ÉTICA E COVID-19: DAS RECOMENDAÇÕES SANITÁRIAS AOS DEVERES MORAIS[1]

ETHICS AND COVID-19: FROM HEALTH RECOMMENDATIONS TO MORAL DUTIES


Thiago Delaíde da Silva

0000-0003-0396-6292

thiago.del@gmail.com

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos

 

Recebido: 16/10/2021

Received: 16/10/2021

 

Aprovado: 01/03/2022

Approved: 01/03/2022

 

Publicado: 16/03/2023

Published: 16/03/2023

 

RESUMO

O presente ensaio visa investigar se temos obrigação moral de seguir as recomendações sanitárias no contexto da pandemia da COVID-19. Para tal, procuro levantar essa discussão a partir da deontologia kantiana, do utilitarismo e da ética baseada em direitos, indagando se as recomendações sanitárias relativas à pandemia devem ser genericamente interpretadas como deveres morais. O texto ainda discute algumas possíveis objeções em tomar as recomendações sanitárias como deveres morais e procura refletir sobre como podemos responder a elas. O texto conclui defendendo que, mediante às teorias morais apresentadas, há razões para sustentar que temos dever moral de seguir as recomendações sanitárias perante o cenário da pandemia da COVID-19.

Palavras-chave: Ética. Pandemia. COVID-19. Recomendações sanitárias. Deveres morais.

ABSTRACT

This essay aims to investigate whether we have a moral obligation to follow health recommendations in the context of the COVID-19 pandemic. To this end, I try to raise this discussion from Kantian deontology, utilitarianism and ethics based on rights, asking whether the health recommendations related to the pandemic should be generically interpreted as moral duties. The text also discusses some possible objections to taking health recommendations as moral duties and seeks to reflect about how we can respond to them. The text concludes by defending that, through the moral theories presented, there are reasons to sustain that we have a moral duty to follow the health recommendations in the face of the COVID-19 pandemic scenario.

Keywords: Ethic. Pandemic. COVID-19. Health recommendations. Moral duties.


INTRODUÇÃO

Desde o início da pandemia da COVID-19, no início de 2020, inúmeras questões éticas se colocaram: devo ficar em casa e me isolar do resto das pessoas? Devo usar máscara mesmo se não sou do grupo de risco da COVID-19? Tenho o direito de exigir dos outros que se cuidem? Tenho o direito de exigir algum tipo de auxílio financeiro para o governo se não posso sair para trabalhar? Lockdown viola algum direito, como a liberdade? Liberdade é compatível com o cuidado do outro? É aceitável que algumas pessoas morram todos os dias para a vida seguir com um estranho aspecto de “normalidade”? É moralmente aceitável deixarmos um vírus altamente infeccioso circular entre as pessoas, mesmo sabendo das consequências desastrosas que o contágio pode causar na sociedade, especialmente entre os mais vulneráveis? Não teríamos nós a obrigação de seguir à risca as recomendações sanitárias para barrar o contágio e controlar a pandemia? Tenho um dever moral de tomar vacina ou em nome da liberdade individual posso optar em não tomar? E até mesmo: Por que eu deveria me importar com a vida de pessoas estranhas?

Essas e um número sem fim de questões éticas podem ser colocadas diante do cenário pandêmico que vivemos[2]. Não é à toa que a pandemia tem feito pessoas de diversas áreas pensarem nos problemas diretos e indiretos causados pela disseminação do SARS-CoV-2 pelo mundo e por todas as coisas que se somam dia após dia. Filósofos também têm se interessado em discutir não apenas questões filosóficas no âmbito da ética, mas também da epistemologia, da filosofia política, da filosofia do direito etc. Mas certamente as interrogações morais são aquelas que nos saltam os olhos de maneira mais clara e mais imediata. Apesar da pandemia ter uma causa concreta e biológica – um vírus –, ele se torna um problema sério por conta do nosso modo de vida humano. No fundo toda e qualquer medida que tomamos para combater a pandemia passa necessariamente por decisões no campo da ética. É claro que há um emaranhado de questões políticas, jurídicas junto das recomendações sanitárias, sem falar no tensionamento com a ordem econômica. Todavia em todas essas disputas há de fundo uma questão moral simples, mas absolutamente difícil de responder: o que devemos fazer?

A pergunta “o que devemos fazer?” é antiga. Na filosofia, a ética está longe de ser um consenso. Há séculos os filósofos desenvolvem teorias e argumentos para justificar e explicar nossos juízos morais e orientar o modo como devemos agir. Não seria possível resumir aqui todas as posições filosóficas acerca da ética, mas certamente é útil tomar essas visões antagônicas para termos uma ideia do que seria a nossa responsabilidade moral diante da pandemia. Podemos voltar aos gregos se quisermos, mas não precisamos ir tão longe. Tomarei aqui três formas de abordar a ética, a saber, a partir dos deveres, da utilidade e dos direitos.

       Mas antes de prosseguir, permita-me colocar o problema do seguinte modo: temos obrigação moral de seguir as recomendações sanitárias/científicas para combater a pandemia da COVID-19? Antes de tentar responder, faço a ressalva de que existem questões diferentes e complexas envolvidas nessa pergunta, e elas podem suscitar análises distintas, portanto essa pergunta é apenas um ponto de partida. Talvez tenhamos que questionar essa pergunta ao longo dessa análise. Nessa pergunta penso que podemos incluir várias recomendações diferentes como “uso de máscaras”, “distanciamento social”, “isolamento”, “higienização”, “restrições de atividades socioeconômicas e culturais” (quando for necessário), até “quarentenas” e “lockdown”. É claro que colocar todas as questões no mesmo bojo pode ser problemático, já que alguém poderia concordar com o uso de máscaras irrestrito pela população em geral, mas discordar de medidas mais radicais como lockdown. No entanto, meu objetivo é justamente colocar a questão para pensarmos se dentro de um contexto pandêmico aquilo que é uma recomendação científica ou sanitária para o combate epidêmico pode tornar-se automaticamente uma obrigação moral. Evidentemente que se for esse o caso não deveríamos encarar apenas como recomendação e sim como obrigação. No entanto, meu ponto aqui não é encarar o problema a partir do Direito e sim da Ética. Do ponto de vista jurídico bastaria uma lei ser aprovada ou um decreto que obrigue, por exemplo, o uso de máscaras pela população em geral em um determinado território (país, estado, município etc.), para tornar uma recomendação uma obrigação. Enquanto uma recomendação sanitária não tem a força de lei ela não é uma obrigação em termos jurídicos. No entanto, mesmo quando isso não é uma lei, as pessoas que levam essas recomendações a sério pensam que as outras deveriam segui-las. Ou seja, seria um dever moral seguir essas recomendações. Meu ponto aqui é tentar entender se isto de fato se segue e suas razões. Ao mesmo tempo, quero explorar o que faz uma recomendação tornar-se uma obrigação, do ponto de vista moral. Nas próximas seções pretendo explorar esse tema sob a perspectiva da ética do dever, depois a luz do utilitarismo e por último pretendo analisar o problema seguindo a abordagem da ética baseada em direitos. Ao final, tentarei explorar possíveis objeções e problemas para encararmos recomendações como obrigações e contra-argumentos.

PARTINDO DOS DEVERES

A deontologia moral é uma abordagem normativa da ética que sustenta que temos que pautar nossas ações por deveres morais[3]. A ética kantiana talvez seja a versão mais conhecida da abordagem deontológica. Immanuel Kant (2009; 2013), defendeu que todos temos certas obrigações morais relativas aos outros e também relativas a nós mesmos. O imperativo categórico demanda que o agente submeta toda e qualquer máxima que orienta a sua ação ao crivo da universalidade (KANT, 2009, p.197; 215; 225). Se a máxima não puder ser tomada como se fosse uma lei universal então aquela ação não é um dever moral. Além disso, o agente também não poderá tomar jamais outra pessoa como mero meio para um fim qualquer (KANT, 2009, p.239-145). A noção de que cada pessoa deve ter um fim em si mesmo oferece um dos elementos centrais para o conceito de dignidade kantiano (HILL, 2003; 2014).

Dessa forma, poderíamos nos perguntar se, na perspectiva kantiana, temos o dever moral de respeitar as recomendações sanitárias e científicas para evitar o contágio do SARS-CoV-2. Nesse caso, devemos aplicar o imperativo categórico e perguntar-nos se agir orientados pelas máximas sanitárias (como usar máscaras, higienização, distanciamento etc.) poderia ser tomado como lei universal. Podemos fazer isso em duas etapas. Primeiro perguntamos se a máxima pode ser racionalmente aceitável por outros indivíduos, o que parece ser o caso. Depois precisamos imaginar se a alternativa contrária – isto é, não seguir as recomendações sanitárias – poderia ser tomada como lei universal. Não é necessário um exercício imaginativo muito grande para concluirmos que seria um absurdo que todas as pessoas estivessem obrigadas a não seguir as recomendações sanitárias. Essa máxima não passa no crivo do imperativo categórico, portanto, é sensato concluir que o mais racional seria aceitar como dever seguir universalmente as recomendações sanitárias. Além disso, se for possível imaginarmo-nos em posições muito diferentes como se fôssemos profissionais da saúde que estão mais expostos à contaminação, ou se fôssemos idosos ou tivéssemos alguma comorbidade que nos tornasse parte do grupo de risco da COVID-19 (mesmo que não seja o caso), certamente preferiríamos que os outros seguissem as normas sanitárias.

Para tornar mais claro esse ponto, façamos uso do conceito de posição original que Rawls usa em Uma Teoria da Justiça (2000, p.127-200) para ilustrar essa situação. Se pudéssemos nos imaginar em uma posição original pré-pandêmica definindo as regras sanitárias que deveríamos seguir sem saber que posição social ocuparíamos após a chegada do vírus (se seríamos pessoas com comorbidades, idosos, profissionais de saúde ou se seríamos jovens saudáveis com baixo risco de adoecimento), precisaríamos imaginar que tipo de regras concordaríamos em qualquer posição que ocupássemos. Assim, seríamos levados racionalmente a adotar regras que fossem equitativas e justas o suficiente para mitigar desvantagens em posições distintas. Essa ideia poderia ser aplicada ao imperativo categórico que exige um exercício imaginativo de nos colocarmos na posição de todos os indivíduos e pensar se uma dada máxima seria aceita como lei universal.

O conceito de dignidade também cumpre um papel crucial nessa linha de argumentação. Para Kant o dever de respeitar a dignidade humana é um dos pilares fundamentais da moralidade e constitui-se como aquilo que dá materialidade e um rosto aos deveres morais[4]. A fórmula da humanidade do imperativo categórico demanda que jamais tomemos outra pessoa meramente como meio de nossas ações, mas respeitemo-la como fim em si mesmo (KANT, 2009, p.245). Se é nosso dever o respeito à dignidade do outro, então significa que nossa ação jamais pode violá-la. Se não cumprir uma dada ação pode significar desrespeito à dignidade alheia, então essa ação é imoral. Ora, o não cumprimento das medidas sanitárias pode acarretar no aumento do contágio e aumento da probabilidade de se infectar com o vírus, portanto o desrespeito às regras passa a ser também um desrespeito à dignidade humana e, por isso, um comportamento moralmente reprovável sob a ótica kantiana. Isso apoia a conclusão de que devemos cumprir as recomendações sanitárias para minimizar os impactos da COVID-19, à luz da ética kantiana[5].

No entanto, aqui não parece ser o caso de que uma recomendação de ordem científica ou sanitária se torne automaticamente uma obrigação moral, mas o fato é que ao avaliar as recomendações como máximas que guiam nossas ações precisamos ponderar sua aplicabilidade à luz do imperativo categórico e deliberar se estamos moralmente obrigados a segui-las ou não.

Agir de acordo com a máxima que obrigue a adoção de máscaras, por exemplo, especialmente em situações de exposição ao vírus pode exemplificar a aplicação do imperativo categórico em uma dada situação, mas não podemos assumir que esse é um dever moral em si mesmo, já que “usar máscaras” é uma máxima contingente. É importante salientar que adotar essa ou outras medidas preventivas, tem um aspecto contingencial relativo ao contexto pandêmico, portanto não seria correto assumir a máxima de “usar máscaras” como um dever moral categórico, mas com um dever hipotético que está a serviço daqueles deveres morais universais que são incondicionais, como o respeito pela vida e pela dignidade humana. Isso se dá porque, na visão kantiana, deveres morais sempre são absolutos e incondicionais. E esse não é o caso em relação ao uso de máscaras e outras medidas correlatas. Contudo, os deveres morais categóricos, se articulam com deveres hipotéticos, que são condicionais e instrumentais, mas ainda assim são indispensáveis para cumprir os primeiros. A questão é que para um dever moral ser plenamente cumprido ele pressupõe uma gama maior de ações auxiliares. Então se temos o dever de respeitar a vida de outra pessoa (ou se preferirem respeitar a sua dignidade) precisamos entender o que isso significa em um certo contexto de ação. Apesar de ser comum à crítica ao “formalismo kantiano” ou à uma suposta descontextualização da universalidade dos deveres, na verdade, a aplicação do imperativo categórico necessariamente se dá em contextos práticos específicos. É exatamente por isso que existem os imperativos hipotéticos que, apesar de não serem imperativos genuinamente morais (segundo a ética kantiana), servem para auxiliar o imperativo categórico.[6] Os imperativos hipotéticos são instrumentais e por isso não são em si morais, mas o imperativo categórico não pode ser aplicado sem os imperativos hipotéticos, pois são eles que de fato efetivam a ação prática. Se este é o caso, então podemos dizer que as recomendações sanitárias, por elas mesmas, são imperativos hipotéticos (ou até conselhos de prudência) e não imperativos morais. Apesar disso, para que possamos cumprir nossas obrigações morais de respeitar as outras pessoas como fins em si mesmas, temos de levar em consideração (ao menos temporariamente) as recomendações sanitárias, entendendo-as como imperativos hipotéticos. Logo, mesmo que indiretamente, temos uma obrigação de seguir aquelas recomendações sanitárias que estão em sintonia com nossos deveres morais.

OLHANDO PARA AS CONSEQUÊNCIAS

Uma outra forma de olhar para o problema é a partir das consequências de nossas ações. O consequencialismo ético é uma abordagem que sustenta que uma ação é correta se suas consequências são boas e errada se seus efeitos forem mais danosos para os atingidos[7]. Há várias vertentes e tipos de consequencialismo, mas certamente o mais conhecido é o utilitarismo.[8] O utilitarismo defende que uma ação é boa se ela tende a maximizar a felicidade ou bem-estar da maioria dos envolvidos e má se ela promove dor ou sofrimento dos mesmos (BENTHAM, 2011; MILL, 2005). A estratégia, conhecida como princípio de utilidade, é analisar uma decisão a partir dos seus efeitos futuros. Nenhuma ação é boa ou má, correta ou incorreta, em si mesma, apenas em virtude de seus benefícios ou malefícios. Portanto, o agente precisa sempre levar em consideração aquilo que afetará as outras pessoas e então decidir. Não há deveres morais absolutos nem incondicionais, como na ética kantiana. Optar por um curso de ação em uma dada circunstância pode ser o oposto do que se deve fazer em outro momento caso as consequências mudem. Portanto, na perspectiva utilitarista, seguir as recomendações sanitárias é uma questão de analisar os seus efeitos.

       Um utilitarista deve pensar o que promove maior felicidade ou bem-estar às pessoas envolvidas por sua ação. Se usar máscara ou higienizar as mãos frequentemente é o que promoverá maior bem-estar às pessoas à sua volta, então esse é seu dever moral. No entanto, um agente não teria uma obrigação incondicional de cumprir essas regras, mas apenas quando fosse útil e benéfico para quem está ao seu redor. Essa é a justificativa pelo qual alguém não estaria obrigado a usar máscara se estiver sozinha em um ambiente ou se ela estiver em um local onde todas as pessoas ao seu redor estiverem testadas e sabidamente não estiverem portando o vírus[9]. Não haveria utilidade do uso de máscaras em tal situação, portanto não haveria obrigação genuinamente moral, nesse caso[10]

       Apesar do dever não ser incondicional, como na ética kantiana, o utilitarismo pode ser bastante rígido quanto ao cumprimento de um dever quando se trata de um resultado claro que devemos perseguir ou evitar. Se uma escolha A for resultar em benefício de muitas pessoas em relação à escolha B, então não há dúvidas que estamos obrigados a optar por A. No caso da COVID-19, se o distanciamento e uso de máscaras, por exemplo, vai evitar a morte de uma grande parcela de pessoas, então não há dúvidas que esse seria nosso dever imediato. Mesmo que se possa argumentar que algumas pessoas poderiam ser de alguma forma prejudicadas – seu desconforto relativo ao isolamento, problemas relacionados à saúde mental, provocados por confinamento prolongado ou algum tipo de dano econômico, como perda de renda ou emprego – ainda assim teriam um peso menor em relação ao efeito de ignorar as recomendações de distanciamento, já que um grupo grande de pessoas poderiam ficar gravemente doentes ou vir à óbito. Portanto, por razões diferentes, o utilitarismo chega a conclusões semelhantes à deontologia kantiana.

Apesar disso, pode haver uma objeção que devemos levar em consideração. Um utilitarista poderia argumentar que longos períodos de isolamento poderiam trazer consequências mais sérias à sociedade como um todo do que se tentássemos mitigar a situação mantendo a epidemia em níveis aceitáveis e controláveis. O argumento que tem um peso maior seria o argumento econômico. Uma sociedade que tivesse que entrar em lockdown por muito tempo ou muitas vezes durante um ano inteiro (ou até mais) e tivesse que restringir atividades econômicas poderia ter um impacto na economia que afetaria uma população muito maior do que a própria doença circulando em níveis baixos. O argumento parte do fato de que a letalidade do SARS-CoV-2 é de aproximadamente 1% dos infectados (RAJGOR et al., 2020). Embora, essa taxa possa oscilar um pouco, ainda é baixa em relação a outras doenças. Isso significa que parte da população infectada não teria a doença grave, nem seria hospitalizada ou morreria. No entanto, danos à economia seriam trágicos a curto e longo prazo a todos, inclusive para o sistema de saúde de alguns países. O problema, contudo, está no alto índice de transmissibilidade do SARS-CoV-2, que infecta um número grande de pessoas rapidamente, atingindo ainda mais fortemente os grupos mais suscetíveis à doença. O que traz à tona o grande dilema da COVID-19. Portanto, parece que esse possível raciocínio utilitarista é que dá sustentação aos que enxergam um dilema entre saúde e economia e defendem que devemos optar pela economia a fim de diminuir danos também na saúde. Portanto, pode não ser tão evidente a conclusão utilitarista para a questão acerca do que devemos fazer. Um utilitarista que pensasse mais friamente sobre a questão diria que temos de olhar para as consequências e decidir o que devemos fazer de uma maneira dinâmica de acordo com a situação epidêmica de cada lugar. Um utilitarista que pensasse dessa forma poderia ser a favor de um lockdown em um certo momento, se tivesse razões para concluir que essa medida que traria mais benefícios para a população – se, por exemplo, fosse sabido que grande parte da população estaria bem assistida com renda ou pudesse trabalhar em home office, como é o caso de países mais desenvolvidos. Esse mesmo utilitarista poderia ser contra o lockdown em outro país por perceber que essa medida poderia levar a outros problemas econômicos ou sociais, que inclusive poderiam agravar mais o problema epidemiológico. A questão seria literalmente matemática, no final das contas. Pesar os possíveis efeitos na balança moral e decidir conforme a situação.

Embora esse exemplo ilustre como o problema é mais complexo do que parece - e que a deontologia pode não ser suficiente para compreender o dinamismo do problema, além nos conduzir a conclusões muito inflexíveis, particularmente penso que o suposto dilema entre economia e saúde é falacioso (ALEGRETTI, 2021). Apesar disso, deixarei em aberto a situação momentaneamente para me concentrar em outra abordagem ética: a dos direitos.

UMA QUESTÃO DE DIREITOS

Uma outra abordagem mais contemporânea da ética é compreendê-la a partir dos direitos. Em vez de partirmos de deveres estabelecidos ou derivados de uma ordem racional, partimos dos efetivos direitos das pessoas e então extraímos nossos deveres particulares para com elas. Podemos chamar essa abordagem de ética baseada em direitos (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 88-97).

       A ideia de que todos nós temos alguns direitos intrínsecos é antiga e remonta pelo menos aos medievais defensores do jusnaturalismo, ou até antes (ABBAGNANO, p.276-285). Na modernidade, certamente podemos encontrar muitos defensores do direito natural e da ideia de que todos seres humanos possuem certos direitos invioláveis que restringem (ou deveriam restringir) o nosso comportamento em relação a eles. Dentre os modernos, Benjamin Constant, contra Kant, defendeu que todo dever é correlato a um direito (KANT, 2013b, p.72). Se alguém tem um dever para com outrem é porque este tem, primordialmente, um direito sobre ele, do qual se origina esse dever. Deveres só existem porque há alguém que tem um certo direito sobre outrem, que implica que esta pessoa faça ou deixe de fazer alguma coisa. Portanto, nesta tese, todos deveres são correlatos a direitos e não existem sem eles. Essa tese é conhecida como “doutrina da correlatividade lógica entre deveres e direitos” (FEINBERG, 1970, p.245).

       Contemporaneamente, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a abordagem ética dos direitos ganhou mais força e tornou-se parte do senso comum moral assumir que todas as pessoas possuem certos direitos inalienáveis e dos quais precisamos protegê-las. Como diz Dworkin (1999, p. XI): “Somos súditos do império do direito, vassalos de seus métodos e ideais, subjugados em espírito enquanto discutimos o que devemos portanto fazer”. Dworkin não está necessariamente sugerindo uma fundamentação da moralidade no conceito de direito[11], mas podemos dizer que a linguagem dos direitos tem um peso enorme sobre todos os âmbitos de nossas vidas e fazem parte também do discurso moral[12].  Portanto, se levarmos a sério os direitos uns dos outros precisamos aceitar que há uma “teia moral” que nos une deonticamente, implicando que os direitos que temos (quer sejam morais ou legais, naturais ou positivos) implicam na existência de obrigações ou deveres[13] correlativamente.

       Disso decorre que se aceitamos que cada pessoa tem direito à vida, por exemplo, significa que cada um de nós tem pelo menos o dever de não interferir nesse direito. Em outras palavras, não tenho o direito de violar ou mesmo desrespeitar o direito que essa outra pessoa tem de viver. Basicamente é a ideia de que direitos constrangem e limitam o comportamento das outras pessoas, impedindo que elas façam o que bem quiserem. Filósofos que defendem essa abordagem acreditam na prevalência dos direitos sobre deveres.

       Nessa visão, precisamos perguntar quais são os direitos básicos de uma pessoa. Se aceitamos que todos têm direito à vida, à saúde e ao bem-estar, então num contexto de pandemia poderíamos deduzir que todos nós também temos o dever de preservar esses direitos, o que implica que deveríamos pelo menos evitar comportamentos ou atitudes que pudessem colocar em risco esses direitos ou que pudessem infringi-los. Se alguém se permite a não usar máscara, por exemplo – em um ambiente fechado principalmente, próximo à outra pessoa (especialmente se ela pertence à grupo de risco da COVID-19) –, significa que ela pode estar colocando vida de alguém em risco, logo aqui há um evidente desrespeito ao direito desse indivíduo a que o outro use a máscara. Note que o “dever de usar máscara”, nesse caso, é contingente. Ele só existe como um dever provisório específico para essa situação e é um “dever auxiliar” – como argumentei ser também o caso na deontologia kantiana – que ajuda a tornar efetivo um dever mais geral de respeitar o direito à saúde e à vida de outra pessoa. Mas o fato de ser contingente não significa que tenha menos peso moral. Afinal de contas, a maioria dos deveres que temos para com as outras pessoas são deveres particulares, circunstanciais e contingentes. Mas são esses deveres que tornam possível cumprirmos aqueles mais gerais, como o dever de respeitar o direito à vida das outras pessoas.

       Como diz o filósofo Joel Feinberg (1970, p. 619), “um direito é um tipo de reivindicação, e uma reivindicação é ‘uma afirmação de direito’”. Compreender os direitos como reivindicações ou exigências (claims) significa assumir que estamos em posição de exigir dos outros alguma coisa. Se é o caso termos o direito à vida, ao bem-estar, à preservação de nossa saúde, é evidente que temos o direito de exigir que os outros cumpram protocolos sanitários indicados pelos órgãos de saúde. Se endossamos os direitos humanos como estão estabelecidos na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) então temos de extrair de lá que deveres temos para com os outros correlativamente. E mesmo que tais direitos fossem ignorados, não podemos ignorar aqueles que estão presentes na constituição do país em que vivemos, uma vez que na abordagem dos direitos o vínculo entre a moralidade e o Direito são estreitados. Se queremos levar os direitos à sério, parafraseando Dworkin (2002), precisamos entender que temos certas obrigações às quais não temos o direito de não cumprir. E essa conclusão se transpõe para o contexto pandêmico de forma ainda mais incisiva.

       Portanto, na abordagem dos direitos pode ser viável defender que seguir as recomendações sanitárias em geral são também obrigações morais, já que fundamentalmente são os direitos das pessoas que são a causa do que devemos fazer ou deixar de fazer. Não se trata simplesmente de aceitar que recomendações sanitárias poderiam ser encaradas como deveres hipotéticos, mas na abordagem dos direitos torna-se ainda mais forte a ideia de que num contexto pandêmico – apesar de ser circunstancial e contingente – precisamos assumir que cada um de nós possui o direito a estar protegido do contágio (ou, pelo menos, ver minimizado ao máximo possível a probabilidade de contagiar-se), o que nos leva necessariamente a aceitar que temos o dever moral de seguir os protocolos sanitários estabelecidos. Nesse caso, uma vez estabelecida uma recomendação sanitária em uma pandemia, pelo seu caráter excepcional de preservação da vida e da saúde das pessoas – se as tomarmos como direitos inalienáveis –, ela torna-se automaticamente uma obrigação moral paralelamente (pelo menos em situações na qual temos claramente uma possibilidade real de contágio).[14]

PROBLEMATIZANDO

Nessa seção quero considerar algumas possíveis objeções à ideia de uma obrigatoriedade moral em relação às recomendações sanitárias. Uma primeira objeção seria dizer que não há como considerarmos uma recomendação sanitária moralmente obrigatória se não temos clareza de quais são essas recomendações (ou onde elas se encontram). Afinal de contas, devemos seguir protocolos estabelecidos localmente, regionalmente ou internacionalmente? Muitos países adotam diferentes medidas sanitárias e mesmo estados ou regiões e até diferentes cidades adotam protocolos distintos ou pelo menos com rigor diferente. Esse parece ser um problema de ordem prática pois de um ponto de vista internacional os países adotam normas e recomendações diferentes. Mesmo dentro de alguns países há divergência entre estados e regiões. Isso implica pensar quais normas seriam vinculantes. Evidentemente isso também decorre do estado da pandemia em um determinado território e o quanto a sua população está sendo afetada, bem como das leis e políticas de saúde pública, das condições econômicas, dentre outros fatores que determinam adoção de medidas mais ou menos rígidas. Portanto, poder-se-ia argumentar que não existe uma uniformidade de recomendações sanitárias e, portanto, e isso gera incerteza sobre como se deve agir.

Uma solução óbvia seria dizer que aquilo que é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é o que contaria de um ponto de vista global (ou universal) e somente essas normas é que deveriam ser seguidas. No entanto, nem sempre órgãos oficiais e comitês científicos de alguns países adotam (completamente) as recomendações da OMS. O que a OMS recomenda ou instrui não é encarado necessariamente como regra e nem tem força jurídica. Logo, se aceitássemos que as recomendações da OMS seriam vinculantes moralmente, mas um certo país optasse por recomendações e protocolos diferentes e estabelecesse isso como lei, por exemplo, teríamos um impasse ético difícil de se resolver. Por um lado, estaríamos juridicamente obrigados a obedecer às normas estabelecidas no país e moralmente estaríamos obrigados a seguir outras normas. O que significaria, a rigor, que teríamos razões morais para não cumprir a lei. Seria um exemplo de desobediência civil. É claro que alguém poderia sustentar justamente esse ponto de vista, inclusive como forma de pressionar os governos a adotarem as recomendações da OMS. No entanto, essa conclusão parece ser muito mais um exemplo de uma redução ao absurdo. O que demonstraria que a OMS não poderia ser – pelo menos não sozinha – a autoridade última a definir as recomendações sanitárias moralmente vinculantes.[15]

       Outro problema é que a OMS poderia estar errada em suas recomendações ou simplesmente atrasada em analisar certos dados científicos. As recomendações são embasadas em pesquisas científicas e pode ser o caso de uma dada recomendação sanitária se apoiar em estudos ainda escassos ou simplesmente não haver estudos sólidos e por isso não haver uma recomendação mais contundente. Ou mesmo as recomendações serem modificadas em virtude de novas evidências. Esse é o caso do uso de máscaras, por exemplo, que não era recomendado pela OMS no início do de 2020, pela população em geral. Somente após estudos que mostraram a eficiência das máscaras caseiras é que essa recomendação foi feita (WHO, 2020).

Outro exemplo refere-se à higienização de superfícies e lavagem de mãos que eram muito mais recomendadas no início da pandemia como prioridade (quando ainda não se recomendava o uso de máscaras pela população em geral). Isso ocorria por se achar que a principal via de transmissão do SARS-CoV-2 era através de superfícies contaminadas.[16] Por isso limpar superfícies e higienizar as mãos eram as atitudes mais recomendadas. Apesar de já haver evidências de que o contágio poderia acontecer pela disseminação de gotículas de saliva, ainda não se tinha muito claro que a transmissão poderia acontecer pelo ar, por aerossol. Ao descobrir-se que a principal via de contaminação é pelo ar, as recomendações de uso de máscara e ventilação dos ambientes fechados passaram a ser prevalentes em relação à higienização e lavagem de mãos, apesar de ainda serem recomendadas (CDC, 2021).

A questão das vacinas é outro um exemplo a ser mencionado. Algumas vacinas foram aprovadas em certos países, mas receberam o aval da OMS muito tempo depois. Alguém poderia sustentar que esse seria um exemplo no qual não havia uma recomendação da OMS para tomar aquela vacina específica, mas, apesar disso, a recomendação nacional (e o apelo social) era de que deveríamos tomá-la.[17] 

Houve também uma acirrada discussão acerca da necessidade de uma terceira dose de vacina ou até, em alguns grupos populacionais, tomarem uma quarta dose. A OMS em vez de recomendar de que países apliquem uma terceira ou quarta dose na sua população, pediu que estes enviassem doses excedentes a países que ainda não vacinaram sua população mais vulnerável ou seus profissionais de saúde (WHO, 2021). De um ponto de vista de uma ética global, é uma questão de justiça distributiva enviar doses aos países mais pobres[18]. Entretanto, há estudos e evidências demonstrando que é recomendável (e até necessário) uma terceira dose da vacina para população em geral e uma quarta dose para alguns grupos populacionais.[19] Como se sabe, muitos países, dentre eles o Brasil, vacinaram ou estão vacinando com a terceira dose a população como um todo e também com quarta dose alguns grupos mais vulneráveis (FIGUEIREDO; ALECRIM; ROCHA, 2022), enquanto outros países mais pobres tem uma cobertura vacinal de primeira e segunda doses ainda muito baixas (OPAS, 2022), o que ainda levanta uma questão ética e de justiça distributiva.

       Tudo isso demonstraria a volatilidade dessas recomendações e seus ruídos. Claro que alguém poderia defender que as recomendações sanitárias são aquelas que a maioria dos países adotam, ou então o que tem embasamento científico. Novamente isso se torna um problema. O lockdown e os diferentes tipos de restrições adotadas pelos países mostra o quanto as decisões e estratégias de combate epidemiológico podem variar. A China, por exemplo, no início da pandemia aplicou um lockdown muito rígido e conseguiu conter a propagação do vírus ao custo do confinamento de praticamente toda população de Wuhan (LAU et al., 2020). A Coreia do Sul, preferiu usar testagem e rastreamento de casos e monitoramento para não precisar medidas tão rígidas (KIM et al., 2021). Já o Vietnã, usou de lockdown e quarentenas regionais e rastreamento de casos para conter a pandemia (POLLACK, 2020). Por outro lado, em outros países como Alemanha, aplicaram estratégias mitigadas a fim de manter a pandemia sob controle com um número menor de casos para o sistema de saúde ser capaz de lidar com a demanda (WIELER; REXROTH; GOTTSCHALK, 2021). O Reino Unido havia pretendido inicialmente deixar a epidemia acontecer sem restrições a fim de alcançar a chamada imunidade coletiva por infecção, mas voltou atrás após estudos que apontavam a quantidade enorme de óbitos da população (GHOSH, 2020). E talvez o caso mais bem sucedido de todos – em 2020 – tenha sido o da Nova Zelândia que aplicou um lockdown rígido o suficiente para eliminar os casos comunitários de Covid-19 no país (BAKER et al., 2020).

Esses exemplos ilustram que colocar o termo “recomendações sanitárias” num mesmo pacote e tratar como se fossem todas a mesma coisa pode ser equivocado. Apesar disso, há algumas recomendações que permanecem mais duradouras (pelo menos quando a situação epidemiológica ainda é crítica), como no caso das máscaras, higienização das mãos, distanciamento e isolamento de casos positivos. O que poderia justificar que há algumas recomendações sanitárias que são seguidas pelo menos pela maioria dos países que encaram a pandemia com seriedade e à luz da ciência[20].

       Contudo, talvez não seja adequado concluir que há uma vinculação moral entre as condições sanitárias, sejam elas quais forem, e nossas obrigações morais. Parece muito mais adequado concluirmos que devemos analisar cada recomendação isolada e nos perguntarmos se estamos moralmente vinculados a ela. Penso que algumas recomendações são mais fáceis de admitirmos como moralmente obrigatórias e talvez outras sejam mais polêmicas. Além disso, apesar de haver uma certa convergência curiosa entre abordagens morais distintas, penso que em relação a algumas recomendações pode haver divergências. O caso do lockdown é um exemplo dessa divergência. Um deontologista kantiano poderia defender que temos o dever de auto isolamento a fim de preservar a vida dos demais ou simplesmente por respeito à universalidade da lei moral que demanda o respeito pela dignidade humana. Nesse caso, pouco importam os efeitos causados pela restrição de circulação das pessoas e com o fechamento de atividades econômicas. Um kantiano provavelmente tenderia a apoiar uma estratégia de supressão[21], com um lockdown rígido em respeito pela dignidade das pessoas. Um utilitarista, por outro lado, tenderia a uma estratégia mitigada e mais flexível. Provavelmente um utilitarista estaria mais afeito a uma estratégia que tentasse mitigar os efeitos danosos da circulação do vírus e do confinamento das pessoas. Provavelmente chegaria a conclusões menos rígidas, endossando estratégias como as que foram adotadas em alguns países que tentaram manter atividades econômicas funcionando.

Já um defensor de uma abordagem dos direitos pode estar mais preocupado em analisar se há algum tipo de violação dos direitos individuais ao impor um lockdown rígido, obrigando a população a ficar em casa. Em casos de imposição de isolamento da população não haveria uma violação do direito à liberdade individual? Pode ser simplesmente o caso de um conflito de direitos, o direito à liberdade individual e o direito à saúde (ou à vida) e perguntar qual deles tem maior peso. Penso que a grande maioria dos liberais e demais defensores dessa abordagem diriam que temos razão para limitar temporariamente o direito à liberdade de uma parcela da população a fim de preservar a vida de outros. Mas isso seria o mesmo que dizer que as pessoas têm a obrigação moral de fazer isolamento social e quarentenas por livre iniciativa? Ou que tem o dever moral de aceitar passivamente as decisões impostas pelos governos?

       O conhecido Problema do Trolley (FOOT, 1967; THOMSON, 1985) pode ser útil para pensar nessa questão da pandemia. Embora seja um daqueles dilemas éticos difíceis de serem resolvidos e que geram um longo debate filosófico, ele ilustra o problema de se ter de decidir por um curso de ação que necessariamente causará algum tipo de dano (e que nesse caso é irreversível) a alguém. Se optarmos por deixar uma pessoa morrer para salvar cinco, precisamos aceitar esse efeito colateral. Se nada fizermos, o trolley matará os cinco indivíduos. No caso da pandemia, se nada for feito muitas pessoas morrerão devido à alta transmissibilidade (é como se deixássemos o trolley seguir seu rumo, matando os 5 trabalhadores). Por outro lado, se agimos impedindo a circulação do vírus reduzimos o contágio e salvamos mais vidas, evitando hospitalizações e mortes desnecessárias de muitas pessoas, porém ao custo de outros problemas colaterais como desemprego, redução de renda de trabalhadores, fechamento de empresas, etc. Mas há uma diferença entre a pandemia e o problema do trolley. No caso do trolley o dilema é entre optar por um curso de ação que levará a perda de uma vida ou cinco vidas. Se pensarmos na pandemia como sendo o bonde não temos o mesmo tipo de dilema, porque de um lado temos as vidas e de outro perdas sociais e econômicas. Não é o mesmo tipo de perda que está em jogo. Vidas deveriam ter um peso maior em uma tomada de decisão ética. Portanto, se a vida é mesmo o valor maior, parece claro que aqui o suposto dilema da pandemia seria mais fácil de resolver do que o caso do trolley. No caso do trolley, poder-se-ia argumentar (ainda que não sem controvérsia), que não temos o direito de virar a alavanca e causar a morte de um indivíduo para salvar outros cinco, mas no caso da pandemia poderíamos sustentar que temos razões suficientes para endossar não fazer nada? Penso que não. Não temos razões morais que pudessem legitimar uma decisão de deixar o vírus se propagar se temos ações que podem ser efetivas para conter a transmissão do vírus. Aqui seria realmente imoral endossar uma proposta, por exemplo, que defendesse a imunidade coletiva via infecção, que corresponderia não adotar medida nenhuma e deixar o vírus circulando ao natural e infectando as pessoas[22].

       Mas no caso da pandemia temos também uma diferença que seria nos tipos de medidas e proporções das restrições já mencionadas. Então, na verdade, o dilema seria não entre duas opções como no caso do trolley (deixar 1 ou deixar 5 morrerem), mas pelo menos três opções: 1) não fazer nada, deixando o contágio desenfreado e causando a morte de um número gigantesco de pessoas; 2) Mitigação: adotar medidas mitigando impactos epidemiológicos e econômicos, com distanciamento moderado e apertando as restrições quando a situação sanitária piora, e; 3) Supressão: adotar medidas rígidas – como lockdown – que buscam limitar muito ou até eliminar a transmissão do vírus.

Penso que a opção 1 é moralmente indefensável por não encontrar sustentação moral e respaldo em nenhuma teoria ética influente hoje. A opção 2 (que incluem uma gama grande de estratégias) é compatível com o utilitarismo e talvez em parte com a ética baseada em direitos. Utilitaristas tendem, como já foi dito, a avaliar as condições favoráveis aos efeitos positivos de uma ação para um grande número de pessoas. E isso pode mudar conforme a situação. Além disso, adotar medidas que procuram mitigar os efeitos pandêmicos pode acabar sendo considerada a estratégia moral adequada. Na perspectiva da ética baseada em direitos, trata-se sempre de avaliar que direitos têm prevalência e quais podem ser temporariamente suspensos e aqueles que são invioláveis e em virtude dos quais os outros têm sua existência. Pode-se defender que um lockdown rígido demais e involuntário, imposto à força, tem um custo muito alto e não seria moralmente aceitável, exceto em casos extremos.

 Já a opção 3 me parece ser mais compatível com a deontologia kantiana. Uma vez que a dignidade humana é inviolável e os deveres incondicionais, somos obrigados a agir de forma a tratar a todos como fins em si mesmos e não a guiarmo-nos conforme possíveis consequências. Contudo, essa opção poderia também ser endossada por um defensor dos direitos individuais, por considerar que certos direitos se sobrepõem a outros e os justificam. Mesmo a ideia de liberdade tão cara ao individualismo liberal não pode se sobrepor ao direito à vida. Alguns utilitaristas também poderiam concordar com adoção de medidas rígidas o suficiente para reduzir ou eliminar a transmissão do vírus e conter os casos. Um utilitarista poderia defender que medidas mais rígidas podem até ter efeitos danosos no curto prazo, mas benéficos no longo prazo. Veja-se o caso da Nova Zelândia que se beneficiou economicamente do eficiente combate à pandemia, mesmo com um lockdown rígido no início de 2020 (WHITERS; BLOOMBERG, 2020). Apesar de um alto custo temporário e um sacrifício grande da população por um período menor de tempo, a Nova Zelândia evitou muitos problemas e controlou eficientemente bem a pandemia, tendo uma melhor recuperação econômica que muitos países.

       Ao que parece, nesse caso específico das medidas mais rígidas, como quarentenas e lockdowns, pode haver divergência moral, mas tais divergências se situam no quanto elas devem ser mais brandas ou mais rígidas. Não há divergência quanto à necessidade de impor alguma medida para combater a pandemia. Há alguma convergência moral entre deveres, utilidade e direitos, quando se trata da pandemia. Devemos agir coletivamente e temos deveres individualmente também. A questão individual de quais são nossas obrigações ou deveres – se devemos procurar o auto isolamento ou não, se devemos reivindicar do governo que imponha coercitivamente medidas mais rígidas ou não –, depende da abordagem ética que adotamos. Ainda assim, parece evidente que há uma tendência convergente nesses sistemas morais de que justo o que não devemos fazer é simplesmente não fazer nada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse breve texto, procurei examinar de maneira não exaustiva a questão de saber se como indivíduos e como sociedade temos o dever moral de seguir as recomendações sanitárias e científicas dos órgãos de saúde. Ao que tudo indica, apesar de visões antagônicas, as abordagens morais aqui analisadas brevemente sugerem que temos obrigação moral de aderir às recomendações sanitárias de combate à pandemia da COVID-19. Mesmo teorias divergentes parecem convergir, em linhas gerais, para endossar há razões suficientes para concluir que temos obrigação moral de seguir pelo menos parcialmente as recomendações sanitárias de prevenção da COVID-19. Importa menos se alguém se considera deontologista, utilitarista ou se defende uma ética baseada em direitos. Essas teorias, apontam para as mesmas conclusões, mesmo que possam divergir em alguns aspectos. Esse é um caso interessante de convergência moral. Embora por razões diferentes, seguindo argumentos distintos, essas visões éticas dão sustentação para conclusões semelhantes. Portanto, penso que há razões éticas suficientes para sustentar que devemos seguir – ou deveríamos ter seguido! – as recomendações sanitárias advindas da ciência, a fim de evitar a propagação da COVID-19, evitando mortes, hospitalizações e outros problemas decorrentes.

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Thiago Delaíde da Silva

Doutorando em Filosofia – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos

Mestre em Filosofia – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos

Graduado em Filosofia – Centro Universitário Metodista – IPA

 

Os textos deste artigo foram revisados por terceiros e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação



[1] O texto que se segue começou a ser escrito em meados de 2020, quando a situação pandêmica no Brasil e no mundo eram diferentes em relação ao momento desta publicação, tendo sido revisado, alterado e adaptado ao longo dos meses que se seguiram para que as informações estivessem coerentes com o que estava sendo descoberto e conforme a situação pandêmica global foi evoluindo. Contudo, como se trata de uma realidade dinâmica, algumas informações poderão parecer desencontradas em alguns momentos e dar a sensação de um certo descompasso temporal ao leitor, ou podem parecer que certas informações são agora evidentes e até que as conclusões extraídas tenham chegado por demasiado atrasadas. Mas como Hegel nos ensinou, a filosofia levanta voo muitas vezes de modo tardio, e é sempre mais difícil propor análises no “calor do momento”, por isso, espera-se a compreensão do leitor de que se trata de uma tentativa de refletir filosófica e eticamente algumas questões difíceis que a pandemia da COVID-19 nos trouxe. Se as reflexões aqui propostas nos ajudarem a elaborar uma autocrítica de nossas ações ou mesmo ajudar a lidar com situações de crise no futuro, então haverá êxito no que aqui se propõe.

[2] Ben Bramble (2020), identifica pelo menos 8 grandes questões éticas ligadas à pandemia da COVID-19, mas certamente há outras questões que surgem diariamente no contexto pandêmico. Para uma abordagem acerca de problemas éticos da COVID-19 no contexto da bioética, veja Dall’Agnol (2020, p.53-60).

[3] Para um panorama mais amplo acerca das diferentes abordagens deontológicas da ética, ver ALEXANDER e MOORE, 2021.

[4] Allen Wood (2008, p. 66-69) argumenta que há um desenvolvimento do imperativo categórico que começa com a fórmula da universalidade (FU), passando pela fórmula da humanidade (FH) e culminando com a fórmula da autonomia (FA). Nesse sentido, a fórmula da universalidade é a versão mais rudimentar do imperativo categórico e expressa apenas a dimensão formal do dever moral. No entanto, a fórmula da humanidade vai além e expressa uma materialidade na forma de um conteúdo da lei e em relação ao seu fim, isto é, o respeito pelas pessoas com fins em si mesmas. A fórmula da autonomia constituiria a dimensão mais completa que uniria tanto a dimensão formal quanto material, portanto a suposta acusação à Kant de um formalismo vazio seria equivocada, segundo Wood.

[5] Um outro ponto a considerar é que mesmo em uma situação epidemiológica mais branda, onde casos estão caindo, é possível argumentar que ainda assim o dever de respeitar a dignidade das pessoas continua vinculando-nos ao dever de respeitar os protocolos sanitários já que o que importa não são efetivamente os resultados que as ações provocam, mas a ideia do respeito em si.

[6] Para uma discussão mais aprofundada sobre a relação entre imperativo categórico e imperativos hipotéticos, ver HILL, 1973.

[7] Para uma visão mais ampla da abordagem consequencialista, ver PETTIT, 2003.

[8] Para uma visão mais ampla das diferentes versões do utilitarismo, ver MULGAN, 2012.

[9] Essa é, inclusive, uma das medidas que foram adotadas em muitos lugares ao longo da pandemia. Quando era viável testar todas as pessoas em um ambiente, essa poderia ser uma medida eficaz de evitar casos. O que nos faz pensar que um dos grandes problemas da pandemia é, na verdade, um problema epistêmico de saber quem tem o vírus e pode transmiti-lo. A questão moral de adotar medidas, como o uso de máscaras, é que nunca podemos ter certeza de que as pessoas ao nosso redor – ou nós mesmos – não tenham sido infectados. Além disso, mesmo com testagem há probabilidade de erros nos resultados e nada impede que no intervalo entre a coleta do teste e o resultado alguém não possa ter sido infectado. Então, mesmo com testes negativos, por uma questão de tentar minimizar consequências danosas, pode ser pelo menos razoável que se mantenha o uso de máscaras, mesmo na perspectiva utilitarista.

[10] Aqui penso que há um elemento curioso a ser observado, pois é possível imaginar uma situação em que alguém não esteja moralmente obrigado a usar máscara, por não promover nenhum benefício (evitar transmissão) ou evitar algum malefício (infecção), como no caso de alguém que está hospitalizado em recuperação da COVID-19, mas que sabidamente não está mais transmitindo a doença (é preciso, claro, imaginar que não há profissionais de saúde sujeitos à infecção, pois essa seria uma razão suficiente para que os pacientes, quando possível, usem máscara), e ainda assim, esteja obrigada legalmente a usá-la, caso essa seja a norma jurídica daquela região. Inversamente, alguém que está entubado está impossibilitado, evidentemente, de usar máscara. Nesse caso, parece sensato concluir que nessa situação tanto o dever moral quanto legal estão dispensados. Portanto, não é impossível imaginar que alguém esteja obrigado legalmente a usar máscara, apesar de não estar obrigado moralmente – como seria o caso de alguém que está sozinho em um ambiente X, mas por haver uma lei ou (ou regra particular daquele espaço) que ele deva cumprir essa norma.

[11] John L. Mackie levantou essa discussão em seu artigo Can There Be a Right-Based Moral Theory? (1978).

[12] Alguns filósofos que defendem a moralidade baseada em direitos não veem essa clara distinção entre moralidade e direito. Ver, por exemplo, AZEVEDO, 2000, p.265-286.

[13] Aqui estou assumindo que os termos “obrigação” e “dever” sejam sinônimos, pelo menos na argumentação deste texto.

[14] Penso que aqui se abre outra discussão: se alguém (X) poderia abdicar ou não de seu direito à proteção individual (uso de EPI por exemplo) ou se teria o direito de autorizar uma outra pessoa (Y) a não usar o EPI numa dada situação em que somente X e Y estão envolvidos. Penso que em uma situação como descrita seria possível admitir que X tem o direito de abdicar de sua proteção ou o direito a autorizar que Y não use o EPI, mas em situações cotidianas comuns onde mais indivíduos estão envolvidos o mesmo indivíduo não teria esse direito, já que as outras pessoas possuem o direito sobre X a que ele use o EPI e se proteja (uma vez que contaminando-se ele seria também um risco aos demais). Aliás, bastaria um único indivíduo em um ambiente com o direito a que os demais usem máscara para implicar que eles tenham a obrigação do seu uso. O mesmo valeria, em geral, para demais protocolos sanitários.

[15] É importante fazer a ressalva de que me refiro aqui é a questão da autoridade moral e não sanitária. Penso que a OMS deveria ter autoridade sanitária para impor medidas em escala global em situações de crise como a pandemia, mas disso não se segue automaticamente uma imposição moral. No entanto, esse é justamente o paradoxo que parece surgir aqui, já que se não há dever moral como podemos exigir que as pessoas sigam as medidas sanitárias?

[16] Sobre esse assunto, acerca da possibilidade de transmissão do SARS-CoV-2 através de superfícies, ver GOLDMAN, 2021.

[17] No Brasil, por exemplo, a primeira vacina a ser aprovada foi a CoronaVac e só meses depois é que ela foi aprovada pela OMS (ALVIM, 2021).

[18] O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, usou a expressão “apartheid das vacinas” ao se referir à distribuição vacinal desigual pelo mundo (FRAGE; SHIELDS, 2021).

[19] No período em que o artigo foi escrito ainda estava em discussão a necessidade de uma aplicação da terceira e quarta dose, mas já haviam testes sendo realizados. Como se viu posteriormente a aplicação de terceira e quarta dose tornou-se um regime de doses recomendadas pelos órgãos de saúde em grande parte dos países.

[20] Aqui parece que o que se tem chamado de negacionismo científico obscurece o problema. Certas medidas não são adotadas por países ou estados por razões ideológicas, políticas ou interesses econômicos envolvidos. Portanto, não deveria ser uma razão suficiente o fato de que nem todos os países adotam todas as medidas recomendadas ou adaptam à sua realidade e condições socioeconômicas e culturais. O fato é que se sabemos o que é o mais adequado a ser feito para alcançar o objetivo de salvar vidas e reduzir impactos da pandemia, então a questão passa de uma ordem epistêmica para a ordem moral.

[21] O termo “supressão” designa a estratégia epidemiológica de tentar suprimir ao máximo a circulação do vírus através do fechamento de atividades econômicas, implementando quarentenas e lockdowns, quando necessário. É a estratégia mais agressiva, adotada por diversos países. Já a “mitigação” é a estratégia menos agressiva que visa o achatamento da curva epidemiológica com o objetivo de manter os casos e hospitalizações em um nível controlável. Ver FERGUSON et al., 2020.

[22] Diga-se de passagem, essa é a crítica de muitos especialistas em relação a estratégia de “combate” da pandemia que teria sido adotada pelo Governo Federal brasileiro, para acelerar a abertura econômica, pretendendo que grande parte da população se infectasse para atingir a “imunidade de rebanho” (ou “imunidade de grupo”). Esse debate foi também alvo de discussões na CPI da COVID-19 no Brasil, durante o ano de 2021. Veja também o estudo realizado pelo Conectas Direitos Humanos, Boletim n. 10 (ASANO et al., 2021, p. 6-31).