A política em face ao nacional-socialismo: um confronto entre Arendt e a teoria crítica de Adorno e Horkheimer

On politics in the national-socialist context: a confrontation of Arendt and Horkheimer and Adorno’s Critical Theory

Ma. Simone Fernandes[1]

Universidade de São Paulo, Brasil
E-mail:
simonebfernandes.usp@gmail.com  

 

RESUMO

Pretende-se analisar a compreensão de Hannah Arendt e dos teóricos críticos Max Horkheimer e Theodor Adorno sobre o papel da política na ascensão do nacional-socialismo, em seus escritos das décadas de 1930 a 1950. É proposto um estudo comparativo de suas divergências quanto à importância explicativa da política e de suas motivações para a crítica à política moderna. Serão discutidos os diferentes caminhos explicativos, os sentidos atribuídos à autoridade e à ideologia e a particularidade da discussão arendtiana sobre o terror totalitário. Partindo destas análises da política moderna, esta investigação tem por objetivo, em primeiro lugar, demonstrar o caráter estrutural do seu confronto, na concepção de poder inerente à teorização da política, tendo-se em vista o peso da liberdade e da dominação subjetiva e, em seguida, pensar o caráter profícuo de alguns aspectos de suas teorizações à luz da experiência contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Política. Totalitarismo. Autoridade. Liberdade. Ideologia.

ABSTRACT

This article aims to analyze the role of politics in the emergence of National-Socialism according to Hannah Arendt and the critical theorists Max Horkheimer and Theodor Adorno’s investigations from the 1930s to the 1950s. It proposes a comparative study of their divergences regarding the explanatory importance of politics and of their reasons for a critique of modern politics. For this purpose, it will be necessary to address the argumentative paths followed by them, the meaning assigned to authority, ideology and to the particularity of the totalitarian terror. Departing from such analysis of modern politics, this study seeks, first, to demonstrate the structural nature of their confrontation, that is, the conception of power behind their theorization of politics, especially regarding the weight of subjective freedom and domination, and, furthermore, to reflect upon the significance of some aspects of their theorizations in light of contemporaneity.

KEYWORDS: Politics. Totalitarianism. Authority. Freedom. Ideology.

 

INTRODUÇÃO

 

Este artigo analisa o estatuto da política na discussão sobre a particularidade e as condições de ascensão e consolidação do nacional-socialismo, comparando as reflexões de Hannah Arendt, por um lado, e dos teóricos críticos Theodor Adorno e Max Horkheimer, de outro. Apesar de consideráveis divergências e falta de interlocução, esta comparação é possível pois ambas as partes, ainda que por diferentes vias, situam os seus êxitos como um desenvolvimento de certas facetas da modernidade, em que a discussão sobre a política se evidencia. No decorrer do artigo, serão explicitados dois sentidos em que a política é o ponto central de sua discordância: quanto à sua importância explicativa neste processo histórico e nas motivações para a crítica à política moderna, em que estão em jogo concepções contrastantes sobre o poder e seu vínculo com a dominação. Tal comparação se concentra em Origens do totalitarismo (1951), de Arendt, e na Dialética de esclarecimento (1947), de Adorno e Horkheimer,[2] mas também faz referência a textos auxiliares dos anos 1930 a 1950. A opção pelo foco sobre estas duas obras, escritas sob o impacto imediato do nacional-socialismo e do antissemitismo, deve-se à sua centralidade para qualquer discussão sobre o tema, bem como ao papel destacado que desempenhariam nos rumos da produção intelectual de cada um.[3]

O objetivo desta análise comparativa é desvelar a concepção de poder inerente às suas abordagens da política, considerando o peso da liberdade e da dominação subjetiva, e, em seguida, destacar os aspectos mais profícuos de suas investigações do nacional-socialismo à luz do presente. Para tal, serão contrastados os seus instrumentos explicativos para a emergência do nacional-socialismo e as suas perspectivas sobre o sentido da autoridade, da ideologia e do terror totalitário.

 

DIFERENTES VIAS EXPLICATIVAS DO NACIONAL-SOCIALISMO

 

Para possibilitar a transição entre as reflexões de Arendt e dos teóricos críticos, é necessário esclarecer, de imediato, uma diferença terminológica referente ao alcance das suas investigações. No caso de Arendt, o termo totalitarismo descreve a Alemanha nazista e o regime soviético. “Fascismo” é empregado apenas em alusão ao regime de Mussolini, pois a autora caracteriza o totalitarismo como uma forma de dominação muito mais radical do que ele, em vista da especificidade de sua ideologia e do terror (OT, p.455). Por sua vez, em face ao nazismo, Adorno e Horkheimer argumentam estar em curso um mesmo processo político mundial, percepção que está na base da Dialética do esclarecimento. Este processo, como define Horkheimer (ao menos em parte em linha com teorizações do economista Friedrich Pollock), estaria ancorado em uma tendência à formação de Estados autoritários, em que a esfera política assume a função de planificação econômica, prevenindo as crises cíclicas do capitalismo e suplantando os antagonismos que pudessem conduzir à emergência de uma sociedade emancipada, meta da teoria crítica.[4] O fascismo italiano e o nazismo (ambos subsumíveis sob o termo “fascismo”), a experiencia soviética, mas também a política estadunidense, com diferentes gradações, seriam Estados autoritários (HORKHEIMER, 1978).[5] A expressão fascismo, em sentido ainda mais amplo, serve como uma denominação geral de tendências autoritárias e belicistas também fora dos países do Eixo, que implicam o ímpeto de destruição da diferença, perseguição de minorias e apelo irracional às massas, mesmo onde não organizadas como força política relevante. Já o termo totalitarismo aparece tanto na afirmação de que o Esclarecimento é totalitário, discutida abaixo, quanto em referência a um regime, mas sem uma explicitação de particularidade em relação ao fascismo.

Arendt destaca a especificidade moderna do totalitarismo, sobretudo o fato de tratar-se de uma experiência política sem precedentes, em pleno contraste com os regimes políticos que o precederam. Ao mesmo tempo, busca compreender como ele emergiu de uma constelação histórica e quais forças abriram caminho para o seu estabelecimento. O seu foco é sobre o antissemitismo (tema originário de sua investigação) e o imperialismo[6], apresentados não como causas, mas elementos contingentes que se cristalizaram e, mesmo quando “insignificantes e desprovidos de importância na política mundial” (como a questão judaica e o antissemitismo), vieram a ser catalizadores do nazismo, da guerra e do extermínio em massa (OT, pp.12-13;21-22). Nesta tentativa de compreensão, autora não poupa a responsabilidade de algozes e vítimas, ressaltando que a ação política poderia tê-lo evitado.

Adorno e Horkheimer, por sua vez, pretendem expor a gênese do nacional-socialismo na base econômica da sociedade burguesa moderna e em seus efeitos sobre a subjetividade, ao mesmo tempo detectando continuidades em relação ao capitalismo liberal (os interesses particulares, a dominação social e a violência) e destacando a sua radicalização em um novo contexto econômico (como perda de contenções e mediações e em termos de uma maior ameaça à individualidade). A abolição das tendências fascistas observadas em seu tempo, segundo estes autores vinculados ao marxismo, só seria possível com a superação da sociedade capitalista, algo que não parecia estar no horizonte. Ao contrário, em franca oposição aos anseios emancipatórios da teoria crítica, vivenciaram a perda do sujeito revolucionário e a adesão das massas ao partido nazista. Nos anos 1940, teria se estabelecido a primazia da política, não como atividade de discussão e deliberação, mas como organização estatal, domínio das burocracias e sua aliança, motivada por interesses particulares, com outros setores da sociedade. Nesse sentido, emerge um primeiro contraste com Arendt: Adorno e Horkheimer não produziram uma teoria política que pensasse a especificidade de seus regimes e a atuação política. Isso não implica acusá-los de apresentarem uma leitura simplista, que vinculasse base e superestrutura, ou explicações funcionalistas. Embora tomem como ponto de partida o econômico, a sua análise se complexifica considerando a cultura e a psicologia individual e desdobrando não apenas a sua vinculação à base material da sociedade, mas também a sua relativa autonomia. Exemplos disso são o projeto do materialismo interdisciplinar, de Horkheimer, o rearranjo disciplinar de Horkheimer e Adorno na década de 1940 e a condução dos estudos empíricos abordando fatores psicológicos e culturais.[7] Como nota Abensour, há uma opção consciente de deixar de lado a teoria política para amplificar a força de sua crítica, segundo o próprio Horkheimer (ABENSOUR, 2001, p.224). Um segundo contraste entre estas duas tradições é a abordagem psicanalítica do fascismo pelos teóricos críticos. A elaboração da escala F nos estudos empíricos sobre a personalidade autoritária, conduzidos nos Estados Unidos da década de 1950, ilustra a sua preocupação com predisposições subjetivas, a suscetibilidade dos sujeitos à propaganda fascista mesmo em uma sociedade democrática, identificada com instrumentos psicanalíticos em parte da amostra.

Por fim, observe-se a posição de ambas as partes quanto à URSS. Há uma convergência na percepção de que o regime soviético é contrário à liberdade individual e tem afinidades com o nacional-socialismo, mas o embasamento desta tese é distinto. No caso de Arendt, como ficará mais claro na discussão da noção de ideologia, trata-se de um regime que se apoia na mesma lógica consistente e implacável que o nacional-socialismo, embora a sua meta declarada seja distinta – não a prevalência da raça ariana, mas a vitória do proletariado. Na configuração do Estado autoritário de Horkheimer, o ponto comum entre o nacional-socialismo e o regime soviético é a prevalência de burocracias e a estrutura de poder estatal, embora com nuances, na medida em que o estatismo integral ou socialismo de Estado era por ele considerado “a forma mais consistente do Estado autoritário, que se libertou de qualquer dependência do capital privado” (HORKHEIMER, 1978).

Estabelece-se, assim, um primeiro esclarecimento dos seus caminhos explicativos para dar conta do nacional-socialismo. Para Arendt, um desenvolvimento histórico contingente e a ênfase na importância de liberdade e responsabilidade individuais na ação política. Para os Horkheimer e Adorno, um processo dialético, movido por contradições internas, em que o desenvolvimento econômico capitalista está em primeiro plano, acompanhado da análise de predisposições subjetivas por ele engendradas, construção teórica em que a liberdade aparece projetada em sua forma plena em um futuro pós capitalista. É sobretudo importante para se compreender o juízo dos teóricos críticos sobre a política que uma mesma lógica parece permear diferentes esferas e “tanto o poder como o conflito são onipresentes, mas o conflito político é raro ou está em vias de extinção” (HEINS, 2006, p.61). Importa agora discutir em maior detalhe um aspecto que permeia ambas as investigações sobre as origens do totalitarismo e é elucidativo de uma divergência fundamental em termos do que é a dominação dos sujeitos e em que contexto ela ocorre: a concepção contrastante de cada qual sobre o que é autoridade.

 

CONCEPÇÕES CONTRASTANTES DA AUTORIDADE E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA MODERNA

 

Em “O que é autoridade” (1954), de Arendt, este termo, comumente relacionado à coerção, à violência e à heteronomia, tem um sentido positivo, em referência a uma forma de obediência investida de poder legítimo, em que os sujeitos mantêm sua liberdade. Tal legitimidade advém de uma força externa e superior àquele que comanda (ARENDT, 1979, p.134). Ou seja, o sujeito investido de autoridade é moderado por leis que não foram feitas por ele e, sob a sua vigência, a ordem política é legitimada “em referência a uma força extrapolítica, transcendente” (VILLA, 1996, p.159). Como destaca Katia Genel, a autoridade é, assim, fundação, condição de possibilidade para a manutenção de um mundo comum e para a política (GENEL, 2013, p.217).

A tipologia de regimes políticos de Arendt apresenta o governo autoritário como uma forma piramidal, em que a sede do poder está no topo; a fonte da autoridade é externa a quem exerce o poder, devido às camadas intermediárias de autoridade e à integração entre elas e o conjunto. Em sua efetividade, os direitos civis são respeitados e aquele que governa é regulado por leis. Distintamente, na tirania, apenas um sujeito governa conforme seu arbítrio e interesse; como se este líder estivesse isolado no topo, sem as camadas intermediárias da pirâmide, só e contra todos. Nas formas totalitárias, por sua vez, a estrutura de governo tem a forma de uma “cebola”: o líder está no centro, atuando de dentro (e não de fora ou de cima), visando a um domínio completo. Como na Alemanha nazista, em que o “desejo do Führer” vale como lei suprema e não se estabelece uma hierarquia tradicional, pois “toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário” (OT, p.500). Como resume Correia, em contraste com os modos de se fazer política no passado, no totalitarismo “são cerceadas ao máximo as possibilidades daquele ‘agir em concerto’ que Arendt compreende ser o poder, enquanto manifestação mais própria da pluralidade humana” (CORREIA, 2018, p.144).

Segundo o diagnóstico arendtiano da modernidade, a autoridade estaria em desaparecimento em meio a uma crise política, resultante de um processo de séculos que solapara a tradição. Ao contrário da acepção recorrente que a vincula à perda de autonomia individual, a tradição é, para Arendt, capaz de ligar a humanidade ao seu passado e manter sua memória, propiciando um senso de permanência e durabilidade, um mundo comum.[8] Assim, temos, de um lado, autoridade e tradição como bases da vida política e, de outro, o totalitarismo emergindo e se beneficiando do enfraquecimento destas autoridades tradicionais, dando ainda um passo adiante na abolição de todas as tradições sociais, legais e políticas. A sua meta seria destruir totalmente a liberdade humana, em contraste com a relação entre liberdade e autoridade, que era apenas da ordem de restrição da primeira.

Por sua vez, Adorno e Horkheimer descrevem a autoridade predominantemente em sentido negativo, em oposição à autonomia individual e, mais do que isso, vinculada a uma dimensão subjetiva da dominação social. Investigando relações de autoridade desde a década de 1930, Horkheimer coloca foco sobre seu estatuto como mecanismo de dominação, instrumental no bloqueio do desenvolvimento da auto-organização do proletariado que desembocaria, segundo a teoria marxiana, em uma sociedade emancipada. Um aspecto positivo e racional da autoridade, a disciplina no trabalho basilar para o desenvolvimento dos avanços técnicos na produção e, assim, da própria possibilidade de libertação da necessidade material, é reconhecido pelo autor, mas a sua atenção está concentrada na ameaça da submissão irracional à autoridade, “[n]as mediações que asseguram a interiorização da dominação” (GENEL, 2013, p.19). O que há de particular na autoridade em relação à dominação social pura e simples é, como nota Genel, a sua compatibilidade com uma (aparente) liberdade e com um senso de legitimidade, mesmo que forçado (idem, ibidem).

O tratamento do problema se dá em dois terrenos: o estudo histórico da autoridade e a sua manifestação como predisposição subjetiva. Quanto ao primeiro ponto, diferente de Arendt, o alvo de Horkheimer é a permanência da autoridade como menoridade na sociedade moderna. Pensando nas diretrizes da obra deste autor, pode-se falar em uma “dialética da sociedade burguesa”, termo cunhado por John Abromeit em referência a um duplo movimento: o ímpeto de libertação, propugnado pela burguesia ascendente em oposição à nobreza, seguido do reestabelecimento da valorização da autoridade, após a consolidação da burguesia como classe dominante, contexto em que as relações de autoridade vêm a ser reafirmadas para a manutenção do seu poderio econômico (ABROMEIT, 2011, p.417). Já na década de 1940, como observa Genel, as transformações da autoridade são remetidas a um processo de racionalização, designando não apenas relações institucionais, mas também transfigurações ideológicas (como o positivismo) e em referência aos fenômenos históricos mais diversos (GENEL, 2013, pp.18;200).

No mesmo período, Horkheimer esboça a teoria de rackets, que apresenta o conflito social como imbuído da competição por mais-valia e descreve as relações entre grupos de interesse e até mesmo dentro das organizações trabalhistas como uma troca de proteção segundo a lógica da extorsão, um modo de operação mafioso presente desde o passado arcaico, conservado em nichos da sociedade e, mais recentemente, permeando as relações sociais no contexto monopolista (HORKHEIMER, 2021). É neste contexto que se observa de modo mais agudo a postulação de Horkheimer de que a política estava restrita à defesa de interesses particulares e que não poderia ser de outra forma, a não ser que houvesse uma radical modificação da estrutura social. Além disso, é mais uma ocasião para a descrição da escalada da dominação social, considerando-se o seu entranhamento nas subjetividades, percepção endossada por Adorno em “Reflexões sobre a teoria de classes” (1942), que declara que “a dominação se torna parte integral dos seres humanos” (ADORNO, 2003, p.109).[9]

Esta abordagem da dominação social enfatiza o poder exercido pela sociedade sobre os indivíduos, conforme o quadro teórico marxista que identifica a sua fonte na estratificação da sociedade em classes e na divisão do trabalho. Ela pode dizer respeito a mecanismos de controle baseados na força e na coerção, diretos ou internalizados. A política, neste contexto, é a ciência da dominação humana, teorizada também com referência a Maquiavel, Hobbes, Mandeville, Nietzsche, Sade, entre outros, e inseparável do cinismo e brutalidade necessários à manutenção da sociedade burguesa. Toda discussão sobre princípios políticos liberais e democráticos visa apenas expor o seu caráter ideológico e o estatuto abstrato da liberdade política, como resume Abromeit (2011, pp.116; 147).

Aprofundando a compreensão da dominação, a investigação de Horkheimer e Adorno, além de abarcar a dominação dos sujeitos uns sobre os outros, tem por particularidade o foco na dominação da natureza interna, na própria constituição da subjetividade, que envolve a análise do condicionamento de anseios e aspirações individuais, do efeito da dominação sobre as pulsões e as defesas psíquicas, com o auxílio do Supereu (contexto em que os autores recorrem a Freud).

Tal problemática da autoridade na formação subjetiva já estava no cerne dos Estudos sobre autoridade e família, de 1936. Ali, a família é identificada como espaço de constituição das relações de autoridade, no sentido de relações irracionais de subordinação que obscurecem a capacidade de crítica à realidade (cf. HORKHEIMER, 2011).[10] Os estudos empíricos conduzidos por integrantes do Instituto de pesquisa social, sobretudo por Erich Fromm em colaboração com Horkheimer, identificaram, com apoio na psicanálise freudiana, duas tendências psíquicas complementares, manifestas como compulsão inconsciente: a fixação dos sujeitos pela autoridade de líderes e o prazer sádico na subjugação dos mais fracos, expressos na noção de caráter autoritário ou sadomasoquista. Nas décadas de 1940 e 1950, parte desta orientação se conserva na noção de “personalidade autoritária”, que visa a descrever predisposições subjetivas ao apoio a líderes, valores e ideias etnocêntricas, antissemitas e fascistas, assombrando a própria democracia estadunidense. No entanto, importa ressaltar que, em seu arranjo interdisciplinar, nem a psicologia individual nem a economia são “causas” diretas do fascismo. Como afirma Adorno em um ensaio de 1951, “disposições psicológicas, na verdade, não causam o fascismo; em vez disso, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada de forma bem-sucedida pelas forças que o promovem por razões de interesse próprio completamente não psicológicas” (ADORNO, 2015, p.186). O vínculo entre o fascismo e o desenvolvimento da economia capitalista é, por sua vez, mais estreito, e o seu modo de configuração, a estrutura coercitiva e irracional da sociedade, é um fator explicativo de maior preponderância. Nessa direção, como indica Costa, a sua antropologia do tipo autoritário não é “uma abordagem psicológica, nem sociológica, muito menos existencialista e religiosa”; na verdade, “denota parte da formação hegemônica de indivíduos sob influência do capitalismo administrado” (COSTA, 2021, p.347).

Assim, a autoridade tem sentidos divergentes para Arendt e os teóricos críticos, mas em ambos os casos o seu estatuto moderno é inseparável do desenvolvimento da sociedade na direção do nacional-socialismo. Para Arendt, como vimos, a autoridade é promotora da liberdade e estaria em desaparecimento na sociedade moderna, fator que contribui para o totalitarismo. Em sentido oposto, os teóricos críticos a tomam como uma força cultural e psíquica contrária à autonomia individual e que mais recentemente se fortalecera. Como sugere Genel, “estamos lidando, da parte de Horkheimer, com uma crítica de autoridade e, da parte de Arendt, com uma teoria de autoridade que observa tanto sua perda quanto sua necessidade” (GENEL, 2013, p.202).

Mais do que isso, ao passo que Adorno e Horkheimer pensam a continuidade histórica da dominação e da autoridade como menoridade, Arendt nega este vínculo e destaca a total originalidade da experiência totalitária, cujas ações “explodem nossas categorias do pensamento político e nossos padrões de julgamento moral” (ARENDT, 1994c, pp.309-310), desafiam todo senso comum e regras do pensamento utilitário, representando “a mais radical negação da liberdade” (ARENDT, 1994d, p.328).

Observa-se, neste contexto, que o ponto nodal da diferença entre as teorizações de Arendt e de Adorno e Horkheimer reside em suas concepções sobre o poder. Para os teóricos críticos, o poder é concebido apenas em seu vínculo com a dominação social, a ideologia e a reificação, uma herança das teorias marxiana e lukácsiana sobre a sociedade de classes, complementada por categorias nietzscheanas, weberianas e freudianas na Dialética do esclarecimento, que apontam a recorrência histórica e o vínculo da própria civilização com a repressão e a violência e os seus efeitos sobre a subjetividade. Em contraste, para Arendt, “onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou” (ARENDT, 1979, p.129). O poder imbuído de autoridade, como apontado, tem uma legitimidade que vem de fora do sujeito que o exerce; a tematização da dominação diz respeito apenas ao contexto do terror totalitário. Assim, pode-se falar em “noções opostas sobre poder (político): ao passo que Adorno aceita a compreensão do poder instrumental moderno de Weber, Arendt distingue conceitualmente o poder da dominação sobre alguém” (RENSMANN & GANDESHA, 2012a, p.8)[11] e, mais do que isso, vincula política e liberdade.[12]

 

O APELO DA IDEOLOGIA TOTALITÁRIA

 

A afirmação de que a ideologia e o terror foram centrais à dominação das massas no nacional-socialismo seria aceita tanto por Arendt como pelos teóricos críticos, mas com sentidos divergentes, que pretende-se elucidar a seguir com vistas a uma análise do desfecho de um processo que se desenvolve na modernidade.

Para Arendt, as ideologias, ou “ismos”, são explicações totalizantes que haviam tido papel insignificante na vida política até as suas potencialidades serem descobertas por Hitler e Stálin para fins de propaganda totalitária. A sua capacidade de conquista e retenção da adesão das massas está ancorada na desorientação ocasionada pela destruição moderna de tradições e de um “mundo comum”, em face aos quais se torna atrativa a afirmação propagandística de uma pretensa verdade científica. O conteúdo da ideologia nazista é a ideia de superioridade racial expressa no antissemitismo, que tem por base e reforça a caracterização do judeu como inimigo e conspirador. Ou seja, o antissemitismo, como elemento do totalitarismo, se apoia no ódio ao judeu já presente em outros contextos históricos, mas é qualitativamente diferente dele, na medida em que está voltado a todo o ser do judeu e não apenas ao credo religioso. Gradativamente, ele se torna prevalente sobre toda a vida social, invadindo até a esfera íntima dos sujeitos.

Uma vez atingido o controle totalitário absoluto, a propaganda é substituída pela doutrinação e a violência é empregada não mais para assustar, “mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias” (OT, p.474). Ou seja, o que está em jogo é a criação concreta de uma “nova verdade”, no momento derradeiro em que “o terror é necessário para tornar o mundo consistente e mantê-lo como tal; para dominar os seres humanos até o ponto em que percam, com a sua espontaneidade, a imprevisibilidade de pensamento e ação especificamente humanos” (idem, p. 350).

Ressalve-se que o conceito de ideologia de Arendt não deve ser confundido com a formulação marxista de falsa consciência ou ilusão socialmente necessária. Ao passo que esta concepção designa um conjunto de ideias que impele à atuação de uma classe social contra seus próprios interesses econômicos, constituindo um empecilho à modificação revolucionária da sociedade, o que está em questão para Arendt é a ideologia como uma lógica totalizante. Nesse contexto, a concepção de ideologia de Arendt se volta contra o marxismo - em dois contextos: na discussão do marxismo teórico como uma ideologia e no caso concreto do regime totalitário da URSS. Ao apresentar o marxismo como ideologia, Arendt compara o modo como os bolcheviques falavam sobre leis da história (a luta de classes como força motriz, a predestinação do proletariado, que deveria passar por cima de todo obstáculo, violentamente, para atingir a sua meta) e os nazistas falavam em leis darwinistas da natureza – ambos movimentos que visavam o fim da história, à luz do qual o presente era um mero estágio.

Esta ideia de movimento, de uma direção na história e de uma “explicação total” (OT, p.627) consiste em um dos três elementos especificamente totalitários de todo pensamento ideológico para Arendt. Em segundo lugar, está o afastamento da realidade fatual e a postulação de uma realidade “mais verdadeira”, oculta – a exemplo da crença em uma conspiração mundial judaica. Em terceiro lugar, forma-se um sistema absolutamente coerente, que tudo deduz de uma premissa aceita axiomaticamente; ideologia cujo conteúdo é “tão real e intocável de sua vida como as regras de aritmética” (OT, p.498). Tal processo lógico é mais importante para o totalitarismo do que o conteúdo da ideologia. Nesse sentido, o que separa Hitler e Stálin de seus antecessores não é algum novo aspecto de suas ideologias em relação ao passado, mas o foco sem precedentes em um processo lógico coercitivo, imune à contradição – que esvazia, ao fim, o conteúdo da ideologia. Para os indivíduos, isso significa a autodestituição da liberdade, “o perigo de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa” (OT, p.626).

Adorno e Horkheimer, distintamente, relacionam o nacional-socialismo com a ideologia a partir do conceito marxiano. Ainda que críticos do stalinismo, não vinculavam a situação na URSS com alguma característica intrínseca da teoria de Marx. Mas o mais importante e característico de sua abordagem é o fato de irem além da sua formulação da ideologia, na tentativa de esquadrinhar o seu ancoramento psíquico, tomando como fator de mediação as disposições psíquicas dos sujeitos, como o caráter e as defesas psíquicas formados no contexto da sociedade capitalista. Na Dialética, e mais especificamente no estudo sobre a indústria cultural, por sua vez, a ideologia consistiria na apologia do existente promovida pela cultura e na atribuição do aspecto de destino à realidade. No capítulo sobre o antissemitismo, mais do que o seu aspecto ideológico, o foco é sobre as satisfações psíquicas obtidas na perseguição do judeu.

Importa, então, qualificar o apelo da ideologia. Segundo Arendt, embora anteriormente as ideologias já contivessem uma espécie de super-sentido, quando alegavam conhecer “a chave da história ou a solução para os enigmas do universo”, no totalitarismo têm por especificidade serem blindadas dos ataques do bom senso ancorado no pensamento utilitário, pois foi criado “um mundo demente que funciona”, graças ao qual o desprezo totalitário pela realidade é investido de irrefutabilidade (OT, p.607). O apelo dessa lógica é, em grande medida, fruto da situação dos indivíduos atomizados, que perdem contato com seus semelhantes e com a realidade e, assim, a capacidade de sentir e pensar (OT, p.632) e se veem desprovidos da potência oriunda do seu agir em conserto. Este tema diz respeito a duas experiências basilares para o totalitarismo e o terror: o isolamento e a solidão.

Arendt caracteriza o isolamento como “aquele impasse no qual os homens se veem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída” (OT, p.633). Ele apenas se torna insuportável, continua, “quando se destrói a forma mais elementar de criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo ao redor”, o que pode ocorrer em um mundo cujos valores sejam ditados pelo trabalho (OT, pp.633-634). Na sua manifestação extrema, está em jogo um aspecto comum entre as tiranias e o totalitarismo: a destruição da vida pública e das capacidades políticas dos seres humanos. Já a solidão não diz respeito simplesmente ao fato de se estar só, mas à experiência da destruição da vida privada, “de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter” (OT, p.634). Aqui encontramos o cerne da crítica de Arendt à moderna destruição da autoridade, na percepção de que a solidão e o desarraigamento e superfluidade a ela inerentes se tornaram experiência diária das massas.[13] A solidão implica, ainda, a perda de uma confiança elementar no mundo, base de toda experiência, do pensar e do sentir (OT, p.637). “A capacidade do raciocínio lógico, cuja premissa é aquilo que é evidente por si mesmo”, que prescinde destas habilidades perdidas, é a força do totalitarismo (OT, p.637).

A preocupação de Arendt com o afastamento da política é também manifesta em sua descrição do surgimento das massas e da ralé, ambas tendo em comum a ausência de representação política, o isolamento e o falta de relações sociais normais. As massas, devido ao seu número ou indiferença, não se integram a qualquer organização baseada no interesse comum; “constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto” (OT, p.439). A ralé é formada por membros de todas as camadas sociais que se sentem excluídas e não representadas no Parlamento; por isso, brada por um líder, o “homem forte”, propaga ideias niilistas e é propensa à violência. Esse subproduto da sociedade burguesa, dela inseparável, aliou-se ao capital no imperialismo, regozijou-se com a diferença racial, teve influência histórica no caso Dreyfus, esteve implicada na ideologia totalitária e abriu caminho para o terror.

            Para Horkheimer, a emergência das massas na sociedade burguesa teria implicado, desde o início, uma assimetria entre líderes e seguidores, baseada nos métodos irracionais e simbólicos de sua vestimenta, atitude ascética e discurso.[14] A necessidade para tal residiria na diferença de interesses econômicos entre a burguesia e as classes mais baixas e sua decorrência mais importante é o emprego das massas como meio de perseguição de opositores, de modo análogo à posterior perseguição dos judeus. Situando a possibilidade desta instrumentalização das massas em suas necessidades pulsionais e existenciais (HORKHEIMER, 2011, pp.182-188), Horkheimer volta a sua atenção aos mecanismos pelos quais elas são mobilizadas. Na Dialética, observa-se que as massas são movidas por dois impulsos apenas aparentemente contraditórios, também mobilizados por diferentes aparatos que visam a perpetuação da dominação social: a conformação (exortada pelos produtos da indústria cultural) e o fascínio pelo despotismo e liberação da destrutividade (expressos na política de massas e oriundos das renúncias civilizatórias). Mas, importa recordar, a dominação teria sido interiorizada em grande medida, de modo que os estímulos externos apenas a reforçariam.

Entre os teóricos críticos, não se estabelece uma discussão das decorrências da perda do agir em conserto e da referência propiciada por um mundo comum como fatores de ascensão do totalitarismo; em vez disso, a política é em si campo de manipulação e mobilização das massas contra inimigos, sem que se pensasse um “antes”. Ou seja, os autores reconhecem o estatuto do indivíduo como mônada isolada na sociedade moderna, mas isso não tem as mesmas consequências que para Arendt, novamente em vista da concepção das relações sociais sobretudo como relações de dominação.

 

A DOMINAÇÃO TOTALITÁRIA INSTITUÍDA EM TODAS AS SUAS CONSEQUÊNCIAS: O TERROR

 

O terror totalitário, tema de destaque em Origens, não é discutido em sua particularidade pelos teóricos críticos. Enquanto Arendt argumenta que nesse contexto se realiza o ímpeto totalitário de destruição do indivíduo e abolição da liberdade, para os teóricos críticos a ameaça à individualidade precede o terror no contexto nacional-socialista e, como visto, permeia até mesmo a sociedade estadunidense.

Assim como distingue tirania e totalitarismo, Arendt também diferencia suas respectivas formas de terror. O terror tirânico cessa quando se obtém “uma paz de cemitério”, ou seja, quando os opositores são eliminados; já o terror totalitário não se detém aí, e segue atuando pela criação de inimigos fictícios. Esta nova forma de terror é de difícil compreensão porque não é possível identificar um motivo utilitário por trás da destruição dos judeus e de outros grupos, que se tornara onerosa em termos financeiros e práticos próximo ao fim da guerra. O seu papel essencial à manutenção do poder tampouco consistia em ameaçar opositores, já que o terror total fora instaurado justamente quando o regime poderia prescindir dele, pois não era ameaçado por qualquer oposição (OT, p.584); ele é, em vez disso, “instrumento corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes” (OT, p.29). Nesse sentido, o totalitarismo é descrito não simplesmente como um regime, mas como “um movimento, cuja marcha constantemente esbarra contra novos obstáculos que têm de ser eliminados” (OT, pp.565-566), devido ao seu ímpeto fundamental de destruir toda possibilidade de ação dos indivíduos, ou seja, tudo que possa contradizer a sua “lógica coerente”. Note-se que apenas neste momento Arendt tematiza a dominação, que se reveste de uma força totalizante e avassaladora – no contexto da deturpação da política como violência e terror, do abandono de qualquer lei que não seja a vontade do líder. Sobretudo nos campos de extermínio se testava o medo indefinido e o treinamento do domínio totalitário, necessários para inspirar o fanatismo da tropa e manter o povo apático.

A autora identifica, nesta discussão, o que é particular ao totalitarismo. Não se trata de guerra de agressão, do extermínio de povos, escravidão ou de campos de concentração temporários como aqueles que surgiram no começo do regime nazista e em que Arendt chegou a ser aprisionada, todos eles já presentes em outros momentos históricos. O horror dos campos de extermínio é meio para a destruição do humano almejada pelo totalitarismo.

Para elucidar a sua concepção do humano que o totalitarismo almeja destruir, Arendt descreve a pessoa média como mistura de espontaneidade e condicionamento (ARENDT, 1994a, p.240); de “instintos e impulsos que não são programados para produzir reações idênticas em todos nós, mas que sempre movem diferentes indivíduos a atos distintos” (1994b, p.304). A teorização sobre a espontaneidade, capacidade de agir necessária ao exercício da liberdade, é um passo na direção daquilo que a autora viria a chamar de “natalidade”, desenvolvida em escritos posteriores, que indica que o encadeamento de eventos históricos (cuja própria ideia é em si uma contradição em termos) é interrompido a cada nascimento de um ser humano, que representa um novo começo (1994c, p.326, n.18). A supramencionada tendência totalitária a seguir supostas leis da natureza ou da história vincula-se, em sentido oposto, ao ímpeto de sacrificar o homem em nome da espécie ou da humanidade.

Os teóricos críticos discutem por outras vias a barbárie nos campos de concentração e extermínio. Na Dialética do esclarecimento, o terror aparece como subproduto da dinâmica da racionalidade. Visando um sentido de Aufklärung extrapolado para a pré-história da humanidade, como processo de dominação da natureza, desencantamento do mundo e racionalização, o esclarecimento é descrito como totalitário devido à sua racionalidade corrosiva em face a todos os valores e doutrinas com que se defronta e da sua negação da alteridade (DE, p.19). Nesse momento, há uma discussão sobre o abandono da tradição e dos valores morais propugnados no imperativo categórico kantiano, que perde o seu poder quando o pensamento esclarecido, funcionalizado e instrumentalizado, se revela incapaz de balizar o imperativo moral. O auge deste processo é a ordem totalitária, em que os seres humanos são tratados como centros de comportamentos, objetos do pensamento calculador e da eficiência sanguinária. Nesse contexto, o sujeito esclarecido e livre da tutela descrito por Kant se revela um questionador radical de todos os valores, como almejava Nietzsche, e, mais adiante, como um personagem sistematicamente cruel do Marquês de Sade (DE, pp.74-75). O terror, que constantemente emergia ao longo da história ou se escondia em nichos da sociedade, exemplificado por Horkheimer na Inquisição e perseguições e assassinatos posteriores à Revolução Francesa,[15] é agora sistematizado e administrado conforme a compulsão do pensamento esclarecido.

A capacidade de começar algo novo, que para Arendt é mantida até a vigência do terror, teria sido minada antes, segundo os teóricos críticos: pela compulsão à submissão à autoridade e pelo crescente cinismo e “elaboração consciente da ideologia” no contexto do capitalismo monopolista (HORKHEIMER, 1980, p.158). Mas o seu quase total aniquilamento, na Dialética, sem que se aponte uma saída emancipatória consistente, diz respeito à perda da imaginação teórica a respeito de uma outra ordem social; à tendência à adaptação, conformismo e resignação, imbuída nos sujeitos desde a infância, na formação do seu eu e reforçada pelos produtos da indústria cultural (DE, p.39; 113-119); e até mesmo à revolta contra toda promessa de felicidade e satisfação, expressa na reação contra os judeus (DE, p.164). Em vez do novo, o pensamento esclarecido, em seu estágio mais desenvolvido, remete ao destino, à repetição, à imanência.

Em suma, o totalitarismo é, para Arendt, algo inaudito não simplesmente pela sua violência, mas pela meta de destruição do humano. Adorno e Horkheimer, distintamente, buscam destacar uma continuidade na violência que teria prevalecido ao longo da história e imbricada na relação dos sujeitos consigo mesmos. Para ela, a negação da liberdade e a relação de dominação radicalizada resultam de um processo contingente, de uma constelação de eventos históricos que poderia ter sido interrompida em muitas oportunidades; para eles, estas tendências já vinham permeando a história, inicialmente vinculadas à escassez material e na atualidade como forma social obsoleta.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A comparação entre Arendt e os teóricos críticos aqui esboçada foi possível, apesar de suas profundas diferenças teóricas, pois de ambos os lados está em jogo uma visão do nacional-socialismo como resultado de um processo histórico, ao mesmo tempo destacando a sua especificidade moderna e colocando em xeque filosofias do progresso. No contexto atual, após vitórias eleitorais de movimentos e partidos políticos autoritários e que empregam sua retórica contra minorias, a retomada destas discussões e sua potencial complementaridade é ainda mais relevante. Este artigo abordou a questão através de uma comparação entre as suas visões sobre o estatuto da política, arena de surgimento e espaço essencial ao combate a estes movimentos, tema em que as considerações de Arendt são mais evidentes e as análises dos teóricos críticos parecem deficitárias.

Em tal comparação, é essencial diferenciar duas vertentes e em que sentido convergem: trata-se do diagnóstico sobre a política em seu tempo e da concepção do que a política é em si, para além do presente. Quanto à primeira dimensão (diagnóstica), ambas as partes vinculam o totalitarismo a uma ausência de política no sentido estrito. Para Arendt, o totalitarismo é o avesso da política, a sua negação, e emerge em um momento em que ela já se encontrava em crise. Para os teóricos críticos, o sentido da afirmação de uma primazia do político em detrimento do econômico diz respeito não à prática política, mas à administração e burocratização do Estado autoritário, à violência e a conflitos não sobre pautas de interesse geral, mas pelo monopólio econômico. Tais diagnósticos são inseparáveis da concepção do que é a política em sentido mais amplo: Arendt apresenta uma concepção de política, cujas bases encontra na Antiguidade, que separa de modo claro o diagnóstico do presente e a essência de política, ao passo que os teóricos críticos não fornecem uma análise da essência da política para além da sua forma vigente.

Este déficit da teoria crítica sobre o político em si se relaciona, sem dúvida, à sua filiação à teoria marxiana, mas ela não é suficiente para explicá-lo, já que os autores nunca a tomaram de modo ortodoxo. Ele advém sobretudo de uma percepção do aspecto pervasivo do poder como dominação, em grande parte apoiado em Max Weber, impossibilitando a concepção da política como arena de deliberação, concessões e acordos com base em valores e metas que não sejam apenas particulares, mas apontem para ideais e metas coletivos. Em suma, como ressalta Abensour, a teoria crítica se afasta deliberadamente da filosofia política com o propósito de manter a sua vocação crítica (2001, p.225). Um juízo diferente da política seria ideológico, segundo os autores, que defendem uma mudança estrutural da sociedade. E tampouco na concepção de uma sociedade emancipada fica claro qual seria o papel da política, na medida em que não é traçada uma descrição da sua estrutura, apenas de dois aspectos referentes à subjetividade: a autonomia e a felicidade individual.

Assim, no confronto entre estas perspectivas, a balança parece pender quase totalmente em favor de Arendt, em vista da magnitude e riqueza de sua análise da política, da discussão minuciosa sobre regimes políticos e da teorização da especificidade do terror totalitário. No entanto, a par desta evidente assimetria e de uma visão pouco nuançada dos teóricos críticos sobre a natureza do político, alguns elementos de suas análises poderiam complementar ou corrigir lacunas da teorização de Arendt. Dois aspectos devem ser ressaltados neste confronto: o papel da dominação social e as concepções de cada uma das partes sobre o sujeito da política, ou seja, sobre liberdade e agência. Ambas as questões estão implicadas tanto na explicação da emergência de movimentos totalitários como na avaliação da possibilidade e do valor da democracia.

Quanto à dominação social, acima foi exposto o contraste entre Arendt, que distingue radicalmente política e dominação, e os teóricos críticos, que as vinculam. A este respeito, subscrevemos a posição de Abensour, segundo o qual a dominação social precisa ser considerada como um aspecto da política, mas esta não deve ser reduzida a ela. Ao passo que Arendt negligencia este ponto, os teóricos críticos perdem de vista, devido ao foco na dominação social, uma dimensão positiva e própria da política quando tomada em sua dignidade própria e como campo de relação interpessoal e disputa, como abertura para a multiplicidade, para um modo singular e livre de associação humana, que caberia dentro da ideia de uma sociedade emancipada, como nota Abensour (2001, pp.226-227;249). Este déficit da teoria crítica parece comprometer o seu potencial democrático, mas, quando se volta a atenção a escritos posteriores de Horkheimer e Adorno, uma mudança de atitude é visível. Horkheimer reavalia os princípios políticos liberais no começo dos anos 1950 (ABROMEIT, 2011, p.175); Adorno manifesta, sobretudo em seus escritos sobre a cultura política estadunidense, a defesa da democracia (MARIOTTI, 2016). Sem dúvida, tema central nesta discussão é a preocupação quanto à reemergência do fascismo, a ser combatida com o reforço à democracia e pela educação (ADORNO, 1995).[16]

Note-se que, por outro lado, Arendt tampouco foi omissa na problematização dos limites da democracia. Exemplo disso é a preocupação de que, mesmo em sociedades democráticas e liberais, muitos estavam dispostos a “abdicar de sua liberdade cívica e responsabilidade, livrando-se do ‘fardo’ da ação independente e do julgamento” (VILLA, 2001, p.8), percepção expressa em sua interpretação posterior dos atos cometidos por Eichmann. Ainda assim, a sua concepção da política, que separa o diagnóstico do seu estatuto no presente e a sua essência, favorece uma posterior teorização do espaço público e da participação política. Por isso, importa ressaltar que o contraste entre ela e os teóricos críticos reside menos em diagnósticos quanto ao estatuto da política na modernidade ou em relação à democracia, mas, mais fundamentalmente, em uma divergência estrutural: a associação da política e da legitimação do poder à liberdade ou à dominação – divergência que diz respeito ao segundo aspecto chave de seu confronto: as suas distintas concepções da subjetividade.

Ao caracterizar o sujeito da política, Arendt fala da liberdade como capacidade de iniciar ação e na espontaneidade; Adorno e Horkheimer, em contraste, colocam foco sobre mecanismos psíquicos que vinculam os sujeitos à menoridade, engendrados a partir da internalização da dominação. A liberdade, minada por coerções econômicas e psíquicas, e, portanto, ideológica, seria apenas realizada em sua plenitude em uma sociedade emancipada. O foco de Arendt sobre a reponsabilidade individual não é completamente alheio aos teóricos críticos, mas ali se encontra esvaziado da força política que permeia os escritos da autora. A filosofia de Arendt, deste modo, parece mais conciliável com uma percepção da agência dos sujeitos, essencial a uma sociedade democrática. Ao mesmo tempo, a análise do terror totalitário e da liquidação do indivíduo nos campos de extermínio deve impactar leitoras e leitores e abrir espaço para pensarem a ameaça à individualidade em tais circunstâncias extremas, bem como uma ameaça democrática presente: o crescente contingente de indivíduos sem Estado, sem direitos, em face de grandes ondas migratórias e desnacionalização, e a resposta violenta e a criminalização destes sujeitos (BERNSTEIN, 2018).

Por um lado, ao atentarem à dominação social e investigarem profundamente a subjetividade com instrumentos psicanalíticos, os teóricos críticos têm muito a contribuir na prevenção do totalitarismo. Em primeiro lugar, porque a sua crítica ao capitalismo, expressa na máxima hiperbólica de Horkheimer de que “quem não estiver disposto a falar do capitalismo deve também calar-se sobre o fascismo” (HORKHEIMER, 1989, p.78), parece não ser completamente equivocada à luz do presente. Afinal, pode-se argumentar que, no atual contexto neoliberal, desempenham papel importante na disseminação da adesão a movimentos autoritários fatores como a prevalência dos interesses da classe dominante, o 1% que mais concentra renda, em contraste com a privação econômica das massas, desigualdades sociais e ressentimentos que proliferam em contextos de crise econômica.[17] Isso não implica a negação da acuracidade da análise de Arendt dos efeitos do isolamento e da solidão sobre os sujeitos, ou da emergências das massas e da ralé, mas um complemento que olha para suas instâncias inconscientes e permite uma análise mais profunda dos mecanismos e da atratividades de figuras a um só tempo carismáticas e agressivas, que aparecem disseminadas na arena política atual. O segundo ponto, daí derivado, é a maneira como é descrita a gratificação obtida pela adesão a tais movimentos: pode-se argumentar que não se trata somente do conforto de uma ideologia que fornece uma visão de mundo coerente (como pretende Arendt), mas de disposições ainda mais irracionais, abordadas com o recurso à psicanálise e mensuráveis em estudos empíricos.

Por sua vez, a força da explicação arendtiana reside, como apontado, na discussão mais detida sobre as especificidades da política, mas sobretudo em seu foco sobre a agência e a responsabilidade dos sujeitos, que podem ser eclipsadas a depender de como se aborde a sua subordinação. Este potencial, no entanto, precisa ser balanceado pelo reconhecimento dos indivíduos como sendo, desde seus primeiros contatos, inseridos e formados por relações mediadas por angústias e ambiguidade afetiva e pela percepção de que a socialização tem um grande peso sobre aquela expectativa de um novo começo.

 

REFERENCIAS

 

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RECEBIDO: 22/01/2022                                                    RECEIVED: 22/01/2022

 

APROVADO: 28/04/2022                                                   APPROVED: 28/04/2022

 



[1] Este artigo foi realizado com recursos do financiamiento à pesquisa de doutorado: processo número 2020/01051-1 – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[2] Origens do totalitarismo (OT) e Dialética do esclarecimento (DE) serão doravante citados conforme as abreviações e a partir de traduções brasileiras: Arendt, 2012; Adorno & Horkheimer, 2006.

[3] No caso de Arendt, a discussão sobre o totalitarismo antecipa “importantes temas de sua discussão mais ampla da política, ação, pluralidade e liberdade” (BERNSTEIN, 1996, p.82). Cf. também: Genel, 2016, p.20; Villa, 2001. Já a Dialética do esclarecimento apresenta um diagnóstico crítico contundente da modernidade, referência inescapável para estes autores, como se constata nos modos como, após a convergência intelectual e de compreensão do presente expressa em seus trabalhos da década de 1940, cada qual buscou encontrar saídas emancipatórias para o questionamento radical da filosofia e da tradição liberal burguesa. Essa busca é uma das diretrizes das afirmações de Horkheimer sobre o “anseio pelo inteiramente outro”, da dialética negativa de Adorno e suas posições que indicam a primazia da teoria sobre a prática. Para estudos comparativos, cf. Rensmann & Gandesha, 2012; Benhabib & Picker, 2019.

[4] A teoria crítica, expressão cunhada por Horkheimer, distintamente da assim chamada teoria tradicional que atribui a si apenas a tarefa descrever a sociedade, teria por objetivo identificar as suas contradições e as forças que apontassem para a emancipação social, ao mesmo tempo traçando diagnósticos sobre a sua possibilidade e sobre os bloqueios à sua emergência. Resume-se a questão descrevendo a sociedade emancipada como uma sociedade sem classes, planejada racionalmente em prol das necessidades de todos e não apenas de uma minoria, e em que autonomia, autodeterminação e felicidade de indivíduos livres florescessem de fato (HORKHEIMER, 1980).

[5] Sobre o Estado autoritário, cf. Nobre, 2013; Regatieri, 2015.

[6] Não é possível discutir adequadamente no escopo deste artigo a contribuição do imperialismo para a emergência do totalitarismo segundo Arendt, tanto em vista do espaço necessário a tal análise, como porque ela pouco contribui para uma comparação com os teóricos críticos. Vale pontuar, no entanto, a emergência da justificação da violência com base na racialização dos povos em tal contexto, precedente para a cristalização do antissemitismo como ideologia totalitária. Além disso, sugere Canovan, é na concepção do imperialismo como turbilhão histórico disruptivo que a sua análise mais se aproxima de discutir a relação do totalitarismo com o capitalismo, como um fenômeno que o tornou possível (2001, p.32).

[7] Cf. Abromeit, 2011 e 2013; Marin & Nobre, 2012.

[8] Para uma comparação entre a concepção arendtiana da oposição entre o social e o político em A condição humana e alguns temas abordados por Horkheimer, cf. GENEL, 2013, p.210.

[9] Para uma análise da relação da teoria de rackets com o desenvolvimento da obra de Horkheimer e a Dialética do esclarecimento, veja-se: FERNANDES, S. Os fragmentos de uma teoria de rackets e a Dialética do esclarecimento. Apresentação de “Sobre a sociologia das relações de classe” (1943), de Max Horkheimer. Cadernos de filosofia alemã: Crítica e modernidade, v.26, n.1, pp.127-140.

[10] Vale observar como o esgarçamento do vínculo entre a família e a autoridade é tematizado tanto por Arendt como pelos teóricos críticos. Para a autora, o declínio da autoridade na família prefigura a crise que ocorre no terreno político. Horkheimer, apesar de crítico da autoridade, tampouco considera positivo este desdobramento. Isso se deve à dupla face da formação subjetiva na família. Como destaca Genel, para Horkheimer, “a autoridade é, ao mesmo tempo, o que torna possível um sujeito autônomo, o que constitui o ponto de apoio a uma possível emancipação, e o que abre caminho à formação do autoritarismo a partir da constituição psíquica do caráter autoritário” (GENEL, 2013, pp.204-205). Esse paradoxo, já presente em certa medida na contribuição de Horkheimer aos Estudos sobre autoridade e família (1936), é plenamente desdobrado em “Autoritarismo e família hoje” (1949), em que ele argumenta que o declínio da família teria favorecido formas diretas de dominação social.

[11] Acerca da diferença entre a concepção de poder de Arendt e Weber, veja-se Habermas (1977), que descreve a concepção de poder weberiana como a possibilidade de forçar a vontade de outrem e afirmar-se para influenciar o seu comportamento, ao passo que Arendt reserva para isso o conceito de “força” e concebe o poder como possibilidade de concordância coletiva em um curso de ação, de agir em concerto. Embora Habermas critique alguns aspectos da concepção arendtiana de poder, por suprimir os elementos estratégicos da política, apartar a política de sua relação com o meio econômico e social e deixar de tematizar violência estrutural, encontra ali uma dimensão de comunicação livre de coerção relevante para a sua argumentação sobre a ação comunicativa. Esta discussão indica os rumos tomados pela tradição frankfurtiana, abandonando a centralidade da concepção do poder como dominação. Sobre Habermas e Arendt, cf. Benhabib, 2003.

[12] Esta vinculação seria desenvolvida em obras posteriores de Arendt. No ensaio “O que é liberdade”, publicado em 1961, ela definiria a política como o âmbito em que a liberdade é conhecida como fato da vida cotidiana (ARENDT, 2014, p.191).

[13] Como observa Duarte, “a perda desse vínculo comum significa a perda do vínculo que se estabelece entre os homens em uma determinada comunidade, gerando assim o problema que é definido em A condição humana e demais textos dos anos 50 como a ‘moderna alienação do homem em relação ao mundo’” (2001, p.256).

[14] Cf. “Egoísmo e movimento de libertação”, de 1936 (HORKHEIMER, 1985, Band 4, pp.9-88).

[15] Cf. Horkheimer, 1985, Band 4, pp.9-88 e 2021.

[16] Acerca dos escritos de Adorno sobre educação, cf. Petry, 2021.

[17] Há um movimento na literatura mais recente sobre teoria crítica na direção de uma retomada das análises de Adorno e Horkheimer e da defesa, contra Habermas, do legado da teoria marxiana e da psicanálise. Cf., por exemplo, Abromeit (2011, p.430 e 2017); Gandesha (2017) e a coletânea de Morelock (2018). Sobre a atualidade das críticas de Arendt ao totalitarismo como um todo (e mesmo o totalitarismo de esquerda), bem como a sua posterior crítica ao liberalismo político e à democracia parlamentar, cf. Duarte, 2001, Bernstein, 2018. No debate brasileiro, veja-se, mais recentemente, as intervenções de Ruy Fausto em O ciclo do totalitarismo (2017) e a sua análise por Yara Frateschi, em artigo recém-publicado (FRATESCHI, Y. Hannah Arendt e Ruy Fausto sobre a gênese do totalitarismo de esquerda. Cadernos de filosofia alemã: crítica e modernidade, v. 26, n. 2, pp. 27-43, 2021).