité não é entendido como uma regra geral de neutralidade do Estado, mas “está metafisicamente fundido com uma forma historicamente particular de realizá-lo” (TAYLOR, 1999, p.139). Assim, é possível observar um tipo de “fundamentalismo jacobino” na França em reação a certas exigências para assimilar a crescente minoria muçulmana, como a proibição do uso do “hijab” nas escolas. Muito dos esforços para a dissolução desse dilema na França tem sido o de recuperar o passado sob outros termos: afirmar que o sentido da “Declaração original” era o de superação da exclusão e não o contrário. Mas essa solução “mais simples”, de recuperação do sentido existente em um “acordo originário perfeito”, impõe, mais uma vez, obstáculos. Tal “solução”, para Taylor, não leva em consideração que as identidades mudam ao longo do tempo. Essa solução está firmada em um tipo de fundamentalismo que nega as mudanças históricas (TAYLOR, 1999, p.140).
Se observarmos os registros nacionalistas, a exclusão em virtude da defesa de uma identidade perdida no passado, mas que deve ser a todo custo recuperada, é ainda mais forte. Nesse caso, o problema da exclusão ocorre ao firmar
[...] que um determinado território pertence por direito a uma certa identidade histórica, étnica, cultural, linguística ou religiosa, independentemente de quem mais esteja vivendo lá, mesmo que já esteja lá há séculos (TAYLOR, 1999, p.140).
Contudo, para Taylor, em parte, a maneira como o liberalismo procedimental tenta solucionar o problema da exclusão é pondo a culpa nos “nacionalismos” tout court, o que impossibilitaria pensar formas mais inclusivas de viver as identidades nacionais. Para Taylor, o maior exemplo de “solução mais criativa” do problema da exclusão é a forma que Herder compreendeu a noção de Volk. Para Taylor, Herder defende que
[...] é possível reconhecer diferentes identidades “nacionais” (Volk), e até mesmo dar-lhes expressão política, uma vez que cada um neste ato de reconhecimento aceita que não é universal, e que necessita conviver com outros que são igualmente companheiros legítimos. O nacionalismo herderiano é uma ideia universalista, todos os Volker são igualmente dignos de respeito. (TAYLOR, 1999, p.140)
É importante observar que o contexto histórico no qual Herder escreveu, do início do XIX, foi marcado pelas invasões francesas na Alemanha, em particular, e na Europa como um todo. A defesa herderiana da cultura alemã deve ser lida em oposição às reivindicações hegemônicas dos franceses. Para Taylor, o que Herder defende é que:
Não é preciso aceitar o francês como língua universal para viver em liberdade com direitos garantidos. A identidade política sob a qual você vive pode expressar você também. Esta exigência permite uma justificação impecavelmente democrática. (TAYLOR, 1999, p.140)
Essa ideia herderiana, para Taylor, é a chave da solução do dilema da exclusão democrática sem incorrer no problema da fragmentação política e da alienação cidadã. Contudo, em sociedades cada vez mais plurais, essa posição tem se tornado cada vez mais difícil e a solução “liberal”, a de pensar um conjunto de direitos como incondicionais, parecerá, nesse cenário, uma solução mais viável. Mas mesmo assim, Taylor considera a construção de uma identidade compartilhada uma aposta viável e mais compatível com as exigências democráticas.
Sob este aspecto, para o autor, uma democracia necessita de um espaço de compartilhamento de identidade.
As identidades políticas têm que ser trabalhadas, negociadas, e o credo ativamente comprometido entre povos que têm que ou querem viver juntos sob o mesmo teto político (e esta coexistência é sempre fundamentada em alguma mistura de necessidade e escolha). Além disso, estas soluções nunca devem durar para sempre, mas devem ser descobertas ou reinventadas pelas gerações seguintes (TAYLOR, 1999, p.140).
Na conferência Democratic Degeneration: Three Easy Paths to Regression (2018), Taylor reforça o caráter de “teleológico” presente na ideia de um “espaço de compartilhamento de identidade”. Ele afirma que a noção de democracia precisa ser entendida como télica (TAYLOR, 2018). A identidade política deve ser sempre teleológica, um projeto, uma busca, que precisa sempre ser renovada. A identidade política não pode estar vinculada a um passado originário perdido no tempo, em uma ideia de identidade cultural completa e acabada. Ao contrário, a identidade política deve ser construída através de um “espaço” de discussão e da constituição de “propósitos comuns”, que nunca são totalmente realizáveis, mas pelos quais todos precisam se empenhar. O desafio democrático é sempre criar novos laços de identidade e pertencimento, tanto no diálogo intercultural como intergeracional, através de um “espaço público”, sempre aberto, para constituição de propósitos comuns. Nesse sentido, Taylor considera ser a tese republicana, que afirma a necessidade de um vínculo patriótico, uma condição necessária à democracia viável, mas avalia que um patriotismo orientado para o futuro é mais adequado às condições contemporâneas do que o modelo clássico republicano.
Em Democratic Exclusion (and Its Remedies?) (1999), Taylor admite que não é capaz de abarcar todos os aspectos que, na prática, seriam necessários para a viabilidade desse “espaço de compartilhamento de identidade”. Taylor considera possuir algumas pistas para a construção desse espaço na sociedade canadense. Mas também considera que os aspectos práticos para sua construção devem ser discutidos pelos próprios cidadãos e em conformidade com as reivindicações legítimas de cidadania dos grupos que precisam e querem viver juntos. Assim, Taylor afirma não existir uma “regra geral” para constituição desse espaço. Os aspectos que envolvem a constituição de “espaços compartilhados de identidade” precisam ser trabalhados e negociados em seus próprios contextos particulares e mutáveis. Qualquer tentativa de resolução do problema da identidade política em definitivo significa incorrer, novamente, no erro de pôr em risco a própria democracia.
Contudo, é difícil compreender a formação da identidade política a partir desses termos sem pressupor a existência de um comum, antes do espaço de constituição de propósitos comuns. Parece que Taylor pressupõe que todos precisam estar dispostos a dialogar e abertos às mudanças. Contudo, para chegar a esse ponto, é necessário já ter superado muitas divergências políticas. Talvez a construção desse “ambiente” seja o elemento mais difícil, dado o pluralismo de nossas sociedades. Mas acreditamos ser exatamente essa a defesa de Taylor: um regime democrático que se entende como expressão de um modo de vida historicamente enraizado, mas cuja lealdade patriótica não está estabelecida a partir de uma identidade cristalizada no passado, e sim sempre aberta à discussão.
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Recebido: 23/09/2021 Received: 23/09/2021
Aprovado: 14/07/2022 Approved: 14/07/2022
[1] Declaração dada pelo então candidato Jair Bolsonaro à Rádio Jornal de Barretos, quando perguntado qual seria o objetivo de seu governo (GIELOW; FERNANDES, 2018).
[2] A publicação original de 1999 não apresenta grifo, que foi introduzido pelo autor somente na edição de 2011. Aqui, seguiremos a paginação referente a esta última edição.
[3] Embora publicado somente em 2012, trata-se de uma conferência ministrada por Taylor em 1986, durante a ditadura chilena, que teve fim em 1990.
[4] Com isso, não levaremos em conta no presente artigo a ampla gama de escritos e pensadores que tematizam os problemas que envolvem a sobrevivência da democracia contemporânea, nem como esses textos e pensadores tratam de forma bem mais ampla o que é democracia e as dificuldades enfrentadas pela mesma nos últimos tempos. Tais abordagens podem ser encontradas, por exemplo, em: LEVITSKY e ZIBLATT (2018); CASTELLS (2018) e GEISELBERGER (2019).
[5] Cabe ressaltar que, embora o tema do patriotismo seja analisado no presente artigo, mais especificamente, a partir de estritos de Taylor das décadas de 80 e 90, o tema ainda encontra alguma relevância em escritos mais recentes do autor. (Cf. TAYLOR, 2012, 2017, 2018). Contudo, é preciso também salientar que, em suas publicações mais recentes, o autor não trata diretamente do tema do patriotismo e seu desenvolvimento ocupa cada vez menos centralidade em sua obra. Tal atitude, no entanto, não indica uma mudança em relação à importância da noção de patriotismo, mas apenas que o autor redirecionou seus esforços à outras preocupações. Os escritos Democratic Exclusions: Political Identity and the Problem of Secularism (2017) e Democratic Degeneration: Three Easy Paths to Regression (2018) indicam que Taylor ainda considera o patriotismo um elemento importante, embora não mais central como nas décadas anteriores. Por essa razão, nossa análise no presente artigo se deterá mais especificamente quanto ao papel da noção de patriotismo nos escritos das décadas de 80 e 90 e não buscaremos dar uma resposta aqui quanto à sua função nos escritos mais recentes.
[6] É preciso destacar que não pretendemos afirmar que em Locke, Nozick e Rawls se encontram “o mesmo” individualismo metodológico, mas que nesses autores é possível encontrar expressões da defesa de um modelo de democracias pautado no princípio da inviolabilidade da pessoa humana e na não interferência estatal, mesmo que de formas significativamente distintas.
[7] Não conseguiremos abordar aqui todos os aspectos envolvidos na crítica de Taylor ao procedimentalismo. Tal crítica está diretamente ligada à antropologia filosófica e à concepção metodológica das ciências humanas da filosofia de Taylor. Cf. TAYLOR, Charles. “The Motivation Behind a Procedural Ethics” (1993).
[8] Em The Motivation Behind a Procedural Ethics, Taylor faz uma ressalva quanto à posição de Habermas nesse quadro. Pois, embora Habermas defenda uma posição procedimentalista, esta não se trata de uma visão atomista de humano. Também é preciso fazer uma ressalva quanto à mudança de posição de Rawls em Liberalismo Político (1992), que Taylor não se preocupa em fazer. Nessa obra, diferentemente de Uma Teoria da Justiça (1971), Rawls parece não apresentar uma concepção de sujeito desenraizado e autointeressado como base de uma sociedade bem-ordenada. Ao contrário, ele sustenta sua teoria da justiça como equidade em “convicções consolidadas como a crença na tolerância religiosa e a recusa da escravidão”. É a partir desses valores que Rawls organiza “as ideias e princípios básicos implícitos nessas convicções numa concepção coerente de justiça” (RAWLS, 1992, p. 31). Taylor aparentemente ignora esse aspecto relevante em relação à obra de Rawls, sobretudo em seu desenvolvimento em Liberalismo Político (1992). Por isso, as críticas de Taylor são mais apropriadas ao tipo de liberalismo defendido por Nozick, do que os defendidos por Rawls e Habermas. Sobre as proximidades entre o pensamento de Rawls e Taylor cf. SILVEIRA (2007).
[9] Embora não consigamos tratar nesse escrito, é possível observar a conexão existente entre alienação cidadã, não reconhecimento das diferenças e exclusão, uma vez que nesse “Estado de Direitos” realizado pelo “despotismo suave” promove efetivamente, através de uma linguagem pretensamente neutra, uma “cegueira” em relação às diferenças e, como consequência, mais uma vez promove a exclusão. Sobre tal temática cf. TAYLOR. A Ética da Autenticidade (1991); também cf. A política do Reconhecimento (1992).
[10] Essa distinção entre o nível “ontológico” e o nível da “defesa”, no âmbito político, foi desenvolvida por Taylor em Propósitos entrelaçados: o debate liberal-comunitário (1987).
[11] Tal escrito trata-se de uma comunicação apresentada em um encontro da American Anthropological Association, em Washington, novembro de 1989.
[12] Nesse escrito Taylor utiliza a noção de background significativo, mas em outros escritos, como As Fontes do Self, ele faz uso de horizonte significativo.