Sobre os métodos de investigação em filosofia da mente

On research methods in philosophy of the mind

 

Apresentação e tradução: Dr. Silvério Becker

E-mail: silveriobecker@yahoo.com

 

O presente texto é uma tradução do primeiro capítulo de Doctrine of the Will (Doutrina da Vontade), de Asa Mahan, obra publicada originalmente em 1845. Trata-se de um texto no qual Mahan apresenta algumas observações introdutórias sobre a filosofia da mente, e chama a atenção para a importância do uso do método adequado à pesquisa nessa área da filosofia, bem como para alguns erros comuns nesse departamento de investigação filosófica. Nessa direção, ele, primeiramente, apresenta a doutrina da Vontade como uma doutrina fundamental da teologia, bem como da filosofia da mente; como um ponto central de onde partem os diversos sistemas de teologia, de filosofia moral e de filosofia mental. Segundo Mahan, as posições que defendemos acerca de pontos importantes, tanto em filosofia como em teologia, são determinadas pelo modo como entendemos a faculdade humana denominada Vontade, sua natureza, e suas capacidades. Dito de outro modo, a teoria da Vontade a que aderirmos, seja ela certa ou errada, tem uma influência significativa na determinação de nosso sistema de filosofia ou de teologia, além de determinar nossa compreensão da natureza e caráter do governo Divino, nos seus mais importantes aspectos.

Outro ponto importante, defendido por Mahan, é que toda questão específica da filosofia da mente é, “pura e exclusivamente, uma questão psicológica. A mente tem um único olho através do qual ela pode ver a si mesma, e este olho é a consciência.” Segundo ele, a ciência de tudo aquilo que pertence, puramente, aos departamentos da filosofia da mente, não é adquirida por meio da observação externa, mas unicamente por reflexão interna, e por isso, é dependente das afirmações da Consciência. Nesse sentido, Mahan aponta o que ele considera um erro comum em filosofia, a saber, o fato de não se fazer nenhum apelo à Consciência, “a única testemunha adequada no caso”, o que pode levar a conclusões totalmente erradas.

No texto a seguir, Mahan sustenta também que diversos filósofos e clérigos estiveram habituados a não atentar para o testemunho da consciência ao determinar as características de fenômenos que não se mostram diretamente na experiência exterior, e que são revelados apenas, e diretamente, na Consciência. Além disso, muitos teriam cometido outro erro em seus métodos para tratar o assunto: eles teriam misturado o método filosófico com o método teológico, falhando, assim, em dar um tratamento adequado a questão, tanto na teologia quanto na filosofia. No caso específico da teologia, muitos teriam tomado como princípio a verdade errada, em revelações que não oferecem, de fato, sustentação para a questão, isto é, em passagens bíblicas que não são diretamente pertinentes ao assunto, e deixado de lado aquelas passagens que realmente apresentam uma sustentação legítima para a questão. Na defesa de suas ideias, Mahan deixa claro que o domínio da filosofia da mente é diferente do da teologia, e ambos se baseiam em princípios inteiramente distintos: enquanto no domínio da filosofia, é preciso limitar-se estritamente às leis da investigação psicológica, no domínio da teologia é preciso limitar-se àquelas passagens bíblicas que oferecem uma sustentação direta e decisiva para o assunto. Além de diversas virtudes filosóficas, o texto é importante para repensarmos os rumos que a filosofia da mente acadêmica tem tomado nos últimos tempos.

Nascido em 1799, nos Estados Unidos da América, Asa Mahan (1799-1889) foi o autor de obras importantíssimas no campo da filosofia, como: A System of Intellectual Philosophy (1854), The Science of Logic; or An Analysis of the Law of Thought (1857), e A Critical History of Philosophy (1883). A última considerada por diversos filósofos como a mais importante obra de filosofia já escrita. Mahan apresentou uma explanação bem mais detalhada do modo como ele entendia a mente humana e suas faculdades em The System of Mental Philosophy (1882).

 

SOBRE OS MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO EM FILOSOFIA DA MENTE[1]

Observações Introdutórias à Doutrina da Vontade

(Introductory Observations)[2]

ASA MAHAN

 

Importância do Assunto

 

A doutrina da Vontade é uma doutrina fundamental da teologia, bem como da filosofia mental. Essa doutrina, para ser breve, é um dos grandes pontos centrais, de onde partem os vários sistemas, diferentes e conflitantes, de teologia, de ciência moral e de ciência mental. Determinar a postura de um homem no que diz respeito à Vontade, é determinar sua posição acerca dos pontos mais importantes, seja como um teólogo, seja como filósofo mental ou como filósofo da moral. Se voltarmos nossos pensamentos para nosso interior, com o propósito de conhecer o que nós somos, o que devemos fazer, e ser, e o que devemos nos tornar como resultado de estarmos sendo e fazendo, ou não, o que devemos, esta doutrina se apresenta, imediatamente, como um dos grandes pivôs em torno dos quais gira a resolução de todas essas questões.

Se, por outro lado, voltarmos nossos pensamentos de nós mesmos para um estudo do caráter de Deus, e da natureza e caráter do governo que Ele exerce sobre os seres racionais, todas as nossas compreensões aqui, todas as nossas noções acerca da natureza e merecimento do pecado e da santidade, serão, em muitos elementos fundamentais, determinadas por nossas noções acerca da Vontade. Em outras palavras, nossas apreensões da natureza e caráter do governo Divino, precisam ser determinadas, nos mais importantes aspectos, por nossas concepções da natureza e poderes dos sujeitos desse governo. Eu não tenho desejo de esconder do leitor o verdadeiro rumo de nossas presentes investigações.  Almejo que ele entenda claramente, que ao fixar suas noções acerca da doutrina da Vontade, ele está determinando um ponto de observação a partir do qual, e um meio através do qual, ele contemplará seu próprio caráter e merecimento como um agente moral, e a natureza e o caráter desse governo Divino, sob o qual ele deve sempre “viver, se mover, e existir.”[3]

 

Verdadeiro e falso métodos de investigação.

 

Sendo esse o rumo de nossas investigações, uma questão importante apresenta, a saber: qual seria a influência dessas considerações sobre nossas investigações neste departamento da ciência mental: isso não estaria, de fato, nos induzindo, como parece ser verdade no caso de muitos teólogos, clérigos, e até mesmo filósofos, a primeiro formar nosso sistema de teologia, para então, à luz dele, determinar nossa teoria da Vontade? A real ciência da Vontade, assim como todas as que pertencem puramente aos departamentos da filosofia mental, “não vêm por meio da observação,”[4] mas por reflexão interna. Porque nossa doutrina da Vontade, seja ela verdadeira ou falsa, terá uma influência controladora na determinação do caráter de nossa teologia, e ao sentido que nós atribuiremos a grandes partes da Bíblia, essa doutrina não deixa de ter, por essa razão, este caráter exclusivamente psicológico. Toda questão legítima que pertence a ela, permanece, pura e exclusivamente, uma questão psicológica. A mente tem um único olho através do qual ela pode ver a si mesma, e este olho é a consciência. Este é, então, o órgão de visão a ser empregado em todas as nossas investigações em cada departamento da ciência mental, e em nenhum mais exclusivamente do que neste da Vontade. Nós sabemos muito bem, por exemplo, que a ciência da ótica tem uma influência fundamental sobre a da Astronomia. O que acontece se um filósofo, por essa razão, formasse sua teoria da ótica pelo olhar para as estrelas? Isso seria perfeitamente análogo à conduta de um clérigo ou filósofo que determinasse sua teoria da Vontade, não por reflexão psicológica, mas por um sistema de teologia formado sem esta reflexão. Suponha ainda que a ciência da Geometria tenha a mesma influência sobre a teologia que a da Vontade tem. Este fato não mudaria em nada a natureza daquela ciência, nem o modo apropriado da condução de nossas investigações no que diz respeito a ela. Ela permaneceria ainda uma ciência de demonstração, com todos os seus princípios e regras de investigação inalterados. É assim com a doutrina da Vontade. Quaisquer que sejam seus suportes à outras ciências, ela permanece, não menos exclusivamente, uma ciência psicológica.  Ela tem seus próprios princípios e leis de investigação, princípios e leis tão independentes dos sistemas de teologia, quanto os princípios e leis da ciência da ótica são independentes dos da Astronomia. No andar de nossas investigações em todos os outros departamentos da ciência mental, nós, naquele ínterim, deixamos de ser teólogos. Nós nos tornamos filósofos da mente. Por que no estudo da Vontade seria uma exceção?

A questão agora retorna: o que acarreta o fato, de que nossa teoria da Vontade, seja certa ou errada, terá uma importante influência na determinação de nosso sistema de teologia? Esta influência, certamente, existirá. Ela deveria induzir em nós um grande cuidado e cautela em nossas investigações nesse departamento da ciência mental. Nós estamos lançando a fundação do mais importante edifício que já ocorreu ao coração do homem conceber – um edifício, todas as partes, dimensões, e proporções às quais nós somos requeridos a diligentemente conformar ao “modelo que nos foi mostrado no monte.”[5] Sob tais circunstâncias, que não deveriam ser admoestadas, não deveríamos “cavar fundo e pôr a fundação sobre uma rocha?”[6] Quero, portanto, em vista do que foi dito acima, sinceramente, apresentar quatro coisas ao leitor do tratado a seguir.

1. Que ele o leia como um honesto e sincero inquiridor da verdade.

2. Que ele dê o devido grau de atenção ao trabalho, o que é um requisito para o entendimento do mesmo.

3. Que, quando ele discordar de algum dos princípios fundamentais, ele declare distintamente para sua própria mente a razão dessa dissensão, e cuidadosamente investigue sua validade. Se esses princípios estão errados, semelhante investigação renderá a verdade mais conspícua para a mente, confirmá-la-á na verdade, e a equipará com meios para derrubar o erro oposto.

4. Que ele prossiga suas investigações com implícita confiança nas distintas afirmações da sua própria consciência no que diz respeito ao assunto. Essa afirmação pareceria verdadeiramente singular, se feita em relação a algum outro departamento da ciência mental, exceto o da Vontade. Aqui isso é solicitado imperiosamente, pois por muito tempo filósofos e clérigos estão acostumados a não olhar para isso, ao determinar as características de fenômenos que se mostram exclusivamente no interior, os quais são revelados apenas ao olho da consciência. Tendo estado durante muito tempo sob esse hábito pernicioso, será requerido um pouco de esforço para a mente voltar esse órgão de auto visão sobre si mesma, com o propósito de relatar corretamente a si mesma, o que realmente se passa nesse santuário interior. Requererá um esforço especialmente para, com um propósito fixo de abandonar todas as teorias formadas a partir da observação externa, seguir implicitamente os resultados das observações feitas internamente. Contudo, precisamos adotar esse método, ou existe ao mesmo tempo mais de um fim de toda a ciência real, não apenas no que diz respeito à da Vontade, mas a todos os outros departamentos da mente. Suponha um indivíduo que comece um tratado sobre cores, por exemplo, com a negação da validade de todas as afirmações da Inteligência através do olho, no que diz respeito aos fenômenos sobre os quais ele está para tratar. O que seria pensado de tal tratado? No momento em que negamos a validade das afirmações de alguma de nossas faculdades, no que diz respeito aos objetos apropriados dessa faculdade, todo o raciocínio sobre esses objetos se torna o maior dos absurdos. É assim no que diz respeito à mente. Se nós duvidarmos ou negarmos a validade das afirmações da consciência no que diz respeito à natureza e características de todas as operações mentais, a filosofia mental se torna impossível, e todo o raciocínio no que diz respeito à mente, perfeitamente absurdo. A confiança implícita nas distintas afirmações da consciência, é uma lei fundamental de todo o correto filosofar em todo o departamento da ciência mental. Permitam-me anunciar muito sinceramente esta confiança, enquanto prosseguirmos nossas investigações no que diz respeito à Vontade.

 

Uma falta comum

 

Pode ser importante anunciar aqui uma falta comum no método frequentemente adotado por filósofos em suas investigações nesse departamento da ciência mental. No mais celebrado tratado que já apareceu sobre esse assunto[7], o escritor não lembrou de fazer um único apelo à consciência, a única testemunha adequada no caso. Quase todo o tratado consiste em uma série de silogismos, ligados entre si com uma aparente perfeição, silogismos pertencentes a alguma coisa abstrata chamada de Vontade.  Em todo o conjunto, nunca se apela para os fatos da consciência. De fato, em não poucos casos, entre escritores da mesma escola, o direito de fazer tal apelo tem sido formalmente negado, sobre o fundamento de uma total inadequação da consciência para dar testemunho no caso. Seria totalmente estranho, se se verificasse que todos os resultados fundamentais das investigações conduzidas pela adoção de tal método, sejam totalmente inaplicáveis à Vontade, um dos fenômenos que se encontram sob o olho da consciência, ou estão em clara contradição com os fenômenos assim afirmados? O que percebemos que é muito provável que aconteça a partir do método adotado, e é o que verificamos, pela experiência, ser realmente verdade do tratado acima referido. Isto foi observado pelo ilustre autor de The Natural History of Enthusiasm[8], em um Ensaio introdutório para o texto de Edwards sobre a Vontade. “Mesmo que o leitor” diz ele, “que está pouco familiarizado com essa abstrusa ciência, se ele seguir nosso autor atentamente, estará permanentemente consciente de uma vaga insatisfação, ou uma suspeita latente de que alguma falácia tenha passado dentro do comboio de proposições, embora a ligação dos silogismos pareça perfeita. Essa suspeita aumentará em força na medida em que ele prosseguir, e por fim se condensará na forma de um protesto contra certas conclusões, não obstante sua aparente conexão necessária com as premissas”[9]. O que deveríamos esperar de um tratado sobre ciência mental, do qual as afirmações da consciência devem ser formalmente excluídas, como fundamentos de alguma importante conclusão? É exatamente o que encontramos ser verdade, de fato, no tratado acima citado sobre a Vontade, a saber: todas as suas conclusões fundamentais são contrariadas positivamente por essas afirmações. O que aconteceria se as decisões de nossas cortes de justiça fossem baseadas sobre dados dos quais o depoimento de todas as testemunhas materiais tenha sido totalmente excluído? Quem olharia para essas decisões como expoentes da verdade e justiça? Contudo, todos os elementos dessas decisões podem ser a consequência lógica necessária dos dados realmente admitidos. Porém, essas decisões podem estar totalmente erradas, pelo fato de que os dados que deveriam ser assumidos no caso, foram excluídos. O mesmo será verdade, quase por necessidade, de todos os tratados, em todos os departamentos da ciência mental, que não estejam baseados sobre os fatos da consciência.

 

 

O método de raciocínio adequado para, a partir da Revelação, chegar ao sistema de filosofia mental nela pressuposto

 

Pelo que foi dito, não me entenda o leitor que estou negando o cabimento da comparação de nossas conclusões na ciência mental com a Bíblia. Embora nenhum sistema de filosofia mental seja diretamente revelado na Bíblia, um sistema é nela pressuposto, e assumindo, como nós fazemos, que as Escrituras são uma revelação da parte de Deus, devemos supor que o sistema de filosofia mental assumido nas escrituras sagradas é o verdadeiro sistema. Se nós pudermos encontrar o sistema pressuposto na Bíblia, teremos uma norma infalível pela qual testar a validade de qualquer conclusão a que tenhamos chegado, como resultado da investigação psicológica. Por isso, é muito legítimo, interessante, e proveitoso inquerir: qual é o sistema de filosofia mental assumido como verdadeiro na Bíblia? Nós podemos, muito apropriadamente, voltar nossa atenção para a solução dessa questão. Todavia, fazendo isso, duas coisas, devem ser mantidas distintamente na mente.

1. Nessa investigação, nós deixamos, inteiramente, o domínio da filosofia mental e entramos no da teologia. No último, somos guiados por princípios inteiramente distintos dos requeridos no primeiro.

2. Raciocinando a partir da Bíblia na busca do sistema de filosofia mental pressuposto nas Escrituras, estamos em perigo de assumirmos dados errados como base de nossas conclusões, isto é, estamos em perigo de elaborar nossas inferências a partir daquelas verdades da Escritura que não oferecem uma sustentação legítima para o assunto e passarmos por alto aquelas que oferecem essa sustentação. Embora existam verdades de inspiração a partir das quais nós podemos arrazoar apropriadamente acerca da teoria da Vontade pressuposta na Bíblia, existem outras a partir das quais não podemos, legitimamente, fazer isso. Agora, suponha que nós tenhamos tirado nossas conclusões de verdades de inspiração que não oferecem uma sustentação legítima para o assunto, verdades que, se nós arrazoarmos a partir delas no caso, nos levarão a conclusões erradas; suponha que expliquemos os fatos da consciência à luz dessas conclusões, assumindo que tal deve ser seu verdadeiro caráter, senão negamos a Bíblia. Não nos perderíamos, quase inextricavelmente, no labirinto do erro?

            Os seguintes princípios podem ser tomados como sendo universalmente aplicáveis, se quisermos arrazoar corretamente, como filósofos e teólogos, acerca do objeto sob consideração.

1. No domínio da filosofia, devemos limitar-nos estrita e exclusivamente às leis da investigação psicológica, sem referência a algum sistema de teologia.

2. No domínio da teologia, quando nós quisermos arrazoar a partir das verdades de inspiração na busca da teoria da Vontade pressuposta na Bíblia, devemos ser extremamente cuidadosos e arrazoar somente a partir daquelas verdades que têm uma sustentação direta e decisiva para o assunto, e não a partir daquelas que não tem essa sustentação.

3. Devemos comparar cuidadosamente as conclusões às quais chegarmos em cada um desses domínios, admitindo que se elas não se harmonizam, nós erramos, seja como filósofos ou como teólogos.

4. Em caso de desacordo, devemos refazer nossas investigações independentes em cada domínio, com o propósito de detectar o erro no qual caímos.

Na condução de uma investigação, baseada em tais princípios, nos encontraremos, com quase absoluta certeza, em cada domínio, seguindo os raios de luz, que convergirão juntos na verdadeira teoria da Vontade.

 

Erros de método

 

Dois erros nos quais filósofos e clérigos de uma certa classe têm caído em seu método de tratar o departamento de nosso assunto agora sob consideração, demandam aqui uma ligeira observação.

1. Os dois métodos acima referidos, o psicológico e o teológico, que devem sempre ser mantidos inteira e distintamente separados, infelizmente, têm sido misturados. Assim, o assunto tem falhado em receber uma investigação apropriada em cada domínio, tanto na teologia quanto na filosofia.

2. No raciocínio a partir das Escrituras em busca da teoria da Vontade nelas pressuposta, a verdade errada tem sido apresentada como a base desse raciocínio, a saber: o fato da presciência Divina. Como todos os eventos futuros são conhecidos antecipadamente por Deus, eles são, dizem, em si mesmos certos. Essa certeza compele a adoção de uma determinada teoria da Vontade. Agora, antes de podermos extrair tal conclusão a partir da verdade diante de nós, precisamos conhecer com absoluta certeza as seguintes coisas pertencentes a ela, coisas que Deus não tem revelado, e que nós nunca podemos saber, até que Ele as tenha revelado, a saber: o modo, a natureza, e o grau da presciência Divina. Suponha que Deus nos concedesse apreensões perfeitamente completas e distintas, do modo, natureza e grau de Sua presciência da conduta humana. O que sabemos senão que veríamos então com clareza mais perfeita, que essa presciência é tão consistente com a teoria da Vontade, negada pelos filósofos e clérigos sob consideração, quanto com aquela que eles supõem necessariamente resultar a partir da presciência Divina? Esta, então, não é a verdade a partir da qual devemos arrazoar na busca da teoria da Vontade pressuposta na Bíblia.

Contudo, existem verdades de inspiração que me parecem ter uma sustentação decisiva e direta nesse assunto, e nas quais, portanto, podemos basear seguramente nossas conclusões. Nas Escrituras, o homem é tratado como um agente moral, como sujeito de mandamentos e proibições, de mérito e demérito, e consequentemente de recompensa e punição. Agora, quando determinamos os poderes que um agente precisa possuir para torná-lo, propriamente, um sujeito de mandamentos e proibições, de mérito e demérito, e consequentemente de recompensa e punição, nós determinamos a filosofia da Vontade, realmente pressuposta nas Escrituras. Portanto, sob essas verdades, e não sob a da presciência Divina, essa filosofia deve ser procurada. Isto eu argumento:

1. Porque a primeira tem uma pertinência direta, enquanto a segunda tem apenas uma pertinência indireta ao assunto.

2. Nossas ideias da primeira são perfeitamente claras e distintas, enquanto do modo, do grau, e da natureza da presciência divina nós somos profundamente ignorantes. Por toda a eternidade, nossas ideias da natureza dos mandamentos e proibições, de obrigação, de mérito e demérito, e de recompensa e punição fundamentadas no merecimento moral, podem nunca ser mais claras e distintas do que elas são agora. A partir dessas verdades, então, e não a partir daquelas que nós não entendemos e que têm, no máximo, apenas uma pertinência indireta ao assunto, devemos arrazoar, se de algum modo arrazoarmos, na busca da filosofia da Vontade pressuposta nas Escrituras. O leitor está agora colocado em posse do método que será empregado no tratado a seguir, e está consequentemente preparado para entrar na investigação do assunto diante de nós.

 

Referências

 

MAHAN, Asa. A System of Intellectual Philosophy. Fenwick: Richard M. Friedrich, 2005 [1854].

_____. A Critical History of Philosophy. Vol I. Fenwick: Richard M. Friedrich, 2002 [1883].

_____. A Critical History of Philosophy. Vol II. Fenwick: Richard M. Friedrich, 2002 [1883].

_____. The science of logic; or, an analysis of the laws of thought. Fenwick, MI: Richard M.

Friedrich, 2005 [1857].

_____. Introductory Observations. In:  MAHAN, Asa. Doctrine of the Will. R. E. Gillet. Oberlin, 1845.

_____. Doctrine of the Will. J. M. FITCH. Oberlin, 1847.

_____. The System of Mental Philosophy. J.C. Buckbee e Cia. Chicago, 1882.

TAYLOR, Isaac. Introductory Essay. In: Edwards, Jonathan. An Inquiry into the Modern Prevailing Notions of the Freedom of the Will. James Duncan. Londres, 1831.



[1] Título acrescentado pelo tradutor.

[2] Essas Observações Introdutórias compõem o primeiro capítulo da obra Doctrine of the Will, publicada originalmente em 1845. Cf. MAHAN, Asa. Doctrine of the Will. R. E. Gillet. Oberlin, 1845. Disponível, em 25/01/2021, em Doctrine of the Will (gutenberg.org). Para a presente tradução, o texto utilizado foi: MAHAN, Asa. Doctrine of the Will. J. M. FITCH. Oberlin, 1847, pp 01-13. O texto é de domínio público.

 

[3] Alusão a At. 17,28. (Nota do tradutor).

[4] Alusão a Lc. 17,20. (Nota do tradutor).

[5] Alusão a Ex. 25,9. (Nota do tradutor).

[6] Alusão a Mt. 7,24 e Lc. 6,48. (Nota do tradutor).

[7] Mahan se refere a Freedom of the Will, de Jonathan Edwards (1703-1758), publicado originalmente em 1754 (Nota do Tradutor).

[8] O autor a que Mahan se refere é Isaac Taylor (1787-1865). The Natural History of Enthusiasm foi publicado em 1829 (Nota do Tradutor).

[9] A citação é de: TAYLOR, Isaac. Introductory Essay. In: EDWARDS, Jonathan. An Inquiry into the Modern Prevailing Notions of the Freedom of the Will., James Duncan, Londres, 1831; section II, p XVI (Nota do Tradutor).