A restituição do espetáculo do mundo na arte: dimensões ontológicas da percepção, expressão e instituição nos ensaios de Merleau-Ponty sobre pintura

The restitution of the world’s spectacle in art: ontological dimensions of perception, expression, and institution in Merleau-Ponty’s essays on painting

Dr. Gabriel Herkenhoff Coelho Moura

Universidade Federal de São Paulo

E-mail :gabriel.herkenhoff@gmail.com

RESUMO

Ao longo da trajetória intelectual de Merleau-Ponty, as reflexões sobre arte cumprem um papel crucial em sua preocupação de restituir o espetáculo do mundo, através da volta ao brotamento do sentido do ser na experiência antepredicativa do ser humano dada na percepção. Um sinal disso é que, em cada um dos momentos de seu pensamento, ele escreveu um ensaio no qual o tema central é a contribuição da expressão artística para uma reflexão filosófica interessada na abertura humana corporal no mundo. Este artigo tem como propósito realizar uma aproximação de tais ensaios – recorrendo a uma abordagem cronológica – com vistas a demarcar como eles auxiliam no reconhecimento de certas nuances e articulações de seu pensamento, enfatizando a constante ontológica presente em suas discussões sobre arte. Assim, o trabalho realiza uma visão horizontal sobre o percurso merleau-pontiano de pensamento – transitando da fenomenologia da percepção à ontologia da carne –, com incursões verticais sobre as relações entre percepção, expressão e instituição nos ensaios. A hipótese é que tais temas fornecem a base para a compreensão da arte como experiência de fundação do ser.

PALAVRAS-CHAVE: Arte. Ontologia. Percepção. Expressão. Instituição.

ABSTRACT

Throughout Merleau-Ponty’s intellectual path, the reflections on art play a crucial role in his concern of restituting the spectacle of the world, through the return to the springing of the meaning of being in the antepredicative experience given in perception. A signal of that is he wrote, in each moment of his thought, an essay in which the central theme is the contribution of the artistic expression to a philosophical reflection interested in the embodied human opening up to the world. This article addresses such essays – using a chronological approach – aiming to detach how they contribute for acknowledging the nuances and articulations of his thought, highlighting the ontological constant present in his discussions on art. Thus, the work performs a horizontal view on Merleau-Ponty’s path of thought – moving from the phenomenology of perception to the ontology of flesh –, with vertical incursions regarding to the relations between perception, expression, and institution in the essays. The hypothesis is that such themes provide the basis for understanding art as an experience of foundation of being.

KEYWORDS: Art. Ontology. Perception. Expression. Institution.

 

1. Introdução

 

O percurso de pensamento de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) é atravessado pela tentativa de restituir o espetáculo do mundo através do reconhecimento do primado da percepção, ressaltando a iniciação corporal ao mundo percebido como ponto de partida irrecusável para as expressões ‘superiores’ de sentido. Na versão merleau-pontiana do termo heideggeriano, a abertura a um com um corpo vivo conformaria a experiência mais originária do ser-no-mundo [être-au-monde]. Em seus últimos escritos, o filósofo francês aprofunda a orientação ontológica de sua filosofia com a noção de carne, não mais partindo da intencionalidade operante do corpo – como cogito tácito –, que nos mantêm em relação não-tética com o mundo, porém do entrelaçamento corpo-mundo em que se dá o ser bruto. O centro de suas reflexões, em todo caso, continua sendo a inerência humana a um mundo que aparece em sua transcendência, nosso enraizamento no espetáculo que não constituímos, diante do qual nos encontramos e no interior do qual surgem sentidos eivados de ambiguidades. A despeito das tensões reconhecidas pelo autor em seu pensamento nas notas preparatórias para seu último livro, o inacabado O visível e o invisível (1961), aquela permanência de fundo mostra-se com singular nitidez em suas reflexões sobre a arte.

Já em sua obra de estreia, A estrutura do comportamento (1942), Merleau-Ponty toma a arte como fonte de significação metafísica, bem entendido, como portadora de indicações ontológicas[1]. Nesse sentido, a orientação ontológica que marca o final de seu percurso intelectual é menos uma ruptura do que uma revisão do modo de enraizar o ser humano no mundo – passando do cogito tácito ao entrelaçamento carnal. Sinais dessa continuidade são-nos dados nos parágrafos de encerramento do “Prefácio” de Fenomenologia da percepção (1945). Ao traçar os contornos de sua compreensão da fenomenologia, ele escreve: “O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 20). Interessa-o na fenomenologia sua admiração do brotar do ser do mundo, de uma verdade, de um sentido que se funda, institui-se em situação.

Outra indicação da continuidade da preocupação ontológica do pensamento de Merleau-Ponty reside em cada momento de seu percurso – aceitando-se a divisão de sua obra em três fases, delimitadas por sua produção dos anos quarenta, cinquenta e sessenta – ser acompanhado por um texto cujo tema central é a arte, com particular ênfase na pintura. Os ensaios A dúvida de Cézanne, escrito em 1942 e publicado em 1945, A linguagem indireta e as vozes do silêncio, publicado em 1952, e O olho e o espírito, que vem à luz em 1961 (pouco antes de um ataque cardíaco vitimar o filósofo) apontam para a arte como expressões do sentido do ser. Assim, embora estejam em estreito diálogo com as preocupações e o vocabulário dos distintos períodos de sua filosofia, através deles encontramos articulações de seu caminho. Se a pintura ocupa lugar de destaque nas reflexões estéticas de Merleau-Ponty, não há privilégio ontológico de tal expressão artística sobre as demais. O interesse está nas contribuições que a análise da pintura oferece para o problema da relação entre percepção e expressão, para o reencontro do espetáculo do mundo. A pintura permite-o realçar nossa iniciação à inesgotabilidade do mundo, que não é superada pelas infinitas tentativas de exprimir seus sentidos e é parte do campo no qual estão imersas nossas perspectivas.

Para desenvolver o argumento da existência de uma constante ontológica vinculada às questões da percepção, expressão e instituição nas reflexões merleau-pontianas sobre arte[2], este texto fará três movimentos. No primeiro deles, serão traçados paralelos entre os livros de Merleau-Ponty A estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção e as reflexões estéticas de A dúvida de Cézanne. No segundo, A linguagem indireta e as vozes do silêncio será aproximado dos cursos L’institution, la passivité (1954-1955), ministrados no Collège de France. No terceiro, por fim, O olho e o espírito será relacionado ao acento ontológico esboçado em O visível e o invisível. Com esse percurso, este trabalho pretende oferecer uma visão horizontal da estética de Merleau-Ponty e um movimento vertical em direção a temas que a atravessam e delimitam sua visada ontológica sobre a expressão artística.

 

 

2. A percepção e a possibilidade da arte como fundação do ser

 

A estrutura do comportamento (1942), primeiro livro de Merleau-Ponty, inaugura preocupações que permanecerão ao longo de sua obra. Dois marcos do livro são a concepção de que o mundo percebido porta uma estrutura significativa – não se reduzindo à soma de partes extra partes suposta pelo pensamento objetivo – e a busca de uma abordagem antidualista do ser humano (cf. WAEHLENS, 2006). De modo muito resumido, no primeiro caso, Merleau-Ponty apropria-se criticamente de uma consequência que retira da Gestaltheorie: a vida perceptiva não se dá em meio a objetos apreendidos isoladamente, mas numa estrutura em que a pregnância de cada parte dá-se dentro do todo da forma[3]. No segundo, ele leva às últimas consequências um tema importante da fenomenologia husserliana, o caráter intencional do intelecto – sua orientação a ‘algo’ enquanto ‘consciência de...’ –, ressaltando que a intencionalidade opera na tomada de posição pré-reflexiva. A iniciação não-tética ao mundo, a brotação de um sentido aberto na percepção fornece a base ao comportamento, que derivaria, então, do nexo originário entre corpo e espírito manifestado pelo caráter cambiante do comportamento encarnado numa situação.

Numa passagem emblemática do último capítulo da obra, intitulado “Relações entre a alma e o corpo e o problema da consciência perceptiva”, lemos: “há coisas exatamente no sentido em que as vejo, em minha história e fora dela, e inseparável dessa dupla relação. Eu percebo coisas diretamente sem meu corpo formar uma tela entre elas e mim” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 219). O lema fenomenológico, voltar às coisas mesmas, é traduzido num retorno à vida perceptiva em seu dar-se antes das aplicações de categorias postas pela reflexão – como qualidade, sensação, objeto, sujeito etc. O sentido não seria fabricação de um sujeito constituinte (como crê o intelectualismo) ou de um objeto externo (como crê o empirismo), mas fruto da estrutura original em que corpo e mundo ganham suas espessuras próprias na relação configurada entre si. Não se trata de uma fusão, porém de um contato ao mesmo tempo incontornável e jamais encerrado em síntese final. O espetáculo do mundo dá-se por perfis que solicitam o comportamento, que, por sua vez, percebe-os como partes significantes de um todo estruturado. Trata-se de um retorno crítico à atitude natural para reencontrá-la como ato de perceber sentido em meio à inerência humana a um mundo transcendente.

Embora sejam raras as passagens de A estrutura do comportamento dedicadas à arte, uma breve análise da pintura maneirista de El Greco, encontrada também no último capítulo do livro, fornece sugestões sobre tal retorno ao mundo percebido e tal abordagem antidualista. Ele escreve: “Se se supõe uma anomalia na visão de El Greco [...], não se segue que a forma do corpo em suas pinturas, e consequentemente o estilo das atitudes, admite uma ‘explicação fisiológica’” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203). Ainda que seja possível remeter-se as formas alongadas das pinturas de El Greco a um suposto astigmatismo, uma análise fisiológica da ‘anomalia visual’ não é suficiente para explicar a expressividade de sua pintura. Tal expressividade liga-se ao fato de que a “anomalia visual pode receber uma significação universal pela mediação do artista e tornar-se para ele a ocasião para perceber um dos ‘perfis’ da existência humana” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 203). O acidente corporal não é dado biológico a impor uma conduta do exterior, mas algo impregnado de um sentido existencial para o pintor e outros seres humanos, de modo que pode emergir como expressão de seu ser.

A conclusão de Merleau-Ponty diz respeito, certamente, à existência de El Greco, que se instituiu na tradição das artes plásticas pelo estilo manifestado e pelo sentido vigente em sua obra. Entretanto, como manifestação de um perfil do mundo, que exprime uma situação particular sem jamais converter-se em um para si solipsista e alienado de um mundo em si, sua obra cristaliza uma experiência compartilhável, porta algo de sentido do ser. A significatividade da pintura de El Greco advém, portanto, da capacidade de fazer visível certa estrutura, certa configuração do todo e das partes. Desse modo, o pintor colabora para a compreensão daquilo que Merleau-Ponty considera valioso na noção de Gestalt: o fato de ela apontar para “o arranjo contingente pelo qual os materiais começam a ter significado em nossa presença, inteligibilidade em estado nascente” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 207). Porque sabemos algo (sem tematizar) da inerência de nosso corpo ao mundo, da vida perceptiva que nos abre um , aquilo que numa abordagem analítica aparece como deformação da visão pode carregar uma significação metafísica.

Com exceção da passagem sobre El Greco, Merleau-Ponty não dedica maior atenção às expressões artísticas em A estrutura do comportamento. Em todo caso, a importância do tema em 1942 revela-se no fato de que, no mesmo ano, ele redige A dúvida de Cézanne, seu primeiro ensaio dedicado à pintura. A reflexão sobre a relação entre existência encarnada e expressão, que formava o pano de fundo das reflexões sobre o pintor maneirista, retorna na análise do pós-impressionista Paul Cézanne. Não deve ser motivo de estranhamento a distância histórica e artística que os separa. Com esses exemplos, fica indicado como nossa abertura perceptivo-corporal estabelece uma iniciação ao mundo (ao ser bruto, ele dirá mais tarde) que alimenta os esforços expressivos posteriores. De formas distintas, os quadros de El Greco e Cézanne diriam algo sobre o vínculo profundo entre percepção e expressão, tanto por suas deformações pictóricas instigarem a questão da influência de um ‘defeito’ fisiológico ou psicológico quanto por suas obras possuírem sentido para além de suas existências singulares.

No que tange a tal vínculo, os testemunhos de Cézanne sobre suas tentativas de expressão do percebido, que rompem com a tendência de representação ‘objetiva’ predominante nas artes plásticas desde o Renascimento, são particularmente relevantes para Merleau-Ponty. O trabalhar a partir da natureza de Cézanne é influenciado pela busca impressionista das sensações do ambiente, porém seus exercícios vão além da reprodução de uma verdade geral da impressão – a rigor, uma abstração do ver. Na pintura pós-impressionista de Cézanne, a materialidade, a solidez das coisas vibra no meio da atmosfera: “Ele não quer separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria em vias de se formar, a ordem nascendo por um organização espontânea” (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 131). Esse retorno à brotação da organização espontânea do mundo interessa a Merleau-Ponty como possibilidade de reencontro com a perspectiva encarnada.

 

As pesquisas de Cézanne na perspectiva descobrem, por sua fidelidade aos fenômenos, o que a psicologia recente havia de formular. A perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica [...]. Dizer que um círculo visto obliquamente é visto como uma elipse é substituir a percepção efetiva pelo esquema daquilo que veríamos se fôssemos aparelhos fotográficos: vemos, na realidade, uma forma que oscila em torno da elipse sem ser uma elipse (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 132).

 

A dedicação de Cézanne à perspectiva vivida permite compreender como as ‘deformações’ no quadro, em vez de fazerem desmoronar o equilíbrio, mostram uma ordem nascente de coisas que guardam sua asseidade e resguardam a inesgotabilidade do mundo. O percebido não é fruto da síntese intelectual que faz da elipse o índice do círculo, é a visão do círculo sob uma forma elíptica que não o esconde, mas o apresenta como algo transcendente. É essa transcendência tangível decorrente de nossa inerência ao mundo[4] – há algo que nos envolve e solicita, mas se mantém à certa distância e em sua espessura – que Merleau-Ponty parece ver como motivo das tentativas infindáveis de Cézanne de fazer vibrar o percebido. O sentido que se funda em sua obra é possível porque retoma uma herança – da vida perceptiva e da história – e, assim, pode habitar vários espíritos, tornando acessível o espetáculo que é fundo latente da atitude natural.

Reconhecer, todavia, um instituído que ultrapassa a perspectiva encarnada de Paul Cézanne não elimina o fato de que sua pintura carrega um estilo próprio. Melhor dizendo, não basta participar do mundo percebido e da cultura para que a expressão se faça. Como acentua Merleau-Ponty: “O artista segundo Balzac ou Cézanne não se contenta em ser um animal cultivado, ele assume a cultura desde o começo e funda-a novamente” (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 139). Essa refundação, a rigor, não é ato deliberado, criação de lugar nenhum, é sim evento situado num mundo. Em outras palavras, o “sentido que Cézanne dará em seus quadros às coisas e aos rostos propunha-se a ele no mundo mesmo que lhe aparecia, Cézanne apenas liberou esse sentido” (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 142). Na abertura no mundo, como ser-no-mundo, o artista vê nascer e expressa um sentido e é na esperança de que o sentido percebido diga algo a outros que o artista segue em sua tarefa. “Eis por que ele interroga esse quadro que nasce sob sua mão, e espreita os olhares dos outros postos em sua tela. Eis por que nunca parou de trabalhar” (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 149), escreve o filósofo no encerramento do ensaio.

A proximidade das análises de El Greco e Cézanne, a ênfase na relação entre a situação dos artistas e certo sentido expresso em suas obras – que a ideia de uma significação metafísica do astigmatismo e da esquizoidia sinaliza – explica-se pela contemporaneidade de A estrutura do comportamento e A dúvida de Cézanne. O ensaio, entretanto, carrega elementos que se aproximam das esparsas reflexões sobre arte de Fenomenologia da percepção. Compreensões como a de que a pintura expressa uma ordem nascente do mundo, de que a expressão enraíza-se no percebido, de que a obra coloca o ser humano diante do espetáculo vivido já não visto e de que as deformações perspectivas portam um sentido intersubjetivo comunicam-se com a compreensão da arte como fundação do ser e realização da verdade.

As reflexões de Fenomenologia da percepção, todavia, vão além da pintura, abrangendo outras expressões artísticas ou, em acepção ampla, linguagens. É verdade que, em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty tece comparações entre as expressões propriamente falantes e as pictóricas ao ressaltar que ambas ‘fixam’ algo sem poderem ser confundidas com a realidade. No livro de 1945, no entanto, a arte em geral é tomada como fundação de ser e verdade, como um fazer aparecer em obra aspectos do mundo vivido que compõem a experiência humana. Nesse contexto, ele explicitamente recusa qualquer hierarquia: “não há diferença fundamental entre os modos de expressão, não se pode atribuir um privilégio a um deles como se este exprimisse uma verdade em si” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 523). Tal postura é significativa por dois motivos: ela esclarece que a preferência pela pintura não se baseia num primado metafísico de tal arte; e ela faz das expressões literárias, musicais e plásticas igualmente instituições da verdade – porque reportam-se, de formas distintas, à presença irrecusável, ambígua e inesgotável do mundo no qual estamos encravados no ser[5].

O que significa a arte concernir à fundação do ser e realização da verdade? Se não se trata de revelação de ser e verdade prévios, em si, o que seria mais exatamente essa experiência favorecida pelas expressões artísticas? Em via similar a de Heidegger, segundo Merleau-Ponty o ser não é algo anterior ou fora da aparência, mas se dá no fenômeno, não é algo a ser descoberto pela reflexão, mas aquilo que nos envolve, no qual nos encontramos lançados e do qual jamais saímos. E qual a relação de tal concepção com a verdade? A experiência original de um pregnante, significante e transcendente funda uma verdade sem que seja posse e explicitação absolutas, porém abertura para reposicionamentos que restituem o sentido em meio às lacunas e profundidades que dele participam. A arte, pois, é fundação do ser e realização da verdade não por suprimir toda ambiguidade e colocar-nos diante de uma transparência total. Pelo contrário, é porque nos coloca diante da contingência ontológica do mundo (cf. MERLEAU-PONTY, 1994, p. 533) que a arte pode ser fonte de nossa experiência do ser, o que implica estar na verdade – rodeados por erro e dúvida.

A operação expressiva, o filósofo diz, “abre para nossa experiência um novo campo ou uma nova dimensão” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 248). Isso só pode ocorrer, no entanto, caso a expressão seja nascida de uma visão do mundo, isto é, de uma visão compossível com a de outrem. Mas o que possibilita que a expressão tenha esse horizonte intersubjetivo? O expresso comunica-se com determinadas tradições, instituições cristalizadas nos corpos e nas linguagens, na vida e na cultura. A percepção e a história compartilhadas fornecem as bases sobre as quais a expressão pode portar um sentido abrangente, ainda antes que a reflexão o explicite. Num nível mais básico, tal traço remete à seguinte observação:

 

[...] não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual, a comunicação entre as consciências não está fundada no sentido comum de suas experiências, mesmo porque ela o funda [...]. Assim ‘compreendido’ o sentido do gesto não está atrás dele, ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e por minha conta eu retomo, ele se expõe no próprio gesto [...] (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 252-253).

 

Aqui, é importante ressaltar: toda linguagem é, no limite, um gesto, exige um corpo com potência de significação motora – nos movimentos mais ou menos silenciosos sobre uma superfície, nos que produzem sons no sistema com um instrumento, nos articulados com garganta, língua e boca. O gesto dos outros não são estranhos ao meu, ambos situando-se em e direcionando-se a um mundo compartilhado, cuja transcendência é percebida em nossa inerência. Há algo compartilhado não por haver integral clareza do significado dos gestos, mas porque a própria tentativa de fazer vir à tona um sentido é manifestação da pregnância do mundo percebido. É sobre essa camada inicial que se fundam as expressões de um sentido elaborado, culturalmente instituído e instituinte. Como ressalta Merleau-Ponty, exprimir é “assegurar-se [...] de que a intenção nova retoma a herança do passado, é com um só gesto incorporar o passado ao presente e soldar este presente a um futuro” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 525). Exatamente porque a expressão se dá na apropriação de uma tradição no presente e rumo a um porvir, ela carrega a possibilidade de estabelecer a comunicação com aqueles que participam dessa história herdada e aberta ao porvir.

Se a percepção pressupõe uma tradição que a possibilita e faz com que haja um mundo comum, apesar do enraizamento incontornável de cada um a seu corpo próprio, a expressão artística porta também uma espessura histórica que mantém seu sentido vigente e aberto. Esse instituir sentido, essa abertura de novas dimensões, esse colocar-nos diante seja da emergência de um logos do mundo estético, seja de profundidades insuspeitadas e, até então, invisíveis da realidade é o que Merleau-Ponty nomeia fundação do ser e realização da verdade.

Dois exemplos fornecidos em Fenomenologia da percepção ajudam na compreensão desses níveis em que a arte fornece indicações ontológicas. Diante de um vaso verde de Cézanne, não estamos diante do pensamento do vaso, mas da coisa que se mostra em sua concretude e com suas cavidades, como superfície de textura e cor na qual o olhar se deposita. Ao ver o vaso, a abertura ao espetáculo do mundo é reconquistada como experiência esquecida tanto pela atitude natural (dada a banalidade da percepção) quanto pela atitude reflexiva (dada a ênfase no pensamento de perceber). O vaso possibilita o reencontro com nosso espanto de haver algo, a um só tempo, determinado e transcendente, estruturado e ambíguo, prenhe de sentidos e lacunas, com texturas e cores que se mostram em transições e ocultamentos. Distintamente, Merleau-Ponty nota que uma obra literária apresenta uma “modulação existencial”, um “acontecimento inter-humano” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 210), instala-nos no interior de um mundo humano com seus matizes existenciais. Os dois exemplos não estabelecem um campo de atuação para as diferentes artes. Assim como a literatura é capaz de fazer brilhar nosso envolvimento no mundo percebido, a pintura ou a música também podem nos colocar diante de aspectos da existência e do mundo vivido – já que se enraízam numa história humana. Tais exemplos apenas sugerem camadas distintas em que as expressões artísticas concernem ao sentido do ser.

A referência ao horizonte histórico-cultural que alimenta as artes é, entretanto, lateral nos anos quarenta. Ainda que Merleau-Ponty aponte a interlocução de Cézanne com os impressionistas e com a tradição das artes plástica em A dúvida de Cézanne, e ainda que ele reconheça que a linguagem recupera a herança do passado no presente em Fenomenologia da Percepção, suas reflexões sobre a instituição remetem mais diretamente à tradição perceptiva. Poder-se-ia, então, afirmar que ele toma uma camada elementar da abertura humana no mundo como referência para a reflexão sobre a relação entre expressão e instituição. Ou seja, é sobre o solo daquela vida antepredicativa do cogito tácito, compartilhada no anonimato da percepção, que ele busca o berço do sentido intersubjetivo da expressão. Nesse sentido, se a arte é fundação do ser e realização da verdade, o acento recai sobre a possibilidade de reconquista do mundo percebido – com menos atenção ao vivido em seu nível, grosso modo, ‘cultural’. Não que seu interesse pelo nível ‘inferior’ de nosso ser-no-mundo perca-se depois; pelo contrário, seu ponto de partida nas notas dos cursos no Collège de France sobre L’institution, la passivité (1954-1955) é ainda a vida orgânica (cf. LEFORT, 2003, p. 7; CHAUÍ, 2012). A questão é que, nos anos cinquenta, a noção de instituição vincula-se mais claramente à dimensão cultural que envolve a percepção e a expressão.

 

3. Instituição no fundo da expressão: arte e as tradições perceptiva e cultural

 

A linguagem indireta e as vozes do silêncio (1952), segundo ensaio merleau-pontiano dedicado às artes, inicia-se com uma reflexão sobre a tese de Ferdinand de Saussure acerca do caráter diacrítico da linguagem, do “sistema de diferenças” (LOW, 2000, p. 102) em que os fonemas e signos adquirem significação. Ampliando a tese saussuriana, Merleau-Ponty nota que a expressão em geral é rodeada por um silêncio que condiciona o aparecimento de sentido. Tal compreensão carrega duas conexões relevantes com suas obras precedentes. Ele reencontra na linguagem a estrutura (como configuração de partes totais), ligada à percepção já em A estrutura do comportamento, e retoma a preocupação de tematizar um traço comum entre as artes, com um paralelo entre a literatura e a pintura. Num plano geral, esse movimento reflexivo é importante por delinear um solo comum para que ele pense o nexo profundo existente entre a percepção e a expressão, e por preparar o caminho para a discussão sobre o vínculo de ambas com a noção de instituição.

A segunda parte do ensaio é esclarecedora a esse respeito: a problematização da ideia de que a perspectiva geométrica favoreceria a representação ‘objetiva’ enquanto a arte moderna seria manifestação da ‘subjetividade’ do artista é acompanhada pela tematização da relação entre percepção, expressão e cultura. No centro de A linguagem indireta (o ensaio divide-se em três partes) está a discussão sobre o preconceito objetivista por trás da compreensão de que o mundo seria organizado numa escala espaço-temporal em que se distribuiriam objetos apreendidos como meras extensões, vazias de pregnância e significação. No pano de fundo, tem-se uma nova aproximação de uma questão crucial do pensamento merleau-pontiano: a tentativa de reanimar o brotamento de sentido do mundo na vida pré-reflexiva. Como figura, ele reencontra a ruptura da ideia de representação objetiva implicada pela arte moderna.

Merleau-Ponty argumentara, em Fenomenologia da percepção, que a concepção do espaço geométrico resulta de uma atitude analítica sustentada sobre a espacialidade do corpo vivo. Ele realizara, então, uma diferenciação entre espaço natural primordial e espaço geométrico, notando que o primeiro dá-se em nossa inerência ao mundo, em meio a coisas que desenham suas fronteiras na relação que configuram entre si e conosco. O sujeito enraizado no mundo encontra-se envolvido por distâncias e profundidades, por grandezas e significações que as coisas secretam. O espaço geométrico, por seu turno, baseia-se na garantia de um “pensador universal que exporia diante de mim os conteúdos da experiência e me asseguraria, em relação a eles, toda a ciência e toda a potência” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 394).

A linguagem indireta e as vozes do silêncio retomam o problema da perspectiva a partir de indicações fornecidas pela interação da história da arte com deslocamentos no interior da cultura. A transição do domínio renascentista do espaço pictural (com a determinação do ponto de fuga e da perspectiva como constituição de um sujeito abstrato) ao abandono pós-impressionista da busca de reprodução da realidade mune o filósofo de elementos para refletir sobre os fenômenos da percepção e da expressão, relacionando ambos à noção de instituição [Stiftung] – emprestada de Husserl[6]. Conforme mencionado, Merleau-Ponty reconhecera nas suas primeiras obras que há uma tradição perceptiva que conforma a experiência humana, seu ser-no-mundo, e empregara o termo fundação para referir-se ao sentido do ser – remetendo-se, destacadamente, ao nível pré-reflexivo. No ensaio, além desse nível mais ‘baixo’, a ideia de instituição ganha espaço na análise do fenômeno da expressão artística.

Contra o lugar-comum segundo o qual a pintura clássica dedica-se à representação da natureza enquanto a moderna seria manifestação do sujeito – posição, por exemplo, de André Malraux em Le Musée Imaginaire (1947) –, Merleau-Ponty argumenta: “Já a percepção dos clássicos se prendia à cultura deles”; ressaltando, em seguida, que a perspectiva geométrica é somente “uma das maneiras inventadas pelo homem de projetar à sua frente o mundo percebido, e não seu decalque” (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 72). Afirmar que a perspectiva ‘planimétrica’, segundo termos do curso “Instituição de uma obra” (1954), é uma invenção, obviamente, não significa recusar que o escalonamento dos objetos em um padrão de medida possa nos dizer algo sobre a experiência humana da realidade. O ponto é que tal determinação não é um dado prévio da percepção. As coisas não nos aparecem em uma escala fixa objetiva, esta decorre da atitude reflexiva (por isso mesmo, há uma grandeza à distância que adere à lua, sem se confundir com a extensão da moeda que tenho em mãos). Tanto as coisas percebidas coexistem numa simultaneidade que não suprime suas asseidades quanto o campo perceptivo está envolto pela mobilidade das percepções.

 

Enquanto meu olhar, percorrendo livremente a profundidade, a altura e a largura, não estava sujeito a nenhum ponto de vista porque os adotava e os rejeitava um de cada vez, renuncio a essa ubiquidade e decido que apenas figurará em meu desenho aquilo que poderia ser visto de um certo ponto de observação por um olho imóvel fixado num certo “ponto de fuga” de uma certa “linha do horizonte” (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 74)

 

Além de depender de convenções que forneçam a representação de profundidade, volume, movimento, forma, textura, a perspectiva geométrica cristaliza em ponto de vista imóvel a dinâmica espontânea em que se dá o mundo percebido. “A perspectiva é muito mais do que um segredo técnico para imitar uma realidade que se ofereceria tal e qual a todos os homens; é a invenção de um mundo dominado” (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 75), ressalta Merleau-Ponty. Também a pintura renascentista realiza-se como criação de sentido, como impregnada das visões de uma época. Não é coincidência a contemporaneidade dos desenvolvimentos científicos e artísticos no Renascimento: ambos estão ligados a uma recompreensão do lugar do ser humano no mundo, em meio a uma natureza em processo de dessacralização e objetivação. Assim, a perspectiva planimétrica não é exposição de uma lei da natureza e verdade prévia, mas escolha estético-social (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 43). Longe do encontro da realidade nua, o humanismo renascentista coloca-nos diante de um mundo humano, mesmo que ocultado sob a abstração matemática.

Se o intelectualismo pré-crítico acreditava numa visão neutra, num ‘pensamento de ver’ a partir de lugar nenhum (ou do olho de Deus), e se essa ilusão seduziu ainda o criticismo, a crítica mesma insinuava a superação dessa ingenuidade ao reconhecer a dinâmica passividade-atividade na qual um mundo com sentido dá-se a um sujeito. De modo semelhante, se a pintura clássica esforçou-se para encontrar os signos que a permitissem desenhar um mundo dominado, seu trabalho expressivo forneceu a abertura para que a pintura moderna convertesse as convenções em tema e a expressão em reconhecimento da situação humana no mundo. O legado da pintura moderna é reconhecer-se poesia, um poder de expressar algo ainda não dito em contato com um mundo compartilhado – não pela identidade das experiências, e sim pela vivência comum da transcendência das coisas. A associação da pintura à poesia, à fala inaugural, visa ao aspecto instituinte da expressão criadora, sua capacidade de abrir outrem a uma nova dimensão, a um sentido latente que ora vibra no mundo – do interior de suas fissuras, cavidades, profundidades. “Como o pintor ou o poeta expressariam outra coisa que não o seu encontro com o mundo?”, questiona Merleau-Ponty (2013b, p. 83). É a alusão às significações do mundo que o permite falar de uma linguagem da pintura.

A concepção da pintura como linguagem, além de aproximá-la das artes ‘falantes’, reforça a busca artística de fazer aparecer um sentido do mundo através da retomada de uma ‘gramática’ aberta à expressão inaugurante. Por assentar-se nessas duas facetas de instituição – no passado da percepção e da cultura – o estilo de um pintor realiza-se como deformação coerente acessível a outrem. Caso o estilo fosse operação no ateliê privado do indivíduo não haveria comunicação e compreensibilidade. Entretanto, ao se conceber o estilo em sua relação com a percepção, o sistema de equivalências esboçado em obra aparece como elaboração (em outro nível, é certo) do sentido esparso encontrado nas figuras do ser que habitam a vida perceptiva. Também ao se reconhecer a fraternidade de um estilo com as obras já realizadas, a interlocução com outros mantém-se aberta. Daí, a importância da noção de instituição.

 

Husserl empregou o belo termo Stiftung [...] para designar primeiramente a fecundidade ilimitada de cada presente, que, justamente por ser singular e por passar, nunca poderá deixar de ter sido e portanto de ser universalmente – mas sobretudo a fecundidade dos produtos da cultura que continuam a valer depois de seu aparecimento e abrem um campo de pesquisas em que revivem perpetuamente. É assim que o mundo tão logo ele o enxergou, as suas primeiras tentativas de pintar e todo o passado da pintura proporcionam ao pintor uma tradição [...] (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 87)

 

A noção de Stiftung fornece um ponto básico a partir do qual Merleau-Ponty encontra uma via de reflexão acerca da inerência do pintor a um mundo visível e vivido, às tradições perceptiva e cultural. Esse mundo é horizonte comum das perspectivas para as quais dá-se seu espetáculo; todavia, por oferecer-se como transcendência, seu sentido continua por fazer e aquilo que aparece pela expressão de outrem, malgrado não coincida com minha percepção, não me é inteiramente estranho. O instituído nos níveis perceptivo e cultural fornece o solo em que nós reconhecemos os gestos de outros. Esse é o pano de fundo que faz se comunicarem as pinturas rupestres e as contemporâneas, isto é, que mantém aberta uma história da arte não como evolução do espírito numa direção (como queria Hegel[7]), mas como conjunto aberto ao futuro das tentativas de expressar sentidos com que nos deparamos neste mundo. Compreende-se, dessa maneira, o porquê de o pintor aprender frequentando seus antecessores, como escreve Merleau-Ponty nas notas do curso “Instituição de uma obra”, ou, como no exemplo de A dúvida de Cézanne, o porquê de Cézanne visitar o Louvre. Há um universo da pintura ou ainda um mundo pictural (cf. MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 99; 2003, p. 44) que os pintores herdam e habitam.

O enraizamento da expressão no mundo, sua referência ao espetáculo vivido permite até mesmo que culturas distintas compreendam participar de tarefa similar. De acordo com Merleau-Ponty, há uma unidade do estilo humano não elaborada conscientemente, mas instituída no passado do corpo e da cultura. Em outras palavras, “temos no exercício de nosso corpo e de nossos sentidos, na medida em que nos inserem no mundo, os meios de compreender nossa gesticulação cultural na medida em que esta nos insere na história” (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 102). Reencontramos, assim, a arte como fundação do ser e realização da verdade através da conexão entre instituição, percepção e expressão, no reconhecimento da existência de uma história que nos instala numa ordem de verdade. As obras de arte que instituem um advento na cultura germinam um sentido aberto e intersubjetivo porque exprimem algo – uma verdade cava, lacunar e nem por isso menos espessa[8] – sobre o mundo e a situação humana, enfim, sobre a historicidade do ser-no-mundo. Ao refletir sobre a instituição no curso “O campo da cultura” (1954), Merleau-Ponty rascunha:

 

O ser [não é] o que é em si ou para alguém, mas o que sendo para alguém está pronto para ser desenvolvido segundo um devir de conhecimento outro, como uma constelação em que a figura seria remanejada continuamente de acordo com [um] projeto que propunha como possível tais mudanças (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 52).

 

A metáfora é notável: o ser como constelação que se configura de maneira outra constantemente no tornar-se da cultura. Isto é, no horizonte encontramos sentidos e, quem sabe, indicações de caminho, mas eles não são fechados em uma imagem e sim, em algum grau, deslocam-se. Essa visada ontológica ressalta a intersubjetividade no nível ‘espiritual’, as instituições histórico-culturais que compõem a existência coletiva. A metáfora pode ser também ligada à compreensão merleau-pontiana da expressão artística: a alteração da figura (possibilidade que ela porta como configuração latente) associa-se aos deslocamentos no instituído provocados pela obra instituinte e, nesse sentido, à concepção de deformação coerente. Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, ele escreve sobre a relação entre arte e verdade:

 

É essencial ao verdadeiro apresentar-se inicialmente e sempre num movimento que descentraliza, distende, solicita para um maior sentido a nossa imagem do mundo. É assim que a linha auxiliar introduzida numa figura abre caminho a novas relações, é assim que a obra de arte opera e operará sempre em nós [...] (MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 113-114).

 

Pode-se dizer que a deformação coerente refere-se a um certo movimento, desvio que resguarda um sentido, uma estrutura significativa. Esse é o traço comum às artes. Elas portam a capacidade de abrir outra dimensão no visível de emprestar novas amplitudes e profundidades à nossa imagem do mundo. Traduzido na aproximação ontológica levada a cabo no curso sobre a cultura, a arte propicia aquele tipo de reconfiguração da constelação, de abertura de novas dimensões do ser. Se nossa experiência do ser dá-se já no mundo, o visível não é um substrato fixo, mas algo vivido numa existência encarnada. Isso é o que a noção de instituição indica ao realçar que a abertura no mundo – nos níveis ‘inferior’ e ‘superior’, ‘pré-reflexivo’ e ‘reflexivo’, ‘primordial’ e ‘derivado’ – faz-se na presença de um passado e futuro jamais encerrados em si. Como argumenta Merleau-Ponty, a percepção é já expressão primordial (cf. MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 98), de modo que a deformação coerente imposta por uma obra relaciona-se às cavidades, lacunas, profundidades, enfim, à transcendência do mundo na qual se realiza um sentido eivado das ambiguidades e deslocamentos próprios de ser encarnado.

A verticalização merleau-pontiana na concepção husserliana de instituição é crucial para os rumos posteriores de seu pensamento. Desse terreno parece brotar a ontologia da carne pensada no contexto do projeto de O visível e o invisível. Na concepção de carne concentram-se as instituições corporais e culturais através de que há ser e o entrelaçamento, a relação de abraço entre corpo e mundo[9]. Novamente, um ensaio dedicado à arte, O olho e o espírito (1961), ajuda a delinear a posição merleau-pontiana, constituindo-se como um último retorno à pintura em busca do ser bruto que nos envolve em carne.

 

4. A carne do visível e a experiência do ser na criação artística

 

Em conhecida nota de trabalho de junho de 1959 – época de preparação de O visível e o invisível –, Merleau-Ponty escreve: “a arte e a filosofia juntas são, não fabricações arbitrárias no universo do ‘espiritual’ (da ‘cultura’), mas contato com o Ser justamente enquanto criações. O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 187). Além de remeter à ideia, encontrada nos anos quarenta, de que filosofia e arte dizem respeito à fundação de ser, as compreensões da não-arbitrariedade no fazer-se de uma obra e de que a experiência do Ser demanda criação dialogam com a conexão entre instituição e expressão tão cara aos escritos dos anos cinquenta. Dito de outro modo, a instituição como aquilo que nos inscreve numa história (compartilhada no corpo e no espírito) e a expressão como manifestação de sentido no mundo (percebido e vivido) antecipam a ideia de que o contato com o Ser exige criação. Por quê? Pois sinalizam nossa participação num ser comum, não dado fora de toda experiência – como reza a sentença kantiana sobre a ‘coisa em si’ – mas que se exprime no mundo.

Uma nuance, porém, emerge na reorientação ontológica tardia. Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty apontara a impossibilidade de uma redução transcendental integral, que nos colocasse diante do puro intelecto. No entanto, o emprego da ideia de cogito tácito para referir-se à vida antepredicativa da consciência que conforma a dimensão originária de nosso ser-no-mundo (cf. MERLEAU-PONTY, 1994, p. 8-10), baseava-se na análise da intencionalidade operante do corpo próprio, de modo que a experiência do mundo e do outro passava primeiro por meu corpo e, no limite, por meu cogito. Esse é o olhar retrospectivo que ele mesmo lança sobre sua obra durante a preparação de O visível e o invisível. Uma autocrítica recorrente em suas anotações é a de que, nos textos dos anos quarenta, haveria uma cumplicidade de seu pensamento com a ‘filosofia da consciência’. Na nota de trabalho “Cogito tácito e sujeito falante”, de 1959, lemos:

 

A dialética transformada em tese (enunciado) não é mais dialética [...]. / Isso não se dá em prol de um Grund [fundamento] de que não se poderia nada dizer. O fracasso da tese, sua reversão (dialética) desvela a Fonte das teses, o Lebenswelt [mundo vivido] físico-histórico, ao qual se trata de voltar. Recomeçar a percepção, o Einfühlung [empatia], e, em particular, a fala, e não mais aí renunciar. Sabe-se simplesmente que a fala não pode mais ser enunciado, Satz [sentença], se deve permanecer dialética, é necessário que seja fala pensante, sem referência a um Sachverhalt [fato], fala e não mais linguagem (e, de fato, é a fala, não a língua, que visa a outrem como comportamento [...] – É ela própria que constitui em frente de mim como significação e sujeito de significação, um meio de comunicação, um sistema diacrítico intersubjetivo que é a língua no presente, não universo “humano”, espírito objetivo) – Trata-se de restituir isso, no presente e no passado, a história de Lebenswelt, de restituir a presença mesma de uma cultura. O fracasso da dialética como tese ou “filosofia da dialética” é a descoberta dessa intersubjetividade não perspectiva, mas vertical, que é estendida ao passado, eternidade existencial, espírito selvagem. / O Cogito tácito, bem entendido, não resolve esses problemas (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 171).

 

Essa longa anotação indica a tentativa merleau-pontiana de distanciar-se dos legados ‘intelectualistas’ de sua posição precedente. Apontar o ‘fracasso da dialética’ é afirmar as dificuldades colocadas pela cisão, mais ou menos estrita, entre em si e para si, mundo e consciência, ou, na linguagem de Sartre (um de seus interlocutores), ser e nada. O problema é reencontrar o mundo – o que significa também outrem – após ter feito dele a tese de um sujeito; e o ponto é reconhecer que o sentido do mundo não é produto do cogito nem se oferece por inteiro como algo imanente à consciência. A sugestão de um retorno ao mundo vivido não apenas por intermédio da percepção, mas ainda à fala revela o empenho de Merleau-Ponty de reencontrar o nexo entre expressão e instituição. Trata-se, por um lado, de assumir a fala em sua operação sobre algo instituído intersubjetivamente. Por outro, ele busca realçar que ir ao instituído, antes de retorno à abordagem transcendental – ao a priori humano –, é atentar ao Lebenswelt com sua espessura histórico-cultural. Assim, ele espera passar da relação horizontal entre cogitos tácitos para a intersubjetividade vertical do espírito selvagem.

É certo que o , o mundo , permanece o horizonte comum a ligar as perspectivas. O passo dado por Merleau-Ponty, no entanto, é ressaltar que não há mundo para mim como cogito e, depois, a descoberta de um cogito lateral que a ele também se dirige. O horizonte mostra-se em sua consistência e pregnância na presença de outrem, cujos gestos carregam sentido porque brotam de uma existência vertical que vivo. Essa é a aquisição que o aprofundamento na noção de instituição lega. Por espírito selvagem pode-se entender a abertura antepredicativa ao sentido do mundo de que deriva toda predicação, a dinâmica passividade-atividade comungada com outros num campo de significações no qual se comunicam instituído e instituinte – presente, passado e futuro. O espírito selvagem é aquilo que faz com que o espetáculo do mundo dê-se para mim e para outro como algo que não constituímos, que nos envolve por todos os lados e que vivemos na carne, em meio às fibras de suas solicitações e sentidos. Se é em minha carne que vivo a presença carnal do mundo, isso se dá por participação no ser bruto, enquanto solo pré-espiritual e iniciação àquele espírito selvagem “pelo qual nos interpenetramos uns nos outros, e nós próprios em nós para possuirmos o nosso tempo”. (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 192). Dessa maneira, ser-no-mundo implica ser-com-outros e a situação encarnada faz-se rodeada pela carne do mundo.

Embora siga na articulação entre vida perceptiva e reflexão característica de sua obra, tomando como tarefa de pensamento realizar – em seus novos termos – uma interrogação radical sobre o ser bruto (selvagem) que a atitude reflexiva pressupõe, ou “recuar para ver o mundo e o Ser” e reconhecer a “cumplicidade que temos com eles” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 107), esse algo de continuidade não esconde o reposicionamento. A parte negativa da nova posição emerge na autocrítica ao cogito tácito. A parte positiva vige na própria cunhagem da complexa noção de carne – cuja generalidade ontológica é fonte de controvérsias[10]. Com tal noção, Merleau-Ponty acentua a intersubjetividade originária (natural e histórica) e a dimensão aberta de nossa frequentação e envolvimento no segredo do mundo, nas visões do Ser. A carne é espessura vigente em nossa inerência ao espetáculo do mundo.

 

A película superficial do visível é apenas para minha visão e para meu corpo. Mas a profundidade sob essa superfície contém meu corpo e, por conseguinte, contém minha visão. Meu corpo como coisa visível está contido no grande espetáculo. Mas meu corpo vidente subentende esse corpo visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento um no outro. [...] De sorte que o vidente, estando preso no que vê, continua a ver-se a si mesmo: há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que, também ele sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí como disseram muitos pintores, o sentir-me olhado pelas coisas, daí minha atividade ser identicamente passividade [...]. É a essa Visibilidade, a essa generalidade do Sensível em si, a esse anonimato inato do Eu-mesmo que há pouco chamávamos de carne [...] (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 135).

 

A repercussão dessa reorientação possibilitada pelo conceito de carne sobre as discussões estéticas merleau-pontianas faz-se sentir menos como ruptura e mais como explicitação da possibilidade de uma ‘significação metafísica’ das expressões artísticas. Assim compreendemos como as deformações coerentes de El Greco ou Cézanne (segundo os exemplos fornecidos nos anos quarenta) ou como as modificações históricas do problema da perspectiva (tema dos anos cinquenta) sustentam-se sobre um instituído e são capazes de instituírem novos sentidos na cultura. A pintura oferece indicações sobre nossa abertura ao mundo, nossa iniciação ao sentido bruto, ao brotamento das coisas não numa pura objetividade, contudo em sua asseidade, em seu modo particular de vibrar, em sua verticalidade invisível percebida com outros.

Numa nota de trabalho do início de 1960, Merleau-Ponty fala do invisível como “ausência que conta”, “negativo que torna possível o mundo vertical, a união dos incompossíveis, o ser da transcendência” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 209). Embora os perfis ocultos, os versos visíveis a outros iniciem-nos às profundidades e cavidades do mundo, como modelo de transcendência que continuará sempre vigente no espetáculo, eles são apenas um não-visível, talvez uma invisibilidade primeira ou negatividade horizontal que participa da espessura das coisas e da minha. O invisível é mais propriamente certa armadura do visível, a verticalidade que impregna o mundo percebido e vivido[11]. Essa invisibilidade que participa do visível e nos lança no mundo vertical, relaciona-se com a noção de instituição. O invisível refere-se às dimensões que participam da visão sem serem dadas como propriedade de objetos, sendo aquilo que faz as coisas terem carne, serem experimentadas em sua pregnância e transcendência.

Numa reflexão encontrada logo no terceiro parágrafo do ensaio O olho e o espírito, Merleau-Ponty escreve: “É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os ‘outros’ [...] que me frequentam, que frequento, com os quais frequento um único ser atual, presente” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 17). Os outros são não apenas ‘sujeitos’, mas também ‘objetos’, são corpos que carregam uma significação latente concretizada na frequentação encarnada em conjunto no presente. E esse único ser atual não é um substrato, uma essência anterior a toda facticidade[12], porém o mundo que vemos participando de sua visibilidade, que toca nossa carne enquanto o tocamos, queno horizonte com suas dimensões invisíveis. É o mundo como iniciação ao ser que fornece a juntura em que há o concerto das coisas, estando elas situadas em um campo de relações diacríticas nas quais as figuras – com suas significações vivas – diferenciam-se sobre um pano de fundo.

O entrelaçamento carnal no mundo, a passagem por nosso corpo de um sentido bruto – portador daquela invisibilidade vertical que envolve esse contato – seria a contribuição da pintura para uma reflexão filosófica voltada à esfera pré-reflexiva. A filosofia poderia aprender com a pintura sua inerência, seu ser englobado por um mundo percebido e histórico: “Ora, essa filosofia por fazer é a que anima o pintor, não quando exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 40). Esse pensar por meio da pintura interessa a Merleau-Ponty enquanto algo que se realiza num corpo encravado no mundo, envolvido pelo olhar e solicitação das coisas, mas também por uma história presente. O último retorno à pintura no momento em que seu pensamento realiza um mergulho ontológico revela um ponto importante: não se trata de passar da fenomenologia do corpo à metafísica da carne, contudo de ressaltar as espessuras, nervuras e contatos das carnes do corpo e do mundo, da existência situada em que ambos conascem. A pintura é possibilidade de redescoberta da brotação do espetáculo do mundo: “Os modernos, como se sabe, liberaram muitos outros, acrescentaram muitas notas surdas à gama oficial de nossos meios de ver. Mas a interrogação da pintura visa, em todo caso, essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 25).

Não só as deformações coerentes modernas dizem algo sobre a percepção e a cultura, também os gestos da tradição precedente tocam o logos do mundo estético. Por isso Merleau-Ponty observa que as técnicas de perspectiva do Renascimento “encorajaram a pintura a produzir livremente experiências de profundidade e, em geral, apresentações do ser” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 34). A técnica de perspectiva, aquela que os teóricos e pintores renascentistas chamavam de perspectiva artificialis – em contraposição à perspectiva naturalis esférica dos Antigos –, não é telos da pintura, truque infalível ou descrição exata da visão humana do mundo. Como ele notara, o desenvolvimento da perspectiva planimétrica está associado à expectativa de um mundo dominado própria de uma época. A perspectiva renascentista é, em todo caso, um momento da informação poética do mundo, que se instituiu na cultura e abriu caminhos à pintura – também por reconhecer os limites de seus artifícios, inclusive admitindo sua não coincidência com a inserção viva do ponto de vista num campo.

A transição à modernidade nas artes plásticas, entretanto, é especialmente relevante para Merleau-Ponty: “Toda a história da pintura, seu esforço para se livrar do ilusionismo e para adquirir suas próprias dimensões têm uma significação metafísica” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 40). A questão não é sustentar um hegelianismo. A liberação do ‘ilusionismo’ também não é um fim. A história da pintura não se encerra nesse esforço. Contudo, tal acontecimento porta uma profunda significação no que tange à abertura humana no mundo. Qual é o sentido encontrado por Merleau-Ponty na arte moderna que faz com que ela tenha significação metafísica? De um ponto de vista negativo, trata-se de compreender que a arte não é “relação a um espaço e a um mundo de fora”, ou seja, uma técnica para representação do mundo em si. De um prisma positivo, o esforço moderno sinaliza que é “essa animação interna, essa irradiação do visível que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço, de cor” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 45). Ao romper com a busca da representação ‘objetiva’ de coisas no espaço geométrico, a arte moderna faz brilhar a carne do visível. Em meio às deformações coerentes que lhes são próprias, encontramos essa tarefa na consistência luminosa das frutas e faces e nas lacunas que compõem a paisagem do monte Sainte-Victoire em Cézanne, mas também na vibração que atravessa flores, campos, céus e rostos em Van Gogh.

Os acidentes biográficos daqueles pintores não precisam ser ignorados, mas não devem se sobrepor à inserção dos artistas num universo cultural, pois, juntas, essas facetas de carne participam da composição de suas obras. Certamente, categorizá-los como ‘pós-impressionistas’ não é suficiente para explicar o porquê de suas deformações coerentes comporem nosso horizonte visual e de sentido. De qualquer maneira, não é desprezível ambos terem compartilhado do clima e dos exercícios impressionistas e, a partir disso, terem encontrados os gestos que deram novas dimensões e matizes a frutas, flores, paisagens e faces. Indo além, não é acaso eles terem se defrontado com os problemas da profundidade e da perspectiva tão caros à pintura desde o Renascimento. Isto é, a presença carnal do mundo, a passagem de sua carne na carne de Cézanne e Van Gogh revela-se também em como eles tomam os problemas da pintura e os desviam em outras direções. Por isso se pode afirmar que “toda carne, mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma” e que “a pintura jamais está completamente fora do tempo, porque está sempre no carnal” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 51). A carne do mundo diz respeito à presença espessa das coisas ao redor, com sua luz e agitação interna, e às fibras que a sustentam neste tempo vivido, abrindo sentidos nesta situação. A pintura presentifica no visível algo do invisível que lhe dota de consistência, ela ilumina a ausência que conta.

Uma filosofia que se coloca como questão a brotação do sentido do mundo, encontra na pintura sinais da pregnância das coisas e um significado metafísico para os esforços expressivos. Para utilizar metáforas merleau-pontianas, a pintura interessa-lhe como oportunidade de nos reinstalar no espetáculo, de ver os peixes que trazem uma rede do ser, os frutos que brotam de certos ramos do ser. A pintura, porém, é apenas uma das expressões humanas e o que ela nos lembra vale para as demais: a arte faz-se no meio do mundo, junto a um instituído – no corpo e no espírito, na carne – que ela retoma e lança à frente. Não é por menos que no encerramento de O olho e o espírito, o último texto concluído por Merleau-Ponty antes de sua morte precoce, lemos: “Se as criações não são uma aquisição, não é apenas que, como todas as coisas, elas passam, é também que elas têm diante de si quase toda sua vida” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 56). No fundo, concedendo-se que a percepção é expressão primordial, na arte brilha novamente o mundo e a vida que nos envolvem, que se encontram atrás, diante e – jamais prontos integralmente – abrem-se a um adiante.

 

5. Considerações finais

 

Da fenomenologia da percepção à ontologia da carne, a filosofia de Merleau-Ponty permanece na tarefa de reanimar o espetáculo do mundo esquecido pela atitude natural e pelo pensamento objetivo, tomando continuamente a arte como expressão privilegiada para favorecer nosso reencontro com o evento de fundação do ser. Em linhas gerais, esse foi o argumento desenvolvido no decorrer deste trabalho. A ideia foi acompanhar o percurso reflexivo merleau-pontiano para apontar as nuances dos passos realizados pelo filósofo a partir de uma atenção a seus ensaios sobre a arte. Em específico, buscou-se, aqui, apontar uma constante ontológica patente em suas análises estéticas – com seu interesse particular pela pintura – através da discussão sobre as relações dos temas da percepção, da instituição e da expressão com sua reconquista do mundo como iniciação ao ser. O vínculo entre arte e ontologia no pensamento de Merleau-Ponty é bem conhecido, todavia, a tentativa deste trabalho foi empregar uma abordagem cronológica de suas obras como oportunidade de aproximação dos movimentos e tensões de sua filosofia com vistas à realçar possíveis articulações internas. O fato de o filósofo ter escrito um ensaio dedicado à arte nos distintos momentos de sua produção intelectual colabora no delineamento de uma trajetória coerente.

Para desenvolver a hipótese de trabalho, o artigo realizou três movimentos. Primeiro, foi apontada a compreensão merleau-pontiana da existência de uma significação metafísica das obras de arte, de uma manifestação do sentido do ser derivada da conexão entre percepção e expressão, conforme pode ser visto nos textos escritos por ele nos anos quarenta. Em seguida, discutiu-se como a noção de instituição, explorada nos textos dos anos cinquenta, contribui para que o filósofo demarque um terreno para a dimensão intersubjetiva da expressão artística, enfatizando a ligação das obras de arte com as tradições perceptiva e cultural, isto é, com a dimensão histórica que sustenta uma presente situação encarnada. Por fim, este trabalho abordou o direcionamento de Merleau-Ponty a uma ontologia através da concepção de carne. Nesse movimento final, sugeriu-se a existência de uma conexão da noção de carne com a de instituição, realçando que ela participa da tentativa merleau-pontiana de enfatizar a intersubjetividade vertical da iniciação humana ao mundo e sua contribuição para a delimitação da espessura perceptivo-cultural que permite a compreensão de como a criação artística favorece a experiência do ser. Dito isso, há um porvir das artes – agora presente – que compõe a espessura do nosso mundo, nossa experiência do ser, e merece (ao menos) uma breve menção.

Embora este artigo tenha ficado restrito àquilo que Merleau-Ponty escreveu sobre a arte, em especial, sobre a pintura, certas das discussões realizadas aqui tocam os legados contemporâneos de suas reflexões para os campos da estética e da produção artística. Sua preocupação com a pregnância das coisas, com a perspectiva vivida, com a espacialidade da perspectiva vivida, enfim, com a presença carnal do mundo ainda encontra reverberações no universo das artes. Não por acaso, nas últimas décadas, ele vem sendo reconhecido como influência importante para escolas artísticas contemporâneas como o monocromatismo, o expressionismo abstrato, o minimalismo e o neoconcretismo, e para formas expressivas como a performance e a instalação (POTTS, 2000; HOBBS, 2001; HELLSTEIN, 2017; FÓTI, 2020). Aprofundar tal ponto exigiria atenção a outros aspectos do pensamento merleau-pontiano e uma dedicação a questões das artes contemporâneas que vão além das possibilidades deste artigo. No momento, cabe apenas indicar: tanto as reflexões de Merleau-Ponty sobre a arte quanto as expressões contemporâneas lembram-nos que a representação objetiva do mundo é fenômeno cultural e que a vida perceptiva dá-se com corpos prenhes de cavidades, invisibilidades, grandezas próprias e significações abertas. Por isso mesmo, a expressão do espetáculo do mundo está continuamente por fazer, não se encerra num gesto, é a tarefa infinita que nos envolve, sempre em novos sentidos.

 

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MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: O Olho e o Espírito. Trad. Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 59-122 (B).

 

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RECEBIDO: 31/03/2022                                                    RECEIVED: 31/03/2022

 

APROVADO: 28/04/2022                                                   APPROVED: 28/04/2022



[1] Esse traço do pensamento merleau-pontiano pode ser ligado à ideia de ontologia indireta, derivada das anotações de O visível e o invisível, que demarca o recurso do filósofo à história da filosofia, às informações científicas e às artes em suas reflexões ontológicas. Numa nota de fevereiro de 1959, lemos: “Não se pode fazer uma ontologia direta. Meu método ‘indireto’ (o ser nos entes) é o único conforme ao ser” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 174). Já foi notado que a ontologia indireta pode ser relacionada à ideia de linguagem indireta, influenciada pela aproximação de Saussure realizada por Merleau-Ponty nos anos cinquenta e ligada à compreensão de que “o mundo e a percepção muda do corpo precede a linguagem” (LOW, 2000, p. 102). Entretanto, de modo ainda mais abrangente, a concepção dessa ontologia indireta pode ser resumida na ideia de que “o ser, no fundo, não é mais do que o ser total de nossa experiência” (SAINT AUBERT, 2006, p. 33). Cabe ainda observar a discussão de Saint Aubert sobre a relação que Merleau-Ponty estabelece entre seu interesse pela ciência como parte da experiência humana e suas discussões ontológicas (cf. SAINT AUBERT, 2006, p. 90ss).

[2] Note-se que a implicação ontológica das análises de Merleau-Ponty sobre a arte é um elemento bem consolidado na literatura secundária brasileira e estrangeira. Dois importantes intérpretes brasileiros do pensamento merleau-pontiano tratam do tema cf. CHAUÍ, Marilena. Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 467-491; bem como MOUTINHO, Luiz Damon S. Ontologia e artes em Merleau-Ponty. Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, 2010, p. 483-493. No caso da literatura secundária internacional, cf., por exemplo, JOHNSON, Galen (Ed.). The Merleau-Ponty Aesthetics Reader: Philosophy and Painting. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1993; e KAUSHIK, Rajiv. Art and Institution: Aesthetics in the Late Work of Merleau-Ponty. London: Continuum, 2011. Nesse sentido, este artigo busca contribuir com a discussão da dimensão ontológica de suas análises sobre arte lançando um olhar para algumas especificidades e articulações dos três momentos de seu pensamento.

[3] Para uma análise detida da apropriação merleau-pontiana das indicações fornecidas pela psicologia da Gestalt e sobre sua elaboração particular da noção de estrutura cf. FALABRETTI, 2008.

[4] Em uma passagem esclarecedora de Fenomenologia da percepção o filósofo escreve sobre a relação entre o enraizamento humano no mundo e a transcendência das coisas: “o que faz a ‘realidade’ da coisa é justamente aquilo que a subtrai à nossa posse. A aseidade da coisa, sua presença irrecusável, e a ausência perpétua na qual ela se entrincheira são dois aspectos inseparáveis da transcendência” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 313).

[5] Aqui, cabe uma observação sobre o que Merleau-Ponty entende como nossa abertura originária no ser e sua relação com o mundo percebido. Ele argumenta: “Se a coisa percebida não tivesse fundado em nós, para sempre, o ideal do ser que é aquilo que é, não haveria fenômeno do ser” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 519). Em outras palavras, nosso questionamento sobre o ser das coisas e sobre o ser em geral não se dissocia da experiência pré-reflexiva de um , que nos solicita e em direção ao qual movemos nosso corpo.

[6] Como observa Marilena Chauí, a ideia de instituição pode ser vista como prefigurada pela própria noção de estrutura, entretanto, sua caracterização mais específica na década de cinquenta é como “a experiência de um encadeamento de dimensões duradouras que pedem umas as outras numa sequência dotada de sentido ou numa história na qual as dimensões que se sedimentam, isto é, estão instituídas, não são resíduo nem sobrevivência, mas pregnância, fecundidade, abertura de uma posteridade” (CHAUÍ, 2012, p. 174). Ressalte-se que, embora Merleau-Ponty reconheça a noção de instituição como legado de Husserl, Chauí aponta que ela guarda uma “crítica à insensatez do projeto husserliano” de posse integral do mundo – insensatez que o próprio filósofo alemão reconhecera ao final de sua trajetória (cf. CHAUÍ, 2012, p. 158). Sobre a noção de instituição e sua relação com a arte cf. KAUSHIK, 2011, p. 1-2.

[7] Referimo-nos a Hegel pois se trata de um interlocutor merleau-pontiano no que concerne às reflexões sobre história de A linguagem indireta e as vozes do silêncio (cf. 2013b, p. 104ss). Enquanto a suposição de uma teleologia própria à filosofia da história hegeliana é colocada em questão, a orientação à fecundidade da ação, da obra é tomada como concepção valiosa para a compreensão de como um evento situado abre-se a um futuro indefinido (cf. MERLEAU-PONTY, 2013b, p. 106). Sobre a recusa de Merleau-Ponty de um desenvolvimento pré-determinado de a cultura ver também as notas do curso “O campo da cultura” (2003, p. 51ss).

[8] Merleau-Ponty sintetiza bem esse aspecto de sua compreensão de verdade em “O campo da cultura”. Vejamos o que ele anota: “Conquista do sentido e evacuação do sentido, realização que é também destruição. Toda instituição comporta esse duplo aspecto, fim e começo, Endstiftung e ao mesmo tempo Urstiftung [...]. A evidência, das Erlebnis der Wahrheit, é a experiência dessa dupla relação. De uma retomada que é perda, não totalização, e que justamente por essa razão pode abrir um outro devir de conhecimento” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 51). Em outra passagem, no resumo dos cursos sobre instituição, ele é ainda mais claro: “Mesmo no campo do saber exato, é a uma concepção ‘estrutural’ da verdade (Wertheimer) que se deve tender. Há verdade no sentido de um campo comum aos diversos empreendimentos de saber” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 63). Tal anotação é relevante por apontar para uma concepção de verdade não como adequação de uma visão ou proposição a um objeto determinado, sim como experiência de um campo aberto em que o sentido dá-se e se refaz atravessado pela historicidade do ser-no-mundo. Vale ainda observar que nas notas do curso “O campo da cultura” e no mencionado resumo geral, o filósofo realiza reflexões valorosas sobre a intersubjetividade como fruto da participação em um mesmo mundo cf. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 52, p. 62).

[9] Novamente, a ênfase ontológica propiciada pela noção de carne implica menos uma ruptura do que uma radicalização merleau-pontiana de seus passos precedentes. Esse aspecto é sintetizado por Fabio Di Clemente da seguinte maneira: “Há uma ‘relação de abraço’ entre o corpo e o ser percebido, de modo que [...] o retorno fenomenológico à ‘coisa mesma’ se radicaliza perseguindo a ‘inerência’ entre percipiente e percebido em direção à relação ‘carnal’ (DI CLEMENTE, 2006, p.361).

[10] Segundo Michel Haar, por exemplo, o projeto ontológico merleau-pontiano conformaria uma metafísica na medida em que sua volta ao mundo sensível pelo conceito de carne implicaria uma universalização do Sensível, como inclusão de todas as dimensões e independente de história e fala, que seria uma abstração metafísica (cf. HAAR, 1999). Embora possam ser reconhecidos os riscos que a utilização de uma noção ampla como a de carne porta, é questionável a interpretação de que ela implica uma determinação do Ser através de um ente. Antes de limitação do ontológico por um aspecto ôntico, de um Ser em geral por uma região de entes (no caso, entes sensíveis), a carne diz respeito à abertura no mundo, na qual visível e invisível não são âmbitos cindidos, mas entrelaçados e compositores de sentido. Portanto, não se trata de reduzir o Ser ao Ser percebido entendido como reunião de qualidades sensíveis, mas de reconhecer que assumir o Ser como produto da reflexão, análise implica recusar a consistência de um portador de sentido (pleno de positividades e negatividades, de visibilidades e invisibilidades). Para uma análise dos limites da interpretação de Haar cf. FERRAZ, 2009.

[11] Sobre o invisível como negativo no pensamento de Merleau-Ponty, em seu contraste com a dialética sartriana entre ser e nada e sua proximidade com a ideia de grandeza negativa kantiana cf. MOUTINHO, 2004.

[12] Merleau-Ponty é explícito em O visível e o invisível: “É, portanto, à experiência que pertence o poder ontológico último, e as essências, as necessidades de essência, a possibilidade interna ou lógica, não obstante a solidez e a incontestabilidade que possui aos olhos do espírito, apenas têm força e eloquência porque todos os meus pensamentos e os pensamentos alheios são tomados no tecido de um único Ser. O puro espectador em mim, que ergue toda coisa à essência, que produz suas ideias, somente tem garantias de com elas tocar o Ser porque emerge numa experiência atual rodeada por experiências atuais, pelo mundo atual, pelo Ser atual que é o solo do Ser predicativo” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 110). Assim, ele leva para o plano ontológico a preocupação de reencontrar o solo de que deriva a reflexão. Isso não implica recusar toda expressão do ser pela linguagem, mas reconhecer que a fala opera sobre um mundo que não constitui e que fornece o horizonte articulado de que ela parte.